Gil Luminoso
(2006)1. Preciso aprender a só ser (04:45)
Preciso aprender a só ser
Gilberto Gil
Sabe, gente
É tanta coisa pra gente saber
O que cantar, como andar, onde ir
O que dizer, o que calar, a quem querer
Sabe, gente
É tanta coisa que eu fico sem jeito
Sou eu sozinho e esse nó no peito
Já desfeito em lágrimas que eu luto pra esconder
Sabe, gente
Eu sei que no fundo o problema é só da gente
É só do coração dizer não quando a mente
Tenta nos levar pra casa do sofrer
E quando escutar um samba-canção
Assim como
Eu Preciso Aprender a Ser Só
Reagir
E ouvir
O coração responder:
“Eu preciso aprender a só ser”
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
2. Aqui e agora (05:49)
Aqui e agora
Gilberto Gil
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Aqui, onde indefinido
Agora, que é quase quando
Quando ser leve ou pesado
Deixa de fazer sentido
Aqui, onde o olho mira
Agora, que o ouvido escuta
O tempo, que a voz não fala
Mas que o coração tributa
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Aqui, onde a cor é clara
Agora, que é tudo escuro
Viver em Guadalajara
Dentro de um figo maduro
Aqui, longe, em Nova Deli
Agora, sete, oito ou nove
Sentir é questão de pele
Amor é tudo que move
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Aqui perto passa um rio
Agora eu vi um lagarto
Morrer deve ser tão frio
Quanto na hora do parto
Aqui, fora de perigo
Agora, dentro de instantes
Depois de tudo que eu digo
Muito embora muito antes
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
Outras gravações:
“Carla visita gilberto gil (só chamei porque te amo)”, Carla Visi, MZA 2001
“Gilberto Gil – original album series (cd 4)”, Gilberto Gil, Warner Music 2012
“Gilberto Gil revisitado”, Gilberto Gil, Dubas 2004
“Refavela”, Gilberto Gil, Philips 1977
“A voz de…”, Gilberto Gil, Polygram 1981
“Refavela”, Gilberto Gil, Polysom 2017
“Giluminoso”, Gilberto Gil, Sarapui 1999
“Bom pra k 7”, Gilberto Gil, Warner Music 1996
“2 é demais”, Gilberto Gil, Warner Music 1996
“Vida”, Gilberto Gil, Warner Music 1984
“Os grandes mestres da MPB”, Gilberto Gil, Warner Music 1996
“Refavela”, Gilberto Gil, Warner Music 1994
“Projeto esp.”, Radio Musical FM/SP, Warner Music 1995
“O ‘aqui e agora’ reivindicado pelos místicos: a situação confortável, que deveria ser buscada e atingida pelo homem, de integridade na vivência de cada momento, de cada centímetro de espaço ocupado; o ethos, no sentido mais absoluto e profundo da palavra.
“Aqui e Agora é de uma sensorialidade tanto física quanto álmica, quer dizer, fala de como ver, ouvir, tocar as superfícies do que é sólido e do que é etéreo, denso e sutil; de uma visão voltada para dentro, o farol dos olhos iluminando a visão interior.
“A letra é uma colagem de fragmentos de manifestações mentais não necessariamente associáveis: dissociadas. Como, na estrutura subatômica, a dinâmica das partículas: vagalumes apagando e acendendo em lugares inusitados – estando aqui, e já ali; estando sim, e já não…”
3. Copo vazio (04:32)
Copo vazio
Gilberto Gil
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar
É sempre bom lembrar
Guardar de cor
Que o ar vazio de um rosto sombrio
Está cheio de dor
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho
Que o vinho busca ocupar o lugar da dor
Que a dor ocupa a metade da verdade
A verdadeira natureza interior
Uma metade cheia, uma metade vazia
Uma metade tristeza, uma metade alegria
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
Outras gravações:
“Dez canções”, Adriana Maciel
“Lisboa-Rio”, Antonio Chainho, Movieplay
“Sinal fechado”, Chico Buarque, Universal Music
“As raras e assinadas”, Zizi Possi, Polygram Music
“A musica de Gilberto Gil”, Chico Buarque, Fontana/Polygram 1977
“Coleção Chico Buarque”, Chico Buarque, Sony Music 2010
“Historia da MPB”, Gilberto Gil, Abril Cultural 1982
“O rancho do novo dia”, Gilberto Gil, Philips 1981
“Ao vivo”, Gilberto Gil, Polygram Music 1998
“Giluminoso”, Gilberto Gil, Biscoito Fino 2006
“A arte de Gilberto Gil’, Gilberto Gil, Universal Music 2005
“Série gold”, Gilberto Gil, Universal Music 2002
“Ao vivo”, Gilberto Gil, Universal Music 2000
“O seu amor”, Gilberto Gil, Universal Music 2004
“Lugar comum”, Gilberto Gil, Universal Music 2008
“Rio Eu Te Amo – t.s”, Sony Music, Gilberto Gil e Chico Buarque 2014
“Gil na delas”, Zizi Possi, BMG 2005
“As raras e assinadas”, Zizi Possi, Polygram 1995
“T.s vidas em jogo”, Zizi possi, Record 2011
“Songbook Gilberto Gil – vol 3”, Zizi Possi e Helio Delmiro 2015
“Chico Buarque estava sendo hipercensurado naquele momento, e quis responder a isso fazendo um disco só com músicas de colegas. Por isso pediu a Paulinho da Viola, a Caetano, a mim e a outros que compusessem para ele.
