Antropofagia & Tropicália

ANTROPOFAGIA & TROPICÁLIA EU VI Para que se possa compreender, para que eu mesmo possa compreender melhor a minha conversão ou adesão ao credo modernista, é preciso retroceder a aspectos mais pretéritos, mais primários da minha formação como artista de música popular. A década de 40, momento em que o país acessa o patamar inicial […]

ANTROPOFAGIA & TROPICÁLIA

EU VI

Para que se possa compreender, para que eu mesmo possa compreender melhor a minha conversão ou adesão ao credo modernista, é preciso retroceder a aspectos mais pretéritos, mais primários da minha formação como artista de música popular.

A década de 40, momento em que o país acessa o patamar inicial da cultura de massas no pós II Guerra, com os primeiros reflexos mais visíveis, entre nós, das grandes inovações do século, como o telégrafo, o telefone, o fonógrafo, o cinema e o radio, é quando se forja, dentro desse ambiente possibilitado pela eletricidade e a eletrônica, o que se pode chamar de “o artista moderno de música popular “ , um fenômeno só possível pela formação de uma sociedade populosamente ampla, concentrada nas grandes cidades cortadas por meios de transporte urbano mais ligeiros e mais abrangentes como os automóveis, os bondes e os ônibus; e aglomerações humanas interconectadas por meios mais ágeis de comunicação entre as casas, as pessoas, os espaços públicos, tudo isso se estendendo e se expandindo através de uma inter-urbanidade finalmente conseguida através das novas estradas férreas e rodoviárias, das navegações costeiras e trans-oceânicas, das linhas aéreas intensificando intercâmbios de toda natureza entre cidades como Rio , S.Paulo , Paris e Nova York; entre outras capitais e o nosso interior do país, um país que começa a “se falar” com intensidade e velocidade inauditas. Dentre esses falares novos, a música popular.

Assim, além dos artistas surgidos nos anos 20 e 30, limitados a públicos restritos e a formas reduzidas de acesso a esses públicos surgem, agora, os grande cantores e cantoras de rádio, os grandes músicos, seus discos amplamente popularizados, seus circuitos nacionais facilitados, sua presença mil vezes amplificada nas audiências em todo o território nacional.

Criança, vivendo entre uma pequena cidade do interior da Bahia e a capital, Salvador; com uma nítida inclinação para a música logo muito cedo manifestada, é nesse environment que vão germinar os embriões de um talento e uma paixão. Me apaixono por Luiz Gonzaga; por Caymmi; pelas cantoras da Rádio Nacional; pelos Anjos do Inferno, pelo Bando da Lua, pelo Quatro Ases e um Coringa, pelo Trio Irakitan e outro conjuntos vocais; pela Orquestra de Severino Araújo; pela brejeirice de Inezita Barroso; pelo cavaquinho de Valdir de Azevedo e o bandolim de Jacó; pelo canto aveludado de Orlando Silva; pelo violão de Codó e a guitarra elétrica de João da Matança nas noites da cidade da Bahia; pelo samba-blues de Batatinha, o trio elétrico de Dodô e Osmar e a pulsação mântrica dos Filhos de Ghandi. Ouço com indisfarçável prazer as orquestras dançantes americanas e cubanas (Sonora Matansera, era a mais popular entre nós); os cantos de excelência de Yma Sumac e Lucho Gatica; os boleros de Gregorio Barrios; os fados de Amália Rodrigues; os corridos portugueses e os passo-dobles espanhóis; os chansoniers e os acordeonistas franceses; a música ligeira italiana (Domenico Modugno); Glenn Miller e Count Basie, Elvis Presley e Harry Belafonte; a plêiade de cantoras jovens e maduras, interpretes dos emergentes compositores dos gêneros populares, tanto as brasileiras quanto as americanas são uma novidade auspiciosa para as audiências em surgimento.

Eu, adolescente, vivo imerso nesse fascinante aquário de sonoridades comuns e familiares àquela gente da comunidade; uma espécie de “música ambiente” em que reverberam, o tempo todo, as vozes marcantes dos intérpretes atuais (Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto, Angela Maria).

Até que chega o tempo de apreciar uma música nova, mais intrigante, mais surpreendente, mais instigante, “une outre musique”, uma “música além”, uma música “nova goma de mascar”, nova textura, novo sabor.

