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ANTROPOFAGIA & TROPICÁLIA
EU VI
Para que se possa compreender, para que eu mesmo possa compreender melhor a minha conversão ou adesão ao credo modernista, é preciso retroceder a aspectos mais pretéritos, mais primários da minha formação como artista de música popular.
A década de 40, momento em que o país acessa o patamar inicial da cultura de massas no pós II Guerra, com os primeiros reflexos mais visíveis, entre nós, das grandes inovações do século, como o telégrafo, o telefone, o fonógrafo, o cinema e o radio, é quando se forja, dentro desse ambiente possibilitado pela eletricidade e a eletrônica, o que se pode chamar de “o artista moderno de música popular “ , um fenômeno só possível pela formação de uma sociedade populosamente ampla, concentrada nas grandes cidades cortadas por meios de transporte urbano mais ligeiros e mais abrangentes como os automóveis, os bondes e os ônibus; e aglomerações humanas interconectadas por meios mais ágeis de comunicação entre as casas, as pessoas, os espaços públicos, tudo isso se estendendo e se expandindo através de uma inter-urbanidade finalmente conseguida através das novas estradas férreas e rodoviárias, das navegações costeiras e trans-oceânicas, das linhas aéreas intensificando intercâmbios de toda natureza entre cidades como Rio , S.Paulo , Paris e Nova York; entre outras capitais e o nosso interior do país, um país que começa a “se falar” com intensidade e velocidade inauditas. Dentre esses falares novos, a música popular.
Assim, além dos artistas surgidos nos anos 20 e 30, limitados a públicos restritos e a formas reduzidas de acesso a esses públicos surgem, agora, os grande cantores e cantoras de rádio, os grandes músicos, seus discos amplamente popularizados, seus circuitos nacionais facilitados, sua presença mil vezes amplificada nas audiências em todo o território nacional.
Criança, vivendo entre uma pequena cidade do interior da Bahia e a capital, Salvador; com uma nítida inclinação para a música logo muito cedo manifestada, é nesse environment que vão germinar os embriões de um talento e uma paixão. Me apaixono por Luiz Gonzaga; por Caymmi; pelas cantoras da Rádio Nacional; pelos Anjos do Inferno, pelo Bando da Lua, pelo Quatro Ases e um Coringa, pelo Trio Irakitan e outro conjuntos vocais; pela Orquestra de Severino Araújo; pela brejeirice de Inezita Barroso; pelo cavaquinho de Valdir de Azevedo e o bandolim de Jacó; pelo canto aveludado de Orlando Silva; pelo violão de Codó e a guitarra elétrica de João da Matança nas noites da cidade da Bahia; pelo samba-blues de Batatinha, o trio elétrico de Dodô e Osmar e a pulsação mântrica dos Filhos de Ghandi. Ouço com indisfarçável prazer as orquestras dançantes americanas e cubanas (Sonora Matansera, era a mais popular entre nós); os cantos de excelência de Yma Sumac e Lucho Gatica; os boleros de Gregorio Barrios; os fados de Amália Rodrigues; os corridos portugueses e os passo-dobles espanhóis; os chansoniers e os acordeonistas franceses; a música ligeira italiana (Domenico Modugno); Glenn Miller e Count Basie, Elvis Presley e Harry Belafonte; a plêiade de cantoras jovens e maduras, interpretes dos emergentes compositores dos gêneros populares, tanto as brasileiras quanto as americanas são uma novidade auspiciosa para as audiências em surgimento.
Eu, adolescente, vivo imerso nesse fascinante aquário de sonoridades comuns e familiares àquela gente da comunidade; uma espécie de “música ambiente” em que reverberam, o tempo todo, as vozes marcantes dos intérpretes atuais (Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto, Angela Maria).
Até que chega o tempo de apreciar uma música nova, mais intrigante, mais surpreendente, mais instigante, “une outre musique”, uma “música além”, uma música “nova goma de mascar”, nova textura, novo sabor.
E acho que isso começa com João Gilberto, o agente mais próximo pelo samba e pela fala, de uma outra maneira de enxergar o som, de mastigar a música.
E isso vai dar, lá na frente, nos Beatles, em Miles Davis e em Jimi Hendrix. É quando se faz necessário resenhar e catalogar os momentos, os fragmentos, os microelementos com que a modernidade foi como que se insinuando, se depositando em minha sensibilidade, estabelecendo as condições para um novo sopro de criatividade, um novo campo de cultivo de sementes intrigantes e curiosas que juntavam à música campesina dos violeiros e das bandas cabaçais da infância interiorana a audição, na pós-adolescência em Salvador, da música atonal, serial, dodecafônica, das vanguardas européias e americanas oferecida nas programações dos Seminários de Música da UFBA – Stockhausen, Pierre Boulez, John Cage, Eric Sati, David Tudor e tantos mais – solenemente apresentados àquelas plateias jovens mesmerizadas diante da circunspecta figura do inesquecível maestro alemão Koellreutter, regente-oficiante daqueles memoráveis concertos no salão nobre da Reitoria (ele que havia sido professor de Tom Jobim e Moacir Santos, entre outros, na sua passagem pelo Rio).
A essa resenha dos tempos de iniciação na modernidade musical na Bahia, somaram-se, logo em seguida, as experiências, o frescor do convívio, já no Rio e em S.Paulo, com as poesia de João Cabral, Bandeira, Jorge de Lima, Drumond; as literaturas de Camus, Ezra Pound, James Joyce, Proust., Dostoievsky, Jorge Mautner, Paulo Leminski, José Agripino de Paula; a aproximação com o rigoroso trabalho poético-ensaístico dos irmãos Campos, Augusto e Haroldo; as vanguardas provocadoras de Rogério Duprat, Julio Medaglia, Damiano Cozzella, Sandino O’Haggen, Gilberto Mendes e tantos outros formados no ambiente da música de concerto, eles que, ao lado dos Mutantes, Made in Brazil e toda a meninada rock de S.Paulo formavam um contingente expressivo de mentes voltadas às tarefas de fustigar e desafiar o status quo.
E toda a turma das artes plásticas modernas, das Lygias, Clark e Papi e Hélio Oiticica, e os ainda meninos Antônio Peticov, Antônio Dias, Rubens Gerchman, Roberto Aguilar e outros.
O teatro aberto à experimentações de todo tipo encontrava em jovens diretores e atores um impulso renovador. O Arena em S.Paulo, o Opinião no Rio, O dos Novos em Salvador, o Popular do Nordeste em Recife, teatros emergentes – o Teatro Oficina com Zé Celso e sua magnética trupe completaria o conjunto.
Na viagem a Pernambuco para o lançamento do meu primeiro LP, Louvação, em 66, encontro-me com a Banda de Pífaros de Caruaru, conjunto musical formado por flautas de taquara de fabricação artesanal e instrumentos regionais de percussão, com um repertório de pequenas peças compostas para entreter as comunidades de trabalhadores da região, numa manifestação musical até então inédita para meus ouvidos educados para uma escuta de música urbana, digamos, mais refinada ou mais comum. Aquele choque de emanações telúricas e simplicidade campesina viria logo depois, na minha volta ao sul, reverberar no meu íntimo receptivo junto com as impressões deixadas pelo disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band recémlançado pelos quatro rapazes de Liverpool . De volta a Sampa eu me encontrava diante de um sentimento de emergência. Emergia ali naquele encontro entre a tradição medievalesca dos pífaros e a vanguarda popular contemporânea dos Beatles um impulso de aproximação irrecusável entre aquelas manifestações em todos os sentidos extremas: sim, os extremos se tocam. E tocavam em mim aquelas duas bandas tão díspares, tão distantes no tempo e no espaço, ainda assim, amalgamadas numa estranha e insinuante complementaridade. Aquilo tudo me assaltava e me inflamava o pensamento sobre o trabalho de atualização da música popular entre nós, tarefa à qual eu acreditava que a minha geração teria o dever de se dedicar. Pelo menos, parte dela. E foi o que me impulsionou alí.
Convoquei vários colegas a refletir e esboçar um projeto de modernização da nossa canção popular. Alguns se sensibilizaram e com eles começamos os rascunhos daquele movimento que viria a ser chamado de Tropicalismo.
Tropicália – Caetano viria a saber logo em seguida – era o nome de uma instalação de Hélio Oiticica e os pressupostos estéticos gerais daquela iniciativa remetiam a tudo que já houvera resultado antes na Semana de 22 e o seu após : Oswald, Mário, Tarsila e os modernistas de então; e o eco daquele barulho das vanguardas paulistas e cariocas dos anos 60 com quem começávamos a conviver foi como o eco de um estampido.
Acredito tenha sido esse o instante em que convergem de forma mais evidente os conceitos de Antropofagia e Tropicalismo que se espelham aqui no título deste encontro.
Aqueles colegas convertidos da minha geração estavam prontos para um empreendimento atualizado com a música popular estendida que os novos tempos propunham e estimulavam. O Tropicalismo conseguia reconhecer os seus próprios ingredientes antropofágicos que o aproximavam de tudo aquilo que marcara os pioneiros de 22, assumindo o seu legado e buscando avançar na direção daquilo que Caetano veio a chamar de “linha evolutiva”. Possuidores de parcos e rudimentares recursos técnicos mas cheios de sonho visionário nos jogamos na aventura reformadora.
Na sequência de “Domingo no Parque” e “Alegria, alegria” veio o disco Tropicália ou Panis et Circensis, uma espécie de manifesto do movimento que então se iniciava. Todos aqueles que se juntaram para o empreendimento estavam ciosos dos seus propósitos e, em diferentes níveis, engajados naquele projeto.
Eu, apesar do déficit de competência técnica (não dominava o manejo do ferramental exigido para produzir uma música de tal envergadura) supria as minhas limitações com um entusiasmo que me proporcionava acesso a intuições e insights, visões e descortinos poéticos e musicais que me impulsionavam e a meus companheiros, principalmente
os parceiros diretos, Torquato Neto e J.C. Capinan rumo ao arrojo, ao novo arranque requerido no uso das palavras e dos sons. Ambos poetas, como eu e Caetano, forjados na forja nordestina e temperados pela urbanidade soteropolitana representavam a parcela da herança regional que daria às nossas novas canções o gosto, por um lado sertanejo e por outro lado citadino-litorâneo que a renovada arquitetura poética exigia. Escreveram poemas como “Geléia Geral”, (expressão que Torquato tomou emprestado de Décio Pgnatari) , “Miserere Nobis” e “Soy loco por ti América” (Capinan homenageando Che Guevara por ocasião da sua morte), poemas que eu musiquei com a mesma verve hibridada: um tanto música de raiz catingueira, um tanto música urbana contemporânea de sotaque internacional. A competência autossuficiente dos músicos de orquestra como Duprat e Medaglia e a casualidade contagiante dos Mutantes asseguravam o suporte mais que animador para que descartássemos nossa inibição e nos lançássemos ao trabalho com alegria e confiança. Eu fui, no curto espaço de tempo, aprendendo a lidar com aquela nova semântica da música e da poesia e com a inspiração inestimável de Caetano ( ele escreveu comigo canções como “Panis et circenses”, “No dia em que eu vim embora”, “Eles”, ‘Lindonéia’, “Batmacumba”) , canções que corroboravam o significado do lirismo transfigurado com que eu deveria seguir adiante como criador do meu tempo.
Eu nunca mais fui o mesmo artesão naive com que me apresentara para aqueles desafiadores experimentos tropicalistas. Saía dali com as garras afiadas para destrinchar as entranhas das presas abatidas nas grandes caçadas pós-modernas que viriam em seguida (vem-me à mente, por exemplo, o disco Expresso 2222 que realizei ao voltar do exílio em 72 em que, já mais familiarizado com o repertório tecnológico e estilístico do pop-rock e mais fluente nos riffs e batidas com a guitarra elétrica que trouxera de Londres, pude finalmente me considerar iniciado nos misteres de um band-leader de fato, na acepção pós-moderna da palavra: pleno de uma nova potência, cônscio de um novo saber, pronto para viver a dimensão trágica da complexidade dos novos tempos. Sim, eu houvera caído em tentação. A modernidade passaria a ser pra mim, dali por diante, uma enormidade, uma sucuri do comprimento do diâmetro da terra.
Todo um desejo de aprofundar as relações entre a autenticidade romântica brasileira e o delírio psicodélico das modelagens da juventude euroamericana estava ali finalmente materializado naquela paisagem sônica universal que eu agora era capaz de descortinar e redesenhar (como se ao lado dos estúdios de gravação daqueles dias estivessem ali com seus pincéis e cinzéis um Picasso ou um Dali). As deficiências técnicas de então, de uma certa forma facilitaram o fortalecimento do espírito inovador (“ensinai-me, oh pai, o que eu ainda não sei”), do instinto visionário e da busca voluptuosa de algo diferente.
“Nego-me a folclorizar o meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas”
Caetano Veloso, 1967
A Antropofagia do Oswald se manifestava no anseio de transformar e transfigurar aquele novo corpo cultural que necessitava pelo menos de outras pernas e braços – que a cabeça já era outra.
Foi um tempo de mutação – pode-se imaginar quão inspirador era ter ali ao nosso lado aquela fada da Vila Mariana, Rita Lee e os dois irmãos duendes da Lapa, Sérgio e Arnaldo Batista!.
OUTROS VIRAM DAQUI
Hélio Oiticica, em artigo para o Correio da Manhã, setembro de 1968 comentando nossa performance numa das apresentações de um festival: “Caetano e Gil, os Mutantes, Duprat, Tom Zé, modificam estruturas, criam novas estruturas, sua experiência é calcada numa modificação a longo prazo, não se reduz a apresentações de chegar, cantar, e pronto, voltar pra casa e dormir sossegado… depois de tomar uns whiskys.” E acrescenta ainda: “Gil parece cantar e compor com todo seu corpo, sua garganta é de fera, num cantoforte que se relaciona com o dos cantadores nordestinos, incisivo, sem meios tons: sua apresentação foi um momento de glória, contido e sem heroísmo aparente, certo do que fazia, enquanto a vaia fascista comia. A obra de Gil merece, urgentemente, um estudo detalhado, profundo… pois realiza nela uma síntese de praticamente todos os ritmos universais, como que os arrancando pela raiz de suas origens, do fundo dos sons, da terra, do suor dos ritos.
Em 1968, no artigo “Viva a Bahia-Iá-Iá”, Augusto de Campos já apontava na invenção tropicalista tudo aquilo que hoje deslumbra os jornalistas norteamericanos: as estratégias de montagem e justaposição; a presença da música aleatória e concreta; o parentesco com a pop art e com a “bricolage” de Lévi-Strauss. A estada de Hans Joachim Koellreutter na Bahia, no final dos anos 50, e o encontro dos baianos-futuros-tropicalistas com os paulistanos da Música Nova possibilitaram que os procedimentos eletroacústicos e concretos que estão hoje na base da produção do pop global (“ghetto tech”, “two step” e todo o resto) fossem absorvidos pelas massas
brasileiras (que nunca mais esqueceram “Alegria, alegria”) com um sucesso que “Revolution nº 9″ dos Beatles nunca tentou conquistar – e que só se estabeleceu em disco no rock alemão (feito por alunos de Karlheinz Stockhausen, como também o foram Rogério Duprat e Júlio Medaglia, os mais conhecidos arranjadores dos discos tropicalistas no início dos anos 70”.
Hermano Viana comentando sobre a reação estrangeira ao Tropicalismo “Os novos apologistas norteamericanos não parecem perceber essa tensão que está na origem do Tropicalismo. Por isso merecem a reprimenda publicada em O Estado de S. Paulo – de Tom Zé: “Eles falam como se Oswald, sua antropofagia e o rock internacional já estivessem no âmago de toda a tropicalidade, como a árvore na semente de Parmênides. Não estavam”. Tom Zé é até mais contundente: o artigo de Gerald Marzorati, N.Y. Magazine – 25/4/99, seria “coisa de estrangeiro, falando coisa do Brasil, esse tipo de coisa na qual a gente se sente uma coisa”, além da “imposição da palavra escrita como meio privilegiado, que representa o braço do colonizador”. (Hermano Vianna – Folha de S.Paulo, 19/9/1999)
Caetano iria se referir ao Tropicaismo como um neoantropofagismo.
“Mas um reparo precisa ser feito à afirmação de que o tropicalismo, como a bossa nova, utilizou a informação da modernidade musical na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente da música popular brasileira: é que não era apenas a informação da modernidade musical que ele trazia para a MPB mas a informação da modernidade simplesmente: a informação da modernidade musical, poética, cinematográfica, arquitetônica, pictórica, plástica, filosófica etc. Nesse contexto, a informação da modernidade deve ser entendida como a desfolklorização e desprovincianização da música popular, isto é, como a sua inserção no mundo histórico em que se desdobram as artes universais: nada menos do que a proclamação da sua maioridade”. (A. Cicero – O tropicalismo e a Mpb -12/8/2004)
OUTROS VIRAM DE FORA
“Um gênio “provinciano” criativo (os principais participantes eram provenientes da Bahia) chocou-se e foi ativado, por assim dizer, pelas modernas experiências urbanas da tecnologia e por uma ditadura de pretensões tecnocráticas. Num esforço ilimitado de revitalizar as artes brasileiras, o Tropicalismo construiu uma estratégia neo-atropofágica de contraposição e apropriação”, comenta Bruce Gilman num artigo para a Brazil Magazine -1/12/2002.
Ainda Bruce Gilman no mesmo artigo para a Brazil Mgazine aponta: “A Tropicália foi o último movimento cultural brasileiro significativo; foi um movimento para acabar com todos os movimentos, e uma compreensão clara da realidade Brasileira. Não foi somente um movimento musical, mas um entendimento do movimento das artes que se manifestaram nas esculturas, literatura, pintura, filme, teatro, poesia e artes plásticas. O nome surgiu de uma exibição de arte ambiental em abril de 1967, “Tropicália”, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, realizada por Hélio Oiticica. Artistas que sonhavam com uma nova estética para o Brasil e que lutavam para dissipar as absurdas imagens de fantasia do país trouxeram à tona assuntos como a mentalidade de consumo e o impacto da mídia de massas ao mesmo tempo que demandavam a destruição da direita política e o conceito de um Brasil unicamente carioca.”
Último movimento modernista e primeiro movimento pós-modernista, eu diria, o Tropicalismo se instalou como um campo magnético de atração de tudo que se manifestava no jogo complexo dos polos positivo e negativo do poderoso imã da realidade, ali naquela vaga fronteira passado/presente/futuro em que o Tropicalismo se colocava.
No artigo “Tempos de audácia” Brazil Magazine, 01 de Dezembro de 2002, acima citado Bruce Gilman interroga:
Como o tropicalismo perpetuou e tornou-se contorno fundamental de referência nos tratos culturais brasileiros da atualidade? Por que esta conflagração nas artes tem um impacto tão intenso ainda hoje?
Porque estes episódios musicais e teatrais tiveram significados tão inflados no final dos anos 60? Essas são questões que têm motivado e ainda provocam críticas ao fenômeno do Tropicalismo, especialmente nesta conjuntura temporal. E Gilman prossegue:
“Num esforço ilimitado de revitalizar as artes brasileiras, o Tropicalismo construiu uma estratégia neoatropofágica de contraposição e apropriação.”.
“Uma década após a poesia concreta, Pelé e a Bossa Nova emergirem, surgiu o prelúdio esplêndido conhecido como Tropicália ou Tropicalismo, um divisor de águas na arte contemporânea brasileira, cuja importância foi comparada à Semana de Arte Moderna de 1922, que lançou o modernismo… e ele segue especulando:“ O trigésimo aniversário da aventura Tropicalista foi comemorado em 1998 com uma série de eventos e meditações sobre o breve, todavia emblemático movimento. Discussões renovadas sobre a Tropicália ganharam forte ímpeto com a publicação de Verdade Tropical (1997), memórias variadas do cantorcompositor Caetano Veloso, quase que unanimemente considerado a principal voz do Tropicalismo.
Festividades Públicas temáticas (Carnaval em Salvador, 1998) e eventos acadêmicos nos três continentes prestaram homenagem e exploraram ramificações das ocorrências do final dos anos 60, na música, cinema e demais frentes que constituíram o Tropicalismo. Marcos criteriosos de críticos relacionados (ex. Augusto de Campos, Roberto Schwarz, Silviano Santiago, Alberto Vasconcelos, Celso Favaretto) são revisitados em novas deliberações sobre a lenda e canonização de Caetano Veloso, a institucionalização dos momentos do tropicalismo, ou suas reflexões em tendências atuais, como o movimento mangue no Recife. O discurso metafórico e híbrido da música no mangue beat, em particular, são reminiscências de experimentos em música e desempenho no coração da Tropicália. Esta produção Nordestina é outra variante da Música Popular brasileira (MPB) contemporânea que mais uma vez está nos palcos e exposta internacionalmente no final dos anos 90,..”
A propósito do empenho tropicalista Charles A. Perrone faz, no ensaio “As tropas da Tropicália e do Tropicalismo” – Studies in Latin America Popular Culture, Florida University, 1999, as seguintes considerações:
“Como símbolo da voracidade, a Antropofagia é ao mesmo tempo metáfora, diagnóstico e terapia: metáfora orgânica, inspirada na cerimônia guerreira da imolação pelos tupis do inimigo valente apresado em combate, englobando tudo quanto deveríamos repudiar, assimilar e superar para a conquista de nossa autonomia intelectual; diagnóstico da sociedade brasileira como sociedade traumatizada pela repressão colonizadora que lhe condicionou o crescimento… e terapia… contra os mecanismos sociais e políticos, os hábitos intelectuais, as manifestações literárias e artísticas. Sob forma de ataque verbal, pela sátira e pela crítica, a terapêutica empregaria o mesmo instinto antropofágico outrora recalcado, então liberado numa catarse imaginária do espírito nacional.
Prossegue Perrone:
Veloso e Gil preferiram o nome Tropicália a Tropicalismo, porque o primeiro era diferenciado e não apresentava seu projeto simplesmente como outro – ismo numa série de propostas artísticas. Tal lógica acompanha o grupo Noigandres de São Paulo, nos anos 50, que preferiu o termo poesia concreta a concretismo…
E Perrone acrescenta:
“No final da década, Augusto de Campos extrapolou ao proclamar: “Desde João Gilberto e Tom Jobim, a música popular deixou de ser um dado meramente retrospectivo, ou mais ou menos folclórico, para se constituir num fato novo, vivo, ativo, da cultura brasileira, participando da evolução da poesia, das artes visuais, da arquitetura, das artes ditas eruditas, em suma.”
Perrone vai em frente: “Ao acessar o impacto da Tropicália, Liv Sovik comparou mudanças nas percepções anglo-Beatles, especialmente com as misturas pop e clássicas de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, com as realizações de Veloso e a rica fonte do trio de Rock os Mutantes: “os Beatles – sem tradição para essa mistura – conseguiram dignificar a música popular de massas sem borrar as fronteiras, enquanto a Tropicália conseguiu estabelecer a hibridação erudito/massivo, escandalosa na época, apoiada na hibridação erudito/popular já existente no Brasil”. Para Sovik, este detalhamento do alto/baixo ilustra uma interpretação instigante da aventura Tropicalista como pós-moderna.
Perrone pinça a observação de Caetano : “A idéia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos ‘comendo’ os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva. Claro que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não sem cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a adotamos. Procurei também – e procuro agora – relê-la nos textos originais, tendo em mente as obras que ela foi concebida para defender, no contexto em que tal poesia e tal poética surgiram.
Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as diferenças entre a experiência modernista dos anos 20 e nossos embates televisivos e fonomecânicos dos anos 60. E, se Gil, com o passar dos anos, se retraiu na constatação de que as implicações ‘maiores’ do movimento – e com isso Gil quer dizer suas correlações com o que se deu em teatro, cinema, literatura e artes plásticas – foram talvez fruto de uma superintelectualização, eu próprio desconfiei sempre do simplismo com que a idéia de antropofagia, por nós popularizada, tendeu a ser invocada.” (Verdade tropical 247-248)
E Charles Perrone volta a considerar em seu ensaio”: “As maiores rupturas através da história das artes no Brasil ocorrem nestes momentos quando a relação entre a metrópole e a colônia são questionadas num modelo radical em busca de independência cultural. Um movimento pode ser entendido como ‘fundamental’ neste caso quando atualiza a tensão entre a identidade cultural brasileira e moderniza impulsos pelo prisma da mudança. Foi o que ocorreu com a antropofagia e a poesia concreta, e com o movimento eclético do tropicalismo…
Além disso, colocando a autenticidade autóctone em perspectiva relativa, o tropicalismo, como a antropofagia e a poesia concreta, elaborou contramodelos experimentais e iconoclásticos, posicionamentos radicais em relação a expressões líricas convencionais, confrontação dos valores do establishment e reação à cultura do imperialismo.
Perrone vai mais além:
“Na medida em que existem homologias e paralelos de atividade e atitude entre o concretismo e o tropicalismo, este último, com seu próprio projeto de modernização, participa ainda da construção da ética da nação. A abordagem Tropicalista fez as artes pressuporem uma visão desrespeitadora, todavia edificante, do Brasil oficial e da versão nacional-popular de resistência ao poder constituído. Em termos de manipulação técnica do conhecimento ou organização de uma taxa de câmbio estética, onde a poesia concretista esteve em primeiro plano, a Tropicália não inovaria do mesmo modo, pois a Bossa Nova já havia estabelecido sua marca internacionalmente. Ainda assim, havia amplo espaço para iniciativas em termos de orientações contra a corrente (ser eternamente desafinado) e conceitualizações da música popular, especialmente como um registro delicado do sentimento nacional/nacionalista e da criatividade brasileira. Ainda que produzido em quantidades limitadas, a música iluminadora da Tropicália, com suas múltiplas vozes e vocais, foi um refletor ainda maior que a Bossa Nova. A plataforma musical do tropicalismo foi ainda vislumbrada como um ponto de partida para as intervenções em relações culturais, em discurso nacional, que Veloso caracterizou, no âmago oposto de suas lembranças, como “um desvelamento do mistério da ilha Brasil”, com implícita “responsabilidade pelo destino do homem tropical” (Verdade tropical 16, 501).
A captura e expedição dos líderes da Tropicália determinaram o final do impulso Tropicalista em sua própria casa, e na cortês Londres ele não passava de uma curiosidade. Os participantes da comoção músicopoética do final dos anos 60 mal poderiam imaginar que em três décadas (o total de tempo entre o segundo manifesto de Oswald e o plano piloto da poesia concretista), suas músicas poderiam ser excelente instância para o fenômeno da world music”, no mundo desenvolvido junto do contexto da globalização sobre a qual Gilberto Gil, dentre todos os seus colegas, foi particularmente presciente.
EU AINDA VEJO.
Caetano se referia ao período do Tropicalismo, como um tempo a ser vivido na contingência de uma brevidade. A ser encarado como uma moda. E foi o que de fato foi. Em menos de dois anos todo o empreendimento estava realizado e encerrado. Para mim, além da convicção de que o movimento não deveria durar mais que o tempo necessário para passar sua mensagem de inconformismo e seu ideário inovador como esperava Caetano, deixando que o futuro tomasse as rédeas do processo e nos liberasse para seguir nossas vidas enfrentando novos questionamentos e novas indeterminações , para mim havia também o anseio por um alívio.
Eu, pessoalmente, não via a hora de sair daquela agonia. Atormentado por uma insistente premonição de que aquilo tudo poderia trazer muitos danos existenciais, com muito sofrimento para o qual não me considerava preparado, ansiava pelo fim daquela jornada ou, pelo menos com uma diminuição considerável daquela tensão.
A prisão e o exílio foram um epílogo duro e ao mesmo tempo desanuviador. Deixariam marcas indeléveis na minha carapaça existencial; na formação do meu caráter; na tipologia da minha individualidade; na definição dos traços delicados da escultura da minha personalidade. Ao mesmo tempo em que acentuaria, no artista, um gosto pela expressividade aberta; uma busca do prazer e da alegria no arrebatamento estriônico da performance; o arrojo e o destempero vocal – que Hélio Oiticica elogiara e saudara naquele seu artigo de 67 – e que eu carregaria no meu canto para o resto da vida até arrebentar de vez com uma das minhas cordas vocais; o interesse em manter alguns resíduos de experimentalismo no trabalho de composição e arranjo de canções, mesmo já distante do compromisso com a “libertação anárquica, a única possível” como considerava Glauber Rocha; guardando sempre um “senso perdido de rebeldia” e uma “inquietação do epírito” como dizia Luiz Carlos Maciel, quando “no longo combate do século os valores estabelecidos voltaram a vencer o segundo assalto” como ele refletia à espera de um terceiro assalto, quiçá, definitivamente redentor.
O Tropicalismo foi um tropismo. Dali em diante ele nos alertaria permanentemente para os sinais emitidos pelo mundo da criação artística e da vida cultural. Uma bússola de orientação estética, técnica e política para a navegação arriscada no mar da procela da pósmodernidade. Minha música, musa única – ela, ela que me faz um navegador!.
Sr. Presidente da Academia Brasileira de Letras, Acadêmico Merval Pereira,
Sra. Secretária Geral da Academia Brasileira de Letras, Acadêmica Nélida Piñon,
Sras. e srs. Acadêmicos,
Amigas e amigos aqui presentes,
Meus filhos, meus netos… e Flora
Aqui estou, no limiar dos meus oitenta anos, no Salão Nobre da Academia Brasileira de Letras, onde já estiveram tantos escritores de minha admiração, alguns dos quais foram amigos queridos, na condição de primeiro representante da música popular do Brasil a ser eleito para esta instituição. Entre tantas honrarias que a vida, generosamente, me proporcionou, essa tem para mim uma dimensão especial, não só porque aqui é a Casa de Machado de Assis, um escritor universal, e afrodescendente como eu, mas também porque a ABL, fundada em 20 de julho de 1897, representa, mesmo para quem a critica, a instância maior, que legitima e consagra de forma perene a atividade de um escritor ou criador de cultura em nosso país.