“Eu estava em casa, sentado no sofá, já de madrugada. Tinha tomado um copo de vinho no jantar, e o copo tinha ficado na mesa. Pensando no que é que eu ia fazer pro Chico, eu de repente vi o copo vazio e concentrei o olhar nele para dali extrair emanações de imagens e significados, a princípio como se para nada obter, mas logo constatando: ‘O copo está vazio, mas tem ar dentro’. Disso me vieram idéias acerca das camadas de solidificação e rarefação que vão se sucedendo nas coisas – e disso, a música.
“A letra faz uma viagem ao mundo das coisas sutis, transcendentes, mas suas primeiras frases são muito significativas em termos do que estava acontecendo: regime de exceção, censura, o Chico privado de sua liberdade artística plena etc. Embora não fosse essa a intenção principal, as dificuldades da situação contingencial estavam necessariamente metaforizadas, e qualquer crítica à canção em termos de fuga da realidade esbarraria no fato de que, ao contrário, a letra parte da realidade e não foge dela; foge com ela, se for o caso…”
4. Retiros espirituais (05:33)
Retiros espirituais
Gilberto Gil
Nos meu retiros espirituais
Descubro certas coisas tão normais
Como estar defronte de uma coisa e ficar
Horas a fio com ela
Bárbara, bela, tela de TV
Você há de achar gozado
Barbarela dita assim dessa maneira
Brincadeira sem nexo
Que gente maluca gosta de fazer
Eu diria mais, tudo não passa
Dos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo o que eu disse
Reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, ó
Luar tão cândido
Nos meus retiros espirituais
Descubro certas coisas anormais
Como alguns instantes vacilantes e só
Só com você e comigo
Pouco faltando, devendo chegar
Um momento novo
Vento devastando como um sonho
Sobre a destruição de tudo
Que gente maluca gosta de sonhar
Eu diria, sonhar com você jaz
Nos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo que eu disse
Reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, ó
Luar tão cândido
Nos meus retiros espirituais
Descubro certas coisas tão banais
Como ter problemas ser o mesmo que não
Resolver tê-los é ter
Resolver ignorá-los é ter
Você há de achar gozado
Ter que resolver de ambos os lados
De minha equação
Que gente maluca tem que resolver
Eu diria, o problema se reduz
Aos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo que eu disse
Reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, ó
Luar tão cândido
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
“Retiros Espirituais lança um olhar singelo, simplório, sobre a questão filosófica do ser e não ser; sobre o paradoxo do princípio da incerteza, do que é e não é. É uma das minhas músicas sobre o wu wei, a ação-não-ação, a idéia de superação e alcance do ser, onde tudo é; sobre o fato de que o pensamento consciente, sob a égide da volição, ainda é o que se chamaria o estágio zen, o satori, o samadhi, o sat ananda indiano, onde arqueiro, arco e alvo se confundem e sujeito, ato e objeto são uma só coisa.
“Talvez seja a minha obra-prima nesse sentido, porque a mais engenhosa do ponto de vista poemático; uma letra que transcende ao aspecto comum da letra de música, na verdade um poema musicado. No trato da sua criação, os versos não serviram apenas para preencher os vazios das caixas das frases sonoras. Quando eu sentei para escrever, eu já escrevi com o sentimento do poema, como se já houvesse algo sendo dito e o frasear fosse apenas uma explicação do que estava sendo dito. Como uma nuvem que fosse um poema cujos versos fossem a chuva: a chuva é depois da nuvem, dissolução em gotas, fragmentação do ‘denso-condenso’ que é a nuvem: assim eram os versos em relação ao poema e vice-versa.