E acho que isso começa com João Gilberto, o agente mais próximo pelo samba e pela fala, de uma outra maneira de enxergar o som, de mastigar a música.

E isso vai dar, lá na frente, nos Beatles, em Miles Davis e em Jimi Hendrix. É quando se faz necessário resenhar e catalogar os momentos, os fragmentos, os microelementos com que a modernidade foi como que se insinuando, se depositando em minha sensibilidade, estabelecendo as condições para um novo sopro de criatividade, um novo campo de cultivo de sementes intrigantes e curiosas que juntavam à música campesina dos violeiros e das bandas cabaçais da infância interiorana a audição, na pós-adolescência em Salvador, da música atonal, serial, dodecafônica, das vanguardas européias e americanas oferecida nas programações dos Seminários de Música da UFBA – Stockhausen, Pierre Boulez, John Cage, Eric Sati, David Tudor e tantos mais – solenemente apresentados àquelas plateias jovens mesmerizadas diante da circunspecta figura do inesquecível maestro alemão Koellreutter, regente-oficiante daqueles memoráveis concertos no salão nobre da Reitoria (ele que havia sido professor de Tom Jobim e Moacir Santos, entre outros, na sua passagem pelo Rio).

A essa resenha dos tempos de iniciação na modernidade musical na Bahia, somaram-se, logo em seguida, as experiências, o frescor do convívio, já no Rio e em S.Paulo, com as poesia de João Cabral, Bandeira, Jorge de Lima, Drumond; as literaturas de Camus, Ezra Pound, James Joyce, Proust., Dostoievsky, Jorge Mautner, Paulo Leminski, José Agripino de Paula; a aproximação com o rigoroso trabalho poético-ensaístico dos irmãos Campos, Augusto e Haroldo; as vanguardas provocadoras de Rogério Duprat, Julio Medaglia, Damiano Cozzella, Sandino O’Haggen, Gilberto Mendes e tantos outros formados no ambiente da música de concerto, eles que, ao lado dos Mutantes, Made in Brazil e toda a meninada rock de S.Paulo formavam um contingente expressivo de mentes voltadas às tarefas de fustigar e desafiar o status quo.

E toda a turma das artes plásticas modernas, das Lygias, Clark e Papi e Hélio Oiticica, e os ainda meninos Antônio Peticov, Antônio Dias, Rubens Gerchman, Roberto Aguilar e outros.

O teatro aberto à experimentações de todo tipo encontrava em jovens diretores e atores um impulso renovador. O Arena em S.Paulo, o Opinião no Rio, O dos Novos em Salvador, o Popular do Nordeste em Recife, teatros emergentes – o Teatro Oficina com Zé Celso e sua magnética trupe completaria o conjunto.

Na viagem a Pernambuco para o lançamento do meu primeiro LP, Louvação, em 66, encontro-me com a Banda de Pífaros de Caruaru, conjunto musical formado por flautas de taquara de fabricação artesanal e instrumentos regionais de percussão, com um repertório de pequenas peças compostas para entreter as comunidades de trabalhadores da região, numa manifestação musical até então inédita para meus ouvidos educados para uma escuta de música urbana, digamos, mais refinada ou mais comum. Aquele choque de emanações telúricas e simplicidade campesina viria logo depois, na minha volta ao sul, reverberar no meu íntimo receptivo junto com as impressões deixadas pelo disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band recémlançado pelos quatro rapazes de Liverpool . De volta a Sampa eu me encontrava diante de um sentimento de emergência. Emergia ali naquele encontro entre a tradição medievalesca dos pífaros e a vanguarda popular contemporânea dos Beatles um impulso de aproximação irrecusável entre aquelas manifestações em todos os sentidos extremas: sim, os extremos se tocam. E tocavam em mim aquelas duas bandas tão díspares, tão distantes no tempo e no espaço, ainda assim, amalgamadas numa estranha e insinuante complementaridade. Aquilo tudo me assaltava e me inflamava o pensamento sobre o trabalho de atualização da música popular entre nós, tarefa à qual eu acreditava que a minha geração teria o dever de se dedicar. Pelo menos, parte dela. E foi o que me impulsionou alí.

Convoquei vários colegas a refletir e esboçar um projeto de modernização da nossa canção popular. Alguns se sensibilizaram e com eles começamos os rascunhos daquele movimento que viria a ser chamado de Tropicalismo.

