O que a mídia chama de “world music”, toda música popular criada e produzida na África, América Central e do Sul e em outras partes do planeta, nasce de uma colisão: a colisão entre os impulsos pela emancipação, autonomia e identidade dos povos do chamado Terceiro Mundo, por um lado e, por outro, os interesses do Primeiro Mundo em manter seu poder. Não podemos tratar deste assunto sem apontar para outro fato.
Tecnologia e meios de comunicação se tornaram disponíveis aos povos periféricos como uma conseqüência da expansão do industrialismo multinacional. Baseados neste esqueleto de riqueza acessível às populações de grandes centros urbanos como Lagos, Kinshasa, Salvador, Kingston, Havana, Johannesburgo, Dacar, etc., surgiram novos artistas populares consagrados à produção musical. Estes artistas se tornaram os habilidosos artífices de uma música pós-folclórica, cujo caráter pré-industrial exigiu uma tomada de posição da indústria de discos. A indústria começou a fornecer a essas cidades tropicais condições mínimas para industrializar decentemente sua música. Bons estúdios foram construídos ao lado de escritórios dinâmicos e aparelhados. (Eu mesmo gravei em Kingston, no Tuff Gong, com os Wailers em 1984, e lembro-me muito bem de Lagos em 1977, quando Ginger Baker acabara de voltar para a Inglaterra, deixando lá um estúdio que até hoje é legendário).
Estes artistas estavam inicialmente ligados aos seus processos locais. E assim o reggae foi desenvolvido em Kingston; o juju e o highlife em, Lagos, o rai se espalhou pelas cidades árabes, o trio elétrico, os blocos afro e as discotecas assumiram novas formas no Brasil; a nueva trova e outras formas em Cuba, e assim por diante.
No estágio seguinte, os artistas começaram a evoluir, apoiados pela expansão da música e de seu marketing inteligente. Internacionalmente, apareceram novos gêneros (lambada, para lembrar apenas um), novos nomes, novos estilos musicais. Decidiu-se chamar a tudo isso de “world music”. Foi um rótulo rapidamente aplicado e, certamente, como acontece com qualquer rótulo, de forma generalizada e insatisfatória ao mesmo tempo.
“World music” tenta unir, numa expressão, muitos significados diversos. Mesmo havendo muita coisa em comum entre todas as músicas da África e da América Central e do Sul (raízes comuns, uma história de presença colonial durante mais de quatro séculos, favelas, fome, violência, etc.), elas são muito diversas para significar, mercadologicamente, uma única visão industrial. Representam várias nuances de raça, cultura, realidades antropológicas e sociais. E é assim que acontece a world music: juntos, nos mesmos discos, nos mesmos concertos, as preocupações de Marley, Fela Kuti e Olodum contra o “establishment” e os instrumentos da indústria da música com os quais difundir a mensagem. O discurso de resistência contra o “apartheid” social e econômico, contra a dominação das elites locais, contra o controle dos meios de produção, comunicação e consumo precisa chegar às massas impacientes de oprimidos e marginalizados, e para isso precisa da indústria. Em contrapartida, a indústria precisa da música para seus mercados e, subliminar ou explicitamente, precisa também dar o recado de que mantém o controle sobre o poder político e econômico.
A world music é, portanto, um paradoxo contemporâneo: um mundo heideggeriano, onde todos somos vítimas e algozes, controlados e controladores. Sem nos darmos conta disso, trabalhamos para a unidade do planeta e, vice-versa, para o crescimento e a proliferação da diversidade local, que se afirmam em múltiplas minirrealidades espalhadas como poeira em todo o globo.
A intenção de meu último disco, Parabolicamará, é justamente exprimir esta função da arte industrial em geral e da música popular em particular e ao mesmo tempo unir e diversificar.
É importante enfatizar que esta interpretação abrangente da música internacional contemporânea não nos dá direito a cínicos sentimentos de paralisia e imobilidade. Ao contrário, percebemos que as coisa se movem em seu próprio ritmo. A confrontação de forças opostas é o que nos faz avançar.
Por exemplo, ao ter de servir aos interesses do sistema, para transmitir sua mensagem, Marley e seus irmãos de reggae na Jamaica jamais foram impedidos de apresentar o melhor de seu trabalho. No trabalho de Marley não houve nenhuma perda de força “antiestablishment”, com todas as suas conseqüências de transformação. Alguns podem considerar insuficientes os resultados, mas se o reggae não fez a revolução sonhada pelos rastafaris fundamentalistas que a criaram, ao menos deve ser considerado como uma das minirrevoluções estéticas mais importantes da conteporaneidade, de conseqüências irreversíveis para o futuro da música popular do mundo. Além de ter dado contribuições sérias para uma visão política mais profunda em quase todos os povos negros e mestiços do mundo (incluindo os EUA), como já o haviam feito o jazz, o rock n’ roll e a bossa nova, entre outros.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, a música de Caetano Veloso, os tambores de Olodum, o trabalho brilhante de Carlinhos Brown com a música comunitária, não são respostas definitivas à miséria e ao atraso do Brasil, mas sem eles, estaríamos mais longe do que estamos hoje de poder desafiar a negligência histórica da elite brasileira.