“Eu estava sozinho na sala de jantar, uma hora da manhã, a família já recolhida, tendo ido dormir, após uma daquelas noites que eu tinha passado com todos sentado defronte a televisão vendo o jornal e a novela, e quis buscar e revelar através da escrita, numa espécie de poema-espírito, poema-situação, o que era estar ali diante do mistério da solidão, na meditação, no compartilhar do silêncio que substituía o ruído da vida, da casa, na madrugada, com a sua capacidade de assepcia, de filtragem do que tinha sido o dia. E a canção foi sendo feita, letra e música juntas.
“É uma das músicas minhas que mais prezo, por ser das primeiras que dão uma radiografia da minha subjetividade e visceralidade interior, álmica. E é dividida em três partes para apresentar o movimento de tese-antítese-síntese de que gosto muito.”
5. O seu amor (02:11)
O seu amor
Gilberto Gil
O seu amor
Ame-o e deixe-o
Livre para amar
Livre para amar
Livre para amar
O seu amor
Ame-o e deixe-o
Ir aonde quiser
Ir aonde quiser
Ir aonde quiser
O seu amor
Ame-o e deixe-o brincar
Ame-o e deixe-o correr
Ame-o e deixe-o cansar
Ame-o e deixe-o dormir em paz
O seu amor
Ame-o e deixe-o
Ser o que ele é
Ser o que ele é
Ser o que ele é
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
Outras gravações:
“O seu amor”, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia, Universal Music 2004
“Doces bárbaros 1”, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia, Philips Music 1976
“Doces bárbaros 2”, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia, Universal Music 2006
“Raridades(1975/1981)”, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia, Universal Music 2006
“Doces Bárbaros III {ao vivo}”, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia, Universal Music 2003
“Giluminoso”, Gilberto Gil, UNB 1999
“Casa aberta”, Janaina Fellini, Tratore Distribuição De CD’s 2015
“Outros barbaros”, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia, Biscoito Fino 2003
“Raridades anos 60 e 70”, Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil e Caetano Veloso, Universal Music 2011
“Sujeito estranho”, Ney Matogrosso, Universal Music 2008
“Geração pop”, Ney Matogrosso, Warner Music 1994
“Projeto fanzine – dose dupla – cd 2”, Ney Matogrosso, Warner Music 2011
“70 anos (box 6 cds)”, Ney Matogrosso, Warner Music 2015
“Dois gênios – Caetano Veloso e Gilberto Gil”, Ney Matogrosso, Warner Music 2009
“Este e o Gil que eu gosto”, Ney Matogrosso, Warner Music 1995
“A intenção foi brincar com o slogan da ditadura, ‘ame-o ou deixe-o’, promovendo, através da substituição de uma preposição, um corte profundo de ruptura no significado reducionista, possessivista e parcial do aforismo oficial, símbolo do fechamento e da exclusão maniqueísta, para criar um outro, com outra moral, a do amor – e, portanto, absolutamente generoso, democrático e libertário. A concepção de ‘amor livre’ é também reiterada, reintroduzida como objeto de respeito e admiração à liberdade no amor, e ampliada até para um sentido mais cristão, de amor irrestrito.
“Minimalista já na escolha de uma máxima tão concisa e conclusa, a letra também o é na construção – na maneira como suas significações se sobrepõem como degraus de uma escada tosca, de pedreiro, somando-se com um certo desejo geométrico e uma ambição de organização aritmética de fatores numa conta de adição feita com números muito simples.”
6. Tempo rei (06:00)
Tempo rei
Gilberto Gil
Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo
Transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos
Pães de Açúcar
Corcovados
Fustigados pela chuva e pelo eterno vento
Água mole
Pedra dura
Tanto bate que não restará nem pensamento
Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei
Pensamento
Mesmo o fundamento singular do ser humano
De um momento
Para o outro
Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos
Mães zelosas
Pais corujas
Vejam como as águas de repente ficam sujas
Não se iludam
Não me iludo
Tudo agora mesmo pode estar por um segundo
Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
“Tempo Rei é a minha versão para uma questão colocada em Oração ao Tempo, onde a frase-chave para mim é: ‘Quando eu tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido’ – quer dizer: o tempo desaparecerá, eu desaparecerei; o tempo e aquele que o inventa, o ego, estarão ambos desinventados, portanto. Na música do Caetano parece haver um niilismo essencial, um mergulho no nada absoluto e uma resignação plena, orgulhosa e altiva com a extinção. Na minha tem uma coisa mais cristã; uma, quem sabe, quimera; um vago desejo de permanência e de transformação.