Tropicália – Caetano viria a saber logo em seguida – era o nome de uma instalação de Hélio Oiticica e os pressupostos estéticos gerais daquela iniciativa remetiam a tudo que já houvera resultado antes na Semana de 22 e o seu após : Oswald, Mário, Tarsila e os modernistas de então; e o eco daquele barulho das vanguardas paulistas e cariocas dos anos 60 com quem começávamos a conviver foi como o eco de um estampido.

Acredito tenha sido esse o instante em que convergem de forma mais evidente os conceitos de Antropofagia e Tropicalismo que se espelham aqui no título deste encontro.

Aqueles colegas convertidos da minha geração estavam prontos para um empreendimento atualizado com a música popular estendida que os novos tempos propunham e estimulavam. O Tropicalismo conseguia reconhecer os seus próprios ingredientes antropofágicos que o aproximavam de tudo aquilo que marcara os pioneiros de 22, assumindo o seu legado e buscando avançar na direção daquilo que Caetano veio a chamar de “linha evolutiva”. Possuidores de parcos e rudimentares recursos técnicos mas cheios de sonho visionário nos jogamos na aventura reformadora.

Na sequência de “Domingo no Parque” e “Alegria, alegria” veio o disco Tropicália ou Panis et Circensis, uma espécie de manifesto do movimento que então se iniciava. Todos aqueles que se juntaram para o empreendimento estavam ciosos dos seus propósitos e, em diferentes níveis, engajados naquele projeto.

Eu, apesar do déficit de competência técnica (não dominava o manejo do ferramental exigido para produzir uma música de tal envergadura) supria as minhas limitações com um entusiasmo que me proporcionava acesso a intuições e insights, visões e descortinos poéticos e musicais que me impulsionavam e a meus companheiros, principalmente
os parceiros diretos, Torquato Neto e J.C. Capinan rumo ao arrojo, ao novo arranque requerido no uso das palavras e dos sons. Ambos poetas, como eu e Caetano, forjados na forja nordestina e temperados pela urbanidade soteropolitana representavam a parcela da herança regional que daria às nossas novas canções o gosto, por um lado sertanejo e por outro lado citadino-litorâneo que a renovada arquitetura poética exigia. Escreveram poemas como “Geléia Geral”, (expressão que Torquato tomou emprestado de Décio Pgnatari) , “Miserere Nobis” e “Soy loco por ti América” (Capinan homenageando Che Guevara por ocasião da sua morte), poemas que eu musiquei com a mesma verve hibridada: um tanto música de raiz catingueira, um tanto música urbana contemporânea de sotaque internacional. A competência autossuficiente dos músicos de orquestra como Duprat e Medaglia e a casualidade contagiante dos Mutantes asseguravam o suporte mais que animador para que descartássemos nossa inibição e nos lançássemos ao trabalho com alegria e confiança. Eu fui, no curto espaço de tempo, aprendendo a lidar com aquela nova semântica da música e da poesia e com a inspiração inestimável de Caetano ( ele escreveu comigo canções como “Panis et circenses”, “No dia em que eu vim embora”, “Eles”, ‘Lindonéia’, “Batmacumba”) , canções que corroboravam o significado do lirismo transfigurado com que eu deveria seguir adiante como criador do meu tempo.

Eu nunca mais fui o mesmo artesão naive com que me apresentara para aqueles desafiadores experimentos tropicalistas. Saía dali com as garras afiadas para destrinchar as entranhas das presas abatidas nas grandes caçadas pós-modernas que viriam em seguida (vem-me à mente, por exemplo, o disco Expresso 2222 que realizei ao voltar do exílio em 72 em que, já mais familiarizado com o repertório tecnológico e estilístico do pop-rock e mais fluente nos riffs e batidas com a guitarra elétrica que trouxera de Londres, pude finalmente me considerar iniciado nos misteres de um band-leader de fato, na acepção pós-moderna da palavra: pleno de uma nova potência, cônscio de um novo saber, pronto para viver a dimensão trágica da complexidade dos novos tempos. Sim, eu houvera caído em tentação. A modernidade passaria a ser pra mim, dali por diante, uma enormidade, uma sucuri do comprimento do diâmetro da terra.