Confesso que até recentemente não havia pensado em concorrer a uma cadeira da ABL, mesmo sabendo que Tom Jobim chegara a se inscrever em 24 de setembro de 1993, retirando em seguida a candidatura em homenagem a seu amigo Antônio Callado, eleito em março de 1994.
Sou filho de uma professora primária, Claudina, e de um médico, José Gil Moreira. A eles devo o meu amor às letras e à música. Foi de minha mãe que ganhei o primeiro violão, em 1961. Ela também leu, com paciência de mestra experiente, meus versos inspirados em leituras de Castro Alves, Gonçalves Dias, e Olavo Bilac, que comecei a escrever aos 17 anos. Tive a sorte de ter pais carinhosos, que me educaram para não ter medo de enfrentar os desafios que a vida fatalmente nos impõe. A imagem de meus pais está comigo nesta noite, e sua memória, é para mim uma bênção.
A Academia Brasileira de Letras é a Casa da Palavra e da Memória Cultural do Brasil. E tem uma responsabilidade grande no sentido de fortalecer uma imagem intelectual do país que se imponha à maré do obscurantismo, da ignorância, e demagogia de feição antidemocrática. Poucas vezes na nossa história republicana o escritor, o artista, o produtor de cultura, foram tão hostilizados e depreciados como agora. Há uma guerra em prol da desrazão e do conflito ideológico nas redes sociais da Internet, e a questão merece a atenção dos nossos educadores e homens públicos. A ABL tem muito a contribuir nesse debate civilizatório. E eu gostaria, aqui, de colaborar para o debate, em prol da cultura e da justiça.
O patrono da cadeira número 20, onde hoje tomo assento, é o escritor JOAQUIM MANUEL DE MACEDO, nascido em Itaboraí, no Rio de Janeiro, em 24 de junho de 1820, e autor, entre outros títulos, de A moreninha, de 1844, o primeiro clássico do nosso romance romântico, já levado ao cinema e adaptado para novela de televisão. O ensaísta e acadêmico José Guilherme Merquior sobre ele observou: “O ‘Macedinho’ obteve o que Teixeira e Sousa não conseguira: dar respeitabilidade ao romance folhetinesco. (…) Enquanto Alencar inventaria o mito heroico – o índio cavalheiresco –, Macedo engendrou um mito sentimental: o da mocinha brasileira, sinhazinha ‘romântica’”.
Médico de formação, político liberal, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, defensor da educação para as mulheres, Macedo é autor também de Lições de História do Brasil, em 1861, e no ano seguinte, de Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, reunião de crônicas anteriormente publicadas no Jornal do Commercio. Embora tenha escrito em vários gêneros, e ocupado postos importantes, o escritor, falecido em 11 de abril de 1882, viveu seus últimos anos atormentado por dificuldades financeiras. Destaquemos, de sua vasta produção, o poema A nebulosa, de 1857, que, no dizer de Antonio Candido, “abre as portas de um mundo romântico, onde poucos se moveram tão bem”. Citemos ainda As vítimas algozes – quadros da escravidão, de 1869, reeditado em 1988, no centenário da abolição da escravatura, pela Casa de Ruy Barbosa, e sua extensa obra teatral, composta, entre dramas e comédias, por 14 títulos, dentre eles A torre em concurso, de 1863, saborosa sátira que, segundo o crítico e acadêmico Sábato Magaldi, “fustiga mais de perto um dos vícios do país, existente até hoje: o complexo de inferioridade nacional, que só reconhece valor no estrangeiro e muitas vezes se abandona à sua falta de escrúpulos”. A figura gigantesca de José de Alencar parece hoje dominar quase todo o território do romance romântico brasileiro, mas Joaquim Manuel de Macedo é um nome a merecer resgate, para além de sua eterna Moreninha.
O fundador da cadeira nº 20 foi o jornalista, advogado, romancista e diplomata SALVADOR DE MENDONÇA, nascido em Itaboraí, no Estado do Rio, em julho de 1841, e irmão do acadêmico considerado o verdadeiro mentor da ABL, Lúcio de Mendonça. Na diplomacia serviu, entre outros postos, como cônsul-geral nos Estados Unidos, atuando no sentido do imediato reconhecimento do nosso então novo regime republicano junto ao governo norte-americano. Foi, juntamente com o irmão, um ativo integrante do movimento republicano no Brasil. Participou também, com Amaral Valente e Lafaiete Pereira, da Conferência de Washington, de 1889-1890, no intuito de ampliar a nossa integração comercial no continente; atuou na Assinatura do Tratado de Reciprocidade em 1891; e nas tratativas com o governo dos Estados Unidos no sentido de obter ajuda americana para fazer cessar a Revolta da Armada, o que de fato aconteceu em 1894.
Dele dirá Emílio de Menezes, seu sucessor nesta Casa: “Há na vida de Salvador de Mendonça, de tão difícil apreensão, um traço de suave e melancólica poesia, que a perfuma e aformoseia toda. É a revivescência do seu primeiro sonho de amor”. (…) Velho, fez reflorir, na velhice, o melhor trecho da mocidade de um homem. Morreu entre as rosas que cultivava paternalmente. Dizia ele que a sua melhor página era o conto escrito no início da carreira literária, dedicado à mulher amada, à sua primeira noiva e intitulado ‘A tua roseira’”.
O poeta, satirista e boêmio EMÍLIO DE MENEZES, nascido em 1866 em Curitiba, adotou o Rio de Janeiro, e aqui, tendo por base a Confeitaria Colombo, escreveu para diversos jornais, publicou poemas, ironizou figuras públicas, e até os seus próprios amigos. Muito dessa produção galhofeira corre o risco, hoje, de ser carimbada como politicamente incorreta, e mesmo de racista. Mas eram outros os tempos, e os jornais de então não só estimulavam esse tipo de literatura, como abriam generoso espaço para todo tipo de matéria que pudesse dar margem à polêmica e ao riso. O poeta e jornalista pernambucano Bastos Tigre, que o conheceu bem, escreve, em Reminiscências, que os seus sonetos: “Ouvidos a princípio com complacência, foram, em breve, aplaudidos com entusiasmo. E que bem os recitava ele! (…) Sobrava-lhe (…) talento, espírito, irreverência, alegria. Em pouco tempo dominou a roda, conquistou amigos, uns por admiração, muitos por medo da sua língua, que era um florete pela agressividade e pela elegância do ataque.
– Já sabes a última do Emílio? Era comum a pergunta nas rodas literárias, entre jornalistas e boêmios. E a “última do Emílio” – um trocadilho, uma sátira, um epitáfio – era repetida, às risadas, nos cafés e nos bares, nas livrarias e nos salões de barbeiro. E, em pouco tempo, toda a cidade a conhecia. O mais das vezes, a boa pilhéria acabava deturpada pelas várias edições de narradores. E, ainda, faltava a esses a graça do dizer, a comicidade verbal que lhe dava o autor.
Emílio era, de fato, excelente narrador. O tom da voz, a mobilidade da máscara colaboravam no efeito cômico das suas improvisações jocosas ou mordazes. (…) No comentário imediato ao caso do dia, no “a propósito”, no aparte à narrativa sisuda, na alcunha caricatural, no jogo de palavras, no equívoco, no disparate, no trocadilho, se havia, por vezes, maldade ferina, havia também, e principalmente, graça, chiste, agudeza”.
Machado de Assis, devido à vida boêmia do poeta, não simpatizava com a ideia da eleição de Emílio, tanto que ele só candidatou-se após a morte do grande escritor. Importante expressão de nossa poesia parnasiana, Emílio de Menezes foi eleito para a ABL em agosto de 1914. Consta que alguns votaram nele como uma espécie de salvo-conduto de que estariam protegidos dos dardos envenenados de seus versos.
Nas mãos de Emílio, uma simples notícia de jornal – “A sra. Pepa Ruiz e o sr. Pupo de Morais andam em negociações para o arrendamento do Mercado do Rio de Janeiro” – podia se transformar num bem urdido poema. Leiamos o “Prosopopeia da Pepa ao Pupo”:
Parece peta. A Pepa aporta à praça
E pede ao Pupo que lhe passe o apito.
Pula do palco, pálida, perpassa
Por entre um porco, um pato e um periquito.
Após, papando, em pé, pudim com passa,
Depois de peixes, pombos e palmito,
Precípite, por entre a populaça,
Passa, picando a ponta de um palito.
Peças compostas por um poeta pulha,
Que a papalvos perplexos empunha,
Prestando apenas pra apanhar os paios,
Permita a Pepa por pastéis, pamonha…
– Que a Pepa apupe o Pupo e à popa ponha
Papas, pipas, pepinos, papagaios!
Devido a problemas de saúde só tomaria posse, por meio de carta, poucas semanas antes de sua morte, de uremia, em 24 de abril de 1918.
HUMBERTO DE CAMPOS, nascido em Miritiba (hoje a cidade leva o seu nome), no Maranhão, em 25 de outubro de 1886, viveu apenas 48 anos, tempo suficiente, no entanto, para produzir uma obra imensa, que até o final dos anos 60 ainda era vendida em todo o país sob forma de coleção, pela editora Jackson. Em vida, foi autor de enorme sucesso, em especial com a literatura lasciva ou fescenina que publicava sob o pseudônimo de Conselheiro XisXis. Vale lembrar que depois de sua morte apareceram livros tidos como seus psicografados pelo médium Chico Xavier, havendo polêmica relativa ao pagamento dos direitos autorais, pois, pela doutrina, Humberto não seria um autor defunto, mas, à maneira de Brás Cubas, um defunto autor. Obteve grande sucesso outro livro seu, este indiscutivelmente póstumo: Diário secreto, em 2 volumes, publicados pelas Edições O Cruzeiro, cobrindo os anos de 1915 a 1934, e onde, em meio a informações preciosas sobre nossa vida cultural e política, Humberto de Campos também destila maledicência e ironia sobre importantes personalidades com quem conviveu, entre eles um companheiro de Academia, Paulo Barreto, pseudônimo sob o qual ficou popular o admirável João do Rio. Dono de temperamento polêmico e de estilo cristalino, foi ficcionista, crítico literário, memorialista, poeta, e um dos cronistas mais populares do Brasil. Ingressou nesta “Casa dos 40” (a expressão é dele), em 1919, e pouco depois foi eleito deputado federal pelo seu Estado até ser cassado quando da Revolução de 30. A capacidade de trabalho e a produção literária do notável maranhense impressiona ainda mais quando se sabe que a partir de 1928, diagnosticado com a hipertrofia da hipófise que apressou o seu fim, muitas vezes teve de cumprir os compromissos de escritor e jornalista em meio a sérias dores físicas. Quando faleceu, em 5 de dezembro de 1934, o comércio do Rio de Janeiro, em sua homenagem, fechou as portas na hora do seu sepultamento.
O pernambucano MÚCIO LEÃO, nascido em 1898 e falecido aos 71 anos no Rio de Janeiro, formou-se em Direito em 1919, quando se transferiu para o Rio de Janeiro. Aqui trabalhou no Correio da Manhã e no Jornal do Brasil, até fundar, em parceria com alguns amigos, entre eles o poeta Cassiano Ricardo, o jornal A manhã, onde criou e dirigiu o suplemento “Autores & Livros”, publicado, com algumas interrupções, entre 1941 e 1950, e que continua a ser uma fonte de consulta imprescindível aos historiadores e estudiosos de nossa literatura. Aguarda-se a reedição desse valioso material, que compreende textos inéditos dos maiores escritores contemporâneos, ilustrados por artistas do naipe de Vieira da Silva, Goeldi, e Portinari, além de repor em circulação um nome de nosso passado literário a cada edição. Múcio foi secretário geral da ABL, seu presidente em 1944, e na Casa promoveu a edição de importantes obras, entre elas vários volumes do historiador e filólogo João Ribeiro. Publicou contos, romances, ensaios literários, e dois livros de poemas: Tesouro Recôndito, em 1926, e Poesias, em 1949. Neste, assim define o poeta:
“Poeta, ser estranho, ser enigmático entre os seres!
Vejo-o, isolado das cores, das formas e das ideias,
Isolado, nessa crepuscular solidão que o acompanha”.
AURÉLIO DE LYRA TAVARES, nascido em João Pessoa, na Paraíba, em novembro de 1905, e falecido no Rio de Janeiro em 1998, foi general do Exército, historiador de temas militares, memorialista, e embaixador do Brasil na França. Foi recebido nesta Casa por Ivan Lins, o notável historiador do Positivismo no Brasil, em abril de 1970. Em seu discurso, Ivan ressaltou as qualidades literárias do empossado: “Autor de mais de trinta livros, numerosos artigos em revistas e jornais, além de importantes conferências, ensaios e discursos, foi como escritor que a Academia vos elegeu. (…) Sois um escritor nato e empunhais a pena, como quem respira, por irreprimível impulso, a fim de externar as manifestações de uma inteligência forte, cultivada em todos os ramos do saber e dotada de acentuadas aptidões literárias, não só na Prosa, mas até na Poesia (…).
É desconhecida, no entanto a produção poética de Lyra Tavares. Entre as obras que publicou merece destaque A engenharia portuguesa na construção do Brasil, de 1965 – que mestre Alberto da Costa e Silva reputa como uma notável contribuição aos nossos estudos históricos –, A independência do Brasil na imprensa francesa, em 1973, e O Brasil de minha geração, dois volumes de memórias publicados em 1976-1977.
A mim, na condição de vítima da repressão militar que tomou conta do Brasil a partir de 1964, a ponto de ter sido preso, e em seguida obrigado a deixar o país em julho de 1969 – assim como fizeram outros amigos meus, entre eles Caetano Veloso – me causou a princípio um certo desconforto o ter de tratar aqui de um dos três integrantes da Junta Governativa Provisória que comandou o Brasil de 31 de agosto a 30 de outubro de 1969. Mas, ao contrário, na constatação de como gira, às vezes com ironia, a roda da História, do ponto de vista acadêmico, os que conheceram e conviveram com o general Lyra Tavares nesta Casa reiteram o seu comportamento sempre afável e solidário, sua cultura literária e histórica e sua dedicação aos valores que balizam a história da ABL.
Por último, destaco meu antecessor imediato, o jornalista advogado MURILO MELO FILHO, nascido em 1928, em Natal, autor de vários livros, e que por anos foi atuante colunista político nas páginas da revista Manchete. Murilo, ou “Murilinho”, como era carinhosamente referido, já aos doze anos assinava textos no Diário de Natal. Ele nos deixou aos 91 anos, em maio de 2020, e a impressão que permaneceu em todos com quem conviveu foi a de um homem do diálogo, sempre gentil e prestativo. Desenvolveu por esta Casa um sentimento de afinidade verdadeiramente amoroso. Não recusava convite para representá-la em outras academias estaduais e municipais, sempre fazendo questão de comparecer com o fardão da ABL. Entre os seus livros destacam-se O desafio brasileiro, com sucessivas edições; O modelo brasileiro, com apresentação do economista Mario Henrique Simonsen; Tempo diferente, de 2005, uma antologia de perfis de personalidades que conheceu ao longo de sua vida de incansável jornalista, entre elas Jânio Quadros, Carlos Lacerda, Café Filho, Otto Lara Rezende, Guimarães Rosa e Rachel de Queiroz.
Sobre Tempo diferente manifestou-se o cientista político e acadêmico Candido Mendes: “Murilo Melo Filho integra o núcleo desta geração Manchete, que hoje dá à Academia esta colaboração inédita, de membros vindos de um momento antológico – e dramaticamente fugaz – de um jornalismo inovador no país. (…) Existe nestas páginas a caprichosa tessitura de toda uma instigante era da sociedade brasileira, com revelações de muitos bastidores. (…) Na análise de cada um desses personagens, constrói-se a leitura de um momento brasileiro, graças à pertinácia de memória de Murilo, nas vidas que atravessou com a determinação da sua esplêndida escuta de jornalista”.
Já o filósofo e acadêmico Tarcísio Padilha, presidente da ABL de 2000 a 2001, afirmou: “Ele portava a marca da civilidade e da boa convivência. Entrevistou grandes homens públicos e chefes de Estado. Pergunto, então: quem tem medo de Murilo Melo Filho? Porque, de modo geral, quem participa tão ativamente da trepidante vida jornalística dificilmente escapa das paixões político-partidárias. Mas Murilo atravessou o Rubicon com simplicidade, coerência e caráter.
Alçou-se sempre acima das dissenções, com o respeito e a generalizada simpatia sobre sua trajetória. Suas obras, sobretudo o Testamento político, narram as histórias de muitas décadas de intensa e febril atividade jornalística, nas conversas soltas e formatadas pelo seu espírito objetivo e cordial”.
O último livro de Murilo Melo Filho é dedicado a esta Casa. Os senhores da palavra – Academia Brasileira de Letras humanas e bem-humoradas, de 2014, uma obra que se ombreia ao Anedotário geral que Josué Montello dedicou à ABL. No entender do filólogo e acadêmico Evanildo Bechara, “o agradável nessa leitura, além do simples sorriso, é a interpretação das personalidades envolvidas nas histórias – muito bem selecionadas e melhor ainda narradas. Em muitos casos, junta-se o humorismo à saudade, num reencontro com amigos queridos”. E Arnaldo Niskier, que com ele conviveu por cinco décadas, escreveu sobre este livro: “Nele Murilo Melo Filho reuniu textos e frases sobre o que 80 acadêmicos – todos já mortos – disseram, fizeram e discutiram ao longo de sua passagem pela nossa Academia Brasileira de Letras. São fatos bem-humorados, contados com a graça própria de intelectuais sábios e cultos, aqui compilados com verve e estilo. (…) O autor teve a preocupação de reconstituí-los com cuidado e exatidão”.
Sras. Acadêmicas, Srs. Acadêmicos,
Nascido em Salvador, passei a minha infância em Ituaçu, no interior do Estado. Contemplo desta tribuna o menino que fui e me espanto. A curiosidade e algumas interrogações daquela época permanecem vivas em mim. Sempre procurando acompanhar o desenvolvimento das novas tecnologias no que elas possam contribuir para o bem de todos, costumo me perguntar: O que será do Brasil em meio a esse mundo de pandemias e guerras? Que destino aguarda a Amazônia? O que os políticos estão fazendo para acabar com a fome e o analfabetismo? Quando conseguiremos alcançar a tão sonhada independência científica e tecnológica? Até quando o Brasil será o “país do futuro” de Stefan Zweig?
Não tenho respostas ou verdades consolidadas, nem sei se as terei um dia. Procurei, junto com alguns brilhantes companheiros de geração, colaborar para que o Brasil fosse respeitado e amado mundo afora. Participei de movimentos culturais como a Tropicália, que continua dando frutos por aí. Tive grandes êxitos e alegrias nesta vida. Mas também fundas tristezas, a maior e a mais dolorosa a perda de meu filho Pedro Gil. Mas não desanimo, porque é preciso resistir sempre.
Nesta noite estão comigo em pensamento todos aqueles que me incentivaram na minha trajetória que começou com Claudina e José Gil, meus pais, e que hoje ganha afetuoso reconhecimento na Casa do grande escritor, e também filósofo, Machado de Assis.
Apesar dos tempos politicamente sombrios que vivemos, aposto na esperança. Contra a treva física e moral, que haja ao menos a chama de uma vela, até chegarmos a toda luz do luar. Permitam-me recordar alguns versos meus:
Se a noite inventa a escuridão
A luz inventa o luar
O olho da vida inventa a visão
Doce clarão sobre o mar
Essa é nossa aposta, na vida e na alegria. Agradeço, pelo estímulo inicial que me trouxe até aqui, aos acadêmicos Marcos Vilaça, Cacá Diegues, Merval Pereira e Antonio Carlos Secchin, que, somados ao sempre amoroso aconselhamento de Flora, minha mulher, contribuíram na minha decisão de postular um lugar nesta Casa. Ao acadêmico Secchin, agradeço a generosidade em me receber com o discurso que ouviremos a seguir. E, dele, endosso os versos do poema “Luz”, composto unicamente por monossílabos, num total de 32, e que revela nossa busca solidária pelo espaço solar da liberdade, e a crença em comum de que a luz verdadeira é a que nasce dentro de nós:
Ao ver
O não
Que sai
Da dor
O som
Da voz
Já vai
No sim
No tom
Do céu
Não vi
Mais luz
Do que
No sol
Que há
Em mim
Em maio de 1968, na capa do meu segundo LP, e já integrado à Tropicália, apareço envergando um fardão e usando pincenê. Ao recordar esse episódio escrevi um poema para este evento.
Sempre houve críticas à Academia,
que a Casa de Machado não faria jus
ao sonho que sonhara ser um dia:
todos ali representados por alguns.
Tal ampla representatividade
sonhada por Nabuco e demais fundadores
jamais fora alcançada de verdade,
jamais todos os saberes e sabores.
Eu mesmo, nos meus tempos de aventuras,
cheguei a envergar um garboso fardão,
vestido então como ironia dura,
a fantasia pura da ilusão!
Juntava-me, naquele instante, aos muitos
que alfinetavam a Instituição
mal sabia eu quais os intuitos,
do destino astuto a interrogação.
Um amigo lembrou-me outro dia
que as ironias sempre trazem seu revés.
papéis trocados, eis aqui, vida vadia:
fardão custoso, bordado a ouro, vistoso,
me revestindo da cabeça aos pés.
Aos que me ouviram aqui, e aos que acompanham essa cerimônia pela internet, aquele abraço, e muito obrigado!
A falta de diálogo vem interditando a participação e o debate na sociedade brasileira. E vou buscar como exemplo um fato que envolve, neste momento, a música brasileira, um dos traços mais marcantes da nossa cultura. O cenário é o Congresso Nacional.
Em meio à maior angustia vivida pela saúde pública mundial e suas consequências econômicas e sociais, alguns políticos brasileiros decidiram investir contra os direitos autorais que garantem a sobrevivência de compositores, músicos e cantores. Estamos falando de uma iniciativa recente, no Congresso Nacional, de um projeto que,se aprovado, impactará diretamente 400 mil pessoas e suas famílias.
Por meio das Medidas Provisórias 907 e 948 tentaram, recentemente, permitir que o setor hoteleiro deixasse de pagar os direitos autorais pela execução pública das obras musicais em quartos de hotéis. Ao setor hoteleiro, uniram-se vários outros setores, todos com o mesmo objetivo: não pagar pelo uso de obras musicais. Não conseguiram mas não desistiram. Em sessão remota prevista para breve, a Câmara poderá aprovar, sem ouvir os titulares de direitos autorais, um requerimento de urgência ao Projeto de Lei 3.968 de 1997, ao qual estão apensados mais de 50 outros projetos, todos buscando a isenção do pagamento da remuneração que autores, músicos e intérpretes têm o direito de receber pelo uso de suas obras musicais.
A questão aqui colocada é que a Constituição, a Lei Federal de Direitos Autorais e normas internacionais de proteção à propriedade intelectual garantem aos autores o domínio sobre suas obras e o devido pagamento pela execução pública de suas criações.
Em 2013, a sociedade abriu uma ampla discussão, que resultou em diversas mudanças na Lei de Direito Autoral e se o Congresso agora entende que esta lei deve ser revista, nós, artistas e entidades que nos representam estamos dispostos a discutir o assunto. Queremos e devemos ser convocados para essa discussão. Não concordamos – é importante que se diga – nem com o momento nem com a forma com que essa revisão está sendo proposta pressupondo, de boa fé, que intenção do Congresso é, de fato, avançar nessa questão. É um contra-senso que essa questão seja levada ao congresso, de afogadilho, sem o contraditório e o confronto de opiniões, sem que todos os segmentos envolvidos se sentem à mesa de negociações.
Perguntamos.Para onde foi o diálogo? A democracia pressupõe a participação de todos na definição dos processos políticos. Ouvir todas as partes interessadas nas questões que lhes dizem respeito é a norma do jogo democrático.
É descabido e desumano, em meio a um momento inédito de pandemia, quando milhões de brasileiros sofrem com incertezas em relação à sua saúde, convivem indefesos e impotentes com a morte diária de pessoas vitimadas por uma doença ainda não totalmente conhecida e enxergam um futuro econômico incerto, além de descabido e desumano é traiçoeiro sacar de um projeto de 1997, anterior, mesmo, a uma lei que foi votada e aprovado em 2013. Todo esse movimento em falso para beneficiar interesses econômicos em detrimento da sobrevivência de milhares de trabalhadores. Sim, artista é trabalhador. Não podemos esquecer deste aspecto fundamental na discussão que precisa ser feita.
A indústria da música é uma parte importante da economia criativa do Brasil e no meio da crise buscou se reinventar. Munidos de uma tecnologia da comunicação cada vez mais sem fronteiras, os artistas apostaram nas lives para chegar ao seu público. E tem sido assim nesses tempos em que não podemos nos abraçar, encontrar as pessoas que amamos, nem nos divertir com segurança. Portanto, a música está na contramão das medidas que tentam tolher a capacidade criativa dos artistas impondo-lhes num momento tão difícil, maiores restrições econômicas. Temos esperanças de que nenhuma medida neste sentido, uma afronta ao estado democrático de direito, será aprovada sem que os artistas sejam chamados ao palco de debates para expor sua opinião na defesa dos seus direitos. Evitar o debate, além de não democrático, pode soar como intolerância, palavra tão utilizada ultimamente no que tange às relações humanas e políticas e que deve estar longe, também, das questões que envolvam a Cultura, essa dimensão simbólica que que nos caracteriza e nos liberta, tão preciosa na construção de nossas identidades como povo e nação.
Gilberto Gil
a primeira pessoa: soa como eu sou
a segunda pessoa: soa como tu és
a terceira pessoa: soa como ele ela também
qualquer pessoa: soa
toda pessoa boa: soa bem
está na cara, você não vê
que a caretice está no medo, você não vê
está na cara, você não vê
que o medo está na medula, você não vê
está na cara, você não vê
que o segredo está na cura
está na cara, está na cura
desse medo
quem tem cara tem medo
quem tem medo tem cura
e essa história de medo
é caretice pura
vem brincar que ainda é cedo
que o brinquedo está na cara
está na cara, está na cara
e o segredo está na cura
do medo
No papo eu me safo. Minto, reminto, remato, mato, morro, me entrego, me tomo todo e a bola sempre acaba no fundo das redes. Marco meu gol. Como Garrincha, sem saber como, guiado pelo fôlego, pelo sopro, pela grandeza escondida da inteligência pobre, magra, marginal – de um universo parelelo ao da cultura. No papo eu me safo. A fada é a fala. É como se não fosse minha. É santo baixado, xaxado. A gente tira de letra, de cor e salteado. Escrever é diferente. A caneta na mão me dá outro babado. Responsabilidade. É como o fim de um circuito cuidadosamente montado, sofisticado, resultante de uma consciência poderosa, central de energia que guia as idéias para que elas se escrevam, sejam inscritas, registrem, invistam, capitalizem, reinem, escravizem, imperem. Escrever pra mim é como submeter minha cuca a uma disciplina militar. Eu detesto isso, é sem swing, o fim da picada. Detesto.
Pois, um golfinho de mares cariocas resolve tirar o meu sossego ajudado pela ingenuidade ou pela burrice de meia dúzia de pessoas que de repente resolvem achar importante o fato de eu aceitar ou não um prêmio que me deram. A velha mania brasileira de se meter nos problemas domésticos do vizinho. Mesmo se o cara mora na Inglaterra.
Para mim, a essa altura, aceitar ou não prêmios ao trabalho que fiz no Brasil já não tem a menor importância. Agora eu estou on the road. Sábado passado no Festival Hall, amanhã, depois e sempre em outros lugares – i’m wasted but i can’t find my way home. Repito que recusar ou aceitar esse prêmio não tem a menor importância e eu resolvir recusar para ver se vocês estão a fim de entender alguma coisa.
Pois é. Porque não acredito como pensam meu pai & amigos do Brasil que o golfinho me tenha sido concedido por aqueles que reconhecem meu trabalho, que realmente gostam de mim e não pelos que me menosprezam e ignoram. Ingenuidade. Embora muita gente possa realmente respeitar o que fiz no Brasil (talvez até mesmo gente do Museu), acho muito difícil que esse museu venha premiar a quem, claramente, sempre esteve contra a paternalização cultural asfixiante, moralista, estúpida e recionária que ele faz com relação á música brasileira. Sempre estive contra toda forma de fascismo cultural de que o museu – à sura maneira – vem representando uma parcela do Brasil. Se, quando eu estava aí, eu nunca perdi tempo atacando diretamente organizações como o Museu da Imagem e do Som é porque o meu trabalho já fazia isso; minha música já assumia essa responsabilidade. E se eu continuasse aí não sei o que estaria fazendo, mas de qualquer forma tenho certeza que não estaria sendo premiadão. Claro que eu não acredito nesse prêmio. Pelo que me é dado saber o museu continua o mesmo e portanto eu continuo contra e recusar o prêmio é só pra deixar isso bem claro. Se ele pensa com Aquele Abraço eu estava querendo pedir perdão pelo que fizera antes, se enganou. E eu não tenho dúvida de que o museu realmente pensa que Aquele Abraço é samba de penitência pelos pecados cometidos contra “a sagrada música brasileira”. Os pronunciamentos de alguns dos seus membros e as cartas que recebi demonstram isso claramente. O museu continua sendo o mesmo de janeiro, fevereiro e março: tutor do folclore de verão carioca. Eu não tenho porque não recusar o prêmio dado para um samba que eles supõem ter sido feito zelando pela “pureza” da música popular brasileira. Eu não tenho nada com essa pureza. Tenho três LPs gravados aí no Brasil que demonstram isso. E que fique claro para os que cortaram minha onda e minha barba que Aquele Abraço não significa que eu tenha me “regenerado”, que eu tenha me tornado “bom crioulo puxador de samba” como eles querem que sejam todos os negros que realmente “sabem qual é o seu lugar”. Eu não sei qual é o meu e não estou em lugar nenhum; não estou mais servindo a mesa dos senhores brancos e nem estou mais triste na senzala em que eles estão transformando o Brasil. Por isso talvez Deus tenha me tirado de lá e me colocado numa rua fria e vazia onde pelo menos eu possa cantar como o passarinho. As aves daqui não gorgeiam como as de lá, mas ainda gorgeiam.