“Em todo o meu filosofar popular sobre o existente e o eterno, há sempre uma possível porta aberta pra algo pós. Para mim é muito difícil não crer no pós sem não crer no pré. Como me é absolutamente impossível anular a existência do anterior a mim, também me é muito difícil aceitar a inexistência do posterior; para mim são coisas iguais. Assim como eu ‘não posso esquecer que um dia houve em que eu não estava aqui’ (Cada Tempo em Seu Lugar), um dia haverá em que eu não estarei aqui: mas esse dia haverá; haverá o ser das coisas que serão independentes de mim então. Eu não imagino a extinção de tudo com a extinção do meu ego. A morte de todas as pessoas que nós conhecemos até aqui não extinguiu o mundo – nem o que foi anterior a elas, nem o que lhes foi posterior; por que esse milagre aconteceria justo comigo? Eu levaria tudo comigo?
“Aí reside para mim um problema do existencialismo. Aí, e só aí, eu esbarro um pouco em Sartre, apesar do meu grande amor por ele, e ele não me convence. Sartre morreu e o mundo está aí! Por isso à sua filosofia eu chamaria mais de individualismo do que existencialismo. Um existencialismo individualista, não algo universalizável.”
*
O provérbio “água mole em pedra dura etc.” fala da eficácia que as coisas acabam tendo ao durarem no tempo. Na letra, a omissão do final do ditado, “até que fura” (cujo significado é o da ação de interferência no mundo, dentro do plano do tempo “real”, cronológico), e a sua substituição pela expressão “que não restará nem pensamento”, além de servirem para romper a expectativa de enunciação completa de um dito conhecido, servem, segundo Gil, sobretudo ao seu propósito de sugerir a idéia de corte da dimensão do tempo enquanto duração para a dimensão do tempo “enquanto eternidade sorvedora de todas as suas dimensões, para a sua transdimensionalização”; de saída “do tempo-existência para o tempo-essência (o eterno)”; do tempo para o “atempo” – onde, nas palavras do compositor, “já nem pensar é possível”.
7. O som da pessoa (01:25)
O som da pessoa
Gilberto Gil
Bené Fonteles
A primeira pessoa soa como eu sou
A segunda pessoa soa como tu és
A terceira pessoa soa como ele
e ela também
Qualquer pessoa soa
toda pessoa
boa
soa
bem
© Gege Edições Musicais / © Fortaleza Editora Musical LTDA.
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
participação especial – Bené Fonteles
Outras gravações:
“Ação da cidadania contra a fome, a miséria e pela vida”2001
“Giluminoso”, Gilberto Gil, Biscoito Fino 2006
“Jornal le monde”, Gilberto Gil, Biscoito Fino 2014
8. Cérebro eletrônico (05:18)
Cérebro eletrônico
Gilberto Gil
O cérebro eletrônico faz tudo
Faz quase tudo
Quase tudo
Mas ele é mudo
O cérebro eletrônico comanda
Manda e desmanda
Ele é quem manda
Mas ele não anda
Só eu posso pensar se Deus existe
Só eu
Só eu posso chorar quando estou triste
Só eu
Eu cá com meus botões de carne e osso
Hum, hum
Eu falo e ouço
Hum, hum
Eu penso e posso
Eu posso decidir se vivo ou morro
Porque
Porque sou vivo, vivo pra cachorro
E sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Em meu caminho inevitável para a morte
Porque sou vivo, ah, sou muito vivo
E sei
Que a morte é nosso impulso primitivo
E sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Com seus botões de ferro e seus olhos de vidro
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
Outras gravações:
“Barulhinho bom”, Marisa Monte, EMI Music
“A arte de Gilberto Gil”, Polygram/Fontana 1985
“Multishow ao vivo – Caetano e Maria Gadú”, Caetano Veloso e Maria Gadú, Universal Music 2011
“Gilberto Gil revisitado”, Gilberto Gil, Dubas Music 2004
“Personalidade – vol. 2”, Gilberto Gil, 2 Novodisc Mídia Digital 2013
“Giluminoso”, Gilberto Gil, Biscoito Fino 2006
“UNB”, Gilberto Gil 1999
“Millennium”, Gilberto Gil, Universal Music 2004
“Gilberto Gil”, Gilberto Gil, Universal Music 2004
“Quilombo”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
“Quanta gente veio ver”, Gilberto Gil, Warner Music 1998
“It’s good to be alive – anos 90”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
“Barulinho bom”, Marisa Monte, EMI Music 2004
“Viver a vida”, Mylena, Som Livre 2009
“Tempos modernos”, Mylene, Som Livre 2009
“Eu estava preso havia umas três semanas, quando o sargento Juarez me perguntou se eu não queria um violão. Eu disse: ‘Quero’. E ele me trouxe um, com a permissão do comandante do quartel. O violão ficou comigo uns quinze dias. Aí, eu, que até então não tinha tido estímulo para compor (faltava a ‘voz’ da música, o instrumento), fiz Cérebro Eletrônico, Vitrines e Futurível – além de uma outra, também sob esse enfoque, ou delírio, científico-esotérico, que possivelmente ficou apenas no esboço e eu esqueci.
