Apresentação do livro Escrita INKZ

Inicialmente, há que distinguir, nesta proposta literária de Boaventura de Souza Santos, duas coisas: 1.ª o propósito do autor desta ESCRITA INKZ – Anti-Manifesto Para Uma Arte Incapaz, de remediar o que ele considera como o irremediável vazio da sua geração como criadora de arte e 2.ª a dimensão artística do que aqui, de fato, […]

Inicialmente, há que distinguir, nesta proposta literária de Boaventura de Souza Santos, duas coisas: 1.ª o propósito do autor desta ESCRITA INKZ – Anti-Manifesto Para Uma Arte Incapaz, de remediar o que ele considera como o irremediável vazio da sua geração como criadora de arte e 2.ª a dimensão artística do que aqui, de fato, se realiza como poesia. Quanto à primeira, não nos parece apropriado comentar, já que se trata de um posicionamento subjetivo do autor a serviço de uma operação de demolição: não há obra artística em sua geração e, se alguma ilusão quanto a haver tal obra ainda existe, que seja demolida de vez.

Quanto à segunda, a poesia aqui publicada, desde ao que ela se destina quanto ao de que é e como é feita, isto sim é algo do que se tem muito o que falar – ainda que não seja eu quem melhor possa fazê-lo. A poesia contida neste livro ampara-se naquilo que tem caracterizado o autor como intelectual: brilho do pensamento sobre o mundo, agudez da reflexão sobre o outro e sobre si mesmo, profundidade do mergulho nas águas da alma humana e gênio de professor. Boaventura de Souza Santos parece almejar aqui um poeta pedagógico – uma poesia que ensine, uma escrita poética filosofante – ainda que se dê a perceber, no fundo, um certo querer dar o que pensar característico dos modos da sabedoria. Talvez fosse mais apropriado dizer que, a despeito de buscar uma eficácia didática característica da prosa filosófica (isso fica claramente evidenciado na proposição critica do texto introdutório, o Desfácio) a poesia em si, aqui, permanece poética, malgre la mauvaise conscience: é ótima poesia, mesmo se “pretende apenas provocar a imaginação artística dos outros e servir-lhes de matéria-prima” como quer o autor.

A poesia aqui publicada é primorosamente concentrada em sua construção formal (as monadas, o cão e o chão onde ele decifra signos de linguagem, por exemplo) e generosamente espaçosa, tanto na irradiação plurifocal das paisagens (as físicas mas, em especial, as psicológicas) quanto no longo-alcance do mega-poema resultante (fruto da justaposição dos poemas-fragmentos ligados por uma espécie de fôlego transversal ao feitio das ligaduras na escrita musical).

Destaque-se, ainda, nesta obra de Boaventura de Souza Santos, a proposta de disponibilização do material poético apresentado como base reutilizável por outros artistas para novos processamentos e recriações, o que insere esta obra na nova categoria das “fontes abertas” típicas do emergente paradigma de flexibilização da propriedade intelectual.

A inteligência vária e o gênio múltiplo nem sempre estão em muitos. Eis aqui um caso em que estão num só. Na pletora de potências de um só indivíduo. Boaventura de Souza Santos tem podido, ao longo de sua produtiva vida intelectual, variar a inteligência e multiplicar o gênio. Ei-lo aqui, mais uma vez, (des)dobrado em exímio poeta.

in Santos, Boaventura de Souza. Escrita INKZ – anti-manifesto para uma arte incapaz. Rio de Janeiro: Editora Aeroplano, 2004

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