O que meu pai precisa saber é que o museu sempre esteve contra o meu gorgeio, que sempre achou desnaturado, desarmonioso, inautêntico e incômodo; sempre esteve contra tudo que na música, no disco e na TV, tenha tido um sentido de abertura compatível com a liberdade criativa de um povo novo e fogoso como o brasileiro. Pelo que sei as aristocráticas e puritanas prateleiras do museu não guardaram até hoje um só programa do Chacrinha, o mais lindo que alguém pôde encontrar em qualquer televisão do mundo.
Para mim o museu e o nazi-fascismo comem no mesmo prato, e, exatamente por não compreenderem isso, meu pai e meus ingênuos amigos acabam comendo também desta suculenta e colorida pasta de miséria tropical, sal, mal, mel, fel & fé ( a geléia geral brasileira que o Jornal do Brasil anuncia – e O Pasquim também?).
Acho que só a falta de fé vai nos salvar a todos. E o preço da salvação vai ser bem alto & muitos vão morrer sem ver o dia & eu nunca mais talvez seja Narinha e Marília e as marinaravilhas Bahia & o rapaz que eles mataram ontem foi meu colega no colégio dos irmãos maristas que eram quase todos espanhóis e a favor de Franco & por isso que o demônio está vencendo & por isso eu sei que os anjos descerão dos céus para nos ajudar a encontrar, entre as ruínas, a cidade dos homens.
Na verdade nem sei porque estou estendendo este papo. Eu, o museu e o Brasil somos uma coisa só: o nazismo oficial, a esquerda policial, o fascinismo de Nelson Rodrigues, o amor obsessivo e impertinente de meu pai, a imbecilidade de um velho que pensa me ameaçar me chamando de moleque ( quisera eu ser realmente um moleque!), o sentimentalismo barato de um povo de bom coração que insiste para que eu receba um prêmio sem ter em mente a minha vitória. Por isso nos confunde e nos reúne a todos, a mim e ao museu. Por isso eu bem que poderia aceitar o tal golfinho. Mas eu estou longe, sozinho e não quero saber de nada. Por favor entendam, é fácil, é primário.
Mesmo de longe eu posso compreender tudo. Mesmo na Inglaterra a embaixada brasileira me declara persona non grata para as agências de notícias. Nenhum prêmio vai fazer desaparecer essa situação. Vocês que me amam e me respeitam sabem que eu não os estou confundindo com o inimigo; vocês sabem quem são meus inimigos. Agora os campos estão bem definidos e quem não está comigo está contra mim. E os que estão comigo estão comigo há muito tempo, desde que perceberam o meu amor por eles; não agora, depois de eu ter que declarar o meu amor em prantos, do meio da rua, já posto pra fora de casa, num samba que apenas quer dizer a mesma coisa que a balada “alienada” da Martinha: eu te amo mesmo assim.
Eu devia ter aberto a cabeça de vocês a machadadas para que vocês entedessem o que eu estava dizendo. Talvez seja o que estou tentando fazer agora. Se a machadada tem que ser dada, a marcha será dada. Não foi por bem, vai por mal. Agüentem o tombo e por favor sosseguem e entendam. E não me dêem mais prêmio nenhum. Vão cuidar de aprender as coisas que elas estão no mundo – coisas do mundo, minha nêga – e Paulinho da Viola que é bom sambista já nos avisou há mais de dois anos atrás, num samba:
RECUSO + ACEITO = RECEITO
Receito uma dose de formicida tatu para esse assunto. Não há nenhum herói nem nenhum gênio para ser condecorado; não há nada para ser premiado. Somos todos muito pobres e eu já estou longe, muito longe, vendendo minha miséria pra comer.
Meu pai fique tranqüilo. O que eu fizer está bem feito. Ou está mal feito. Mas está feito e de qualquer jeito eu vou ter de agüentar. E se eu não agüentar DEUS é maior do que tudo e a nossa fé vai nos salvar…
PS: Com a publicação desta carta, o prêmio está implicitamente recusado. Que o golfinho volte para as águas tranqüilas de sua insignificância.
A macrobiótica é uma seita paga com um número infinito de deuses.
Em lugar de um.
A macrobiótica defende a evolução;
Confere ao cereal uma posição importante entre os seres? da ordem?
[natural? As interrogações são minhas. A macrobiótica não. A macrobiótica é um.
Caminho, cadinho, elemento de conhecimento. Siderurgia para altas fundições de cuca a baixa temperatura. Alquimia, siderurgia, caminho. Uma tricharia do desbunde? As interrogações são minhas. A macrobiótica não. A macrobiótica é um. A macrobiótica ótica que tem olhos, música que tem ouvidos, drama que tem coração, lírica que tem ideias, colíricas que têm imaginação:
a macro bi-ótica todos com bons olhos. A macrobiótica é piração? Massificação de meios? É elite?
As interrogações são minhas. Gostaria de ter seu palpite. Palpitar é bom; é vivo. Palpitante melhor ainda. A macrobiótica é assunto palpitante? As interrogações são minhas. A macrobiótica não. A macrobiótica é um. A macrobiótica é tudo que a natureza é + o que o homem pensa
[que não é. + é o sinal de somar mais arroz integral ao sonho do sono integral. O sono refaz, todos sabem. O sono integral refaz tudo?
“O sono sem sonho” da macrobiótica é só uma teoria do mestre.
O sono integral é nada?
Nada é a morte?
As interrogações são minhas.
A macrobiótica não.
A macrobiótica é um pouco.
Como tantos poucos, cada vez mais poucos, pratos de arroz.
Será?
As interrogações são minhas.
refavela, como refazenda, um signo poético.
refavela, arte popular sob os trópicos de câncer e de capricórnio.
refavela, vila/abrigo das migracões forçadas pela caravela.
refavela, como luz melodia.
refavela, etnias em rotação na velocidade da cidade/nação.
não o jeca mas o zeca total.
refavela, aldeia de cantores, músicos e dançarinos pretos, brancos e mestiços.
o povo chocolate e mel.
refavela, a franqueza do poeta; o que ele revela;
o que ele fala, o que ele vê.
Realce, uma maneira de dizer
a luz geral.
Denominar o brilho anônimo,
como um salário mínimo
de cintilância
a que todos tivessem direito.
Como a noite de discoteque
após o dia de trabalho.
Realce, uma maneira de dizer
o bem-estar.
Denominar o prazer coletivo,
o êxtase do simples
caminhar contra o vento
de qualquer um.
Como o domingo de futebol
após a semana da fábrica.
Realce, uma maneira de dizer
o Deus louvar.
Denominar o santo sem altar,
como nos templos profanos
dos terminais de trens e aviões,
onde todos estão pra nada,
indo ou vindo para tanta coisa.
Realce, cada um por si,
Deus por todos
Eu costumava chamá-lo carinhosamente de Tak, Tak. Não só pelo expediente afetivo de abrandar, com um apelido, a suposta/imposta seriedade da relação mestre/discípulo que entre nós se estabelecera, como pela lembrança que a sua condição de suíço trazia de relógios. Relógios grandes, antigos, engenhosos e artísticos como os elaborados e intrigantes cucos de mecanismos intrincados e simplória atmosfera caseira. Smetak me dava a sensação de um misto de cientista louco e Papai Noel de província; misto de chefe religioso severo e ameaçador, e velho manso conselheiro de farta cabeleira branca e porta sempre aberta aos curiosos do Antique e do Mistério.
Smetak era muita coisa a um só tempo e fica muito difícil separar e analisar as partes de que foi composta sua vida, sua figura e seu papel, na sua existência brasileira que cobriu os seus últimos 30 anos. Desde que resolveu incorporar ao mundo CLEAN de sua razão de viver européia o misterioso e irracional de uma demência vaporosa dos trópicos, sua nova existência brasileira passou a desenvolver-se em nome de uma vertigem delícia/delírio que, ao assumir-se como tônica de seus impulsos novos, desejava-se ao mesmo tempo submissa (microtônica) ao encaixe da Razão Maior, austera, rigorosa e petrificante do frio de onde veio.
Cristal e Vapor, Tom e Microtom, Deus e Natureza, Matemática e Metafísica, Apolo e Dionísios, Nirvânico e Orgiástico, o plástico e a cabaça, a inteligência exata de homem branco e sexo alucinado da mulher negra, tudo a oscilar vertiginosamente de pólo a pólo, de pêlo a pêlo de sua pele de animal em mutação. O mutante em exercício pleno de sua entrega consciente ao Novo Modo.
Os resultados práticos de seu trabalho marcavam essa oscilação assumida entre a Grandeza Antiga de uma Europa, Atlante, Vitoriosa, Afirmada e Ariana, e o resgate de uma Grandeza Perdida de uma África/América, Lemuriana, Submetida e Adormecida. No vértice do seu triângulo, na cunha/quilha de seu barco: indicações de um claro avanço rumo a um sonho de homem novo. Novo Modo, Novo Mundo.
É óbvio que ao examinar seus escritos, suas partituras e gravações, seus instrumentos e plásticas sonoras, seus interesses e estudos esotéricos e filosóficos/religiosos, seu rigor suíço e seu amor ao caos do trópico, fica difícil para o leigo compreender o que se avançou com Smetak. Não creio que Smetak tenha tido sua função ligada ao mundo leigo. Ele era um iniciado e tratava com signos iniciáticos para os que miravam o Início. De uma Nova Era. De uma Nova Espécie, velha espécie de homens divididos entre a Morte e a Eternidade, por uma remota e difícil promessa de Redenção que só se encontra ao alcance da arte radical ou da busca obstinada; só ao alcance dos que resolvem escolher um dos oceanos da Dúvida e nele mergulhar.
Smetak é isso, um mergulhador de excelente performance e vários records de profundidade no oceano da Dúvida.
Eu, jamais serei impune ao fato de ter sido seu discípulo, seu amigo, seu irmão.
O que a mídia chama de “world music”, toda música popular criada e produzida na África, América Central e do Sul e em outras partes do planeta, nasce de uma colisão: a colisão entre os impulsos pela emancipação, autonomia e identidade dos povos do chamado Terceiro Mundo, por um lado e, por outro, os interesses do Primeiro Mundo em manter seu poder. Não podemos tratar deste assunto sem apontar para outro fato.
Tecnologia e meios de comunicação se tornaram disponíveis aos povos periféricos como uma conseqüência da expansão do industrialismo multinacional. Baseados neste esqueleto de riqueza acessível às populações de grandes centros urbanos como Lagos, Kinshasa, Salvador, Kingston, Havana, Johannesburgo, Dacar, etc., surgiram novos artistas populares consagrados à produção musical. Estes artistas se tornaram os habilidosos artífices de uma música pós-folclórica, cujo caráter pré-industrial exigiu uma tomada de posição da indústria de discos. A indústria começou a fornecer a essas cidades tropicais condições mínimas para industrializar decentemente sua música. Bons estúdios foram construídos ao lado de escritórios dinâmicos e aparelhados. (Eu mesmo gravei em Kingston, no Tuff Gong, com os Wailers em 1984, e lembro-me muito bem de Lagos em 1977, quando Ginger Baker acabara de voltar para a Inglaterra, deixando lá um estúdio que até hoje é legendário).
Estes artistas estavam inicialmente ligados aos seus processos locais. E assim o reggae foi desenvolvido em Kingston; o juju e o highlife em, Lagos, o rai se espalhou pelas cidades árabes, o trio elétrico, os blocos afro e as discotecas assumiram novas formas no Brasil; a nueva trova e outras formas em Cuba, e assim por diante.
No estágio seguinte, os artistas começaram a evoluir, apoiados pela expansão da música e de seu marketing inteligente. Internacionalmente, apareceram novos gêneros (lambada, para lembrar apenas um), novos nomes, novos estilos musicais. Decidiu-se chamar a tudo isso de “world music”. Foi um rótulo rapidamente aplicado e, certamente, como acontece com qualquer rótulo, de forma generalizada e insatisfatória ao mesmo tempo.
“World music” tenta unir, numa expressão, muitos significados diversos. Mesmo havendo muita coisa em comum entre todas as músicas da África e da América Central e do Sul (raízes comuns, uma história de presença colonial durante mais de quatro séculos, favelas, fome, violência, etc.), elas são muito diversas para significar, mercadologicamente, uma única visão industrial. Representam várias nuances de raça, cultura, realidades antropológicas e sociais. E é assim que acontece a world music: juntos, nos mesmos discos, nos mesmos concertos, as preocupações de Marley, Fela Kuti e Olodum contra o “establishment” e os instrumentos da indústria da música com os quais difundir a mensagem. O discurso de resistência contra o “apartheid” social e econômico, contra a dominação das elites locais, contra o controle dos meios de produção, comunicação e consumo precisa chegar às massas impacientes de oprimidos e marginalizados, e para isso precisa da indústria. Em contrapartida, a indústria precisa da música para seus mercados e, subliminar ou explicitamente, precisa também dar o recado de que mantém o controle sobre o poder político e econômico.
A world music é, portanto, um paradoxo contemporâneo: um mundo heideggeriano, onde todos somos vítimas e algozes, controlados e controladores. Sem nos darmos conta disso, trabalhamos para a unidade do planeta e, vice-versa, para o crescimento e a proliferação da diversidade local, que se afirmam em múltiplas minirrealidades espalhadas como poeira em todo o globo.
A intenção de meu último disco, Parabolicamará, é justamente exprimir esta função da arte industrial em geral e da música popular em particular e ao mesmo tempo unir e diversificar.
É importante enfatizar que esta interpretação abrangente da música internacional contemporânea não nos dá direito a cínicos sentimentos de paralisia e imobilidade. Ao contrário, percebemos que as coisa se movem em seu próprio ritmo. A confrontação de forças opostas é o que nos faz avançar.
Por exemplo, ao ter de servir aos interesses do sistema, para transmitir sua mensagem, Marley e seus irmãos de reggae na Jamaica jamais foram impedidos de apresentar o melhor de seu trabalho. No trabalho de Marley não houve nenhuma perda de força “antiestablishment”, com todas as suas conseqüências de transformação. Alguns podem considerar insuficientes os resultados, mas se o reggae não fez a revolução sonhada pelos rastafaris fundamentalistas que a criaram, ao menos deve ser considerado como uma das minirrevoluções estéticas mais importantes da conteporaneidade, de conseqüências irreversíveis para o futuro da música popular do mundo. Além de ter dado contribuições sérias para uma visão política mais profunda em quase todos os povos negros e mestiços do mundo (incluindo os EUA), como já o haviam feito o jazz, o rock n’ roll e a bossa nova, entre outros.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, a música de Caetano Veloso, os tambores de Olodum, o trabalho brilhante de Carlinhos Brown com a música comunitária, não são respostas definitivas à miséria e ao atraso do Brasil, mas sem eles, estaríamos mais longe do que estamos hoje de poder desafiar a negligência histórica da elite brasileira.
Atualmente, Youssou N’Dour e Ray Lema podem fazer muito mais pela diplomacia informal na África do que qualquer Departamento de Estado. O mesmo se pode dizer de Rubén Blades na América Central. A revolução não está feita. Continua sendo feita a cada dia, malgré le système.
E é preciso também prestar atenção às interações entre gêneros na fronteira da música popular, entre eles mesmos, e entre eles e os gêneros centrais (rock n’ roll, pop, jazz) – um intercâmbio intenso, fértil e saudável para cada um e para todos. As obras de Miles Davis e Dizzy Gillespie são exemplares neste sentido.
O jazz influencia o samba, que cria a bossa nova, que, por sua vez, influencia novamente o jazz. O son, a rumba, o mambo, o merengue influenciaram a música africana. A música africana está presente no nascimento de gêneros novos como o reggae e o samba-reggae que, por sua vez, tornam a influenciar os novos movimentos da música africana e a subsidiar também o rock n’ roll e o rhythm ‘n blues.
Os “mercadores do ritmo” partiram com suas novas caravanas, tranportadas por neonavegações, via filmes, rádio, disco e televisão, satélites e computadores. Nos últimos 50 anos eles estabeleceram um intenso tráfego musical entre as últimas fronteiras do planeta e o centro euro-americano, criando uma música do mundo industrial que vai muito além da world music tal como definida pelos executivos yuppies do showbizz.
Sim. Nós temos hoje uma verdadeira “música mundial”, resultado de intensos e amplos ntercâmbios entre muitos povos do mundo, entre seus artistas, seus movimentos populares, suas diplomacias informais, suas organizações culturais não-governamentais, os departamentos de antropologia e sociologia de suas universidades. Este sentimento verdadeiramente universal, esta ampla consciência da música popular industrial como parte de um processo fora de categorias temporárias, esta compreensão de um papel histórico que vai além do utilitarismo efêmero das partes mais atrasadas da indústria cultural, estão na raiz de todo artista do Segundo e do Terceiro Mundo.
Vejamos. O que faz as mulheres do grupo O Mistério das Vozes Búlgaras cantarem com tanta leveza e sublimidade? O que faz de Salif Keita um dos mais atraentes e impressionantes cantores do planeta? O que imprime tanta autoridade e tanta sensação de paz ao canto de Djavan? O que dá a Mercedes Sosa tanta nobreza e elegância? Por trás de toda essa música está a grandeza de alma de seus povos, seus antepassados, suas antigas tribos, seus antigos ciganos, seus avós escravos.
Nesta magnifica música do mundo pobre é necessário reconhecer o vigor do espírito dos tempos, preservando a luz que vem de muito longe e que todo colonialismo e toda opressão não puderam apagar. Seu vigor é o poder das culturas que as Cruzadas as Navegações não puderam eliminar.
O que se chama de world music é a expressão da grandeza que, exatamente por ter sido ignorada e ocultada, parece mais clara nesta época de derrubada dos muros. Sua grandeza vai além de si mesma. Nos dinâmicos campos de jogos do poder internacional, ela tem de fato uma superioridade, a superioridade de Davi sobre Golias. Ela tem agora a vantagem do pêndulo que balança. O que estava em baixo, sobe. Estamos na fase popular da história e a world music é a música dos povos do mundo, mais do que em qualquer tempo. E no tempo atual ela é melhor do que foi anteriormente, quando o mundo era menor e o que acontecia era menos do que está acontecendo agora. Esta época é melhor do que a parte menos inteligente da indústria cultural queria que fosse. A música do mundo é maior do que a world music.
Um exemplo desta amplidão é o que se tornou conhecido no Brasil como Tropicalismo. Aqui, nesta terra tropical, há quase 30 anos, nós jovens de diferentes pontos do país, tivemos a compreensão: pertencemos ao mundo e o mundo nos pertence, fazemos parte de tudo e estamos em todas as partes. Esta consciência nos levou a criar uma nova música que foi ao mesmo tempo a música mais antiga. Descobrimos a tradição, prestamos homenagem a nossos velhos mestres, celebramos a nova revelação da bossa nova e nos deixamos sacudir pelo furacão do rock n’ roll. Acreditávamos que o futuro era viver o presente.
O Tropicalismo pode ter sido muito mais ou muito menos, quem sabe!? Mas era tudo o que queríamos e podíamos fazer naquela época. Foi aqui mas foi do mundo.
O Tropicalismo foi para nós, aqui, há 30 anos, o que a world music é agora para a “aldeia global”: uma ocasião para prestar nossa homenagem à História. E para novamente pedir emprestado a ela.
Que a letra da canção Parabolicamará fale por si mesma:
Antes mundo era pequeno
Porque terra era grande
Hoje mundo é muito grande
Porque terra é pequena
Do tamanho da antena parabolicamará
Eh, volta do mundo camará.
Eh, Eh, mundo dá volta camará.
Vendo o panorama geral da minha vida, eu fiz tudo para ser quem eu sou, para estar no lugar em que estou e sentir a vida de modo a estar em conformidade com ela. É o que sempre digo: a conformidade conforme a idade. Tenho a idade que tenho hoje e uma vida em conformidade com ela.
Eu gosto da idéia de envelhecer. E, diante da Divindade, ainda me penitencio de um pecado, que eu acho forte, e de que recentemente comecei a vislumbrar a possibilidade de me livrar, que é o desejo da boa morte. Pelo menos, tenho a impressão que nem esse desejo deveria ter, para, enfim, ter a sujeição absoluta: “Seja feita a vossa vontade assim na Terra como no Céu”. Acho até que nos devemos impor não desejar nem isso: que a morte seja isso ou seja aquilo ou que a vida seja longa ou qualquer coisa desse tipo. Não se deve especular sobre o destino e não se deve mexer nele.
É, e não se deve mexer nisso. Mas eu ainda tenho um pouco, de vez em quando, essa coisa de ficar tão encantado com as pessoas que morrem serenamente e ainda fico idealizando uma boa morte. E, de certa forma, tenho tentado, na medida do possível, com todos os insucessos, evidentemente, fazer uma preparação para essa boa morte, pois acho a boa morte um coroamento. Mas ainda “peco” por isso, e isso ainda me soa um pouco como uma ambição. Mas de todo modo, digamos, sem julgar essa atitude, essa manifestação em mim, eu venho fazendo a minha vida para isso, preparando a minha vida para a minha morte.
Sílvio Osias, a quem conheço há muitos anos e por quem cultivo sincera amizade, não é o que, a rigor, podemos considerar um crítico musical. Apaixonado pela música popular nas suas mais diversas formas de manifestação, apreciador da diversidade de gêneros e atitudes musicais, defensor da liberdade, do arrojo e da audácia experimentativa de alguns, mas apreciador, também, dos modos moderados e perseverantes de outros tantos, Sílvio pode acolher, em seu coração sensível, tanto a admiração por um Hermeto Pascoal irrequieto e rabugento quanto por um plácido e correto Dominguinhos. Sílvio sempre procurou compreender a contribuição genuína dos artistas, buscando adivinhar em cada um o destino por trás do propósito, o êxtase por trás do êxito, o senso de missão por trás do fracasso. Sílvio sempre procurou, nos artistas que aprecia, o amor que lhes inspira, a inteligência que lhes propicia o encontro da novidade eficaz e a espiritualidade inerente ao teor poético de tudo que cantam e tocam.
Disse-me Sílvio, a respeito das crônicas musicais aqui reunidas, que elas foram todas escritas para apreciar trabalhos ou conjuntos de obras de artistas de quem ele gosta. “Se eu não me sinto inclinado a falar bem, então, não falo mal”, sentenciava ele numa conversa no camarim de um show no Recife, há alguns meses, quando me apresentou o material deste livro para que eu, eventualmente, escrevesse algo a respeito – um prefácio se eu me dispusesse ou um simples punhado de palavras sobre os escritos, se só isso me permitissem o tempo e a disposição. Seguramente, não me faltou a disposição, haja vista o carinho que tenho tanto pelo escritor quanto pelos escritos. O tempo, este, no entanto, já não foi tão generoso, haja vista a minha agenda alucinada. Afinal só me foi possível escrevinhar este simples punhado de idéias sobre o fato de Sílvio ter feito este livro.
Espero que o leitor leia este livro como quem aprecia a coleção de um filatelista: ao colecionador de selos importa menos o valor de cada selo e mais a beleza generosa da coleção. Ao Sílvio também, parece-me, importa mais que a música seja festejada em cada artista, não importa o artista. Sílvio ama a música e sabe que o todo é maior que a soma das partes. Os músicos são apenas astros no cosmos deslumbrante da musa. Eles são meros fragmentos da música. Só ela é a pedra preciosa inteira.
in Meio Bossa Nova, meio Rock’n Roll. Sílvio Osias. Edição do autor, 2001.
“a violência, a injustiça, a traição ainda podem perturbar meu coração mas já não podem abalar a minha fé porque eu sou e deus é disso é que resulta toda criação”
Ao ler, com prazer crescente a cada página, o livro escrito por Arnaldo Rodrigues Silva, lembrei-me dos versos acima lavrados por mim, faz algum tempo, para uma canção banal. Apesar da alienacão resultante da combinação de nosso descuido com o rolo compressor de um cotidiano impiedoso, por vezes a voz do ser se faz ouvir com mais nitidez em nosso interior, como a nos alertar para a tarefa permanente de nos entregarmos ao fluxo da criação com a atenção e a perseverança requerida para que se manifeste o Espírito Universal. Ainda que parcialmente bloqueados para as emanacões profundas do ser vivente, dentro em nós e ao nosso redor, por vezes somos irremediavelmente assaltados pela sua voz e sua luz a nos iluminar com a percepção de sua presença abrangente e sua extensão infinita.
Escrito em circunstâncias de extraordinário desafio existencial e de provação, o livro do Arnaldo é um testemunho vibrante da espiritualidade aberta a entrada do Grande Amor e da consciencia focada no cerne do Bem Comum.
A fusão de uma imanência sôfrega e devoradora com a sua transcendência correspondente, balsâmica e envolvente, operaram em Arnaldo, nesses seus dias de choque, abalo e paciente reconstrução, o milagre da visão divina. Ensurdecido pelo estrondo do colapso de boa parte do seu mundo exterior, ele ouve e atende a voz do silêncio e se dispõe a seguir o seu eco.
O resultado é este livro tão natural como uma flor. E o amor que é seu perfume.
in Travessia – diário de um psicólogo a partir de uma experiência limite. Rio de Janeiro: Editora Reserva Especial, 2002.
A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva foi a mais eloqüente manifestação da nação brasileira pela necessidade e pela urgência da mudança. Não por uma mudança superficial ou meramente tática no xadrez de nossas possibilidades nacionais. Mas por uma mudança estratégica e essencial, que mergulhe fundo no corpo e no espírito do país. O ministro da Cultura entende assim o recado enviado pelos brasileiros, através da consagração popular do nome de um trabalhador, do nome de um brasileiro profundo, simples e direto, de um brasileiro identificado por cada um de nós como um seu igual, como um companheiro.
É também nesse horizonte que entendo o desejo do presidente Lula de que eu assuma o Ministério da Cultura. Escolha prática, mas também simbólica, de um homem do povo como ele. De um homem que se engajou num sonho geracional de transformação do país, de um negromestiço empenhado nas movimentações de sua gente, de um artista que nasceu dos solos mais generosos de nossa cultura popular – e que, como o seu povo, jamais abriu mão da aventura, do fascínio e do desafio do novo. E é por isso mesmo que assumo, como uma das minhas tarefas centrais, aqui, tirar o Ministério da Cultura da distância em que ele se encontra, hoje, do dia-a-dia dos brasileiros.
Que quero o Ministério presente em todos os cantos e recantos de nosso País. Que quero que esta aqui seja a casa de todos os que pensam e fazem o Brasil. Que seja, realmente, a casa da cultura brasileira.
E o que entendo por cultura vai muito além do âmbito restrito e restritivo das concepções acadêmicas, ou dos ritos e da liturgia de uma suposta “classe artística e intelectual”. Cultura, como alguém já disse, não é apenas “uma espécie de ignorância que distingue os estudiosos”. Nem somente o que se produz no âmbito das formas canonizadas pelos códigos ocidentais, com as suas hierarquias suspeitas. Do mesmo modo, ninguém aqui vai me ouvir pronunciar a palavra “folclore”. Os vínculos entre o conceito erudito de “folclore” e a discriminação cultural são mais do que estreitos. São íntimos. “Folclore” é tudo aquilo que – não se enquadrando, por sua antigüidade, no panorama da cultura de massa – é produzido por gente inculta, por “primitivos contemporâneos”, como uma espécie de enclave simbólico, historicamente atrasado, no mundo atual. Os ensinamentos de Lina Bo Bardi me preveniram definitivamente contra essa armadilha. Não existe “folclore” – o que existe é cultura.
Cultura como tudo aquilo que, no uso de qualquer coisa, se manifesta para além do mero valor de uso. Cultura como aquilo que, em cada objeto que produzimos, transcende o meramente técnico. Cultura como usina de símbolos de um povo. Cultura como conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação. Cultura como o sentido de nossos atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos.
Desta perspectiva, as ações do Ministério da Cultura deverão ser entendidas como exercícios de antropologia aplicada. O Ministério deve ser como uma luz que revela, no passado e no presente, as coisas e os signos que fizeram e fazem, do Brasil, o Brasil. Assim, o selo da cultura, o foco da cultura, será colocado em todos os aspectos que a revelem e expressem, para que possamos tecer o fio que os unem.
Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, criar condições de acesso universal aos bens simbólicos. Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, proporcionar condições necessárias para a criação e a produção de bens culturais, sejam eles artefatos ou mentefatos. Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, promover o desenvolvimento cultural geral da sociedade. Porque o acesso à cultura é um direito básico de cidadania, assim como o direito à educação, à saúde, à vida num meio ambiente saudável. Porque, ao investir nas condições de criação e produção, estaremos tomando uma iniciativa de conseqüências imprevisíveis, mas certamente brilhantes e profundas – já que a criatividade popular brasileira, dos primeiros tempos coloniais aos dias de hoje, foi sempre muito além do que permitiam as condiçõs educacionais, sociais e econômicas de nossa existência. Na verdade, o Estado nunca esteve à altura do fazer de nosso povo, nos mais variados ramos da grande árvore da criação simbólica brasileira.
É preciso ter humildade, portanto. Mas, ao mesmo tempo, o Estado não deve deixar de agir. Não deve optar pela omissão. Não deve atirar fora de seus ombros a responsabilidade pela formulação e execução de políticas públicas, apostando todas as suas fichas em mecanismos fiscais e assim entregando a política cultural aos ventos, aos sabores e aos caprichos do deus-mercado. É claro que as leis e os mecanismos de incentivos fiscais são da maior importância. Mas o mercado não é tudo. Não será nunca. Sabemos muito bem que em matéria de cultura, assim como em saúde e educação, é preciso examinar e corrigir distorções inerentes à lógica do mercado – que é sempre regida, em última análise, pela lei do mais forte. Sabemos que é preciso, em muitos casos, ir além do imediatismo, da visão de curto alcance, da estreiteza, das insuficiências e mesmo da ignorância dos agentes mercadológicos. Sabemos que é preciso suprir as nossas grandes e fundamentais carências.
O Ministério não pode, portanto, ser apenas uma caixa de repasse de verbas para uma clientela preferencial. Tenho, então, de fazer a ressalva: não cabe ao Estado fazer cultura, a não ser num sentido muito específico e inevitável. No sentido de que formular políticas públicas para a cultura é, também, produzir cultura. No sentido de que toda política cultural faz parte da cultura política de uma sociedade e de um povo, num determinado momento de sua existência. No sentido de que toda política cultural não pode deixar nunca de expressar aspectos essenciais da cultura desse mesmo povo. Mas, também, no sentido de que é preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de “do-in” antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país. Enfim, para avivar o velho e atiçar o novo. Porque a cultura brasileira não pode ser pensada fora desse jogo, dessa dialética permanente entre a tradição e a invenção, numa encruzilhada de matrizes milenares e informações e tecnologias de ponta.
Logo, não se trata somente de expressar, refletir, espelhar. As políticas públicas para a cultura devem ser encaradas, também, como intervenções, como estradas reais e vicinais, como caminhos necessários, como atalhos urgentes. Em suma, como intervenções criativas no campo do real histórico e social. Daí que a política cultural deste Ministério, a política cultural do Governo Lula, a partir deste momento, deste instante, passa a ser vista como parte do projeto geral de construção de uma nova hegemonia em nosso País. Como parte do projeto geral de construção de uma nação realmente democrática, plural e tolerante. Como parte e essência de um projeto consistente e criativo de radicalidade social. Como parte e essência da construção de um Brasil de todos.
Penso, aliás, que o presidente Lula está certo quando diz que a onda atual de violência, que ameaça destruir valores essenciais da formação de nosso povo, não deve ser creditada automaticamente na conta da pobreza. Sempre tivemos pobreza no Brasil, mas nunca a violência foi tanta como hoje. E esta violência vem das desigualdades sociais. Mesmo porque sabemos que o que aumentou no Brasil, nessas últimas décadas, não foi exatamente a pobreza ou a miséria. A pobreza até que diminuiu um pouco, como as estatísticas mostram. Mas, ao mesmo tempo, o Brasil se tornou um dos países mais desiguais do mundo. Um país que possui talvez a pior distribuição de renda de todo o planeta. E é esse escândalo social que explica, basicamente, o caráter que a violência urbana assumiu recentemente entre nós, subvertendo, inclusive, os antigos valores da bandidagem brasileira.
Ou o Brasil acaba com a violência, ou a violência acaba com o Brasil. O Brasil não pode continuar sendo sinônimo de uma aventura generosa, mas sempre interrompida. Ou de uma aventura só nominalmente solidária. Não pode continuar sendo, como dizia Oswald de Andrade, um país de escravos que teimam em ser homens livres. Temos de completar a construção da nação. De incorporar os segmentos excluídos. De reduzir as desigualdades que nos atormentam. Ou não teremos como recuperar a nossa dignidade interna, nem como nos afirmar plenamente no mundo. Como sustentar a mensagem que temos a dar ao planeta, enquanto nação que se prometeu o ideal mais alto que uma coletividade pode propor a si mesma: o ideal da convivência e da tolerância, da coexistência de seres e linguagens múltiplos e diversos, do convívio com a diferença e mesmo com o contraditório. E o papel da cultura, nesse processo, não é apenas tático ou estratégico – é central: o papel de contribuir objetivamente para a superação dos desníveis sociais, mas apostando sempre na realização plena do humano.
A multiplicidade cultural brasileira é um fato. Paradoxalmente, a nossa unidade de cultura – unidade básica, abrangente e profunda – também. Em verdade, podemos mesmo dizer que a diversidade interna é, hoje, um dos nossos traços identitários mais nítidos. É o que faz com que um habitante da favela carioca, vinculado ao samba e à macumba, e um caboclo amazônico, cultivando carimbós e encantados, sintam-se – e, de fato, sejam – igualmente brasileiros. Como bem disse Agostinho da Silva, o Brasil não é o país do isto ou aquilo, mas o país do isto e aquilo. Somos um povo mestiço que vem criando, ao longo dos séculos, uma cultura essencialmente sincrética. Uma cultura diversificada, plural – mas que é como um verbo conjugado por pessoas diversas, em tempos e modos distintos. Porque, ao mesmo tempo, essa cultura é una: cultura tropical sincrética tecida ao abrigo e à luz da língua portuguesa.
E não por acaso me referi, antes, ao plano internacional. Tenho para mim que a política cultural deve permear todo o Governo, como uma espécie de argamassa de nosso novo projeto nacional. Desse modo, teremos de atuar transversalmente, em sintonia e em sincronia com os demais ministérios. Alguns dessas parcerias se desenham de forma quase automática, imediata, em casos como os dos ministérios da Educação, do Turismo, do Meio Ambiente, do Trabalho, dos Esportes, da Integração Nacional. Mas nem todos se lembram logo de uma parceria lógica e natural, no contexto que estamos vivendo e em função do projeto que temos em mãos: a parceria com o Ministério das Relações Exteriores. Se há duas coisas que hoje atraem irresistivelmente a atenção, a inteligência e a sensibilidade internacionais para o Brasil, uma é a Amazônia, com a sua biodiversidade – e a outra é a cultura brasileira, com a sua semiodiversidade. O Brasil aparece aqui, com as suas diásporas e as suas misturas, como um emissor de mensagens novas, no contexto da globalização.
Juntamente com o Ministério das Relações Exteriores, temos de pensar, modelar e inserir a imagem do Brasil no mundo. Temos de nos posicionar estrategicamente no campo magnético do Governo Lula, com a sua ênfase na afirmação soberana do Brasil no cenário internacional. E sobretudo temos de saber que recado o Brasil – enquanto exemplo de convivência de opostos e de paciência com o diferente – deve dar ao mundo, num momento em que discursos ferozes e estandartes bélicos se ouriçam planetariamente. Sabemos que as guerras são movidas, quase sempre, por interesses econômicos. Mas não só. Elas se desenham, também, nas esferas da intolerância e do fanatismo. E, aqui, o Brasil tem lições a dar – apesar do que querem dizer certos representantes de instituições internacionais e seus porta-vozes internos que, a fim de tentar expiar suas culpas raciais, esforçam-se para nos enquadrar numa moldura de hipocrisia e discórdia, compondo de nossa gente um retrato interessado e interesseiro, capaz de convencer apenas a eles mesmos. Sim: o Brasil tem lições a dar, no campo da paz e em outros, com as suas disposições permanentemente sincréticas e transculturativas. E não vamos abrir mão disso.
Em resumo, é com esta compreensão de nossas necessidades internas e da procura de uma nova inserção do Brasil no mundo que o Ministério da Cultura vai atuar, dentro dos princípios, dos roteiros e das balizas do projeto de mudança de que o presidente Lula é, hoje, a encarnação mais verdadeira e mais profunda. Aqui será o espaço da experimentação de rumos novos. O espaço da abertura para a criatividade popular e para as novas linguagens. O espaço da disponibilidade para a aventura e a ousadia. O espaço da memória e da invenção.
Muito obrigado.
“Somos um novo país, uma nova nação, plural, plurirracial e pluricultural. Nosso projeto é um projeto de realização de uma potência econômica, cultural e ecológica. Uma potência pacífica e cordial de nova feição. Um “new super power”. Um novo poder, porque diferentemente das velhas potências, que estiveram historicamente sustentadas no tripé economia, cultura e força bélica, o Brasil seguramente abrirá mão do poderio bélico e do desejo expansionista, substituindo-os pela força ecológica.
O Brasil tem hoje um papel a desempenhar no mundo. Um papel em que sua grandeza econômica realiza-se como uma das bases de sustentação do seu projeto pacifista. Além disso, o Brasil não precisa e não deseja ser uma potência hegemônica.
E neste sentido, também, é que nos referimos a um “new super power”.
O Brasil será poderoso mas não hegemônico no mundo. Não temos e não teremos um projeto imperialista. Ainda que um país forte, economica, cultural e ecologicamente poderosos, esse seu poder será um poder cordial e integrador, acima da lógica da anexação de territórios ou de derrubadas de governos de outros países.
O Brasil, portanto, não quer a guerra. Qualquer guerra, e essa guerra de agora muito menos.
Para além da controversa Guerra do Paraguai, não há registros na história do Brasil de invasão de outros países.
O Brasil sempre foi e será um poder pacifista.”
Inicialmente, há que distinguir, nesta proposta literária de Boaventura de Souza Santos, duas coisas: 1.ª o propósito do autor desta ESCRITA INKZ – Anti-Manifesto Para Uma Arte Incapaz, de remediar o que ele considera como o irremediável vazio da sua geração como criadora de arte e 2.ª a dimensão artística do que aqui, de fato, se realiza como poesia. Quanto à primeira, não nos parece apropriado comentar, já que se trata de um posicionamento subjetivo do autor a serviço de uma operação de demolição: não há obra artística em sua geração e, se alguma ilusão quanto a haver tal obra ainda existe, que seja demolida de vez.
Quanto à segunda, a poesia aqui publicada, desde ao que ela se destina quanto ao de que é e como é feita, isto sim é algo do que se tem muito o que falar – ainda que não seja eu quem melhor possa fazê-lo. A poesia contida neste livro ampara-se naquilo que tem caracterizado o autor como intelectual: brilho do pensamento sobre o mundo, agudez da reflexão sobre o outro e sobre si mesmo, profundidade do mergulho nas águas da alma humana e gênio de professor. Boaventura de Souza Santos parece almejar aqui um poeta pedagógico – uma poesia que ensine, uma escrita poética filosofante – ainda que se dê a perceber, no fundo, um certo querer dar o que pensar característico dos modos da sabedoria. Talvez fosse mais apropriado dizer que, a despeito de buscar uma eficácia didática característica da prosa filosófica (isso fica claramente evidenciado na proposição critica do texto introdutório, o Desfácio) a poesia em si, aqui, permanece poética, malgre la mauvaise conscience: é ótima poesia, mesmo se “pretende apenas provocar a imaginação artística dos outros e servir-lhes de matéria-prima” como quer o autor.
A poesia aqui publicada é primorosamente concentrada em sua construção formal (as monadas, o cão e o chão onde ele decifra signos de linguagem, por exemplo) e generosamente espaçosa, tanto na irradiação plurifocal das paisagens (as físicas mas, em especial, as psicológicas) quanto no longo-alcance do mega-poema resultante (fruto da justaposição dos poemas-fragmentos ligados por uma espécie de fôlego transversal ao feitio das ligaduras na escrita musical).
Destaque-se, ainda, nesta obra de Boaventura de Souza Santos, a proposta de disponibilização do material poético apresentado como base reutilizável por outros artistas para novos processamentos e recriações, o que insere esta obra na nova categoria das “fontes abertas” típicas do emergente paradigma de flexibilização da propriedade intelectual.
A inteligência vária e o gênio múltiplo nem sempre estão em muitos. Eis aqui um caso em que estão num só. Na pletora de potências de um só indivíduo. Boaventura de Souza Santos tem podido, ao longo de sua produtiva vida intelectual, variar a inteligência e multiplicar o gênio. Ei-lo aqui, mais uma vez, (des)dobrado em exímio poeta.
in Santos, Boaventura de Souza. Escrita INKZ – anti-manifesto para uma arte incapaz. Rio de Janeiro: Editora Aeroplano, 2004
A idéia norteadora da Ancinav tem a ver com um modelo contemporâneo de regulação, testado em diversos países.
O cinema e o conjunto das atividades audiovisuais formam um setor estratégico para o desenvolvimento cultural e econômico do país e a conseqüente inserção soberana do Brasil na globalização. Trata-se de uma economia dinâmica e plural, que gera renda e emprego qualificado e influencia positivamente outros setores da produção e da cultura. Também pauta comportamentos e promove reflexões e mudanças indispensáveis ao avanço da sociedade. Uma estimativa conservadora revela que a produção e a difusão de conteúdos audiovisuais movimenta no Brasil cerca de R$ 15 bilhões, ou 1% do PIB. Mas o potencial é muito maior. O Brasil é um dos poucos países emergentes que podem se afirmar como produtores, e não apenas como consumidores, de audiovisual.
Diante da certeza de que o país não pode desperdiçar a oportunidade histórica de realizar esse potencial, o Ministério da Cultura assumiu o compromisso público de elaborar, em diálogo com o setor, a proposta de transformar a Agência Nacional de Cinema (Ancine) em Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), de modo a fortalecer os agentes econômicos brasileiros do setor, valorizar a nossa cultura e ampliar o acesso dos brasileiros à produção audiovisual do país e do resto do planeta, através da televisão, do cinema, da internet, da telefonia celular e de qualquer outro meio de difusão. É preciso encarar o desafio da convergência digital e incluir o Brasil entre os países que têm uma compreensão profunda e, mais do que isso, uma política pública para o tema.
Inspirada em medidas tomadas por outros países, como França, Canadá, Austrália e Coréia do Sul, e nas reflexões empreendidas por instituições como a ONU e a Comunidade Européia, além do valioso trabalho de especialistas brasileiros, essa proposta encontra-se aberta à consulta pública no site do Ministério da Cultura (www.cultura.gov.br) e foi entregue ao Conselho Superior de Cinema, para debate e deliberação.
Este é o momento para que o conjunto da sociedade se manifeste. Também é a oportunidade para os interessados diretos apresentarem suas propostas concretas, assumindo publicamente a defesa do que realmente pensam e querem, para além dos adjetivos vazios e das simplificações de ocasião. Esperamos que a concretização da Ancinav se torne exemplo de debate, e não de embate.
A minuta do projeto que cria a agência resulta de um longo percurso democrático. Houve uma ampla negociação entre o Ministério da Cultura e as diferentes entidades e empresas do setor, nos últimos 14 meses, com o objetivo de elaborar uma proposta que represente a convergência _e não o consenso absoluto, pois isso seria utópico_ entre a visão do governo que o povo brasileiro elegeu em 2002, os interesses das empresas e dos criadores e, o mais importante, o desejo dos cidadãos. Trata-se de um setor tão importante quanto complexo, com interesses muitas vezes contraditórios e visões algumas vezes pequenas, imediatas, que não incorporam a grandeza do país e a necessidade de um desenvolvimento econômico que também seja social e cultural.
Nascida da convicção de que o audiovisual tem plenas condições de se transformar em um dos setores mais competitivos da indústria brasileira, a agência funcionará para regular e mediar as práticas econômicas, e não o teor do conteúdo a ser distribuído pelos meios audiovisuais. Não há na minuta apresentada o impulso de interferir sobre as escolhas de autores, como alguns interpretaram. É natural, aliás, que um tema tão novo e complexo, com medidas cuja adequada compreensão às vezes escapa aos leigos, gere controvérsias.
A idéia norteadora da Ancinav tem a ver com um modelo contemporâneo de regulação, testado em diversos países, e procura adaptá-lo às singularidades do Brasil, país que tem um modelo único de televisão aberta, em que os canais são produtores de boa parte do conteúdo exibido e a geração é concentrada em suas sedes, com uma pequena incidência de conteúdo local e regional. A Ancinav vai regular as relações no setor audiovisual no que diz respeito à produção e à circulação de conteúdo, além de fiscalizar e de criar novos mecanismos de fomento. Tudo isso sob o amparo da Constituição Federal e do Estado de Direito, da mesma forma que trabalham as outras agências. Trata-se de equilibrar os múltiplos interesses do mercado com os múltiplos interesses da sociedade, para que todos se beneficiem de um ambiente propício ao crescimento.
Pretende-se que a nova agência funcione como árbitro, estabelecendo procedimentos capazes de evitar que um setor, ou um elo da cadeia produtiva, sobreponha-se a outro.
A monopolização e a oligopolização só interessam a quem monopoliza ou oligopoliza. A hegemonia avassaladora de uma cinematografia só interessa a ela. Acreditamos que é possível harmonizar interesses e adequá-los à realidade. Por isso a Ancinav vai normatizar, pactuar e fiscalizar, com a intenção de possibilitar o crescimento e o fortalecimento dos diferentes atores que produzem, distribuem e consomem conteúdo audiovisual brasileiro.
Apesar dos obscurantistas, a proposta da Ancinav está na agenda do país. Agora, vamos aos debates, às sugestões, às melhorias. O diálogo afirma a democracia e confere ao país a possibilidade de dar mais um passo adiante. Esse é o objetivo e o compromisso do Ministério da Cultura.
Acabar com a fome no Brasil não é só um compromisso nacional. É um dever moral para com o nosso planeta
A LUTA da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação) por um mundo sem fome para as gerações presentes e futuras é também a minha luta. É uma luta em que me empenho há muito tempo, como muitos outros brasileiros, como muitos outros artistas no mundo, mulheres e homens, cidadãos deste planeta Terra, que não se conformam em aceitar que o direito a ter um prato de comida seja coisa de alguns privilegiados.
A FAO me chamou há dois anos, para dizer que a minha luta era também a luta da FAO e que, com a minha música e a minha voz, nossa mensagem poderia chegar muito mais longe.
Dia 16 de outubro foi o Dia Mundial da Alimentação, em que a FAO lançou uma proposta a todo o mundo para criar uma Aliança Internacional contra a Fome.
Durante a Cúpula Mundial da Alimentação, realizada em Roma, em 1996, os representantes políticos de 186 países comprometeram-se a reduzir à metade, até o ano de 2015, o número de pessoas que passam fome no mundo. Desde então foram feitos progressos, porém muito lentos e insuficientes para alcançar a meta fixada na cúpula.
Os governos necessitam da colaboração de todas e de cada uma das partes de nossa sociedade: setor privado, público, organizações sem fins lucrativos, religiosas, comunidades de base. Necessitam da sua colaboração e da minha para fazer das promessas realidade.
Como ministro da Cultura do Brasil, quero fazer uma convocação aos artistas brasileiros (músicos, escritores, cineastas, artistas plásticos, bailarinos, atores, artesãos), e ao público também, para que participem dessa aliança, para que, juntos, busquemos a maneira de conseguir recursos e mobilizar a sociedade brasileira nessa nobre causa.
Chegou o momento de tornar realidade a vontade cívica de todos aqueles que nos perguntam como é possível que, em um mundo em que se produz muito mais alimento que o necessário, 840 milhões de pessoas passem fome crônica?
Em 1997, a FAO deu início ao Telefood, uma campanha de concertos, espetáculos desportivos e outras atividades para aproveitar a força dos meios de comunicação e a participação de celebridades a fim de sensibilizar os cidadãos de todo o mundo para a magnitude da fome e a necessidade de juntar esforços e agir. Durante os seis anos de ação do Telefood, foram organizados eventos especiais em mais de 70 países. Mais de 500 milhões de pessoas já desfrutaram dos espetáculos. Foram arrecadados mais de US$ 10 milhões, com os quais foram financiados mais de mil projetos para combater a fome em mais de cem países.
O Telefood já chegou ao Brasil. Agora está na Bahia. A solidariedade de muitos cidadãos anônimos permitiu a instalação de um aviário em Gameleira, que está gerando alimento para 85 famílias. No município de Santa Cruz da Vitória, 20 famílias estão melhorando a sua nutrição e obtendo alguma receita extra graças a um projeto de apicultura, financiado com os recursos do Telefood.
Minas Gerais, Alagoas e o Distrito Federal terão seus projetos Telefood em breve. E logo teremos também nosso espetáculo Telefood, que já batizamos como Concerto Mundial contra a Fome, com o qual serão arrecadados fundos para financiar pequenos projetos de agricultura, pecuária e exploração pesqueira e que ajudarão um grande número de famílias brasileiras sem recursos a produzirem mais alimentos.
O Brasil necessita, neste momento, dar ao mundo um exemplo de cidadania, de solidariedade e de amor. Acabar com a fome no Brasil não é só um compromisso nacional. É também um dever moral para com o nosso planeta.
Como embaixador da FAO, sinto-me honrado em retransmitir trechos da mensagem que o diretor-geral da instituição, senhor Jacques Diouf, dirigiu ao povo brasileiro:
“O tema do Dia Mundial da Alimentação deste ano, Aliança Internacional contra a Fome, é de particular importância para impulsionar o cumprimento do objetivo estabelecido pela Cúpula Mundial da Alimentação, de reduzir em 50% a fome de 840 milhões de pessoas até o ano de 2015. Essa meta não poderá ser alcançada com os níveis atuais de redução da fome, em razão principalmente da falta de decisão política e da limitação de recursos para combater a fome e promover o desenvolvimento (…).
Foi com enorme satisfação que recebemos a notícia, entre outras, de que, no Brasil, esse problema está alicerçado numa aliança nacional com todos os setores da sociedade, que estão sendo mobilizados na campanha nacional contra a fome, em parceria com os setores público e privado (…).
A aliança nacional brasileira contra a fome é um elemento catalisador fundamental para a formação da aliança internacional. As alianças nacionais para combater a fome são os elos que formam a corrente da aliança internacional. A aliança brasileira é também uma semente que pode ser multiplicada, inspirando outras sociedades e outras nações a serem solidárias em nossa causa comum.
Finalizando, gostaria de ressaltar nosso reconhecimento ao Brasil pelo compromisso de sua sociedade e do seu governo no trabalho de, juntos, eliminarem a fome no país”
A revitalização dos museus brasileiros e do patrimônio histórico do país é uma das prioridades do Ministério da Cultura. Após anos de redução progressiva dos investimentos federais no setor, elevamos para R$ 23 milhões (em 2003) e cerca de R$ 25 milhões (em 2004) o valor dos recursos destinados diretamente pelo MinC aos museus. Também aumentamos os investimentos, através da Lei de Incentivo à Cultura, de parcerias como a que celebramos recentemente com a Caixa Econômica Federal e BNDES – e em breve com outras estatais –, e ainda de programas específicos como o Monumenta, em colaboração com a Unesco. Esta série de iniciativas tem como alvos principais a preservação de acervos e prédios tombados; a modernização tecnológica e gerencial dos museus; o estímulo ao uso, pela população, dos acervos e espaços; e a criação de novas instituições. Com este impulso, podemos dizer que os museus brasileiros estão vivos novamente, e abertos à vida que há fora deles.
Este assunto evoca os versos de uma velha canção: “Tanta saudade preservada num velho baú de prata dentro de mim / Digo num velho baú de prata porque prata é a luz do luar”. Ela fala de um tempo de retorno ao Brasil e de um tempo de exílio, e da memória afetiva preservada num velho baú de prata. Este baú é como um museu pessoal, o museu que todos temos, feito de lembranças, quinquilharias e reminiscências que alimentam o nosso presente. Como todos os museus pessoais, o da canção tem “qualquer coisa” que vai além do “eu”. Há um momento e um território em que o canto da memória se encontra com outras memórias e outros cantos. E se transforma a partir dos encontros feitos. Os museus de pedra e cal e os museus virtuais são baús abertos da memória afetiva da sociedade, da subjetividade coletiva do país, da soma dos museus pessoais.
Penso no velho baú de prata, penso no matulão, penso num projeto de viagem com mala e cuia, penso nas arcas de alianças e chego aos relicários, aos realejos e seus desejos de reinvenção do real, e também na arte contemporânea, no futebol, na tecnologia. Por este sertão de memórias e suas veredas, chego aos grandes museus das capitais e também aos pequenos museus do interior, e mais ainda aos museus portáteis, tão caros aos homens e mulheres do povo, aos artistas, aos museólogos, aos educadores, aos antropólogos, aos cientistas do microcosmo social, e a todos os que se dedicam ao pensamento e à expressão. Há, como se sabe, museus de diversos tipos, todos igualmente significativos. O importante é que estejam vivos, que pulsem, consagrando o jogo de tradição e invenção que dialeticamente marca a construção da cultura brasileira.
Diferentemente dos que não gostam ou simplesmente não se encantam com os museus, e que os vêem como resíduos do passado, eu gosto dos museus. De todo e qualquer museu. E tenho especial apreço por aqueles que têm cheiro de vida e querem, por decisão de quem os alimenta, inundar a vida de mais vida; gosto dos museus que seguem se fazendo e se refazendo. Há quem pergunte: de onde vem este encantamento com os museus? Respondo: a raiz da música é a mesma do museu. E esta raiz remete ao cosmo (e ao caos) das musas. O museu é a casa das musas. E não por acaso a musa da música tem lugar privilegiado no Templo das Musas, no museu das artes, no panteão das musas que desde a mitologia grega são as inspiradoras de toda arte, de toda criação humana. Os museus abrigam o que fomos e o que somos. E inspiram o que seremos.
Aqui e agora
Falar das musas não é falar do passado. Ao contrário. Por isso, vejo que os museus no mundo contemporâneo são lugares de criação, diálogo e preservação do aqui e do agora. Esta noção está na base dos esforços do Ministério da Cultura num campo que traz simultaneamente o arcaico e o novo, o político e o cultural, o singular e o universal. Nos últimos 20 meses, o MinC estimulou a criação da Política Nacional de Museus, criou o Departamento de Museus e Centros Culturais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Demu/IPHAN) e investiu expressivos recursos no Museu Histórico Nacional, no Museu Nacional de Belas Artes, no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Museu da República, nos Museus Castro Maya, no Museu da Inconfidência e em tantos outros.
Também preparou o lançamento do Sistema Brasileiro de Museus, uma grande rede de articulação e desenvolvimento dos museus brasileiros, que incorpora os museus estaduais e municipais. Em várias regiões, com o estímulo do MinC, realizam-se fóruns estaduais que constituem a base para a criação e a revitalização de sistemas estaduais e municipais de museus. Além de articular e investir nos museus já existentes, o MinC moveu-se na direção de criar novos museus e aprovou o reconhecimento oficial da Semana de Museus, em maio, e do Dia Nacional do Museólogo (18 de dezembro), de modo a valorizar publicamente o setor e seus profissionais. Posso mencionar ainda a iniciativa pioneira do Edital Museus Brasileiros, voltado para instituições públicas e privadas não-vinculadas ao governo federal, que vão receber recursos públicos de R$ 1 milhão para se atualizar.
Um dos próximos passos será a criação do Instituto Brasileiro de Museus, antigo anseio da comunidade museológica. Coloco boa parte da minha energia neste projeto, por reconhecer o lugar estratégico dos museus na política pública de cultura e considerar que esta área demanda um órgão próprio de gestão. Torço para que os nossos museus não tenham medo do novo, do público, do diálogo, da atualização. Que não tenham medo de ser de “todo mundo”. Os museus são “pontos de cultura” e interessa tocá-los de acordo com a compreensão ampla do que chamei “do-in antropológico” (no caso, “do-in museológico”). Para além dos baús pessoais, os museus brasileiros devem cumprir um papel de referência e base para o futuro da cultura. Que eles sejam música e poesia para os nossos corpos, mentes e espíritos; que sejam os templos de todas as musas e de todos nós. E que os brasileiros possam se orgulhar dos seus museus, novos e velhos.
Quando os portugueses chegaram às praias da costa atlântica deste novo continente encontraram, ali, gente pacífica que os recebeu com curiosidade e admiração. Dentre os vários elementos utilizados para o contato inicial estava a música.
Consta nos anais históricos que, nos primeiros encontros com os índios, os marinheiros portugueses tocaram, cantaram e dançaram e conseguiram fazer com que os gentios tambem o fizessem, estabelecendo, assim, uma forma inicial de entendimento e cumplicidade, através da música trazida pelas caravelas e com que se ensaiavam, ali, os primeiros exercícios do que viria a se tornar a música brasileira.
Consta também que, para além da receptividade e encantamento com as flautas e as gaitas, os índios, logo de início, mostraram-se inclinados a “entrar na dança” produzindo, naquelas praias dos primeiros dias da descoberta, os primeiros passos das danças que se tornariam uma das marcas mais eloqüentes do nosso modo brasileiro de se expressar através do corpo. Ainda não haviam chegado os africanos e já se tocava, cantava e dançava, sob o sol e a lua, na nova terra brasileira. Estudiosos desses tempos remotos chegam a historiar sobre o talento todo especial dos indígenas para a música dos brancos, e dos excelentes músicos que alguns dos jovens índios e índias logo se tornaram, à medida que, animados com os resultados daquelas primeiras manifestações espontâneas, os jesuitas incumbidos das tarefas de educar os nativos, se dedicavam, mais e mais, ao ensino de intrumentos como a flauta, a viola e o pandeiro. A inventiva e a capacidade de improviso logo se manifestaram como a primeira grande contribuição do “povo nu” à musica que então se criava.