“O fato de eu ter sido violentado na base de minha condição existencial – meu corpo – e me ver privado da liberdade da ação e do movimento, do domínio pleno de espaço-tempo, de vontade e de arbítrio, talvez tenha me levado a sonhar com substitutivos e a, inconscientemente, pensar nas extensões mentais e físicas do homem, as suas criações mecânicas; nos comandos tele-acionáveis que aumentam sua mobilidade e capacidade de agir e criar. Porque essas são idéias que perpassam as três canções.”
9. A raça humana (04:27)
A raça humana
Gilberto Gil
A raça humana é
Uma semana
Do trabalho de Deus
A raça humana é a ferida acesa
Uma beleza, uma podridão
O fogo eterno e a morte
A morte e a ressurreição
A raça humana é
Uma semana
Do trabalho de Deus
A raça humana é o cristal de lágrima
Da lavra da solidão
Da mina, cujo mapa
Traz na palma da mão
A raça humana é
Uma semana
Do trabalho de Deus
A raça humana risca, rabisca, pinta
A tinta, a lápis, carvão ou giz
O rosto da saudade
Que traz do Gênesis
Dessa semana santa
Entre parênteses
Desse divino oásis
Da grande apoteose
Da perfeição divina
Na Grande Síntese
A raça humana é
Uma semana
Do trabalho de Deus
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
A música foi feita após uma estada de Gilberto Gil em Israel, durante a qual visitou os locais bíblicos como o túmulo de Jesus, a casa de Lázaro e outros. “O mote – ‘a raça humana é uma semana do trabalho de Deus’ – surgiu em Tel-Aviv”, reporta o autor. “Ao voltar, elaborei a letra toda. A canção é a emanação das sensações vividas por mim naqueles lugares”.
*
– Às vezes, ao final de uma frase melódica que requer uma palavra oxítona também pode se justapor uma proparoxítona; o cantar faz a acentuação recair tanto na antipenúltima quanto na última sílaba. É o que acontece em A Raça Humana no verso que termina com “gênesis”, proporcionando o fenômeno rímico com “giz”.
Gil: “Sem descaracterizar o acento gramatical e sem criar a sensação de problemas prosódicos. Porque, você quase não ouve o ‘sis’ da palavra, falada: a ênfase fica no ‘gê’; mas na música, você canta ‘gênesís’. Soa bem a incidência acentual nas duas sílabas. É a liberdade que só a música dá, de entoar diversamente.”
– Uma particularidade da poesia de música, porque esse tipo de rima só se efetua realmente, claramente, na melodia. E depois, mais abaixo, você ainda diz ‘parênteses’, rimando com ‘gênesis’ (e ‘giz’).
*
Gil: “Eu adorava essa expressão do Caetano Veloso, ‘ferida acesa’ [de Luz do Sol: “Marcha o homem sobre o chão/ Leva no coração uma ferida acesa”], e resolvi transpô-la, traduzi-la para o contexto de A Raça Humana. ‘Ferida acesa’: como se o pus fosse luz.”
– Luz e pus, beleza e podridão.
“A idéia é essa.”
10. Você e você (03:52)
Você e você
Gilberto Gil
Diz o I Ching:
Divino é saber
O que distingue
Você de você
Você dos outros
Do outro você
Você do mundo
Do você do ser
Você num canto
Vive o espanto
Enquanto o outro você
Sai pra viver
Por aí
Tanto pranto, tanta dor
Seu irmão
Pede o seu amor
Diz o I Ching:
Divino é saber
São dois no ringue
Você e você
Você que ataca
Pra se defender
Que beija a lona
Pra poder vencer
Você num canto
Apanha tanto
Enquanto o outro você
Bate demais
Deus do céu
Quanto sangue pelo chão
Seu irmão
Pede o seu perdão
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
11. Superhomem, a canção (03:41)
Superhomem, a canção
Gilberto Gil
Um dia
Vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter
Que nada
Minha porção mulher, que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É que me faz viver
Quem dera
Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera
Ser o verão o apogeu da primavera
E só por ela ser
Quem sabe
O Superhomem venha nos restituir a glória
Mudando como um deus o curso da história
Por causa da mulher
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
“Eu estava de passagem pelo Rio, indo para os Estados Unidos fazer a excursão do lançamento do Nightingale – um disco gravado lá, com produção do Sérgio Mendes -, em março e abril de 79, e gravar o disco Realce, ao final da excursão. Na ocasião eu estava morando na Bahia e não tinha casa no Rio, por isso estava hospedado na casa do Caetano. Como eu tinha que viajar logo cedo, na véspera da viagem eu me recolhi num quarto por volta de uma hora da manhã.