Todo um desejo de aprofundar as relações entre a autenticidade romântica brasileira e o delírio psicodélico das modelagens da juventude euroamericana estava ali finalmente materializado naquela paisagem sônica universal que eu agora era capaz de descortinar e redesenhar (como se ao lado dos estúdios de gravação daqueles dias estivessem ali com seus pincéis e cinzéis um Picasso ou um Dali). As deficiências técnicas de então, de uma certa forma facilitaram o fortalecimento do espírito inovador (“ensinai-me, oh pai, o que eu ainda não sei”), do instinto visionário e da busca voluptuosa de algo diferente.

“Nego-me a folclorizar o meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas”
Caetano Veloso, 1967

A Antropofagia do Oswald se manifestava no anseio de transformar e transfigurar aquele novo corpo cultural que necessitava pelo menos de outras pernas e braços – que a cabeça já era outra.

Foi um tempo de mutação – pode-se imaginar quão inspirador era ter ali ao nosso lado aquela fada da Vila Mariana, Rita Lee e os dois irmãos duendes da Lapa, Sérgio e Arnaldo Batista!.

OUTROS VIRAM DAQUI

Hélio Oiticica, em artigo para o Correio da Manhã, setembro de 1968 comentando nossa performance numa das apresentações de um festival: “Caetano e Gil, os Mutantes, Duprat, Tom Zé, modificam estruturas, criam novas estruturas, sua experiência é calcada numa modificação a longo prazo, não se reduz a apresentações de chegar, cantar, e pronto, voltar pra casa e dormir sossegado… depois de tomar uns whiskys.” E acrescenta ainda: “Gil parece cantar e compor com todo seu corpo, sua garganta é de fera, num cantoforte que se relaciona com o dos cantadores nordestinos, incisivo, sem meios tons: sua apresentação foi um momento de glória, contido e sem heroísmo aparente, certo do que fazia, enquanto a vaia fascista comia. A obra de Gil merece, urgentemente, um estudo detalhado, profundo… pois realiza nela uma síntese de praticamente todos os ritmos universais, como que os arrancando pela raiz de suas origens, do fundo dos sons, da terra, do suor dos ritos.

Em 1968, no artigo “Viva a Bahia-Iá-Iá”, Augusto de Campos já apontava na invenção tropicalista tudo aquilo que hoje deslumbra os jornalistas norteamericanos: as estratégias de montagem e justaposição; a presença da música aleatória e concreta; o parentesco com a pop art e com a “bricolage” de Lévi-Strauss. A estada de Hans Joachim Koellreutter na Bahia, no final dos anos 50, e o encontro dos baianos-futuros-tropicalistas com os paulistanos da Música Nova possibilitaram que os procedimentos eletroacústicos e concretos que estão hoje na base da produção do pop global (“ghetto tech”, “two step” e todo o resto) fossem absorvidos pelas massas
brasileiras (que nunca mais esqueceram “Alegria, alegria”) com um sucesso que “Revolution nº 9″ dos Beatles nunca tentou conquistar – e que só se estabeleceu em disco no rock alemão (feito por alunos de Karlheinz Stockhausen, como também o foram Rogério Duprat e Júlio Medaglia, os mais conhecidos arranjadores dos discos tropicalistas no início dos anos 70”.

Hermano Viana comentando sobre a reação estrangeira ao Tropicalismo “Os novos apologistas norteamericanos não parecem perceber essa tensão que está na origem do Tropicalismo. Por isso merecem a reprimenda publicada em O Estado de S. Paulo – de Tom Zé: “Eles falam como se Oswald, sua antropofagia e o rock internacional já estivessem no âmago de toda a tropicalidade, como a árvore na semente de Parmênides. Não estavam”. Tom Zé é até mais contundente: o artigo de Gerald Marzorati, N.Y. Magazine – 25/4/99, seria “coisa de estrangeiro, falando coisa do Brasil, esse tipo de coisa na qual a gente se sente uma coisa”, além da “imposição da palavra escrita como meio privilegiado, que representa o braço do colonizador”. (Hermano Vianna – Folha de S.Paulo, 19/9/1999)

Caetano iria se referir ao Tropicaismo como um neoantropofagismo.