Atualmente, Youssou N’Dour e Ray Lema podem fazer muito mais pela diplomacia informal na África do que qualquer Departamento de Estado. O mesmo se pode dizer de Rubén Blades na América Central. A revolução não está feita. Continua sendo feita a cada dia, malgré le système.
E é preciso também prestar atenção às interações entre gêneros na fronteira da música popular, entre eles mesmos, e entre eles e os gêneros centrais (rock n’ roll, pop, jazz) – um intercâmbio intenso, fértil e saudável para cada um e para todos. As obras de Miles Davis e Dizzy Gillespie são exemplares neste sentido.
O jazz influencia o samba, que cria a bossa nova, que, por sua vez, influencia novamente o jazz. O son, a rumba, o mambo, o merengue influenciaram a música africana. A música africana está presente no nascimento de gêneros novos como o reggae e o samba-reggae que, por sua vez, tornam a influenciar os novos movimentos da música africana e a subsidiar também o rock n’ roll e o rhythm ‘n blues.
Os “mercadores do ritmo” partiram com suas novas caravanas, tranportadas por neonavegações, via filmes, rádio, disco e televisão, satélites e computadores. Nos últimos 50 anos eles estabeleceram um intenso tráfego musical entre as últimas fronteiras do planeta e o centro euro-americano, criando uma música do mundo industrial que vai muito além da world music tal como definida pelos executivos yuppies do showbizz.
Sim. Nós temos hoje uma verdadeira “música mundial”, resultado de intensos e amplos ntercâmbios entre muitos povos do mundo, entre seus artistas, seus movimentos populares, suas diplomacias informais, suas organizações culturais não-governamentais, os departamentos de antropologia e sociologia de suas universidades. Este sentimento verdadeiramente universal, esta ampla consciência da música popular industrial como parte de um processo fora de categorias temporárias, esta compreensão de um papel histórico que vai além do utilitarismo efêmero das partes mais atrasadas da indústria cultural, estão na raiz de todo artista do Segundo e do Terceiro Mundo.
Vejamos. O que faz as mulheres do grupo O Mistério das Vozes Búlgaras cantarem com tanta leveza e sublimidade? O que faz de Salif Keita um dos mais atraentes e impressionantes cantores do planeta? O que imprime tanta autoridade e tanta sensação de paz ao canto de Djavan? O que dá a Mercedes Sosa tanta nobreza e elegância? Por trás de toda essa música está a grandeza de alma de seus povos, seus antepassados, suas antigas tribos, seus antigos ciganos, seus avós escravos.
Nesta magnifica música do mundo pobre é necessário reconhecer o vigor do espírito dos tempos, preservando a luz que vem de muito longe e que todo colonialismo e toda opressão não puderam apagar. Seu vigor é o poder das culturas que as Cruzadas as Navegações não puderam eliminar.
O que se chama de world music é a expressão da grandeza que, exatamente por ter sido ignorada e ocultada, parece mais clara nesta época de derrubada dos muros. Sua grandeza vai além de si mesma. Nos dinâmicos campos de jogos do poder internacional, ela tem de fato uma superioridade, a superioridade de Davi sobre Golias. Ela tem agora a vantagem do pêndulo que balança. O que estava em baixo, sobe. Estamos na fase popular da história e a world music é a música dos povos do mundo, mais do que em qualquer tempo. E no tempo atual ela é melhor do que foi anteriormente, quando o mundo era menor e o que acontecia era menos do que está acontecendo agora. Esta época é melhor do que a parte menos inteligente da indústria cultural queria que fosse. A música do mundo é maior do que a world music.
Um exemplo desta amplidão é o que se tornou conhecido no Brasil como Tropicalismo. Aqui, nesta terra tropical, há quase 30 anos, nós jovens de diferentes pontos do país, tivemos a compreensão: pertencemos ao mundo e o mundo nos pertence, fazemos parte de tudo e estamos em todas as partes. Esta consciência nos levou a criar uma nova música que foi ao mesmo tempo a música mais antiga. Descobrimos a tradição, prestamos homenagem a nossos velhos mestres, celebramos a nova revelação da bossa nova e nos deixamos sacudir pelo furacão do rock n’ roll. Acreditávamos que o futuro era viver o presente.
O Tropicalismo pode ter sido muito mais ou muito menos, quem sabe!? Mas era tudo o que queríamos e podíamos fazer naquela época. Foi aqui mas foi do mundo.
O Tropicalismo foi para nós, aqui, há 30 anos, o que a world music é agora para a “aldeia global”: uma ocasião para prestar nossa homenagem à História. E para novamente pedir emprestado a ela.
Que a letra da canção Parabolicamará fale por si mesma:
Antes mundo era pequeno
Porque terra era grande
Hoje mundo é muito grande
Porque terra é pequena
Do tamanho da antena parabolicamará
Eh, volta do mundo camará.
Eh, Eh, mundo dá volta camará.