“De repente eu ouvi uma zuada: era Caetano chegando da rua, falando muito, entusiasmado. Tinha assistido o filme Superhomem. Falava na sala com as pessoas, entre elas a Dedé [Dedé Veloso, mulher de Caetano à época]; eu fiquei curioso e me juntei ao grupo. Caetano estava empolgado com aquele momento lindo do filme, em que a namorada do Superhomem morre no acidente de trem e ele volta o movimento de rotação da Terra para poder voltar o tempo para salvar a namorada. Com aquela capacidade extraordinária do Caetano de narrar um filme com todos os detalhes, você vê melhor o filme ouvindo a narrativa dele do que vendo o filme… Então eu vi o filme. Conversa vai, conversa vem, fomos dormir.
“Mas eu não dormi. Estava impregnado da imagem do Superhomem fazendo a Terra voltar por causa da mulher. Com essa idéia fixa na cabeça, levantei, acendi a luz, peguei o violão, o caderno, e comecei. Uma hora depois a canção estava lá, completa. No dia seguinte a mostrei ao Caetano; ele ficou contente: ‘Que linda!’ E eu viajei para os Estados Unidos. Fiz a excursão toda e, só quando cheguei a Los Angeles, um mês e tanto depois, para gravar o disco, foi que eu vi o filme. Durante a gravação, uma amiga americana, Olenka Wallac, que morava em Los Angeles na ocasião, me levou para ver.
“A canção foi feita portanto com base na narrativa do Caetano. Como era Superhomem – O Filme, ficou Superhomem – a Canção; não tinha certeza se ia manter esse título ao publicá-la, mas mantive.”
Das relações entre o poema e a melodia no processo de composição – “Como Retiros Espirituais, Superhomem – a Canção é uma das poucas que eu fiz assim: música e letra ao mesmo tempo. É uma canção a serviço de uma letra, atrás de um sopro da poesia, mas com os versos também se submetendo a uma necessidade de respiração da canção. Há momentos em que a extensão do verso determina o estender-se da frase musical. Em outros, para se dar determinadas pausas e realizar o conceito de simetria e elegância, a extensão da frase poética se adequa à do fraseado melódico.
“Assim, depois de ‘Um dia’, há o corte e, lá adiante, ‘Que nada’, depois ‘Quem dera’ e depois ‘Quem sabe’ já surgem condicionados pelo ‘Um dia’ do início. A frase musical de ‘Um dia’ condicionou a extensão, o corte e a escolha dessas interjeições – ‘Que nada’, ‘Quem dera’ e ‘Quem sabe’. (Mesmo no primeiro caso – ‘Um dia’ -, também se reinvindica ali um sentido de interjeição; embora na construção da frase, do ponto de vista gramatical, possa não ser considerado assim, do ponto de vista do canto, é.)”
Questões de métrica e simetria; e de mnemônica – “A música tem uma cadência descansada, escorrida, e umas quebras interessantes. A melodia muda, a métrica é regular (as notas se alteram, mas os tempos são iguais). Você tem quatro estrofes com versos de 2, 14, 12 e 6 sílabas cada – assimétricas na distribuição interna, mas simétricas nas configurações finais. [A estrofe de abertura é ligeiramente diferente: o terceiro verso também apresenta 14 sílabas poéticas].