Alguns desses estudiosos chegam a atribuir a esses primeiros tempos o surgimento da expressão samba (palavra de origem tupi significando roda de dança) que vem a se tornar, em especial no nordeste, a designação genérica para toda festa, todo folguedo, toda reunião lúdica regida pela música.
Com a chegada do povo negro, introduzem-se os batuques e as gingas próprias daquelas gentes africanas (inicialmente bantu e em seguida gêge-nagô) que vêm trazer a contribuição definitiva à criacao da vibrante música e do sensual requebrado, marcas da festa nacional da qual o modo mais emblemático ficaria conhecido como samba.
Ainda me recordo da surpresa de que fui tomado quando, ao percorrer extensa região nordestina de Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Ceará em 1972, ao voltar do exílio na Inglaterra, encontrei a expressao samba a designar, justamente, os arrasta-pés e os bailes locais. Ali, não o samba – tal como conhecido na Bahia e no Rio – mas o baião, o xote e o xaxado eram as principais manifestações musicais.
Mesmo constituído por outro tipo de música, o baile nordestino, principalmente mais para os lugares do interior, era até então comumente chamado de samba.
Creio que a designação genérica de forró para a festa torna-se predominante, à medida que este termo, de origem urbana, passa a ocupar o imaginário nacional, seguramente apos a disseminação do baião e de toda a sua família musical, iniciada a partir de Luiz Gonzaga, o grande responsável pela divulgacão dos gêneros nordestinos em nível de massa, nos idos de 1950. O surgimento da Feira de S. Cristóvão no Rio de Janeiro e de seus equivalentes em S. Paulo, impulsionam, em meados do século XX, essa nacionalização da festa nordestina que passa a adotar o nome genérico de forró, ele mesmo ja consequência de um fenômeno cosmopolita então recente: o surgimento dos bailes urbanos, especialmente em Recife e Natal, na década de 1940, sob a influência da presença das bases-aéreas americanas, com seus soldados ávidos por diversão e festa. Muito corrente é, hoje em dia, a versao de que a palavra forró seria uma corruptela da expressao for all, denominação dada pelos militares americanos para os bailes abertos ao grande público (for all, para todos) e que se popularizaram em Recife e Natal, durante a Segunda Guerra.
Portugueses, índios, africanos, violas, flautas, sanfonas, pandeiros, batuques, requebrados, luar do sertão, sol da praia, festa do interior, baile da cidade, aridez severina da caatinga, umedecente sensualidade do mar, afeto ibérico, volúpia americana, doce da cana, ardência da pimenta, menino do Rio, mina de Sampa, maculelê do Recôncavo, cateretê de Minas, mulatas de Di Cavalcanti, operários de Portinari, bate-coxa, mela-cueca, esquenta-mulé, o forró vem se fazendo em longa trajetória ao longo da história desses povos brasileiros de tantas origens e tantos destinos. Através dos nordestinos e dos sulinos, dos baiões e das polcas, o forró vem se tornando um espaço de cultivo musical, criação coreográfica e ambiente de convívio para pequenas populações rurais e grandes aglomerados urbanos em que se produzem ricas trocas entre culturas e regiões, dentro do grande caldeirão étnico, político e religioso em que se vem constituindo este híbrido sociocultural chamado Brasil.
A música
Inicialmente marcada pelos elementos da cultura portuguesa da epoca das grandes navegações, em que a presença árabe já deixara marcas indeléveis, a nascente cultura brasileira recebe, aos poucos, os influxos de outras culturas africanas, européias e asiáticas com que vai tomando contato através, principalmente, da intensiva imigração com que o país passa a suprir suas necessidades de mão-de-obra e tecnologias agro-pecuárias, comerciais e pré-industriais essenciais para o seu desenvolvimento. Ao lado das técnicas de pastoreio, agricultura, metalurgia, artezania, comércio e ofícios variados com que os imigrantes enriquecem a vida produtiva brasileira, multiplicam-se também os influxos de novos e variados elementos simbólicos, através, principalmente, das formas artísticas trazidas pelos colonizadores e aqui processadas e transformadas pela nova sociedade que vai se formando.
A música logo se insinua como um campo particularmente propício ao desenvolvimento do talento e da criatividade brasileiros que viriam marcar definitivamente nossas características em tempos modernos. Particularmente alimentada pela intensa e exuberante contribuição africana, a nossa música processa e registra, aos poucos, os elementos mediterrâneos, orientais e por fim, germânicos e anglo-saxônicos com que consolida, em meados do século XX, uma face musical propriamente nossa. Ao lado do samba (ou dos sambas) o baião surge como grande gênero de fusão e difusão do hibridismo musical que nos caracteriza. Em 1946, Luiz Gonzaga grava e populariza o primeiro disco de baião. Nos anos de 1950-60, o gênero (baião, xaxado, xote, pé-de-serra) ja se inscreve como um gênero de aceitação nacional, passando, dai em diante, a dialogar com todo o universo musical brasileiro, do são-joão ao carnaval. De dança da moda dos salões cariocas nos anos 50 até a base do galope do carnaval baiano dos anos 90, a família nordestina do baião se movimenta, ao longo da segunda metade do século XX, como uma verdadeira familia real cuja longa dinastia viria a se estender pelos novos tempos da musica tecno no século XXI.
Hoje, a música do forró engloba, desde os modos clássicos de Marinês e do Trio Nordestino e seus descendentes retrô, ate as formas mutantes da oxente-music de Fortaleza, Campina Grande e Caruaru. Misturada aos elementos lítero-musicais do brega, do sertanejo e do pagode, a musica do forró vai levando adiante a saga antropofágica da nossa cultura popular, assumindo a hibridação como seu traço constituinte elementar.
A dança
Nascida na roda de samba indígena, a dança brasileira vem se fazendo, rural e urbana, ao longo da uma linha de contatos com a dança do mundo, principalmente com aquela que se faz globalmente visível através dos filmes musicais americanos que cruzam as telas do planeta no pós-guerra. Das danças de salão dos aristocratas, da fuzarca coreográfica do charleston e do booggie, do frenético rock’n roll, da ebulição do frevo, do gingado do samba, de tudo isso de que os meios de comunicação modernos vão trazendo, aos nossos olhos e ouvidos, a variada composição; pelo rádio, cinema e televisão, vai-se plasmando a dança brasileira moderna, através de lambadas e browns, de breaks e grafittis, danças de rua e de salão, imprimindo um caráter, a um só tempo cambiante e perseverante, como um padrão estético ondulante para nossas danças de tradição, como a danca do forró, na qual, de um único elemento nunca se abriu mão : o agarradinho, o bate-coxa, o mela-cueca, o esquenta-mulé que a estabelece como dança de contato sexual, de socialização sensualizada, contra-pontuada pelos meneios rodopiantes dos pares soltos pelos salões; um jogo de prende-desprende de alta tensão erótica entre o dançar colado e o plácido deslizar dos corpos soltos.
A dança do forró tem basicamente elaborado sua coreografia inspirada, seja nas melodias mornas das toadas românticas, seja no resfolego soluçante dos xaxados de letras provocantes . Tem sido, das danças brasileiras, a que mais faz dialogar, pelos pares em movimento, os sonhos de aconchego e gozo e os suspiros de carne em êxtase e de espírito em repouso: a danca do forró, em que a mão alcança a cintura de pilão da cabocla mais próxima e o pensamento voa até a cabocla tão distante “esperando na janela”, criando assim um pathos de sensualidade e lirismo que se espalha, como brasa de fogueira, pelo salão afora.
A festa
O ambiente do baile de forró vai desde uma pequena sala de uma casinha sertaneja, onde o fim de semana ou a data de aniversário propicia a reunião de alguns poucos pares para a dança, sob o som da sanfona, do triângulo e do zabumba, até o grande salão feericamente decorado e iluminado, down-town ou no subúrbio de alguma grande metrópole, ao som da banda elétrica e eclética que produz o divertimento dito pasteurizado da mega cultura pop globalizada dos nossos tempos pós-madernos.
O baile de forró acolhe desde um punhado de camponeses e camponesas dos canaviais pernambucanos em seus modestos ambientes ainda rurais ou semi-urbanizados até os milhares de jovens das classes médias mestiças da zona sul carioca ou da periferia paulistana, reunidos, aos milhares, para desfilar as indumentárias e gírias da moda, em situações de alta voltagem erótica e emocional, `a feição dos grandes rituais contemporâneos de tribos e gangues cosmopolitas das grandes metrópoles modernas de qualquer lugar do planeta .
O forró fez a longa viagem da tradição à invenção sem abrir mão das aléias de bandeirolas coloridas esvoaçantes sobre as cabeças dos dançarinos nos bailes de São João das grandes cidades do interior da Paraíba ou da Bahia; sem deixar, pelo caminho, os signos estéticos e culturais de suas matrizes sociais.
O forró traz a marca da estética antropofágica brasileira em sua forma mais alegre e mais feliz, deixando manifestar, em seu organismo, todo um mundo de contaminações, sem que venham a adoecer gravemente as células do seu velho corpo de passado e tradição. Ao contrario: fazendo de todos os venenos do presente pós-moderno, um coquetel de fortificantes para o corpo franzino mas esbelto e ágil da sua diversidade cultural, nossa diversidade cultural.
Rumo ao futuro
Como elemento característico de uma identidade nacional em permanente criar-se e recriar-se, formar-se e reformar-se, integrar-se e entregar-se, a vida cultural brasileira – já nascida sob os tons plurirradiantes de um sol de muitas luzes luso-afro-ameríndias e outros raios – nao habilitou-se a edificar edifícios inabaláveis e indestrutíveis como em outros lugares. A cultura brasileira, ao contrário de culturas antigas que lograram permanecer quase intactas por períodos muito longos, esteve, desde o começo, ao sabor de ventos leves, de brisas suaves que a levaram sempre para mais longe de um ancoradouro idealizado, de um porto seguro almejado. Como se Porto Seguro, o lugar de chegada do descobridor tivesse sido, de imediato, o lugar de saída do descoberto, de volta ao mar inseguro de um encoberto, desconhecido e indecifrável futuro cultural. Como se, logo de início, tivéssemos resultado de um lance poético de dados a nos impossibilitar, de vez, um devir de prosaicas verdades ; logo, de cara, um Monte Pascoal de novas imediatas saídas de volta para o Egito; logo, de cara, um monte de novos significados e nenhuma verdade; logo na chegada, uma volta aos mares orientais de Chinas e Indias pré-filosofais, uma volta a tempos glaciais de uma humanidade plena de passados e futuros eco(i)lógicos integrais. Logo na chegada, a saída para um eterno país do futuro que estaríamos fadados (sambados?) a ser.
Ao oferecer-se, generosamente, como entroncamento de linguagens musicais e de dialetos coreográficos que circulam pela nossa história cultural desde há muito, o forró representa uma das faces mais expressivas dessa “festa nossa de cada dia” que estreou nas praias de Porto Seguro.
Ao lado de outras de nossas matrizes lúdicas como o candomblé e o carnaval, o nosso forró de São João e de todo dia vai seguindo seu caminho, seu tão, eternamente imanente, jamais completamente expresso – o tão do baião a que um dia me referi numa canção – rumo às praias de um futuro aberto, o mesmo céu-aberto, fundo erguido sobre as cabeças de marinheiros e índios, de há pouco mais de cinco séculos, naquela praia inicial do litoral, da Bahia.
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Leituras complementares
Alves,Bernardo: A Pré-Historia do Samba, Editora do Autor, 2002.
Vianna,Hermano: O Mistério do Samba, Jorge Zahar Editora, 1994.
Lors d’un de mes derniers séjours en France, je me suis amusé – comme n’importe quel voyageur changeant de continent – à faire l’inventaire, par curiosité, des chaînes de télévision qui m’étaient proposées dans ma chambre d’hôtel. J’ai passé ainsi un moment à naviguer entre une vingtaine de télévisions arabes, qui m’ont frappé par leur diversité musicale : on pouvait voir des programmes de musique traditionnelle très «pure», de la musique folklorique mélangée à ces ingrédients cosmopolites que nous trouvons maintenant partout, de la musique urbaine légère avec chanteuses charmantes et grands orchestres, du rock, du rap, de la musique électronique… Une manifestation de ce qu’on pourrait appeler la «glocalisation» – l’agrégation du global et du local dans le langage musical, les moyens de production, les publics.
C’est, au fond, la même chose en France, la même chose au Brésil, et à peu près partout dans le monde : une musique universelle, tendant vers l’uniformisation, mais avec une présence éloquente de la dimension locale, de la diversité. Cette «glocalisation», c’est l’horizon vers lequel nous marchons.
Mais si vous, Français, et nous, Brésiliens, vivons cette même situation culturelle dans le domaine musical, il se trouve que nous la connaissons depuis plus longtemps que vous. Dès son origine, le Brésil est métissé par sa population ; dès son origine, il est multiculturel et interculturel. Prenez par exemple la musique du Nordeste, avec l’accordéon, le tambour zabumba, le triangle, prenez à Rio de Janeiro les tambourins, dans le chorro la mandoline et la guitare flamenca… La présence, dans les musiques traditionnelles d’un même pays, de ces instruments venus de partout est le résultat d’un long processus qui a commencé avec les explorations des premiers navigateurs européens, et se poursuit aujourd’hui par la diffusion planétaire et instantanée de la musique.
Le Brésil n’avait pas trouvé pleinement sa place dans la modernité. Alors il a dépassé cette question : nous sommes arrivés à la post-modernité avant d’être modernes. Depuis quatre ou cinq ans, je me pose des questions sur le tropicalisme, dans lequel – avec Caetano Veloso, notamment – j’ai plongé avec passion il y a une quarantaine d’années. En réfléchissant à une synthèse entre la musique populaire brésilienne, la samba, la bossa nova, le jazz, le rock, la pop music, il s’agissait pour nous d’appréhender la culture comme une entité fragmentée, comme un ensemble pluriel d’éléments pour lesquels nous recherchions un inter-langage. Nous estimions que la puissance culturelle d’un peuple tenait à sa capacité à digérer la réalité globale, mais en même temps à imposer sa singularité. Nous pensions le tropicalisme comme un mouvement moderne mais – cela m’apparaît maintenant – c’était le premier mouvement post-moderne.
Je suis conscient que cela peut sembler paradoxal aux Français, dont la culture est si souvent annonciatrice de mouvements à venir, mais nous avons élaboré avant l’Europe une réponse culturelle à la globalisation. C’est une question de cycle historique : quand les puissances coloniales – la France, la Grande-Bretagne, l’Espagne, le Portugal – étaient forcées à la modernisation par l’explosion économique des Etats-Unis, le Brésil aussi était obligé d’aller de l’avant. Exclu des voies de la modernité par sa situation coloniale, il a expérimenté les prémices de ce que l’on n’appelait pas encore la post-modernité.
Voilà pourquoi le Brésil propose aujourd’hui un modèle neuf de pouvoir. Ce n’est pas un pouvoir fondé sur la dimension militaire, commerciale ou industrielle, mais sur la capacité d’attirer l’autre, la capacité de séduction – un pouvoir culturel. La propagation de la musique brésilienne dans le monde entier, son poids et son influence dans des cultures extrêmement différentes sur les cinq continents (et, par exemple, dans la chanson française), peuvent être vus – en caricaturant – comme une sorte de colonisation douce et consentie.
La façon dont la France nous accueille à l’occasion de l’Année du Brésil est significative : il nous est clairement signifié que nous avons quelque chose à dire, à montrer, à enseigner. Jadis, les modèles d’influence étaient soit le pouvoir colonial des puissances européennes, soit le pouvoir moderne, pragmatique, économique, des Etats-Unis. Ce qui me plaît dans la situation du Brésil sur la carte du monde actuel, c’est qu’il montre un modèle différent. Au temps du tropicalisme, nous avions une idée, une ambition, un rêve, que j’ai la chance de voir aujourd’hui s’accomplir : la possibilité que notre culture et notre nation s’imposent au monde non comme une puissance classique mais comme une force d’intégration et de rapprochement.
Gilberto Gil, 63, é Ministro da Cultura do Brasil, cantor e compositor. Na metade dos anos 60, inspirado pela Bossa Nova, fundou com seu companheiro Caetano Veloso o Tropicalismo. Os dois provocaram a Junta Militar que governava: foram presos, em seguida expulsos e passaram três anos no exílio. Com o fim da ditadura, Gilberto Gil foi eleito vereador pelos Verdes, em Salvador. Desde 2003, integra o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva. Aqui ele conta, por que ainda permanece um rebelde
Há dias em que posso dizer: eu dormi. E, ao mesmo tempo: não dormi. Eu meditei. Pode ser que eu não durma, mas que mesmo assim sonhe. A fronteira entre sonho e meditação é muito tênue. Na meditação não sigo mais nenhum método definido. Experimentei quatro, cinco diferentes. Dois mestres hindus deram-me mantras, que cultivei por muito tempo. No final, abandonei todos os métodos, deixando que a própria meditação se mostrasse. Eu chego mesmo a dizer que já não medito mais conscientemente. A meditação tornou-se uma atitude de espírito. Às vezes medito dormindo, às vezes simplesmente deixo a corrente do espaço e tempo dar forma aos meus pensamentos. Meditação quer dizer: se aperceber das coisas.
Frequentemente acordo às sextas-feiras e penso: hoje é sexta, eu deveria usar branco, como é de uso no Candomblé. Hoje preciso honrar meus ancestrais. Não raro, porém, também digo: não. Prefiro então usar preto, quando se espera branco de mim. E que seja apenas para mostrar que a regra é a exceção. É bom, de tempos em tempos, negar a sua própria crença, seus desejos, seus deuses. As religiões têm para mim um valor cultural. Aí reside seu bem.
Provocações fazem parte de minha vida. Mesmo hoje, quando algumas pessoas dizem que antes eu jogava pedra e que agora estou sob um telhado de vidro. Eu fui alguém que desafiava o sistema. Um rebelde que negava todas as convenções. Foi no tempo em que jogava pedras. Hoje, como membro do governo, mesmo assim sinto frequentemente vontade de pegar uma pequena pedra e deixá-la rolar sobre o telhado. Esta dualidade é minha natureza.
Um pensamento filosófico, que tanto os chineses como os gregos conheciam: o meio perfeito significa que dois extremos são possíveis ao mesmo tempo. Não se trata de uma situação ou lugar fixos. O verdadeiro meio jaz no movimento entre dois polos. Às vezes se está num polo que representa um extremo. Em outro momento, no exato oposto. No entremeio, estamos nas posições mais variadas. Essa é a dinâmica da vida.
Política é uma luta, uma arte marcial. É impossível imaginar política sem conflito e disputa. Precisa-se, no entanto, obedecer a determinadas regras. É preciso respeitar os adversários. É como uma guerra civilizada. No campo de batalha da política, o poeta não se encontra em melhor ou pior situação do que os outros. A poesia tem seu próprio domínio. Mas eu gosto quando as duas esferas se misturam. É como o pêndulo entre dois polos. Assegura um movimento contínuo. Fazer política poeticamente e poetar politicamente – os pensamentos e sentimentos de ambos os lados ganham com isso. Não se deve negar aos políticos o seu lado poético. Políticos podem ser poetas e vice-versa.
Ter cantado nas Nações Unidas, juntamente com Kofi Anan, foi um ato espontâneo. Simplesmente porque a oportunidade se ofereceu. Estava num lugar muito sério. E ali me foi permitido fazer música por uma, duas horas. Uma oportunidade de misturar as esferas. Citei então, como exemplo, o poeta brasileiro Vinicius de Moraes. Um poeta que era ao mesmo tempo diplomata e escreveu algumas das mais conhecidas canções do Brasil.
Minhas raizes africanas descobri relativamente tarde, levando-se em conta que descendo de negros. Eu vim da Bahia, o centro da cultura negra, no Brasil. Mas levei muito tempo para ficar consciente disso. Fui criado como membro da pequena burguesia. Deveria ter me tornado algum médico ou advogado. Um membro da sociedade moderna, cosmopolita, orientada internacionalmente. Não fui preparado para pensar sobre minhas origens. Por isso demorou algum tempo até que eu percebesse que temos uma forte cultura africana no Brasil.
Uniformismo é o princípio dominante de nosso tempo. Na uniformidade globalizada é especialmente importante termos em mente quem realmente somos.
Um de meus maiores sonhos é que floresça, no Brasil, de toda a diversidade de correntes, religiões, grupos populacionais e culturas, que vivem em nossa terra, uma identidade comum. Eu desejo uma identidade que reconheça a diversidade como valor. Esta, no fundo, é uma tarefa diante da qual toda a humanidade se encontra. Visto por esse ângulo, o Brasil é um país muito atual.
Música é parte de nosso universo, parte de nossa identidade coletiva. Música pode mudar o mundo e muda com o mundo. A música é uma das linguagens mais disseminadas na face da terra. A humanidade desenvolveu a música como uma de suas formas de comunicação mais importantes. Através da música comunicamos a nós mesmos que o mundo gira.
Chamei Bob Marley de irmão, o primeiro pop star do Terceiro Mundo. Outro irmão espiritual foi John Lennon, cujo concerto londrino com The Plastic Ono Band eu tenho entre as experiências mais extraordinárias de minha vida. O que Marley e Lennon tinham em comum era a capacidade de imaginação.
Eram grandes inventores. Eram revolucionários. Transformaram a percepção da música pop. A maneira de escrever e executar canções. Eles criaram estilos completamente novos. Nós homens ainda somos de carne. E sangue. Let it bleed!, como os Rolling Stones uma vez disseram. Talvez a luz da iluminação venha no final, quando se esgotar o processo de sangramento. Quando enfim atingirmos um outro estado. Quando morrermos. A morte é o único conceito que temos do que significa o estado do nada. Do vazio total. Quando arrefece o movimento, do corpo e do espírito – talvez seja aí o momento em que a luz vença. No fim é só luz. E escuridão. O diálogo entre luz e escuridão, numa língua que não é mais a nossa. Talvez seja aí o ponto, onde finalmente seremos capazes de não sermos mais capazes.
Estou agora com 63 anos. A idade ajuda na adaptação às contínuas transformações da vida. Em deixá-la correr. Deixá-la sangrar. Deixá-la ser. To let it be. E eu me sinto cada vez melhor com ela. É um estado de felicidade, no qual estou sempre feliz com tudo o que acontece comigo. Afora um pequeno rumor que sempre permanece, a morte não me causa medo.
Transcrito por Ralph Geisenhanslüke
O CALENDÁRIO oficial do Brasil aponta 5 de novembro como o dia da nossa cultura e o dia do cinema nacional. Trata-se de um dia para ser celebrado com alegria e orgulho por todos os cidadãos e cidadãs deste país.
Há razões de sobra para comemorar. E uma delas diz respeito ao Ministério da Cultura. Pode-se afirmar, hoje, que a nossa cultura começa a se tornar, finalmente, uma prioridade do governo federal. O orçamento do MinC para 2006 e o empenho da Casa Civil para desatar os nós institucionais do setor são exemplos eloqüentes.
Quando fui convidado pelo presidente Lula para ser ministro da Cultura, disse a ele que minha presença no seu gabinete só faria sentido se a cultura viesse a ter, no Brasil, um tratamento à altura da sua importância e do seu imenso potencial de geração de renda, emprego e bem-estar social. Afinal, a cultura brasileira já responde por 5% do PIB do país; e pode ir além, com políticas que impulsionem seu impacto econômico e social.
Quase três anos depois, constato que aquele desejo está se tornando uma realidade. De fato, o governo do presidente Lula fez na cultura um esforço que merece reconhecimento, em especial quando se sabe das dificuldades que inibem os governos – todos os governos – neste país tão desigual.
Apesar das adversidades, o governo federal dobrou, de 2002 para 2006, o orçamento do Ministério da Cultura, assim como dobrou os recursos da Lei de Incentivo à Cultura. Novos instrumentos de financiamento foram criados, como as linhas de crédito do BNDES para pequenas e médias empresas culturais, os Fundos de Investimento em Cinema (Funcines) e tantos outros.
Os patrocínios culturais das empresas estatais agora estão em sintonia com as políticas públicas do setor. Com isso, temos mais recursos, gastos de modo mais eficiente e inclusivo. Basta ver a Lei de Incentivo à Cultura, que tinha antes recursos concentrados em poucos Estados. Agora, a distribuição é mais equilibrada. Os recursos chegam a todo o país. Somando o novo orçamento com a renúncia fiscal e o crédito, estamos falando de um financiamento público recorde, que passa de R$ 1,5 bilhão.
Temos hoje 300 pontos de cultura em comunidades de risco social, amplificando as expressões locais. O patrimônio histórico está sendo restaurado em mais de 30 cidades. Cerca de 200 novas bibliotecas foram instaladas e cerca de 800 se encontram em instalação. Nada menos do que 300 novos longas, curtas, programas de TV, filmes de animação e video games já foram realizados. O novo programa de editais da Secretaria do Audiovisual está injetando R$ 23 milhões no segmento.
Nossos museus e centros culturais estão sendo recuperados, com um volume de recursos que, em três anos, supera o investimento total dos últimos dez anos. Há avanços em todos os segmentos, como o Programa de Exportação de Música e de Produção Independente de TV, a Previdência dos Trabalhadores da Cultura, o apoio ao software livre e o edital de cultura popular.
O Ministério da Cultura ampliou o seu campo de atuação. O foco das ações mudou, tornando-se o conjunto da sociedade, e não apenas os artistas. Tais ações, por sua vez, foram ampliadas e passaram a se dar de acordo com políticas públicas, ou seja, a partir de diagnósticos da situação em cada segmento e de princípios, diretrizes e metas definidos com rigor e realismo.
Estamos criando o Sistema Nacional de Cultura, que vai articular a atuação do poder público no setor, e vamos elaborar, de modo participativo, com a Primeira Conferência Nacional de Cultura, que acontece em Brasília, em dezembro, o primeiro Plano Nacional de Cultura do Brasil, ao longo de 2006. Nossa atuação internacional também começa a dar frutos: o Brasil ocupa hoje a primeira vice-presidência da Comissão Interamericana de Cultura, da OEA, e tem papel ativo no Mercosul Cultural e na Comunidade de Países de Língua Portuguesa.
No dia 20 de outubro, a Conferência da Unesco, em Paris, aprovou a Convenção Internacional de Proteção e Promoção da Diversidade Cultural, documento vital para a cultura na era da globalização. Sua elaboração e aprovação se devem, em grande parte, ao trabalho do Ministério da Cultura do Brasil, ao lado de países como a Espanha, a França, o Canadá e os vizinhos do Mercosul.
O diálogo permanente com artistas, produtores e empreendedores culturais tem sido outra marca desta gestão. Criamos, por exemplo, as Câmaras Setoriais de Música, Artes Cênicas, Artes Visuais e do Livro e Leitura. Estamos ampliando o grau de acesso da população à produção e à fruição de bens e serviços culturais. Ao mesmo tempo, procuramos estimular a presença da cultura do Brasil no exterior, com o Ano do Brasil na França, em 2005, e a Copa da Cultura, na Alemanha, no ano que vem. Temos, portanto, muito para celebrar neste dia da cultura e neste dia do cinema.
A situação ainda não é a ideal. Mas caminhamos na direção certa, trabalhando intensamente para valorizar e desenvolver nossa cultura, como ela e o país merecem.
Em 2005, o MinC (Ministério da Cultura) propôs um programa de alcance
nacional para ativar a discussão pública em torno de temas da agenda
intelectual contemporânea: “Cultura e Pensamento em Tempos de Incerteza”.
Em 2006, o programa será ainda mais inovador na maneira como amalgama
iniciativas e anseios do poder público, da sociedade e dos segmentos
culturais do país, com o espírito aberto e democrático que tem guiado
nossos atos.
Não há nele respostas circunstanciais a críticas que qualquer gestão
recebe por causa de suas escolhas. O programa insiste em uma forma
avançada de republicanismo ao conceber as políticas culturais e está em
consonância com o modo de trabalhar com a sociedade que tem marcado a
conduta do MinC desde o princípio desta gestão.
Para os debates deste ano, preliminarmente, em levantamento atencioso,
foram eleitos os assuntos que têm marcado nossa produção universitária, o
meio editorial, pautas críticas da imprensa, manifestações de grupos
culturais e organizações sociais.
Contribuindo para dinamizar a reflexão pública, o Ministério da Cultura já
trabalha em quatro projetos que devem cobrir alguns temas de pertinência
reconhecidamente atual. Teremos ainda outros quatro seminários,
completando a série, apoiados pela Petrobras por meio de editais, e para
os quais estamos convocando a sociedade a propor abordagens dos seguintes
temas:
1) Biopolítica e tecnologias: padrões contemporâneos de emancipação,
propriedade, dominação e controle.
2) Populações e territórios: o global, o nacional e o local no
agenciamento de identidades e na diversificação da cultura.
3) Os usos e abusos do público e do privado na cultura política dos tempos
atuais.
4) Lógicas e alternativas para as dinâmicas culturais no centro da
economia e da sociedade.
Esses eixos temáticos, propostos de início, serão ainda desenvolvidos em
reuniões públicas com pensadores convidados a intervir na proposta
original durante a preparação dos editais. Uma vez reelaboradas, as pautas
serão abertas à apresentação de propostas, e uma comissão de reconhecido
valor escolherá projetos.