“Mas um reparo precisa ser feito à afirmação de que o tropicalismo, como a bossa nova, utilizou a informação da modernidade musical na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente da música popular brasileira: é que não era apenas a informação da modernidade musical que ele trazia para a MPB mas a informação da modernidade simplesmente: a informação da modernidade musical, poética, cinematográfica, arquitetônica, pictórica, plástica, filosófica etc. Nesse contexto, a informação da modernidade deve ser entendida como a desfolklorização e desprovincianização da música popular, isto é, como a sua inserção no mundo histórico em que se desdobram as artes universais: nada menos do que a proclamação da sua maioridade”. (A. Cicero – O tropicalismo e a Mpb -12/8/2004)

OUTROS VIRAM DE FORA

“Um gênio “provinciano” criativo (os principais participantes eram provenientes da Bahia) chocou-se e foi ativado, por assim dizer, pelas modernas experiências urbanas da tecnologia e por uma ditadura de pretensões tecnocráticas. Num esforço ilimitado de revitalizar as artes brasileiras, o Tropicalismo construiu uma estratégia neo-atropofágica de contraposição e apropriação”, comenta Bruce Gilman num artigo para a Brazil Magazine -1/12/2002.

Ainda Bruce Gilman no mesmo artigo para a Brazil Mgazine aponta: “A Tropicália foi o último movimento cultural brasileiro significativo; foi um movimento para acabar com todos os movimentos, e uma compreensão clara da realidade Brasileira. Não foi somente um movimento musical, mas um entendimento do movimento das artes que se manifestaram nas esculturas, literatura, pintura, filme, teatro, poesia e artes plásticas. O nome surgiu de uma exibição de arte ambiental em abril de 1967, “Tropicália”, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, realizada por Hélio Oiticica. Artistas que sonhavam com uma nova estética para o Brasil e que lutavam para dissipar as absurdas imagens de fantasia do país trouxeram à tona assuntos como a mentalidade de consumo e o impacto da mídia de massas ao mesmo tempo que demandavam a destruição da direita política e o conceito de um Brasil unicamente carioca.”

Último movimento modernista e primeiro movimento pós-modernista, eu diria, o Tropicalismo se instalou como um campo magnético de atração de tudo que se manifestava no jogo complexo dos polos positivo e negativo do poderoso imã da realidade, ali naquela vaga fronteira passado/presente/futuro em que o Tropicalismo se colocava.

No artigo “Tempos de audácia” Brazil Magazine, 01 de Dezembro de 2002, acima citado Bruce Gilman interroga:

Como o tropicalismo perpetuou e tornou-se contorno fundamental de referência nos tratos culturais brasileiros da atualidade? Por que esta conflagração nas artes tem um impacto tão intenso ainda hoje?

Porque estes episódios musicais e teatrais tiveram significados tão inflados no final dos anos 60? Essas são questões que têm motivado e ainda provocam críticas ao fenômeno do Tropicalismo, especialmente nesta conjuntura temporal. E Gilman prossegue:

“Num esforço ilimitado de revitalizar as artes brasileiras, o Tropicalismo construiu uma estratégia neoatropofágica de contraposição e apropriação.”.

“Uma década após a poesia concreta, Pelé e a Bossa Nova emergirem, surgiu o prelúdio esplêndido conhecido como Tropicália ou Tropicalismo, um divisor de águas na arte contemporânea brasileira, cuja importância foi comparada à Semana de Arte Moderna de 1922, que lançou o modernismo… e ele segue especulando:“ O trigésimo aniversário da aventura Tropicalista foi comemorado em 1998 com uma série de eventos e meditações sobre o breve, todavia emblemático movimento. Discussões renovadas sobre a Tropicália ganharam forte ímpeto com a publicação de Verdade Tropical (1997), memórias variadas do cantorcompositor Caetano Veloso, quase que unanimemente considerado a principal voz do Tropicalismo.

Festividades Públicas temáticas (Carnaval em Salvador, 1998) e eventos acadêmicos nos três continentes prestaram homenagem e exploraram ramificações das ocorrências do final dos anos 60, na música, cinema e demais frentes que constituíram o Tropicalismo. Marcos criteriosos de críticos relacionados (ex. Augusto de Campos, Roberto Schwarz, Silviano Santiago, Alberto Vasconcelos, Celso Favaretto) são revisitados em novas deliberações sobre a lenda e canonização de Caetano Veloso, a institucionalização dos momentos do tropicalismo, ou suas reflexões em tendências atuais, como o movimento mangue no Recife. O discurso metafórico e híbrido da música no mangue beat, em particular, são reminiscências de experimentos em música e desempenho no coração da Tropicália. Esta produção Nordestina é outra variante da Música Popular brasileira (MPB) contemporânea que mais uma vez está nos palcos e exposta internacionalmente no final dos anos 90,..”