12. Rebento (05:37)
Rebento
Gilberto Gil
Rebento, substantivo abstrato
O ato, a criação, o seu momento
Como uma estrela nova e o seu barato
Que só Deus sabe lá no firmamento
Rebento, tudo que nasce é rebento
Tudo que brota, que vinga, que medra
Rebento raro como flor na pedra
Rebento farto como trigo ao vento
Outras vezes rebento simplesmente
No presente do indicativo
Como a corrente de um cão furioso
Como as mãos de um lavrador ativo
Às vezes mesmo perigosamente
Como acidente em forno radioativo
Às vezes, só porque fico nervoso
Às vezes, somente porque eu estou vivo
Rebento, a reação imediata
A cada sensação de abatimento
Rebento, o coração dizendo: “Bata”
A cada bofetão do sofrimento
Rebento, esse trovão dentro da mata
E a imensidão do som
E a imensidão do som
E a imensidão do som desse momento
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
13. Metáfora (04:16)
Metáfora
Gilberto Gil
Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: “Lata”
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: “Meta”
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
Outras gravações:
“Cada tempo em seu lugar”, Cacala Carvalho e João Braga, Mills Records 2012
“Somos o amanhã”, Coral Infantil, Ass. Cult. Canarinhos Da Amazônia 2003
“Água pura da fonte”, Elisa Queiroga, Elisa Queiroga Barros 2002
“Bandadois”, Gilberto Gil, Gege Produções Artísticas 2009
“Caixa a conspiração de Gilberto Gil – CD bandadois”, Gilberto Gil, Gege Produções Artísticas 2010
“Giluminoso”, Gilberto Gil, UNB 1999
“Um banda um”, Gilberto Gil, Warner Music 1993
“Movimento circular”, Gilberto Gil, Maria Ignes Senne Costa 2005
“Herança”, Gilberto Gil, Perfil 2003
“Metáfora é metalinguística: o poeta falando sobre a poesia: sobre a própria linguagem poética a se desvelar, se dizer o que é, se revelar.
“Uma canção que transcende ao propósito genérico da minha obra que é ser uma obra de compositor, como se houvesse um ligeiro deslocamento do ser poético para cima do ser musical, ou talvez para o lado; de todo modo, um deslocamento qualquer que lhe dá distinção.”
“Metáfora: uma palavra com contundência sonora, traduzida diretamente do grego.”
Inspiração durante a elaboração – “Só um ano, ou mais, depois de escrever o primeiro terceto num caderno e deixá-lo de lado, eu retornei à letra. Desde o início eu queria falar do significado da poesia – poetar o poetar -, mas até ali a palavra ‘metáfora’ ainda não tinha me ocorrido. Foi somente quando, ao começar o segundo terceto, surgiu a idéia de ‘meta’, que o termo me veio, e com ele a consciência de que, dali em diante, eu passaria a construir a letra para chegar à palavra ‘metáfora’ no fim – para culminar com ela e com ela titular a canção.”
Dúvidas de percurso – “Enquanto escrevia, eu relutei em usar ‘tudo-nada’ [aqui, tal como o composto foi grafado no encarte do disco com a música] como uma palavra só, mas resolvi mantê-la assim para marcar a idéia da condensação dos sentidos, por mais opostos, num mesmo e único termo; só faltou radicalizar tirando o hífen e deixando ‘tudonada’, grafia [sugerida pelo coordenador deste livro] que passo a adotar. Outra relutância foi em admitir a brincadeira contida no verso ‘deixe a sua meta fora da disputa’ – o desmembramento da palavra antes de ela aparecer. Pareceu-me de início gratuito, mas acabei achando engenhoso.”
À patrulha ideológica – “Eu queria responder às cobranças, que nos eram feitas na época, de conteúdos mais dirigidamente politico-sociais, e falar da independência do poeta; do fato de a poesia e a arte em geral pertencerem ao mundo da indeterminação, da incerteza, da imprevisibilidade, da liberdade, do paradoxo. O poeta Haroldo de Campos se identificou com a canção, que de fato é sobre – e para – todos nós: eles, os concretistas, que foram atacados pelos conteudistas, e nós, os baianos, que abraçamos a causa deles.”
14. Meditação (01:51)
Meditação
Gilberto Gil
Dentro de si mesmo
Mesmo que lá fora
Fora de si mesmo
Mesmo que distante
E assim por diante
De si mesmo, ad infinitum
Tudo de si mesmo
Mesmo que pra nada
Nada pra si mesmo
Mesmo porque tudo
Sempre acaba sendo
O que era de se esperar
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
Outras gravações:
“Refazenda”, Gilberto Gil, Philips Music 1975
“Giluminoso”, Gilberto Gil, Biscoito Fino 2006
“Gilberto Gil – original album series (cd 3)”, Warner Music 2012
“Topaz audio studio”, Lica 1996
“Roberto Menescal e Wanda Sá – ensaio”, Warner Music 2002
“Este e o Gil que eu gosto”, Zizi Possi, Warner Music 1995
Uma canção sobre meditação que é uma canção que é uma meditação (uma canção-meditação), fruto de um processo de meditação e realizada em estado de meditação.
“Dentro de mim mesmo” – “Meditação é uma busca dos extratos rarefeitos do pensar e do sentir, do olhar sobre o sujeito e o objeto, sobre o si e o em si, e sobre o ser. A letra resultou de horas e horas de dias e dias de meditação sobre a música.