Já que todo esse processo foi pensado como diálogo constante, a
interlocução não acaba aí, pois, após a seleção, os proponentes escolhidos
debaterão seus projetos em um fórum de discussões com outros pensadores do
Brasil e do mundo: só então serão implementados, e a vocação democrática
dessa iniciativa será coroada com a realização do ciclo de debates em
diversas cidades do país.
Peço a todos que se informem mais no site do MinC (www.cultura.gov.br),
que estará aberto à contribuição de todo cidadão brasileiro e acolherá
opiniões sobre os assuntos.
A expectativa desta gestão, com essa e outras ações, sempre foi legar a
nossa sociedade um aprimoramento dos mecanismos de fomento à atividade
cultural. Mais ainda, aprimorar a própria circulação de valores entre as
regiões e esferas tão várias que formam o Brasil.
Esse foi o desejo que nos autorizou a embarcar na aventura incerta e
delicada de assumir um ministério. Nos recusamos a enxergar o
financiamento público como mero recurso ao qual se pode recorrer para a
realização de projetos particulares; tampouco cabe ao governo solicitar a
profissionais da cultura a execução de tarefas definidas. O Brasil só
avançou nos raros momentos em que essa distorção foi enfrentada. O
espírito do Minc tem sido apenas esse, embora a desinformação
freqüentemente embaralhe as cartas a respeito do que tem sido feito e nos
apresente como semelhantes ao nosso avesso.
Em um país em que o Estado cavou para si a fama de agente que não só não
ajuda como também estorva e onera os poucos que têm iniciativa, é natural
que enfrentemos resistência e antipatia eventuais: somos uma sociedade com
aversão ao poder e ao Estado muito antes de qualquer ideologia preconizar
o seu desaparecimento completo. A repetição de arbítrios e ditaduras e os
abusos a que tantas vezes assistimos confundem, por vezes, o nosso
justíssimo horror ao totalitarismo com a vaga rejeição a qualquer política
pública e à criação de normas republicanas.
Neste momento bastante especial, esperamos que esse processo também seja
assunto para debate. Não pode haver maior ganho para a gestão que ampliou
as noções de política cultural vigentes do que chegar a refletir
inventivamente sobre a própria cultura política do país.
Tempo de Ler é tempo de ser. É tempo de transformar, de amadurecer, de crescer, de conhecer e desconhecer para a compreensão da vida, ler é beber da fonte da eterna inquietude, é a plenitude do silêncio e a amplidão do olhar.
Toda leitura é culturalmente sagrada e socialmente transformadora.
No Brasil atual, o livro tem ocupado cada vez mais um lugar especial no imaginário coletivo. Pelo livro, podemos viver várias vidas, várias histórias, várias dimensões da humanidade, várias versões e expressões do nosso ser.
A sociedade tem uma percepção cada vez maior dessa importância formadora do livro, tanto para o desenvolvimento pessoal ou profissional, como para a construção compartilhada de uma nação mais justa e desenvolvida.
Neste ano, tivemos o prazer de transformar o livro e a leitura em Politica de Estado, em um projeto integrado que uniu governos, empresas, organizações do terceiro setor de voluntários, como bibliotecários, professores e o cidadão comum.
São pessoas que acreditam no papel transformador e libertador do livro e que apostaram na criação do primeiro plano nacional do livro e da leitura.
Esse Plano traz diretrizes para, no mínimo, os próximos 20 anos. Supera o imediatismo e dá a esse tema – tão estratégico e tão caro a todos nós – a dimensão de política de estado, de uma política que sobreviva a governos e governantes, que vá além dos seus atores e autores.
E que coloque o país no rumo das nações mais desenvolvidas. Com o mesmo prazer, continuamos a convocar todos os brasileiros que, neste caminho queiram trilhar parte desta história.
Quem sabe, nesse caminhar, tenhamos juntos a grata surpresa de escrever uma nova história do Brasil.
O livro da vida está aberto para outras leituras, outras interpretações e outras histórias.
Faça a sua.
in: EDUARDO LEN, “O Futuro do Livro”. São Paulo: Editora Olhares, 2007.
A Bahia, terra e gente, é um dos lugares mais fotografáveis do mundo: riqueza estética que atrai o olhar, riqueza social que enfeitiça o coração. Para os que gostam do clique das câmaras, um convite à ação. Por isso a Bahia tem sido um dos lugares mais fotografados do mundo. Ontem Verger, hoje Holanda. A mesma atração pela beleza e o mesmo impulso amoroso trouxeram ontem e trazem hoje o interesse dos fotógrafos para perto do corpo e da alma da terra dos orixás e dos poetas.
Holanda Cavalcanti reúne, neste livro, uma série de fotos tomadas do mundo ao seu redor que refletem o seu convívio com o lugar, o seu apego suave e altivo à paisagem trágica de uma terra de belas meninas pobres; o seu afago sensual sobre a pele de sua Bahia; a sua própria auto-estima preservada pelo respeito ao sofrimento do outro; o seu olhar ao mesmo tempo divertido e compassivo registrando o tráfego dos olhares solidários das gentes humildes da cidade.
Este livro de fotos é como se reunisse frases soltas de um diário de uma menina atenta e curiosa; frases soltas de um poema de balsâmica dor, a dor da menina, a dor do seu mundo, a estimulante dor dos pés descalços – sobre as duras pedras do caminho – em seu ininterrupto movimento na marcha da liberdade.
in: CAVALCANTI, Holanda. “Ê Povo Ê”. Versal Editores, 2007
A cultura não é uma estrutura definida e cristalizada, mas um processo, um fluxo contraditório. A cultura é sinônimo de transformação, de invenção, de fazer e refazer, de ação e reação, uma teia contínua de significados e significantes que nos envolve a todos, e que será sempre maior do que nós, por sua extensão e sua capacidade de nos abrigar, surpreender, iluminar e — por que não? — identificar.
As culturas são como rios, como disse o antropólogo Marshall Sahlins, pois não se pode mergulhar duas vezes nas mesmas águas, porque elas estão sempre mudando. Então, culturas se criam, alteram-se e se resignificam, ou seja, se reinventam. E quanto maior for o grau de partilha, mais democrática, criativa e tolerante será nossa sociedade. E assim se afirma a noção de diversidade.
Neste sentido, é normal que, num dado momento do seu desenvolvimento, uma sociedade seja levada a abandonar ou a modificar esta ou aquela forma tradicional de sua cultura, à medida em que esta não responde mais às aspirações que deveria satisfazer. Não fazer esta modificação seria levar a cultura à esclerose e ao imobilismo e, portanto, condená-la a uma inevitável decadência. O que se designa pelo termo de identidade cultural é, assim, o produto de um incessante vai e vem entre dois pólos: a resistência e a adaptação.
E essa diversidade de idéias, pontos de vistas, estilos de abordagem e formas de argumentação, é que vai plasmando a nova ou as novas identidades que a vida concreta propõe, ela mesma, em seu cotidiano. É o que se passa aqui nestes encontros, a afirmação da diversidade intelectual que necessariamente deve haver para que uma esfera pública aconteça no dia de hoje. O maior resultado é tornar visível e audível uma série de vozes e discursos que não apenas os chancelados pelos cursos universitários ou pelos cadernos culturais da mídia, mas que podem trazer uma grande vitalidade a esses meios que se tornaram, por inúmeras razões, lugares especializados ou restritivos.
O que temos aqui é uma proliferação de enunciados e lugares de enunciação. Mais do que reconhecer a existência de muitas vozes é necessário gerar as condições para que elas tomem da palavra e se valham do sentido que querem verbalizar, isso pela sua própria iniciativa e risco, sem precisar pedir permissão ou ter que se adequar a formatos e espaços determinados, linguagens ou modalidades de expressão.
No mundo de hoje já não basta apenas o reconhecimento, como há anos atrás se reivindicava; não é só o lugar de legitimação em que um indivíduo ou um povo passa a existir de forma consentida e que é objeto da tolerância dos demais. Precisamos construir também os lugares em que esses sujeitos fazem-se e tornam-se sujeitos. Tenho a certeza que o modo mais pleno de auto-afirmação que há é aquele que faculta a palavra, a capacidade de um sujeito anunciar e enunciar o seu lugar e sentido. Nossa sociedade e nossas lideranças políticas passam agora a ter um texto, a Convenção da Diversidade da UNESCO, que pode tornar-se um forte aliado na afirmação de seus lugares de valor e de construção de “mundos possíveis” para si. Ele pode ser a carta constitucional de um novo mundo, onde todos os possíveis sejam lugares de presença cultural. Vejo que essa Convenção pode ser também um momento de reflexão comum que antevê e projeta os desafios de nossa afirmação cultural no mundo Global, sem que isso se submeta aos fechamentos decisórios da Organização Mundial do Comércio ou outras quaisquer agencias de interesses consolidados.
A democracia está hoje disponível pela legalidade e pelo consumo, mas ela não é suficiente para garantir a todos o seu gozo e uso fruto da liberdade. Nossa pauta intelectual é, também, uma provocação no plano conceitual e político sobre os mecanismos restritivos de propriedade intelectual e de direito autoral que precisam ser revistos. Hoje, sabemos que o trabalho intelectual, os saberes tradicionais, a criação artística e a científica são os vetores que dinamizam a nova economia capitalista — uma esfera de produção que foi enormemente revolucionada pelas tecnologias. Parte daquilo que se resolveu denominar de o “silêncio dos intelectuais” é também resultante da inclusão precipitada das novas gerações no mundo do trabalho imaterial, um engajamento de novo tipo que faz o potencial de inovação ser uma força produtiva apropriável e altamente rentável em seus modos de agregação de valor aos “produtos”. “Produtos” que se tornam cada vez mais “serviços”. Hoje as mercadorias deixaram suas feições tradicionais de objetos que figuram nas prateleiras de super-mercados e se tornaram dispositivos software. Essa pauta econômica é algo que torna o intelectual, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da sua própria investigação, de um modo paradoxal e que demanda novas energias críticas e posicionamentos sociais, novas mobilidades e capacidades de interação pública.
Laymert Garcia dos Santos nos diz da necessidade de um olhar para o mundo de hoje que se faça com novos olhos. Olhares tanto agudos na decifração dos enigmas do presente, quanto visionários na prospecção de cenários e futuros. No mundo da tecnologia e da imaterialidade, a política passou a ser uma possibilidade de deslocamento semântico do que é inscrito pelas próprias palavras em nossas vidas cotidianas. Há linguagens e enunciados que foram e vão se afirmando cegamente contra os valores humanos, sem que nos déssemos a devida conta. Volto a insistir, no mundo de hoje já não basta apenas o reconhecimento, como há anos atrás se reivindicava. Precisamos construir também os lugares em que esses sujeitos fazem-se e tornam-se sujeitos. Tenho a certeza que o modo mais pleno de auto-afirmação que há é aquele que faculta a palavra, a capacidade de um sujeito anunciar e enunciar o seu lugar e sentido. Hoje estamos diante da ratificação do tratado da diversidade em nosso País e diante uma grande assembléia das nações que são signatárias desse instrumento jurídico para decidir sobre os seus rumos. Volto a afirmar que nossa sociedade e nossas lideranças políticas passam agora a ter um texto que pode tornar-se um forte aliado na afirmação de seus lugares de valor e de construção de “mundos possíveis” para si.
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Sergio Amadeu, com quem passamos a compartilhar, daqui em diante, o pensamento agudo e desafiador sobre a nova realidade, nos lembra que a convenção da Unesco reconheceu a necessidade de adotar medidas para proteger a diversidade das expressões culturais e enfatizou também a relação estratégica entre cultura e desenvolvimento sustentável. As manifestações e as expressões livres e libertadoras da cultura digital constituem recursos indispensáveis e essenciais para assegurar a diversidade geral das expressões culturais de nossas sociedades.
Reunindo ciência e cultura, antes separadas pela dinâmica das sociedades industriais, centrada na digitalização crescente de toda a produção simbólica da humanidade, forjada na relação ambivalente entre o espaço e o ciberespaço, na alta velocidade das redes informacionais, no ideal de interatividade e de liberdade recombinante, nas práticas de simulação, na obra inacabada e em inteligências coletivas, a cultura digital é uma realidade de uma mudança de era. Como toda mudança, seu sentido está em disputa, sua aparência caótica não pode esconder seu sistema, mas seus processos, cada vez mais auto-organizados e emergentes, horizontalizados, formados como descontinuídades articuladas, podem ser assumidos pelas comunidades locais, em seu caminho de virtualização, para ampliar sua fala, seus costumes e seus interesses.
A cultura digital é a cultura da contemporaneidade. Como lembrei em 2004, em uma aula magna na USP, “cultura digital é um conceito novo. Parte da idéia de que a revolução das tecnologias digitais é, em essência, cultural. O que está implicado aqui é que o uso de tecnologia digital muda os comportamentos. O uso pleno da Internet e do software livre cria fantásticas possibilidades de democratizar os acessos à informação e ao conhecimento, maximizar os potenciais dos bens e serviços culturais, amplificar os valores que formam o nosso repertório comum e, portanto, a nossa cultura, e potencializar também a produção cultural, criando inclusive novas formas de arte.” Esas minhas palvras poderiam ser traduzidas pela expressão “diversidade cultural”.
CIBERCULTURA E AS REDES
A maior construção da cultura digital é a Internet que “nasceu da improvável intersecção da big science, da pesquisa militar e da cultura libertária.” (CASTELLS) Deixando evidente que desde o início, “o remix é a verdadeira natureza do digital” (GIBSON). O digital é a meta-linguagem da cultura pós-industrial que avança no interior das redes informacionais e para fora delas, do ciberespaço para a atualização em novas sociabilidades. Por isso, a cultura digital é também a cibercultura e representa o novo estágio da cultura de rede.
A cibercultura então pode ser compreendida como “a forma sociocultural que emerge da relação simbiótica entre a sociedade, a cultura e as novas tecnologias de base micro-eletrônica que surgiram com a convergência das telecomunicações com a informática na década de 70.” (LEMOS) Ela também é “o movimento histórico, a conexão dialética, entre sujeito humano e suas expressões tecnológicas, através da qual transformamos o mundo e, assim, o nosso próprio modo de ser interior e material em dada direção (cibernética)”. (RÜDIGER).
A Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (Convenção da Diversidade) definiu que “expressões culturais são aquelas que resultam da criatividade de indivíduos, grupos e sociedades e que possuem conteúdo cultural”.
Todos os nove objetivos da Convenção da Diversidade, relatados a seguir, têm relação direta com o desenvolvimento atual da cultura digital. São objetivos definidos pela Convenção:
a) proteger e promover a diversidade das expressões culturais;
b) criar condições para que as culturas floresçam e interajam livremente em benefício mútuo;
c) encorajar o diálogo entre culturas a fim de assegurar intercâmbios culturais mais amplos e equilibrados no mundo em favor do respeito intercultural e de uma cultura da paz;
d) fomentar a interculturalidade de forma a desenvolver a interação cultural, no espírito de construir pontes entre os povos;
e) promover o respeito pela diversidade das expressões culturais e a conscientização de seu valor nos planos local, nacional e internacional;
f) reafirmar a importância do vínculo entre cultura e desenvolvimento para todos os países, especialmente para países em desenvolvimento, e encorajar as ações empreendidas no plano nacional e internacional para que se reconheça o autêntico valor desse vínculo;
g) reconhecer a natureza específica das atividades, bens e serviços culturais enquanto portadores de identidades, valores e significados;
h) reafirmar o direito soberano dos Estados de conservar, adotar e implementar as políticas e medidas que considerem apropriadas para a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais em seu território;
i)fortalecer a cooperação e a solidariedade internacionais em um espírito de parceria visando, especialmente, o aprimoramento das capacidades dos países em desenvolvimento de protegerem e de promoverem a diversidade das expressões culturais.
A DIVERSIDADE, FUNDAMENTO DA CIBERCULTURA
Uma das principais hipóteses de Pierre Lévy é que a cibercultura expressa o surgimento de um novo universal, diferente das formas culturais que vieram antes dele, já que ele se constrói sobre a indeterminação de um sentido global qualquer. Ou seja, a cibercultura abriga pequenas totalidades, “mas sem nenhuma pretenção ao universal”. Podemos dizer que seu fundamento é a própria diversidade. Uma diversidade em contínua construção.
Entre as maiores expressões do ativismo cibercultural está o movimento conhecido como Metareciclagem. Avesso a qualquer totalização, o Metareciclagem constrói vínculos entre tecnologia e arte sem modelos predeterminados, de modo distribuído, sem imposições. Outro exemplo é o Estúdio Livre que trabalha um conceito de ambiente colaborativo, em constante desenvolvimento, que busca formar espaços reais e virtuais que estimulem e permitam a produção, a distribuição e o desenvolvimento de mídias livres. Todas as ferramentas deste ambiente são baseadas nos conceitos de software livre, conhecimento livre e apropriação tecnológica pelas comunidades de usuários.
Segundo a Convenção da Unesco, “diversidade cultural refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados.”
A expansão da cultura digital confunde-se com a expansão da Internet.
Mas a Internet foi construída sob forte influência da cultura hacker e, por isso, guarda seus traços, nos quais devemos destacar a liberdade de criação e a idéia de compartilhamento. Este espírito aberto permitiu construir o maior repositório de informações que a humanidade jamais viu. A cultura hacker gerou uma rede das redes e não uma rede única, uma rede absoluta. A diversidade dentro da colaboração foi e é um enorme feito dos arquitetos da Internet. Mas a Internet ganhou importância econômica e política e agora está sob constante ataque. Grupos e corporações gigantescas do mundo industrial querem conter a expansão da rede como um espaço de liberdade para o conhecimento e para a criação e recombinação digital da cultura. As tecnologias da informação são ambíguas. Servem ao controle e à liberdade, ao aberto e ao opaco. A cibercultura se realiza dentro deste terreno em disputa. De um lado, as operadoras de telecom querendo controlar a voz sobre IP, de outro o movimento Save the Internet, articulando a defesa da neutralidade dos protocolos da rede. As indústrias do entretenimento querendo impor o DRM e organizações como a Eletronic Frontier Foundation lutando pela liberdade de expressão e pelos inalienáveis direitos humanos na rede. Defender a diversidade cultural na rede passa pela defesa de uma cidadania digital, transnacional, e baseada na garantia dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.
DIVERSIDADE É RECOMBINANTE
O coletivo de mídia tática Critical Art Ensemble tem trabalhado desde o final do século XX com sua crítica profunda aos limites à criatividade impostos pelo sistema. Se Vannevar Bush havia nos alertado de que as nossas mentes pensam por associação, não seria estranho supor que nossa cultura realiza-se também por conexão, por constantes recombinações. De modo suficientemente claro, no texto Distúrbio Eletrônico, o Critical Art Emsemble conclama: “Deixemos que as noções românticas de originalidade, genialidade e autoria permaneçam, mas como elementos para a produção cultural sem nenhum privilégio especial acima dos outros elementos igualmente úteis. Está na hora de usarmos a metodologia da recombinação para melhor enfrentarmos a tecnologia do nosso tempo.”
A diversidade depende da liberdade dos fluxos e a criatividade precisa estar desimpedida para adotar todo o potencial da interatividade que é o devir da hipertextualidade e está presente em toda a expansão da web. Uma web que caminha cada vez mais para constituir-se de múltiplas práticas colaborativas. Alex Primo, ao analisar o aspecto relacional das interações na Web 2.0, esclareceu que “a interação social é caracterizada não apenas pelas mensagens trocadas (o conteúdo) e pelos interagentes que se encontram em um dado contexto (geográfico, social, político,temporal), mas também pelo relacionamento que existe entre eles. Portanto, para estudar um processo de comunicação em uma interação social não basta olhar para um lado (eu) e para o outro (tu, por exemplo). É preciso atentar para o “entre”: o relacionamento. Trata-se de uma construção coletiva, inventada pelos interagentes durante o processo, não podendo ser manipulado unilateralmente nem previsto ou determinado”.
O relacionamento recombinante é conflituoso e seu sentido é imprevisível, pois a linkagem aberta ou a co-linkagem garante a liberdade e a infinita disputa de caminhos e trilhas. Mas isso é vital para a diversidade. O princípio da Convenção da Unesco de igual dignidade e respeito por todas as culturas precisa incorporar o mesmo tratamento para as culturas recombinantes, para as ciberculturas. Nunca é demais lembrar das idéias de George P. Landow, um dos grandes estudiosos do hipertexto: “Las concepciones de autoría guardam uma estrecha relación com la forma de tecnología de la información que prevalece em un momento dado, y, cuando esta cambia o comparte su dominio com otra, también se modifican, para bien y para mal, las interpretaciones culturales de autoria.”
O ACESSO ASSEGURA A POSSIBILIDADE DE DIGITALIZAÇÃO DAS EXPRESSÕES CULTURAIS
Alejandro Piscitelli argumenta que a “Internet fue el primer medio masivo de la historia que permitió uma horizontalización de las comunicaciones, uma simetria casi perfecta entre producción y recepción, alterando em forma indeleble la ecologia de los medios.” Este enorme feito democratizante não conseguiu ainda reverter as tendências concentradoras que se ampliam com as assimetrias sócio-econômicas. Javier Bustamante Donas, ao discutir a relação entre a cibercultura e a ecologia da comunicação, afirmou que “el acceso a Internet y su uso como vehículo de transmisión de ideas y de comunicación personal va sin duda a establecer nuevos criterios de diferenciación social entre los ciudadanos de la nueva cibercultura. Individuos, empresas, colectivos sociales que no tengan acceso por razones económicas, técnicas o de rechazo psicológico, se encontrarán en una posición precaria a la hora de definir su presente y su futuro.”
Não podemos privar as comunidades locais, tradicionais ou não, bem como os artistas e produtores culturais da possibilidade de migração de sua produção simbólica para o interior da redes, para o ciberespaço. Para assegurar que a expressão das idéias e manifestações artísticas possam ganhar formatos digitais e, também, para garantir que os grupos e indivíduos possam criar, inovar e re-criar peças e obras a partir do próprio ciberespaço, são necessárias ações públicas de garantia de acesso universal à rede mundial de computadores. Sem inclusão digital de todos os segmentos da sociedade, a cibercultura não estará contemplando plenamente a diversidade de visões, de expressões, de comportamentos e perspectivas.
Bem alertou-nos Javier Bustamante que “sin una pluralidad de fuentes no se puede hablar de libertad de pensamiento, conciencia o religión. Sin acceso a medios de alcance internacional no tiene sentido hablar de libertad de opinión y de difusión de las mismas sin limitación de fronteras”. Por isso, a cultura da diversidade digital é ampliada pelas práticas de compartilhamento de conhecimento, de tecnologias abertas, de expansão de telecentros, de oficinas de metareciclagem, de pontos de cultura. Essas iniciativas precisam ser amplificadas, uma vez que executam o princípio do acesso eqüitativo presente na Declaração da Unesco: “O acesso eqüitativo a uma rica e diversificada gama de expressões culturais provenientes de todo o mundo e o acesso das culturas aos meios de expressão e de difusão constituem importantes elementos para a valorização da diversidade cultural e o incentivo ao entendimento mútuo”.
Quanto maior a inclusão digital da sociedade, maiores serão as possibilidades da diversidade cultural. Quanto maior a liberdade para as práticas colaborativas na rede, wikis, softwares livres, ações P2P, blogs, espectro aberto, mais extensa será sua inteligência coletiva criativa.
REALIDADES ALTERNATIVAS, SIMULAÇÕES E MÚLTIPLAS IDENTIDADES
A cultura digital envolve a simulação, as realidades virtuais e as realidades alternativas. Ciborgues não são somente metáforas, como nos ensinou Donna Haraway. A crise das identidades que ocorria já nas sociedades industriais evoluiu para um cotidiano pendular entre identidades ausentes e anonimato, de um lado, e múltiplas identidades, de outro.
Jogos em rede envolvem milhões de pessoas, avatares se enfrentam e se articulam em um cenário virtual onde também estão inseridas as diversas comunidades virtuais de relacionamento, e que criam caminhos de mão dupla virtual-atual e presencial-ciberespacial.
Nesse cenário, de ausentes e múltiplos, de choque de sociabilidades, é que também devemos enfatizar o papel das identidades únicas e das identidades étnicas. A riqueza da diversidade dependerá do fortalecimento de diversos elementos constitutivos das identidades coletivas que compõem uma cultura. A Convenção da Unesco recordou “que a diversidade lingüística constitui elemento fundamental da diversidade cultural”. Então, a diversidade digital exige a produção de conteúdo em diversas línguas e dialetos em sites, portais, na blogosfera, na videosfera e nos ambientes de realidade alternativa.
A LIBERDADE DOS FLUXOS, DO CONHECIMENTO E DA CRIAÇÃO
Eugenio Trivinho nos alertou que “ao mesmo tempo que a miniaturização das tecnologias comunicacionais permite o maior poder de movimentação nas cidades reais, materiais, gera também um maior efeito de ilusão de liberdade. Para evitar confusão: um contexto histórico que confere mobilidade corporal assistida pela potência da comunicação à distância nem por isso concede maior liberdade aos indivíduos, ou uma liberdade genuína, isenta de constrangimentos, coações e controles”. (112-113) No cenário da cibercultura, a liberdade exige arquiteturas abertas aos fluxos de conhecimento. Nunca foi tão possível compartilhar conhecimento quanto na era das redes informacionais.
Nunca foi tão rápido, barato e fácil trocar informações. Os economistas da informação sabem que o principal insumo da informação é a própria informação. A matéria-prima do conhecimento é a própria informação codificada ou conhecimento. A informação não possuí as restrições limitadoras dos bens materiais. Informações, desconhecem a escassez e o desgaste no uso. Podem ser usadas de modo ilimitado e reproduzidas a custo zero.
Exatamente estas características inerentes aos bens informacionais, ou seja, as informações é que são combatidas pelos gigantes da era industrial. Buscam realizar uma cruzada pelo enrijecimento das leis de propriedade das idéias, por criminalizar o compartilhamento de idéias, de algoritmos e de criações artísticas. Invadem centros acadêmicos à procura de cópias xerox de livros e retrocedem na interpretação do uso justo do conhecimento.
Esses guerreiros da propriedade privada das idéias, esquecem que, ao contrário dos bens materiais, o conhecimento cresce quando é compartilhado. Provavelmente desconsideram a brilhante explicação de George Bernard Shaw, dramaturgo e crítico literário irlandês: “Se você tem uma maçã e eu tenho uma maçã e trocarmos estas maçãs, então eu e você teremos ainda apenas uma maçã. Mas se eu tenho uma idéia e você tem uma idéia, e trocarmos nossas idéias, então cada um de nós terá duas idéias”.
A cibercultura para avançar precisa derrubar as barreiras da liberdade de conhecimento. As redes não podem ser malhas de uma “informática da dominação”, termo bem cunhado por Donna Haraway. A biotecnologia não deveria construir seu caminho baseando-se na modelo de negócios dos alimentos transgênicos, que buscam controlar, por meio de patentes, o conhecimento sobre as formas de reprodução da vida. A opacidade dos códigos (softwares, protocolos e padrões) é grave. Como bem alertou-nos o jurista Lawrence Lessig, “no ciberespaço o código é a lei”.
Lessig ao analisar como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a cultura e controlar a criatividade, escreveu que a “oportunidade para criar e transformar está enfraquecida em um mundo no qual a criação depende de permissão judicial, e a criatividade precisa sempre consultar um advogado.” (183) Para evitar uma anemia cultural generalizada promovida pelas tentativas de controlar privadamente o conhecimento e a cultura é que crescem mobilizações como o Creative Commons, um movimento de licenciamento que busca reequilibrar o cenário de propriedade intelectual, dando maior espaço às características básicas da cultura digital, entre elas a recombinação, o sampling, a liberdade de cópia.
A ECONOMIA DA CIBERCULTURA É BASEADA NO RELACIONAMENTO E NÃO NA PROPRIEDADE
John Perry Barlow, letrista, músico, ciberativista, autor do Manifesto de Independência do Ciberespaço, fundador da Eletronic Frontier Foundation, escreveu os princípios da economia de uma cultura digital, de uma cibercultura. Barlow captou a tendência de a economia se basear cada vez mais em serviços. Nela, o valor da propriedade perde força diante dos valores do relacionamento.
Ele escreveu que “a maioria de nós vive hoje graças à inteligência, produzindo ‘verbos’, isto é, idéias, em vez de ‘substantivos’, como automóveis e torradeiras. (…) Médicos, arquitetos, executivos, consultores, advogados: todos sobrevivem economicamente sem serem ‘proprietários’ de seu conhecimento […] É um consolo saber que a espécie humana conseguiu produzir um trabalho criativo decente durante os 5.000 anos que precederam 1710, quando o Estatuto de Anne, a primeira lei moderna de direitos autorais, foi aprovada pelo Parlamento Britânico. Sófocles, Dante, da Vinci, Botticelli, Michelangelo, Shakespeare, Newton, Cervantes, Bach – todos encontraram motivos para sair da cama pela manhã, sem esperar pela propriedade das obras que criaram”.
Sua conclusão é empiricamente consistente: “Mesmo durante o auge do direito autoral, conseguimos algo bastante útil de Benoit Mandelbrot, Vint Cerf, Tim Benners-Lee, Marc Andreessen e Linus Torvalds. Nenhum deles fez seu trabalho pensando nos royalties. E há ainda aqueles grandes músicos dos últimos cinqüenta anos que continuaram fazendo música mesmo depois de descobrir que as empresas fonográficas ficavam com todo o dinheiro […] relacionamento, junto com serviço, é o centro daquilo que suporta todo tipo de “trabalhador moderno do conhecimento”.