A propósito do empenho tropicalista Charles A. Perrone faz, no ensaio “As tropas da Tropicália e do Tropicalismo” – Studies in Latin America Popular Culture, Florida University, 1999, as seguintes considerações:

“Como símbolo da voracidade, a Antropofagia é ao mesmo tempo metáfora, diagnóstico e terapia: metáfora orgânica, inspirada na cerimônia guerreira da imolação pelos tupis do inimigo valente apresado em combate, englobando tudo quanto deveríamos repudiar, assimilar e superar para a conquista de nossa autonomia intelectual; diagnóstico da sociedade brasileira como sociedade traumatizada pela repressão colonizadora que lhe condicionou o crescimento… e terapia… contra os mecanismos sociais e políticos, os hábitos intelectuais, as manifestações literárias e artísticas. Sob forma de ataque verbal, pela sátira e pela crítica, a terapêutica empregaria o mesmo instinto antropofágico outrora recalcado, então liberado numa catarse imaginária do espírito nacional.

Prossegue Perrone:

Veloso e Gil preferiram o nome Tropicália a Tropicalismo, porque o primeiro era diferenciado e não apresentava seu projeto simplesmente como outro – ismo numa série de propostas artísticas. Tal lógica acompanha o grupo Noigandres de São Paulo, nos anos 50, que preferiu o termo poesia concreta a concretismo…

E Perrone acrescenta:

“No final da década, Augusto de Campos extrapolou ao proclamar: “Desde João Gilberto e Tom Jobim, a música popular deixou de ser um dado meramente retrospectivo, ou mais ou menos folclórico, para se constituir num fato novo, vivo, ativo, da cultura brasileira, participando da evolução da poesia, das artes visuais, da arquitetura, das artes ditas eruditas, em suma.”

Perrone vai em frente: “Ao acessar o impacto da Tropicália, Liv Sovik comparou mudanças nas percepções anglo-Beatles, especialmente com as misturas pop e clássicas de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, com as realizações de Veloso e a rica fonte do trio de Rock os Mutantes: “os Beatles – sem tradição para essa mistura – conseguiram dignificar a música popular de massas sem borrar as fronteiras, enquanto a Tropicália conseguiu estabelecer a hibridação erudito/massivo, escandalosa na época, apoiada na hibridação erudito/popular já existente no Brasil”. Para Sovik, este detalhamento do alto/baixo ilustra uma interpretação instigante da aventura Tropicalista como pós-moderna.

Perrone pinça a observação de Caetano : “A idéia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos ‘comendo’ os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva. Claro que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não sem cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a adotamos. Procurei também – e procuro agora – relê-la nos textos originais, tendo em mente as obras que ela foi concebida para defender, no contexto em que tal poesia e tal poética surgiram.

Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as diferenças entre a experiência modernista dos anos 20 e nossos embates televisivos e fonomecânicos dos anos 60. E, se Gil, com o passar dos anos, se retraiu na constatação de que as implicações ‘maiores’ do movimento – e com isso Gil quer dizer suas correlações com o que se deu em teatro, cinema, literatura e artes plásticas – foram talvez fruto de uma superintelectualização, eu próprio desconfiei sempre do simplismo com que a idéia de antropofagia, por nós popularizada, tendeu a ser invocada.” (Verdade tropical 247-248)

E Charles Perrone volta a considerar em seu ensaio”: “As maiores rupturas através da história das artes no Brasil ocorrem nestes momentos quando a relação entre a metrópole e a colônia são questionadas num modelo radical em busca de independência cultural. Um movimento pode ser entendido como ‘fundamental’ neste caso quando atualiza a tensão entre a identidade cultural brasileira e moderniza impulsos pelo prisma da mudança. Foi o que ocorreu com a antropofagia e a poesia concreta, e com o movimento eclético do tropicalismo…

Além disso, colocando a autenticidade autóctone em perspectiva relativa, o tropicalismo, como a antropofagia e a poesia concreta, elaborou contramodelos experimentais e iconoclásticos, posicionamentos radicais em relação a expressões líricas convencionais, confrontação dos valores do establishment e reação à cultura do imperialismo.