“Eu estava terminando o repertório de Refazenda e queria usá-la como um fecho minimal que emblematizasse a idéia reflexiva, introspectiva, do disco. Havia um compromisso com os espaços das frases sonoras: eu não podia escrever o que quisesse (para construir a letra de uma música que já está feita, a gente já parte com esse dado limitador – não no sentido qualitativo, de expressão, mas no quantitativo). Por isso eu precisava de instrumentos muito precisos que me levassem aos lugares onde as palavras estivessem; de anzóis muitos afiados e linhas de comprimento muito bem medido para poder fazer a pescaria das palavras que expressariam numa suma o que eu sentia. E precisava da confirmação temporal do significado da meditação – de que ela trouxesse para o sujeito, que era eu, a sensação que a palavra meditação traz, de escorrer no tempo…
“Em momentos bem prosaicos, de manhã, de tarde, de noite, eu andava pela casa pensando naquela melodia – com ela dentro de mim mesmo -, mas sem escrever nada, nem tentar, apenas me deixando tomar pelo sentimento oceânico da evolvência. Numa madrugada eu me recolhi, tomei um chá, sentei na posição de lotus, e saiu! – uma parte inteira. Dormi aquele sono pleno, apaziaguado, e no dia seguinte fui tocá-la no violão. Frustração absoluta: me deparei com uma segunda parte que, embora, do ponto de vista métrico, seja basicamente a mesma coisa, tem um finalzinho que é um apêndice (a última frase melódica). ‘Meu Deus do céu! Pensei que estivesse pronta’, eu disse. ‘Quantos dias mais vou ter eu que ficar rodando pela casa para fazer esse resto de música?’ Mas não é que, já estimulado pelas idéias da primeira estrofe, na noite seguinte fui para a mesma situação, me recolhi etc., e veio a segunda?!”
Do início… – “Durante aqueles dias de viagens medidativas (acompanhadas de muita maconha, evidentemente; na época eu fumava bastante e fazia mergulhos abissais…), eu havia regado tanto a planta auto-referencial que, quando me ocorreu algo, me ocorreu o óbvio: ‘Dentro de si mesmo’ – como se para reiterar o silêncio, ou seja, para dizer: ‘Disso não se diz nada, porque isso é indizível; não adianta, você vai ficar dias e dias aí e não vai dizer nada!’ E em seguida, num movimento da interioridade para a exterioridade, veio: ‘Mesmo que lá fora’ – os dois versos em mútuo espelhamento projetando suas imagens significantes para adiante, nos versos subsequentes. A letra é muito visual mesmo, hologrâmica: um fracionamento lisérgico da imagem oculta, com partes essenciais ao todo e com o todo presente nas partes.”
15. O compositor me disse (03:02)
O compositor me disse
Gilberto Gil
O compositor me disse que eu cantasse distraidamente
Essa canção
Que eu cantasse como se o vento soprasse pela boca
Vindo do pulmão
E que eu ficasse ao lado pra escutar o vento jogando as palavras
Pelo ar
O compositor me disse que eu cantasse ligada no vento
Sem ligar
Pras coisas que ele quis dizer
Que eu não pensasse em mim nem em você
Que eu cantasse distraidamente como bate o coração
E que eu parasse aqui
Assim
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica da faixa:
voz e violão – Gilberto Gil
Outras gravações:
“Elis”, Elis Regina, Philips 1974
“Elis anos 70 – caixa 2”, Elis Regina, Universal Music 2012
“Gilberto Gil ao vivo”, Gilberto Gil, Polygram Music 1998
“Giluminoso”, Gilberto Gil, UNB 1999
“Gilberto Gil ao vivo”, Gilberto Gil, Universal Music 2000
“O Compositor Me Disse é uma música que dialoga com a intérprete para a qual eu a compus, a Elis Regina, meio cabotinamente. Sou eu me arvorando ao mestre, tentando lhe ensinar coisas; falando como um terapeuta para um paciente. Ela própria se queixava muito de uma certa dificuldade para um relaxamento. Como não sou psiquiatra, psicólogo, eu lhe mandei um recado através da canção. Era uma lição de yoga, para induzi-la a pensar no respirar e a não pensar naquilo que está sendo dito, ao cantar; a fazer do canto um veículo de expressão da interioridade completa, e da serenidade um pressuposto, um patamar da elevação do canto. Ela sabia do que se tratava, e havia suficiente intimidade entre nós para que aquilo não soasse pretensioso, demasiadamente cabotino, paternalista até. Ela tinha admiração por minhas inclinações pela yoga; gostava do meu modo de gostar disso. E gostava de me gravar. Elis foi a cantora que mais me gravou, considerando o período da sua produção. Ela era louca por mim, eu era louco por ela, por outras tantas razões – eu fui apaixonado por ela fisicamente.”