Na economia digital colaborar é mais eficiente que simplesmente competir. Um número crescente de empresas está percebendo as enormes vantagens das práticas colaborativas para a inovação e a manutenção de seus negócios. As redes informacionais viabilizam novas práticas sociais e de geração de riquezas que eram difíceis e até impossíveis de se implementar na chamada era industrial.
O professor de direito da Universidade de Yale, Yochai Benkler, no livro The Wealth of Network, disponível na web, demonstrou que uma série de mudanças nas tecnologias, na organização econômica e na produção social estão criando novas oportunidades e possibilidades de produzir informação, conhecimento e cultura. Essas mudanças, segundo Benkler, estão ampliando o papel da produção não-proprietária e colaborativa, realizada por indivíduos isolados e por esforços cooperativos de milhares de pessoas. É o caso, por exemplo, do desenvolvimento de software livre, uma típica criação da cultura digital.
O modelo de desenvolvimento e uso de software livre se baseia na colaboração. Programas de computador extremamente complexos são criados e mantidos por comunidades de interessados. Um dos seus maiores exemplos, o GNU/Linux, é um sistema operacional livre, mantido por aproximadamente 150 mil pessoas espalhadas pelo planeta. Como todo e qualquer software, o GNU/Linux precisa ser atualizado constantemente para acompanhar a evolução dos computadores e demais softwares. Antes que uma nova versão do GNU/Linux seja considerada estável, ela é testada e corrigida por uma comunidade gigantesca de apoiadores. As chances de ter suas falhas mais rapidamente encontradas e superadas é bem maior do que no modelo proprietário e fechado. A qualidade das versões está diretamente vinculada à quantidade da inteligência coletiva agregada na rede mundial de computadores. Sem dúvida, a coordenação do processo é o elemento mais sensível e complexo das práticas colaborativas em rede.
O que cada colaborador doa, em tempo de trabalho, para o desenvolvimento do GNU/Linux é bem menor do que obtém de retorno. Essa lógica levou ao antigo Big Blue, a IBM, e outras grandes corporações a apostarem no desenvolvimento colaborativo. Apache é um dos maiores sucessos mundiais do software livre. Ele serve para hospedar páginas da web e está presente em mais de dois terços dos servidores web do planeta. Imbatível. Obteve esta posição sem gastar um centavo em propaganda. Nunca precisou, ele é desenvolvido colaborativamente e sua estabilidade é incomparavelmente superior ao do concorrente proprietário.
CULTURA DIGITAL, CIBERESPAÇO: AS FRONTEIRAS COM OS ESTADOS-NAÇÃO
A Internet carrega e conecta os fluxos da cultura digital, transitando pelas diversas infra-estruturas dos países controlados por Estados nacionais. Todavia, a rede é transnacional. Construída sob forte influência da cultura hacker para ser livre, conectada por protocolos de comunicação que buscam manter liberadas as vias de compartilhamento de dados e interação de informações. A internet é o corpo do ciberespaço.
Mas os tempos de globalização, de auge das tentativas de desmonte geral do que é público, de prevalência do privado, de expansão do consumismo totalitário, do desrespeito ao local e às culturas tradicionais, gerou fortes reações, algumas de reprodução em larga escala da intolerância. Reforçou-se o cenário de ambivalências. Estados Nacionais poderosos e megacorporações tentam criar condições para controlar os fluxos das redes, a Internet. Totalitários de plantão reúnem argumentos para interferir nos protocolos, na independência de cada uma das camadas que compõem a rede, para vigiar os pacotes de informação, para manter ditaduras ou níveis de lucratividade. Tanto faz!
O ciberespaço precisa ser livre. O acesso precisa ser livre. A navegação precisa ser livre. A governança da Internet é também a governança do ciberespaço. Ela não pode representar um retrocesso nas liberdades conquistadas, do contrário, teremos ataques à criatividade, ao compartilhamento de informações, à diversidade de manifestações e expressões da cultura digital. A defesa da diversidade digital passa pela defesa de um modelo de governança da rede que seja multistakeholder, que garanta o peso devido às organizações da sociedade civil mundial de interesse público, que assegure uma cidadania digital global, que mantenha as liberdades fundamentais do homem.
O importante princípio da soberania nacional inserido na Convenção da Unesco não pode ser usado para anular o princípio da abertura e do equilíbrio, segundo o qual “ao adotarem medidas para favorecer a diversidade das expressões culturais, os Estados buscarão promover, de modo apropriado, a abertura a outras culturas do mundo e garantir que tais medidas estejam em conformidade com os objetivos perseguidos pela presente Convenção”.¨
A CULTURA DIGITAL NA PERSPECTIVA DA DIVERSIDADE. OS PARAMETROS PARA POLÍTICAS PÚBLICAS ADEQUADAS?
É necessário estruturar políticas públicas que incentivem a cultura digital.
Os fundos de tecnologia e telecomunicação devem assegurar linhas especiais de pesquisa e de produção de tecno-arte, de tecnologias abertas e livres. Devem estudar formas jurídicas adequadas para o financiamento de projetos de coletivos tecnológicos, tais como para as comunidades de software livre, de meta-reciclagem, de midia-ativismo e cibercultura, bem como, os coletivos de conexão cooperativa.
É preciso assegurar que as comunidades tenham recursos para portar seus conteúdos para a rede informacional. Daí a importância decisiva dos estúdios livres de cibercultura.
É fundamental construir uma política de convergência digital para o que é comum, para a sociedade civil, para digitalizar as rádios e TVs comunitárias, para garantir experimentos comunitários de conexão aberta.
É importante incentivar a expansão das cidades digitais.
É vital garantir que sejam expandidas as faixas de frequência do espectro radioelétrico para uso comum. A sociedade precisa discutir o destino das faixas de freqüência que estão sendo utilizadas atualmente pelas emissoras de TV para transmissão analógica. Quando a implantação da TV digital estiver completa, estas faixas poderão ser transformadas em espectro aberto, em via de uso comum, com o uso de rádios transmissores, receptores inteligentes e outras tecnologias digitais.
É preciso incentivar a produção de conteúdos digitais para a mobilidade, para o cenário de realidades alternativas, jogos em rede e digitalização crescente do broadcasting, bem como, para a expansão das webTVs distribuídas.É preciso incentivar o crescimento do domínio público, bem como, garantir a liberdade para o conhecimento e a cultura.
COMO GARANTIR A EXPANSÃO DA PESQUISA DA CIBERCULTURA.
Como Ministro da Cultura, na aula inaugural que dei na USP, no dia 10 de agosto de 2004, afirmei que “é hora de a pesquisa científica acerca da cultura conquistar novos vôos, ganhar maior consistência, rigor e autonomia.
É preciso pensar a universidade também como um ‘locus’ da cultura, seja das expressões artísticas, seja da difusão, ou reflexão, ou da preservação.” Nesse sentido, é preciso pensar propostas que garantam a ampliação da pesquisa da cultura digital.
É preciso articular mais pesquisas básicas e experimentais, multidisciplinares, que ampliem a compreensão das tecnologias de informação e comunicação em um contexto de redes e da cultura digital.
É preciso criar nós e articulações mais freqüentes entre os vários atores e pesquisadores de cibercultura.É preciso incentivar redes de pesquisa da cultura digital.
É preciso criar encontros, desconferências, festivais, prêmios e incentivos à pesquisa da cibercultura e sua relação múltipla com diversos contextos.
LIBERDADE PARA O CONHECIMENTO E A CRIAÇÃO
A cultura digital é a cultura que trabalha com a plena criatividade. Não está limitada ao ideal romântico de originalidade exclusiva, espalha-se pela idéia de recombinação, de remixagem, de fusão, de derivação, de destruição de todos os entraves à criação, de obra contínua, ilimitada, fundamentalmente aberta. Trata da novidade e da reconfiguração. Cultiva a colaboração e o compartilhamento tal como o antigo ideal científico. A ciência pouco avançaria se não fosse ela própria cumulativa e recombinante. A cultura digital é a aproximação da ciência e da cultura, mediada pelas tecnologias informacionais.
A liberdade para o conhecimento, a transparência para os códigos que intermedeiam a comunicação humana, a criação sem entraves, a superação da mercantilização totalitária da cultura, as possibilidades simuladoras e emancipadoras do ciberespaço são fundamentos que devemos defender se quisermos um mundo de riqueza da diversidade.
Numa conferência durante o II Fórum Cultural Mundial, Gilberto Gil provoca: o tempo do Iluminismo e da crença no “progresso” passou. Mas a idéia de emancipação está viva: a igualdade social ressurge porque todas as identidades são válidas, e nenhuma é superior às demais
Pelo que venho ouvindo e vendo, estes quatro dias do Fórum Cultural Mundial têm sido especialmente ricos para todos. Creio que estamos praticando uma conversa de alto nível, surpreendente pela quantidade de afeto e pelas idéias-força, velhas ou novas, necessárias para o aprofundamento do debate.
As instituições e demais estruturas dos dias de hoje têm enorme fluidez. Funcionam como um tocador de MP3 ou as mãos ágeis de um tecelão. Migram descontinuamente entre muitos fios e temas, simultâneos, armazenados em múltiplas memórias e capacitações, todas necessárias para nossa complexa formulação e atuação em várias frentes. A ação dessas novas instituições governamentais, empresas e instituições não- governamentais são como hardwares que necessitam de programas continuamente atualizados e de novos combustíveis, que são estas conversas, estas diretrizes e estas orientações aqui expostas. Antevejo conseqüências e influências muito reais de tudo o que vem sendo discutido, do que vem sendo aqui pensado e será em breve processado e plasmado de forma institucional.
Parabenizo a todos pela ousadia ao transformar a programação virtual em real animação, em novas e construtivas formas de crença e organização, conteúdos coletivos feitos da escuta das palavras afetivas da alteridade, das tentativas de novas linguagens para expressar os novos conteúdos, tudo tecido por vocês, dezenas de debatedores nacionais e internacionais. Parabéns pela produção de consenso e pela produção de dissenso. Como disse um representante do ministério de Cultura da Argentina, há poucos dias, a celebração consensual da diversidade significa que temos o direito e, às vezes, o dever de divergir. E isso quer dizer ter e emitir opiniões diferentes que, muitas vezes, expressam momentos distintos ou lugares distintos da compreensão de um mesmo fenômeno.
Quando diversidade rima com igualdade…
Aceitei participar de todas as mesas às quais fui convidado com a entrega de alguém que realmente acredita nestas formas de produzir inteligência, de quem é disponível a essa possibilidade de influenciar e ser influenciado. Desejo transparecer a vocês o que considero um dos pilares de uma gestão pública de cultura hoje: o espaço público tem que ter essa quentura, essa permanência para além de eleições e lugares consagrados de produção intelectual. Essa fluidez fundamental de construção de uma esfera pública nunca acabada.
A gestão dos dias atuais não constrói sua agenda dentro de gabinetes, mas neste espaço, no corpo de cada um de nós, na corporificação das redes ou na encarnação permanente de todas idéias. Idéias que nos dizem em alto e bom som que a incorporação da diversidade em nossos corações – e em nossas instituições – é o reconhecimento de que diferenças culturais são positivas, mas desigualdade sociais não são e não serão jamais.
É desse binômio entre diversidade e desigualdade que pretendo partir para uma discussão com vocês. Principalmente, porque a hegemonia é um dos sintomas nocivos da desigualdade de forças, que se reflete em instituições reais, em poder real e legitimado, em acesso concreto de cada país à cultura e aos meios de se fazer conhecer e de se realizar.
Cultura, esse terreno de preservação e ruptura
Como cultivo do labor humano sobre a natureza, a cultura é o domínio da vida humana, da realização da mão do homem sobre a fartura limitada do planeta. Cultivo pressupõe o trabalho constante de volver a terra, de reverenciar a matriz natural do que fazemos. Também diz respeito ao que permanece, ao que regula, não apenas ao que surge de novo e rompe com o passado. Cultura é liberdade, ruptura e inovação, mas também é regulação e tradição, os sedimentos que nos constituem nos movimentos profundos e teutônicos da constituição humana.
A palavra cultura tornou-se um sinônimo hoje de tudo o que buscamos como aspiração mais elevada. Ao escolher esse caminho, temos que tomar a precaução de não esvaziar o sentido pleno da experiência cultural. Acredito que não basta somente associarmos cultura a idéias positivas classicamente assentadas entre nós, como a noção de lugar, de modos de viver modos de ver e olhar. Não se deve suprimir a complexidade e historicidade da idéia de cultura em nossos séculos e em nossos dias.
A antropologia desalojou o tempo único e a linearidade do velho mundo. O tempo cristão arcaico previa um tempo que se afunilava em direção ao seu esgotamento moral, sob a luz do filho na terra, incapaz de honrar a sua origem celestial. Sua finalidade estava na própria origem do tempo, que se dissolvia e perdia sentido como uma ampulheta. O homem sonhava com a origem e sofria ao dela distanciar-se.
A emergência de um planeta multicêntrico
O tempo do renascimento europeu mudou radicalmente – e, para muitos, dolorosamente – essa direção da imaginação humana. Projetou adiante uma nova visão de tempo, acelerando o seu curso e apontando para o progresso, para o futuro. Estes dois tempos eram lineares: um voltado para um passado mítico e, outro, para um futuro onde era preciso logo chegar.
Em meio a tudo isso estava o homem, alojado num tempo moderno e múltiplo, ainda crente de sua identidade de corpo, alma e tempo. Creio que ainda estamos tentando compreender a crise e o significado dessa mudança. Estamos hoje desalojados desses sentidos lineares de tempos.
No plano dos estudos – principalmente, na antropologia — e nas políticas de identidade, no plano da lutas coloniais e pós-coloniais das multidões, essas forças intelectuais e sociais deslocaram esse tempo egoísta do homem alojado no centro do universo e fraturaram o centro geopolítico do mundo. Revelaram um planeta multicêntrico, com muitas narrativas e imagens de si próprio. Isso libertou a nossa percepção de humano de uma gênese abstrata do espírito humanista e nos fez enxergar melhor a diversidade cultural do planeta, explicitando as seculares intenções de promover a cultura da racionalidade instrumental nos modos de ser e fazer.
No entanto, nem tudo nessa mudança foi imediatamente assimilado como aprendizado, como adaptação fácil. Isso se reflete em vidas concretas, na falta de planejamento narrativo das vidas dos trabalhadores e em nossas instituições fluidas, que não mais oferecem o velho modelo de ocupação e estabilidade que ofereciam no começo do século 20.
É um contexto dissolvente de uma velha ordem de trabalho, de cultura e de tecnologia. Nesse contexto, a noção de diversidade cultural tem nos ajudado a procurar caminhos e a reorganizar uma agenda de emancipação e realização humana.
Em contexto dissolvente, novo papel da diversidade cultural
A velha diversidade cultural era a força dissolvente de tentativas imperiais. Mas hoje ela é o motor de nossas melhores expectativas. É ela que pode nos iluminar para resolver as formas atuais de assimetrias que se expressam, por exemplo, em formas de contrato que prejudicam autores ou em formas de propriedade intelectual que eliminam o acesso. São assimetrias geradas por falta de instituições capazes de reconhecer e dar poder às populações detentoras de um saber real, desprovidas do saber universitário e bacharelesco.
Entre as lutas pós-coloniais estão as lutas nacionais e globais de acesso e afirmação tardia de direitos, dos direitos à cidadania, ao prazer, ao lazer e ao tempo livre. Lutas que vieram fazer da diversidade cultural uma realidade nos meios de comunicação, que tornaram-se verdadeiros meios de existência social. Lutas que vieram comungar a diversidade cultural como acesso à tecnologia e aos mais variados bens e serviços culturais.
A velha idéia de civilização buscava a harmonia universal pela busca da hegemonia; suas aspirações milenaristas podiam, ao fim, impor a sua lógica de cima para baixo e encontrar a dominação, a supressão, os saques e os corpos feridos pelas batalhas de colonização, posteriormente, de descolonização. A velha frase de Benjamim de que um documento de civilização é também um documento de barbárie sintetiza bem o saldo negativo da colonização. Isso também é cultura.
Saudável emergência da economia criativa
Nós, que nascemos depois desse processo, não queremos vestir a armadura pesada dessas heranças, pelo contrário. Ao mesmo tempo, não podemos desconhecê-las, sob pena de não exercermos a leveza necessária de uma nova forma de organizar a cultura e suas vidas.
Estivemos discutindo nestes quatro dias como o contexto atual é de uma redefinição radical da forma de produção e geração de valor. A culturalização da vida contemporânea – com a estetização forte dos fluxos, dos fazeres cotidianos e de nossas vidas – elevou nossa capacidade de criar e trouxe infinitas possibilidades de inclusão de multidões como sujeitos de suas histórias e narrativas de vida, individuais e coletivas. Esse fenômeno é o que hoje chamamos de economia criativa.
Mas esse novo tempo trouxe também novas formas de repor e conservar os modelos de organização e exclusão, em nome do conhecimento e seu acesso, principalmente para os países em desenvolvimento como o Brasil. Por exemplo: a apregoação dos sistemas meritocráticos pode se tornar, na prática, ferramenta pós-colonial de repor velhas exclusões. Destina-se a deixar milhões de pessoas fora dos sistemas de emprego, porque elas não tiveram acesso aos programas de educação de qualidade e de capacitação.
A tentação totalitária da meritocracia
Esse raciocínio é bem contemporâneo, tem boa influência e é parte da premissa de que o mérito é, na verdade, o talento e o esforço de indivíduos, de pessoas que lutam e largam em iguais condições. Entretanto, quero ressaltar que o mérito tem menos a ver com talento que com patrimônio que se acumula por centenas de pequenos e grandes acessos que uma sociedade garante a partir da gestação materna dos indivíduos. Falo do patrimônio acumulado de geração a geração, de pai para filho.
A constituição plena de uma república não pode ser feita de forma abstrata, a-histórica, com cidadanias plenas e também abstratas, desconhecendo séculos de desigualdades transmitidas e acumuladas. Como se pudéssemos zerar o jogo das heranças e sofrimentos, produtos da escravidão ou do genocídio indígena, em nome dos legítimos ideais republicanos com os quais todos nós concordamos.
Podemos fazer o discurso da meritocracia em abstrato e esquecer o que a escravidão ainda representa em cada esquina e em cada relação social?
Isso tem muito a ver com a identidade, com as suas políticas sob o arco da diversidade. As cotas raciais podem não ser o melhor dos mecanismos, mas são o melhor do que dispomos hoje para não aderir plenamente ao modelo meritocrático abstrato, universal e, na verdade, excludente.
Força inesperada questiona a globalização hegemônica
A velha ligação de cultura nós conhecemos – e não desejamos. Ligada a uma geopolítica de território, à supressão de identidades, à colonização da língua, à imposição de sistemas jurídicos, ao comércio injusto e ao saque arqueológico em nome de uma racionalidade instrumental.
Hoje a força emergente dessa diversidade, sujeito e ciente de si própria, qualifica a globalização e impede que seja reduzida à circulação de mercadorias – uma forma de organizar o mundo que, ao excluir outras dimensões, acentua as assimetrias.
As idéias de Estado também se adaptaram e foram desafiadas. Algumas idéias dominantes tentaram e ainda tentam desprestigiar o Estado-nação, a própria idéia de História, dizendo que ela finalmente chega ao fim, depois da bipolaridade da guerra fria. Os Estados estariam com os dias contados, cabendo então cortar e cortar instituições e seus gastos, inclusive os de cultura.
Os papéis do Estado e Nação no tempo da diversidade
Nesse contexto, a defesa atual da diversidade estabelece um novo momento que, no meu entender, não vem no sentido da dissolução dos Estados-nações, mas da superação de um velho modelo de Estado e Nação. As produções autoritárias de identidade que suprimiam diversidades internas das nações foram denunciadas e reconhecidas. Os Estados sabem que não são produtores de cultura, mas instituições que devem reconhecer a cultura e garantir direitos de identidade e acesso.
Parte da nossa capacidade de agir politicamente ainda se deve muito aos Estados. Ao se redesenhar, me parece que o Estado tem hoje pela frente muitos papéis decisivos, se for democrático, atuante e tiver uma visão de diversidade cultural interna e externa. Por exemplo: sem os Estados-nações não teríamos aprovado a Convenção para a Promoção e Defesa da Diversidade Cultural e Expressões Artísticas, da Unesco.
O futuro dos Estados e de suas novas e necessárias instituições está ligado à compreensão da diversidade. Essa nova realidade fractalizou-se em milhões de novos sujeitos. Alterou os endereços do que era global e do que era local. Surgiu o “glocal”. Através da tecnologia digital, ele alterou as barreiras entre produtores e consumidores. Surgiram os “prosumidores”, que produzem enquanto consomem, e consomem enquanto produzem.
Praticamos a diversidade como direito à identidade e como forma de criar, como reconhecimento radical da alteridade, da presença legítima do que não alcançamos, mas do que nos faz conhecer e cultivar a nossa própria cultura.
Resgatar a senha e o sonho da alteridade
O sonho da alteridade está na origem da globalização e da arte, pelo menos mais claramente desde o Renascimento. Sonhamos há séculos com as distâncias virtuais que a alteridade projeta e estimula em nossa imaginação. O tempo de Shakespeare sonhava e romantizava as cidades mediterrâneas, as paixões públicas e privadas da latinidade italiana e sua ilustre gênese na Renascença. Recordo dos Lusíadas e da poetização das primeiras miragens do Novo Mundo – essa projeção utópica. No Brasil, nos tornamos árabes e orientais pela movimentação global do Quinto Império português e seu sonho universalista, já ao som dos pandeiros.
Ou, mais modernamente, da paixão dos franceses pelo cinema americano, sonhado em cinematecas escuras e a devoção da pintura action-painting expressionista abstrata americana pela vanguarda européia. Ou a revolução de Zaha Hadid, uma arquiteta contemporânea iraquiana que modela e desequilibra o círculo harmônico oriental pelas bioformas inspiradas na velha arte surrealista ou nas fantasias de futuro da literatura e das séries B de naves espaciais. Ou as introspecções em voz sussurrante dos revolucionários da bossa nova em praias ensolaradas a sonhar as harmonias do jazz produzido em invernos temporais e espirituais da América negra.
Em nossos sonos modernos e pós-modernos e em nossas vigílias em cavernas escuras, sonhamos com o Velho Mundo. E o Velho Mundo sonha com a modernidade americana, com as paisagens de larga escala e as posturas de corpo, de afeto e de informalidade destes tristes trópicos. A arte já era virtual antes mesmo da virtualidade dos protocolos IP e das simulações de código digital.
A validade radical do que chamamos “humano”
Essa imaginação da diversidade é uma forma de vida, uma biopolítica que se realiza como afirmação profunda de idéias, conhecimentos, saberes e fazeres que são transmitidos foras das instituições do Estado, corpo a corpo, boca a boca, como oxigênio inesgotável diluído no ar.
E se ele é comum a todos os povos, é porque essa imaginação, essa predisposição de afeto, essa reserva de conhecimento superior é o que nos repõe uma perspectiva de humano. É o que nos repõe sem que a perspectiva universal tenha qualquer conteúdo regressivo, qualquer perspectiva de uniformidade. É o que se projeta no outro pelas possibilidades de encontro, interação e amor.
A noção de diversidade pode se contrapor à realidade das hegemonias produzidas por assimetrias, mas gostaria de frisar a vocês que não podemos descartar a validade do que chamamos de humano, mesmo que isso esteja infinitamente em aberto, esvaziado do velho conteúdo civilizador. Que a humanidade signifique entre nós esse desejo de completar-se no outro. Seja no vizinho, ou no desconhecido. Que possamos nos completar uns aos outros para além da tolerância e para além do multiculturalismo.
Há 60 anos, o prédio do então Ministério da Educação e Cultura
recebia a primeira exposição externa das obras dos pacientes da Seção
de Terapia Ocupacional e Reabilitação do Centro Psiquiátrico Pedro
II. Talvez só mesmo aquele edifício – hoje Palácio Gustavo Capanema,
sede do Ministério da Cultura no Rio de Janeiro -, com a ousadia e a
poesia de uma arquitetura nova, num país que emergia de um longo
período autoritário, pudesse sediar a primeira mostra, a primeira
demonstração, os primeiros resultados de uma revolução em curso.
Hoje, aqui neste palco, os artistas se reúnem para cantar o futuro de
um dos segmentos mais incompreendidos e da nossa sociedade, que são
os pacientes das instituições de saúde mental. E, quando apontamos e
abraçamos o futuro – um futuro de cidadania, de vida plena, de
inclusão e de respeito -, ecoa a voz de uma mulher. Estamos reunidos
aqui sob a inspiração de Nise da Silveira. A teimosa, aguerrida,
obstinada, a revolucionária Nise da Silveira.
Hoje, a idéia de uma terapêutica sem muros não é um sonho, é uma
possibilidade concreta. É para assegurar a materialização dessa
possibilidade que movimentos como o “Loucos por Música” se organizam
– não por acaso, o “Loucos por Música” teve sua primeira edição, em
2005, destinada a apoiar a Casa das Palmeiras, instituição fundada
por Nise, pioneira na aplicação da idéia do externato para o
tratamento dos transtornos mentais.
O Ministério da Cultura tem muita alegria em poder contribuir para
esse projeto, que visa a apoiar iniciativas de inclusão social dos
usuários dos serviços de saúde mental. Gostaria de reiterar todo o
meu compromisso com a causa e reafirmar a minha crença de que, junto
com as famílias e os ambientes sociais de cada indivíduo, é possível
reorganizar o atendimento dado às pessoas com distúrbios mentais no
país, assim como é possível criar reais possibilidades de cura e
qualificar o tratamento e o apoio nesses momentos tão difíceis.
A cronificação dos distúrbios mentais produzida pelo atendimento nos
manicômios é um fato real que escraviza os portadores e os expõem a
condições desumanas. Nesse sentido, é de responsabilidade do Estado o
desenvolvimento de uma política de saúde mental efetiva e de
qualidade, bem como a assistência e a promoção de ações de saúde aos
portadores de transtornos mentais, com a devida participação da
sociedade e da família. A internação, em qualquer de suas
modalidades, só deve ser indicada quando os recursos
extra-hospitalares se mostrarem insuficientes, já o tratamento
dispensado deve ter como objetivo permanente a reinserção social do
paciente em seu meio.
A Doutora Nise dizia que sua palavra favorita era “liberdade”. Como
ela, eu também gosto muito do som dessa palavra, gosto das infinitas
possibilidades que esta palavra inspira. Gosto de pensar na beleza
que Nise ajudou a emergir nas telas, nas esculturas, nas obras de
seus pacientes. Mas gosto, principalmente, da perspectiva de
liberdade que ela começou a desenhar para os usuários dos serviços de
saúde mental ainda na década de 40. Segundo o sociólogo e antropólogo
francês, um dos maiores pensadores da atualidade, Edgar Morin,
“civilizar é solidarizar a Terra, transformar o ser humano em
humanidade”. Sem dúvida, Nise da Silveira foi um exemplo dessa
passagem de Homem à Humanidade e, assim como ela, espero que este
evento seja mais um passo para esta transformação no Brasil. Hoje,
estamos aqui reunidos para o prosseguimento deste trabalho.
Muito obrigado!
O debate sobre direitos autorais ganhou espaço importante de discussão pública. Trata-se de assunto estratégico para a cultura brasileira: a valorização e proteção aos autores e criadores é premissa fundamental de todo o trabalho que vem sendo realizado no Ministério da Cultura -instituição que tem a competência, no Estado brasileiro, de tratar o tema.
Em grande medida, suscitamos a discussão quando decidimos retomar a responsabilidade do ministério de atuar neste que é um dos mais importantes temas da cultura. Além de órgão regulador, o Ministério da Cultura tem se tornado um grande financiador de bens artísticos e criativos, aumentando seu orçamento ano a ano, e remunerando, via seleções públicas, milhares de autores de filmes, peças, livros e outros bens culturais que entram em circulação no país.
Na globalização, o Brasil precisa afirmar-se como um grande produtor de conteúdo em língua portuguesa e não apenas um gigante consumidor. Nossa balança comercial em propriedade intelectual (hoje deficitária) deve buscar o equilíbrio, em benefício do Brasil, das empresas e dos autores brasileiros.
O direito autoral voltou hoje a ser premissa e uma das finalidades da política cultural brasileira. A política para o direito autoral é estratégica porque diz respeito à soberania do Brasil e de nossos criadores na emergência da sociedade do conhecimento.
Passados dez anos da última alteração da Lei Autoral brasileira, é hora de a sociedade pensar se é necessária uma atualização. São muitas as insatisfações com o atual modelo, a começar pelos autores, que não se sentem inteiramente protegidos, nem bem remunerados. E acrescentemos o desafio dos novos modelos de negócios em base digital e, também, o aprofundamento da democracia e o desejo dos brasileiros de acessar a cultura, como parte de sua formação humana integral.
Hoje, a lei é anacrônica para atender, de forma equilibrada, tanto autores como consumidores e cidadãos. A simples reprodução de um arquivo musical para um tocador de MP3 contraria nossa legislação autoral, que não diferencia cópia privada de cópia com fins de pirataria. Tanto autores como consumidores concordariam que esta é forma relevante de circular cultura e remunerar artistas.
Tecnologia
O ambiente de desenvolvimento das tecnologias digitais promove, ao mesmo tempo, um desafio e uma oportunidade para o criador de obras literárias e artísticas. Desafio porque, dada a facilidade com que se reproduz ou se comunica ao público, uma obra ultrapassa largamente a capacidade tradicional de controle do autor sobre a sua utilização. Oportunidade, pois o autor nunca teve tanta facilidade em tornar público o seu trabalho, sem depender dos esquemas tradicionais que lhe submetem a um contrato com um investidor cujos termos são, por vezes, onerosos e mesmo leoninos contra os autores. Em algum momento de minha carreira musical, senti na própria pele como os autores nem sempre são os beneficiários.