Perrone vai mais além:

“Na medida em que existem homologias e paralelos de atividade e atitude entre o concretismo e o tropicalismo, este último, com seu próprio projeto de modernização, participa ainda da construção da ética da nação. A abordagem Tropicalista fez as artes pressuporem uma visão desrespeitadora, todavia edificante, do Brasil oficial e da versão nacional-popular de resistência ao poder constituído. Em termos de manipulação técnica do conhecimento ou organização de uma taxa de câmbio estética, onde a poesia concretista esteve em primeiro plano, a Tropicália não inovaria do mesmo modo, pois a Bossa Nova já havia estabelecido sua marca internacionalmente. Ainda assim, havia amplo espaço para iniciativas em termos de orientações contra a corrente (ser eternamente desafinado) e conceitualizações da música popular, especialmente como um registro delicado do sentimento nacional/nacionalista e da criatividade brasileira. Ainda que produzido em quantidades limitadas, a música iluminadora da Tropicália, com suas múltiplas vozes e vocais, foi um refletor ainda maior que a Bossa Nova. A plataforma musical do tropicalismo foi ainda vislumbrada como um ponto de partida para as intervenções em relações culturais, em discurso nacional, que Veloso caracterizou, no âmago oposto de suas lembranças, como “um desvelamento do mistério da ilha Brasil”, com implícita “responsabilidade pelo destino do homem tropical” (Verdade tropical 16, 501).

A captura e expedição dos líderes da Tropicália determinaram o final do impulso Tropicalista em sua própria casa, e na cortês Londres ele não passava de uma curiosidade. Os participantes da comoção músicopoética do final dos anos 60 mal poderiam imaginar que em três décadas (o total de tempo entre o segundo manifesto de Oswald e o plano piloto da poesia concretista), suas músicas poderiam ser excelente instância para o fenômeno da world music”, no mundo desenvolvido junto do contexto da globalização sobre a qual Gilberto Gil, dentre todos os seus colegas, foi particularmente presciente.

EU AINDA VEJO.

Caetano se referia ao período do Tropicalismo, como um tempo a ser vivido na contingência de uma brevidade. A ser encarado como uma moda. E foi o que de fato foi. Em menos de dois anos todo o empreendimento estava realizado e encerrado. Para mim, além da convicção de que o movimento não deveria durar mais que o tempo necessário para passar sua mensagem de inconformismo e seu ideário inovador como esperava Caetano, deixando que o futuro tomasse as rédeas do processo e nos liberasse para seguir nossas vidas enfrentando novos questionamentos e novas indeterminações , para mim havia também o anseio por um alívio.

Eu, pessoalmente, não via a hora de sair daquela agonia. Atormentado por uma insistente premonição de que aquilo tudo poderia trazer muitos danos existenciais, com muito sofrimento para o qual não me considerava preparado, ansiava pelo fim daquela jornada ou, pelo menos com uma diminuição considerável daquela tensão.

A prisão e o exílio foram um epílogo duro e ao mesmo tempo desanuviador. Deixariam marcas indeléveis na minha carapaça existencial; na formação do meu caráter; na tipologia da minha individualidade; na definição dos traços delicados da escultura da minha personalidade. Ao mesmo tempo em que acentuaria, no artista, um gosto pela expressividade aberta; uma busca do prazer e da alegria no arrebatamento estriônico da performance; o arrojo e o destempero vocal – que Hélio Oiticica elogiara e saudara naquele seu artigo de 67 – e que eu carregaria no meu canto para o resto da vida até arrebentar de vez com uma das minhas cordas vocais; o interesse em manter alguns resíduos de experimentalismo no trabalho de composição e arranjo de canções, mesmo já distante do compromisso com a “libertação anárquica, a única possível” como considerava Glauber Rocha; guardando sempre um “senso perdido de rebeldia” e uma “inquietação do epírito” como dizia Luiz Carlos Maciel, quando “no longo combate do século os valores estabelecidos voltaram a vencer o segundo assalto” como ele refletia à espera de um terceiro assalto, quiçá, definitivamente redentor.

O Tropicalismo foi um tropismo. Dali em diante ele nos alertaria permanentemente para os sinais emitidos pelo mundo da criação artística e da vida cultural. Uma bússola de orientação estética, técnica e política para a navegação arriscada no mar da procela da pósmodernidade. Minha música, musa única – ela, ela que me faz um navegador!.

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Gilberto Gil