A lei atual prescreve a utilização das medidas de proteção tecnológica (MPT), que permitem ao dono dos direitos sobrepor algum software ou programa específico sobre a mídia em que eles estão gravados, de maneira que seja impossível, por exemplo, copiar o filme ou a música. Na prática, em todo o mundo, tais medidas têm se revelado ineficientes e incapazes de manter a remuneração dos autores e investidores.
A tecnologia a serviço do cerceamento das liberdades produzidas pela própria tecnologia não é o melhor caminho, quando temos formas mais modernas de controle e novas formas de modelos de negócio, como a contribuição obrigatória sobre a mídia virgem. Essa contribuição, mínima, é revertida automaticamente para os autores como forma de compensá-los por perdas como as causadas pelos downloads. Limitações e exceções à proteção autoral permitem atividades culturais sem fins econômicos, que são perfeitamente legais em países avançados.
Devemos também enfrentar a vulnerabilidade dos criadores frente ao abuso de poder econômico do investidor, que se reflete, por vezes, em certas formas de contrato, de licenciamento ou cessão dos direitos sobre sua obra para que ela seja reproduzida, veiculada, distribuída ou comunicada ao público. O que sobra ao autor após a assinatura desse contrato é, via de regra, ínfimo, face à importância de sua criação para a mídia e para o usuário final da obra protegida.
As distorções da lei atual criam um claro desequilíbrio entre o incentivo à criação versus o acesso à cultura, de um lado, e, de outro, o incentivo ao criador versus a remuneração do investidor. A tecnologia, por certo, interfere nesse processo, nos colocando diante de desafios que serão enfrentados com muito debate social, negociação e inovação. A questão fundamental a ser enfrentada é: como remunerar de maneira condizente o criador nacional, o bem-estar que ele propicia a toda a sociedade?
Transparência
Devemos reforçar o papel das entidades de gestão coletiva autoral em suas tarefas de controlar a utilização das obras e de arrecadar uma remuneração justa, que seja efetivamente revertida aos autores. São legítimas as críticas constantes ao órgão central de arrecadação da execução pública musical, assim como a situação de falência da entidade mais antiga de gestão coletiva, no caso dos direitos de representação teatral, além da ausência de órgãos de gestão, por exemplo, na área do cinema.
No período recente, o Estado brasileiro praticamente foi desmantelado no seu papel de garantir mais transparência. Hoje, tornou-se necessário fortalecer o papel do Estado na área. O Ministério da Cultura apoiou a criação, no âmbito do Ministério da Justiça, do Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual (CNCP).
O governo tem sido bem-sucedido em coordenar os esforços entre a iniciativa privada e o Estado, com o objetivo de combater a reprodução não-autorizada de obras autorais. Isso tem sido feito, facilitando o trabalho das autoridades policiais e judiciárias na busca, apreensão e destruição do material pirateado.
Porém, temos insistido que não será suficiente somente a repressão pura e simples à pirataria, sem um trabalho de educação e informação para a população da importância do direito autoral e da relação intrínseca entre a pirataria e o crime organizado, mostrando que a compra de material pirata financia a criminalidade. A iniciativa privada também tem um papel importante nessa área, devendo buscar reduzir os preços dos CDs e DVDs comercializados para torná-los mais atrativos para o consumidor de material pirateado. O Estado não pode tudo nessa área: sem um esforço de toda a cadeia de comercialização, as medidas represssivas não serão suficientes.
A consolidação das leis autorais, ainda no século 19, teve sempre um objetivo fundamental: incentivar a criação como forma de aumentar o bem-estar da sociedade. Nossa lei atual está cumprindo esse objetivo? Em minha visão, não é o caso.
Por isso tudo, julgo que devemos rever esses desequilíbrios e induzir à melhor distribuição de benefícios, na qual o criador receba uma contrapartida justa em relação a seu papel na sociedade. Com o meio digital, o desafio é ainda maior. Independentemente de qual sejam esses instrumentos e seu foco de atuação, o Ministério da Cultura já vem trabalhando para dotar seu setor autoral de uma estrutura adequada, para fazer frente aos desafios impostos pelas novas tecnologias e, principalmente, pela grandeza cultural de nosso país.
Nesse sentido, é com satisfação que anuncio que o Ministério da Cultura realizará uma série de encontros, seminários e oficinas integrando um fórum nacional sobre direitos autorais que promoverá um amplo debate com a sociedade e com todos os atores envolvidos na questão autoral com vistas a definir qual a melhor forma de promover os equilíbrios que mencionei, bem como a atuação que o poder público deve ter para dotar o campo autoral de mais transparência e justiça.
Introdução
O concerto da globalização deslocou a cultura para um lugar singular e estratégico do debate global – provavelmente porque a geopolítica do mundo contemporâneo vem mudando ela própria seu terreno tradicional. Sobre a cartografia dos mapas nacionais, hoje vemos com mais lucidez emergir uma paisagem global composta de vasta diversidade cultural, de milhares, talvez milhões, de sistemas culturais diversos, nem todos coincidentes com as paisagens nacionais. A região que une o norte da Argentina, o sul do Brasil, parte do Uruguai e do Paraguai tem a força de um sistema simbólico que vai além de fronteiras nacionais.
Cito esse exemplo não por acaso, na medida em que o Mercosul e a relação com os países da América do Sul têm sido uma prioridade no esforço geral do Governo brasileiro para integrar a região, não apenas economicamente, mas culturalmente. Mas essa mudança não é apenas regional. A paisagem geral do planeta é redesenhada quando a cultura se desloca para o centro de uma discussão sobre o tipo de desenvolvimento que desejamos para o planeta. Quando verificamos os limites do modelo econômico que pautou o século XX, que provocou a migração contemporânea da produção para formas leves e imateriais de geração de valor. Também é redesenhada quando constatamos a expansão da democracia no mundo e a afirmação da educação como prioridade global. Quando se evidenciam multidões de sujeitos, antes excluídos, que passaram a dizer, em alto e bom som: “queremos acesso à cultura”. Não se trata apenas de um maior acesso ao consumo, mas de um maior acesso às formas de expressão, às estruturas de produção e aos meios de circulação social.
Hoje, a agenda da cultura encontra uma interface com o debate econômico internacional. Essa interface se intensifica quando o debate econômico migra para a discussão sobre formas de contrato, propriedade intelectual e direito autoral, identificando a reposição de velhas assimetrias e de um comércio injusto com os países pobres e em desenvolvimento. Não por acaso, uma das pautas brasileiras de destaque, tanto no plano interno como externo, é o movimento de reconhecer, examinar e efetivar políticas para a chamada “Economia da Cultura”. São estas circunstâncias novas que fazem da agenda cultural uma agenda tão importante para o Brasil e para o mundo.
Nesse concerto, somos nós, o Brasil, uma voz cada dia mais integrada ao destino regional dos povos sul-americanos, uma voz que reconheceu sua enorme dívida e irmandade cultural com a África. Recentemente, como forma de ampliar laços no plano cultural, realizamos a II CIAD – Conferência de Intelectuais da África e Diáspora, em Salvador. Nos últimos quatro anos, o Ministério da Cultura do Brasil assumiu sua responsabilidade com o plano regional e internacional e, também, com a promoção da cultura brasileira no mundo, tanto simbólica como economicamente. Um bom exemplo disso é o Ano do Brasil na França, que envolveu dezenas de milhões de pessoas em suas atividades, assim como a Copa da Cultura, que aproximou a diplomacia cultural da diplomacia das chuteiras. Em muitas direções, temos assumido uma responsabilidade de provocar esse bem-vindo deslocamento de agenda: a cultura como forma modificadora de uma velha forma de desenvolvimento.
É importante lembrar o papel desempenhado pelo Brasil, ao lado de muitos outros países, na formação de uma grande base para a aprovação da Convenção da Unesco sobre a Promoção e Proteção da Diversidade das Expressões Culturais, em 2005. Nos próximos anos, essa convenção – recém-ratificada pelo Parlamento Brasileiro – poderá significar para a agenda cultural do mundo o que o Protocolo de Kyoto representa hoje para o avanço concreto das políticas de meio ambiente: não apenas uma plataforma efetiva de princípios fundamentais, mas um acordo sobre um novo papel do Estado no que diz respeito à cultura e à diversidade.
O Brasil tem importante papel porque a formação brasileira, apesar das enormes desigualdades ainda persistentes, é um feliz exemplo de diversidade e encontro cultural. Somos mestiços, produto de populações e tradições diversas e vivas que ocupam um vasto território, que compõem, juntas, um amplo imaginário. Praticamos, a olhos externos, um modo singular de viver e estar no mundo. Há uma mensagem universal de paz, convívio e enorme criatividade explícita na forma como essa população abriu seus poros e assimilou os valores de outros países e civilizações, na forma como essa população lida com seus costumes, etnias, raças e credos. Essa mensagem de paz é um patrimônio do povo brasileiro. Nesse sentido, nos últimos quatro anos de gestão, buscamos atuar na promoção da cultura brasileira como portadora de conteúdos singulares e valores universais.
O que a Convenção nos aponta é que esses valores culturais, tangíveis e intangíveis, vêm sendo cada vez mais desafiados pelo processo da globalização. A carga simbólica dos bens culturais revela a natureza especial desses bens e serviços porque, afinal, eles expressam o acúmulo de centenas de anos, o investimento de diversas gerações que depositaram em suas expressões o próprio significado da existência humana. O alto valor agregado da cultura – manifesto no interesse de corporações pelos saberes farmacológicos e tecnologias dos indígenas sul-americanos, na perícia das mãos de nossos artesãos ou, ainda, na reprodução virótica das músicas e danças do Brasil – ganhou a consciência de muitos e, especialmente, do Estado e seus órgãos responsáveis pela agenda da cultura.
É por tal razão que o governo Lula e o Ministério da Cultura vêm deslocando as políticas culturais para o centro do debate do desenvolvimento nacional e das relações de intercâmbio do Brasil com outros países. Entendemos as políticas de cultura, ao lado das políticas do meio ambiente, como dimensões que qualificam e, em certos casos, condicionam o desenvolvimento econômico e sustentável. São políticas que promovem o equilíbrio entre a produção econômica e o bem-estar da sociedade.
A cultura possui uma inegável dimensão econômica. No ano de 2003, as atividades culturais foram responsáveis pela movimentação de 7% do PIB mundial1. As suas atividades não estão concentradas apenas nas expressões simbólicas já reconhecidas – como as cadeias produtivas da música, do audiovisual e do livro, hoje mais evidentes – mas em dezenas de externalidades, em conteúdos que, apoiados na convergência tecnológica hoje em curso, deslocam-se entre os meios de comunicação tradicionais e contemporâneos. São conteúdos velozes, dinâmicos e intempestivos que hoje agregam valor a sandálias, dribles e tecidos. O advento da tecnologia digital somente aguça essas possibilidades de acesso, trabalho e intercâmbio que a cultura carrega consigo. Também potencializa novas formas de circulação monetária e novos modelos econômicos que, num futuro próximo, estarão plenamente sedimentados.
O desafio aqui é compreender a dimensão econômica crescente da cultura e encontrar formas de cooperação que permitam que as populações mais pobres detentoras de saber, cultura e identidade, usufruam plenamente dos benefícios e riquezas da propriedade intelectual. É preciso encontrar formas e meios de permitir que os saberes cultivados, formatados e industrializados possam circular e serem acessados, equilibrando direitos autorais, direitos de investidores e direitos de acesso.
Contudo, essas características contemporâneas da cultura adquirem outras feições quando encaradas no contexto dos países em desenvolvimento, como é o caso da América do Sul. Nesse viés, a política cultural internacional transforma-se em um dos principais elementos de enfrentamento de assimetrias internacionais que, no limite, resultam em modelos hegemônicos, em formas centralizadas de comunicação social, em formas concentradoras de gestão de conteúdo e em indústrias que precarizam mão de obra e poluem o meio ambiente. Trata-se, enfim, de uma luta constante para que a democracia se realize num plano mais efetivamente cultural e abrigue melhores condições de acesso a conteúdos culturais e modelos de proteção da diversidade cultural.
Vivemos um momento histórico privilegiado. As mudanças das formas de produção, significação e distribuição dos conteúdos culturais apontam para um espaço novo e dinâmico das políticas culturais. A revolução digital abre novas portas aos países em desenvolvimento. Trata-se de uma chance única de intervenção no modelo de globalização vigente, uma oportunidade de praticarmos o júbilo da diversidade cultural.
A cultura possui um incrível potencial de produzir sedimentos que ativam a mudança histórica. Em muitos casos, ela é o lugar onde a mudança efetivamente se realiza. Mas sua atuação discreta e incisiva nos rumos das relações internacionais, suas novas potencialidades econômicas e sua atuação transversal ainda padecem de um grande desconhecimento – e até desconfiança – das burocracias públicas tradicionais. É hora de atentarmos à força contemporânea da cultura, à força de modernizar agendas e atualizar discussões públicas, de promover paz, prazer e conhecimento mútuo – para o bem dos países em desenvolvimento, para o bem da América do Sul.
Do plano doméstico ao internacional
Nos primeiros quatro anos do Governo Lula, tentamos orientar as políticas públicas de cultura no Brasil a partir de três diretrizes conceituais. A cultura foi compreendida em suas dimensões simbólicas, econômicas e cidadãs. Tal conceituação representa uma tentativa de organizar o papel do Estado e reconhecer a abrangência dos fenômenos culturais no mundo contemporâneo. Representa uma forma de traduzir esses desafios, políticos e simbólicos, em ações públicas efetivas.
O Mercosul cultural abriu uma nova frente de possibilidades. Um dos seus principais eixos decorre, justamente, da ênfase dada ao Intercâmbio de Políticas Nacionais de Cultura dos países membros do Mercosul. Focamos, portanto, na interação de políticas estatais e programas voltados aos fenômenos culturais da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.
Essa troca é extremamente salutar, pois potencializa nosso patrimônio comum (como o solo arqueológico) e as nossas similaridades históricas e culturais, além de incentivar o aprendizado mútuo de programas e mecanismos que cunharam respostas consistentes e importantes para a complexidade dos fenômenos culturais que nossos países abrigam hoje em dia.
O intercâmbio, no entanto, não deve estar restrito às políticas implementadas pelos Estados. É preciso considerar as manifestações culturais que estão circunscritas, ou altamente influenciadas, pelas dinâmicas de distribuição das indústrias culturais. Dados da Unesco indicam que, no ano de 2002, os Estados Unidos, Reino Unido e China, sozinhos, foram responsáveis por 40% da circulação de mercadorias culturais no mundo.2 Outra conseqüência das assimetrias internacionais no campo da cultura é a importância assumida pela língua inglesa, que se torna a grande intermediária dos contatos entre culturas de outros idiomas. A maior parte das trocas culturais entre as diferentes regiões “periféricas” do globo é controlada pelo centro do sistema, concentrado no eixo Estados Unidos-Europa-Japão. As comunicações de massa, que constituem hoje um espaço fundamental na esfera pública de expressão, debate e formação de pensamento, estão cada vez mais absorvidas por grandes conglomerados transnacionais que oligopolizam a produção e distribuição dos bens culturais massivos. Existe um incrível potencial de interação entre as mais diversas culturas do mundo, mas esse potencial é arrefecido pelas lógicas de distribuição das mercadorias culturais.
É nessa seara que ocorre um encontro entre acesso, intercâmbio e diversidade. A posição brasileira diante desse novo cenário deve se orientar pelo exercício da pluralidade, contra a imposição de uma cultura única, ou da cultura transformada em simples mercadoria. Isso implica na defesa e na promoção tanto da diversidade cultural brasileira, no interior e exterior, quanto do acesso a outras culturas e a trocas com nossos vizinhos da América do Sul.
Diversidade das expressões culturais, propriedade intelectual e desenvolvimento
A implementação da Convenção da Unesco sobre a Promoção e Proteção da Diversidade das Expressões Culturais representa um novo marco no ordenamento jurídico internacional. Ela procura estabelecer um sistema internacional de trocas de bens e serviços culturais mais equilibrado, assegurando o direito soberano dos Estados de implementarem políticas culturais de proteção e promoção de sua diversidade cultural e de garantia de acesso à diversidade cultural de todo o mundo, por meio da implementação de uma série de políticas regulatórias, por exemplo. Essa convenção propicia a criação de um circuito de trocas sul- sul de bens e serviços culturais, criando a possibilidade de acesso, consumo e intercâmbio da produção cultural entre os países em desenvolvimento, quebrando eventuais hegemonias de segmentos do mercado cultural.
Outra frente internacional que o Ministério da Cultura do Brasil prioriza é a participação na Rede Internacional de Políticas Culturais (RIPC), uma rede informal de ministros da cultura de todo o mundo que se reúnem anualmente e que, talvez, tenha sido a grande mola propulsora da aprovação da convenção na Unesco.
Em 2006, quando fomos anfitriões da reunião anual, escolhemos o tema “Acesso à Cultura, Direitos Autorais e Novas Tecnologias: Desafios em Evolução à Diversidade Cultural” para refletir sobre duas de nossas principais preocupações políticas: direitos autorais e acesso à cultura. Nossa principal conclusão do estudo foi a de que os direitos autorais podem representar um obstáculo para o acesso à cultura, principalmente frente às novas tecnologias, com conseqüências evidentes para a diversidade cultural. Tal fato pode ser explicado pela crescente ampliação do alcance e do escopo das leis e dos tratados que regulam o setor em todo o mundo nas últimas décadas, fazendo com que vários países em desenvolvimento venham contraindo obrigações muito restritivas em matéria de propriedade intelectual, mesmo se não dispõem de infra-estrutura e capacidade institucional necessárias à assimilação de novas regras.
Temos hoje um sistema de Propriedade Intelectual totalmente discordante das modernas tendências tecnológicas, econômicas e sociais. Um sistema que transforma a Propriedade Intelectual e, dentro dela, os direitos autorais, num fim em si mesmo.
Nosso encontro da RIPC em 2006 demonstrou que o problema com os direitos autorais é mais grave para os países em desenvolvimento, uma vez que são nesses países que as leis autorais são mais restritivas, seja pela maior vulnerabilidade aos lobbies das grandes corporações transnacionais da indústria cultural, seja pela ausência, nesses países, de organizações da sociedade civil que defendam os interesses dos usuários de obras protegidas e o interesse público, em geral, a exemplo do que ocorre nos países desenvolvidos.
O Ministério da Cultura do Brasil também elaborou, em estreita parceria com o governo argentino, a Agenda para o Desenvolvimento. Nossa preocupação foi incorporar os temas relativos aos direitos autorais no estabelecimento de um programa voltado ao desenvolvimento na OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual). Dessa forma, defendemos um domínio público robusto, com um efetivo respeito às limitações e exceções aos direitos autorais, assim como à promoção de formas alternativas de licenciamento de obras, como o Software Livre, o Copyleft e o Creative Commons.
As discussões na OMPI sobre esse tema continuam a ocorrer, com a participação ativa do “Grupo dos Amigos do Desenvolvimento”, bloco de países em desenvolvimento liderado por Argentina e Brasil em oposição ao grupo dos países desenvolvidos. A depender dos resultados das discussões, os países em desenvolvimento poderão contar, na OMPI, com um programa onde a Propriedade Intelectual não seja um fim em si mesmo e sim uma ferramenta para o desenvolvimento, onde os países tenham espaço para a implementação de políticas públicas que garantam à sua população o acesso à cultura, ao conhecimento e à informação, bem como ao fluxo internacional dos ativos protegidos por Propriedade Intelectual de forma mais justa e menos penosa ao mundo em desenvolvimento.
Um outro tema relacionado à Propriedade Intelectual que pretendemos desenvolver nos próximos meses e anos – caro a todos os países da América do Sul – é o da Proteção dos Conhecimentos e Expressões Culturais Tradicionais. Existe um comitê especializado sobre o tema na OMPI, cujos trabalhos têm deixado muito a desejar. Pensamos que é fundamental que se chegue a algum tipo de proteção internacional de tais ativos. Essa medida poderia vir a beneficiar, principalmente, países em desenvolvimento e menos desenvolvidos e, dentro deles, suas populações tradicionais, que normalmente possuem grandes carências econômicas e sociais – embora detenham um rico patrimônio cultural. Torna-se importante uma agenda para a nossa região que inclua a proteção dos Conhecimentos e Expressões Culturais Tradicionais como uma fonte de renda econômica, digna e justa, para nossas populações.
Paz, cultura e a atual crise do multilateralismo
Meio século depois do fim da Segunda Guerra Mundial, a agenda da cultura volta a se apresentar no mundo pós-Guerra Fria e pós-11 de setembro como um elemento fundamental para a construção da paz entre os povos. O discurso do aparente “colapso simbólico”, referido às novas formas de terror e intransigência, leva-nos novamente à reflexão coletiva acerca do futuro, bem como à necessidade de desfazer sentimentos belicosos, fundamentalistas e igualmente etnocêntricos que retornam para assombrar a humanidade.
Assim como foi preciso erguer um novo organismo internacional no pós-guerra, hoje cresce o consenso de que o Sistema das Nações Unidas carece de uma reforma profunda para se fortalecer e se adaptar aos novos tempos, tornando-se ainda mais plural e representativo. Não se trata aqui de apoiar apenas uma reforma no Conselho de Segurança ou na Assembléia Geral, instituições políticas mais importantes da ONU, mas de praticar em todas as nossas relações essa agenda da centralidade da cultura para a democracia, a paz e o desenvolvimento.
A Convenção da Unesco certamente será um instrumento fundamental para a governança global no século XXI, mas precisamos ir além e aprofundar leituras nacionais e regionais dessa convenção. Ela afirma, por exemplo, o valor da diversidade cultural num plano ainda mais amplo e global. Ao fazer isso, enfrenta o discurso legitimador de conflitos e até daquela forma de guerra que, absurdamente, ainda se dá pela noção de choque de civilizações – conflitos culturais que seriam a causa maior da indústria bélica e das intervenções unilaterais. A tese de que a cultura está na gênese dos conflitos contemporâneos tem o propósito de desviar as causas reais das assimetrias que marcam o destino de multidões. O destino a formas restritivas de propriedade intelectual que limitam a tecnologia e os direitos sociais e culturais da população.
Por tudo isso, a noção de diversidade é ampla e o instrumento da convenção deve ir além da perspectiva de “proteção”. Ela autoriza os países a promover a cultura como elemento central da sua estratégia de desenvolvimento. Isso significa, por exemplo, que rodovias e portos precisam ser construídos e modernizados sob a ótica pública, pois são as populações a razão de ser dessas estruturas, são elas o ponto de chegada e partida dessas estratégias. As populações não podem ser suprimidas das análises de custo, nem das políticas de Estado. Se tomarmos a restauração de centros históricos, por exemplo, desconsiderar as populações envolvidas significaria também desconsiderar todo o valor dos centros históricos, esvaziar a vida e a dinâmica social desses centros, as feiras e festas, que são o motivo profundo das migrações turísticas no mundo atual. Foi o que – em certo momento – aconteceu na cidade de Salvador, no estado da Bahia, quando resolveram tirar a população do Pelourinho, no Centro Histórico da cidade, para os trabalhos de restauração. Tal decisão teve que ser enfrentada a duras penas por todos os que ainda compreendiam que o valor da cidade está em suas comunidades – e não exclusivamente em suas estruturas.
Do ponto de vista estritamente econômico, uma visão realista ou pragmática deixa de perceber que atualmente a economia da cultura é uma das que mais se expandem no capitalismo globalizado, crescendo a um ritmo superior à evolução do PIB mundial. A economia criativa concorre com a indústria da guerra nos Estados Unidos, já aparece como uma das mais significativas na União Européia e mostra um forte desempenho em países menos desenvolvidos, como o Brasil. A cultura é o setor da economia que mais cresce no mundo, pois gera, em média, melhores salários, mais empregos e, ainda – o que considero mais importante – inclusão social com cidadania plena.
A idéia de cultura como direito, economia, política e identidade, espreitada nas últimas décadas, deve mais do que nunca compor o ideário subjacente às propostas de reforma das instituições internacionais. Em vez de choque entre civilizações, a cultura deve ser vista como o barro flexível das relações globais, capaz de unir pela diversidade, distintas comunidades sociais, nações e, mesmo, hemisférios inteiros.
A crise do multilateralismo não poderá ser superada sem o fim de qualquer e toda pretensão hegemônica. Hegemonia, só se for a da diversidade. Se, por um lado, versões unilateralistas do mundo contemporâneo servem apenas para empobrecê-lo e ameaçá-lo, por outro, a fragmentação das relações internacionais – verificada nos últimos anos como fruto desse unilateralismo – também reforça o isolamento das culturas, impedindo que o intercâmbio cultural se coadune com as amplas oportunidades abertas pelas novas tecnologias.
O Ministério da Cultura do Brasil trabalha para restaurar o multilateralismo em todas as suas dimensões e significados. Não somente a face institucional e decisória, mas o próprio espírito de coabitação ao multilateralismo movem as ações internacionais do governo brasileiro. A concepção multilateral combina com a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais, assim como o equilíbrio entre o respeito à propriedade intelectual e o acesso menos assimétrico à cultura em suas mais diversas modalidades e vias tecnológicas.
Os laços históricos, culturais e mesmo geográficos nos impelem a combinar nosso universalismo com preocupações de ordem mais local. Fortalecem, em termos regionais, nossos vínculos com a América do Sul e com os países africanos e de língua portuguesa. Com os países sul-americanos podemos constituir, finalmente, um espaço multilateral de paz e solidariedade, sobretudo se comparado com outras regiões em situações econômicas semelhantes, com aqueles que falam nosso idioma. Podemos também fortalecer nossa inserção cultural no mundo ao mesmo tempo em que nos reconhecemos em nossa própria identidade lingüística.
Da América do Sul e da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, certamente partimos de bases mais sólidas para enfrentar, globalmente, os desafios do mundo contemporâneo com iniciativas como o Mercosul Cultural, a Recam (Rede Especializada de Cinema e Audiovisual do Mercosul), a CASA Cultural da Comunidade Sul-Americana de Nações, a Comissão Interamericana de Cultura da OEA e a Conferência de Intelectuais da África e Diáspora. No entanto, a política de promoção de uma cultura de paz e humanista, seja em nível local, regional ou global, deve reconhecer como ponto de partida todas as dificuldades existentes. A história é marcada por conflitos. Não nos enganemos. Mas a guerra tampouco é uma verdade inexorável quando a cultura de paz deixa o campo da retórica e influencia verdadeiramente as grandes decisões.
A cultura como agenda
Por fim, um pequeno retrospecto. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a cultura entrou na pauta internacional como um elemento imprescindível ao convívio harmonioso e pacífico entre os Estados, povos e nações. A imagem devastadora da bomba atômica e do Holocausto levou homens e mulheres das mais distintas origens culturais à reflexão sobre a necessidade de uma nova pactuação mundial.
É nesse contexto, no qual as questões culturais foram as principais tônicas do debate político, que emerge a moderna concepção dos órgãos multilaterais consubstanciada no Sistema ONU. Paz e cultura, nessas características históricas, tornaram-se forças e fenômenos complementares. Como pensar a paz, afinal, senão pelo convívio cultural, harmônico e equilibrado entre povos e nações? Como pensar um novo mapeamento geopolítico, teoricamente multilateral, sem reconhecer o direito a diferenças culturais e às formas distintas de organizar a vida no plano simbólico?
Não por acaso, a Unesco, pouco após a sua fundação, convidou um grupo de intelectuais renomados para elaborarem uma série de reflexões com o objetivo de revisar cientificamente as teorias racistas que singularizaram a primeira metade do século XX3. É nesse contexto que o antropólogo Claude Lévi-Strauss argumenta que a diversidade cultural é o principal elemento fomentador do desenvolvimento humano.
Lévi-Strauss lançou uma das primeiras sementes teóricas da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade Cultural da Unesco que foi ratificada em mais de três dezenas de países, no ano de 2006. Ele realçou a riqueza propiciada pela inevitável interação entre as culturas.
Essa nova concepção não emergiu como um debate apenas teórico. Ele despertou por meio da luta pelos movimentos de independência e descolonização, no contexto pós-colonial, por meio de políticas afirmativas – de gênero, grupos e etnias – além das inúmeras searas abertas pelo multiculturalismo.
Nesses sessenta anos, portanto, a cultura passou a ser afirmada e praticada como um direito, que está sendo aprofundado agora, num cenário ainda mais democrático. Um cenário que parece demandar cada vez mais a universalização do direito à cultura. Os Estados estariam aptos a garantir esse direito aos cidadãos? Que novas atualizações são necessárias para que a diversidade cultural seja um ponto de partida das formas atuais de desenvolvimento? Como as instituições nacionais e globais que financiam o desenvolvimento podem incorporar a cultura como diretriz – assim como, no passado, incorporou-se o meio ambiente? Como a tecnologia social que os povos desenvolveram pode ser potencializada, sem tutela e autoritarismo?
Estamos hoje, como há sessenta anos, diante de um grande desafio e uma enorme perspectiva de reposicionamentos, com a oportunidade de aprofundar o marco da presença da cultura não apenas no debate mundial, como adereço do desenvolvimento, mas como fator estruturante e regulador das relações sociais e do próprio projeto de desenvolvimento de nossos países. A sociedade avançou, as culturas avançaram – a agenda precisa avançar.