Cultura, diversidade e acesso

Introdução O concerto da globalização deslocou a cultura para um lugar singular e estratégico do debate global – provavelmente porque a geopolítica do mundo contemporâneo vem mudando ela própria seu terreno tradicional. Sobre a cartografia dos mapas nacionais, hoje vemos com mais lucidez emergir uma paisagem global composta de vasta diversidade cultural, de milhares, talvez […]

Introdução

O concerto da globalização deslocou a cultura para um lugar singular e estratégico do debate global – provavelmente porque a geopolítica do mundo contemporâneo vem mudando ela própria seu terreno tradicional. Sobre a cartografia dos mapas nacionais, hoje vemos com mais lucidez emergir uma paisagem global composta de vasta diversidade cultural, de milhares, talvez milhões, de sistemas culturais diversos, nem todos coincidentes com as paisagens nacionais. A região que une o norte da Argentina, o sul do Brasil, parte do Uruguai e do Paraguai tem a força de um sistema simbólico que vai além de fronteiras nacionais.

Cito esse exemplo não por acaso, na medida em que o Mercosul e a relação com os países da América do Sul têm sido uma prioridade no esforço geral do Governo brasileiro para integrar a região, não apenas economicamente, mas culturalmente. Mas essa mudança não é apenas regional. A paisagem geral do planeta é redesenhada quando a cultura se desloca para o centro de uma discussão sobre o tipo de desenvolvimento que desejamos para o planeta. Quando verificamos os limites do modelo econômico que pautou o século XX, que provocou a migração contemporânea da produção para formas leves e imateriais de geração de valor. Também é redesenhada quando constatamos a expansão da democracia no mundo e a afirmação da educação como prioridade global. Quando se evidenciam multidões de sujeitos, antes excluídos, que passaram a dizer, em alto e bom som: “queremos acesso à cultura”. Não se trata apenas de um maior acesso ao consumo, mas de um maior acesso às formas de expressão, às estruturas de produção e aos meios de circulação social.

Hoje, a agenda da cultura encontra uma interface com o debate econômico internacional. Essa interface se intensifica quando o debate econômico migra para a discussão sobre formas de contrato, propriedade intelectual e direito autoral, identificando a reposição de velhas assimetrias e de um comércio injusto com os países pobres e em desenvolvimento. Não por acaso, uma das pautas brasileiras de destaque, tanto no plano interno como externo, é o movimento de reconhecer, examinar e efetivar políticas para a chamada “Economia da Cultura”. São estas circunstâncias novas que fazem da agenda cultural uma agenda tão importante para o Brasil e para o mundo.

Nesse concerto, somos nós, o Brasil, uma voz cada dia mais integrada ao destino regional dos povos sul-americanos, uma voz que reconheceu sua enorme dívida e irmandade cultural com a África. Recentemente, como forma de ampliar laços no plano cultural, realizamos a II CIAD – Conferência de Intelectuais da África e Diáspora, em Salvador. Nos últimos quatro anos, o Ministério da Cultura do Brasil assumiu sua responsabilidade com o plano regional e internacional e, também, com a promoção da cultura brasileira no mundo, tanto simbólica como economicamente. Um bom exemplo disso é o Ano do Brasil na França, que envolveu dezenas de milhões de pessoas em suas atividades, assim como a Copa da Cultura, que aproximou a diplomacia cultural da diplomacia das chuteiras. Em muitas direções, temos assumido uma responsabilidade de provocar esse bem-vindo deslocamento de agenda: a cultura como forma modificadora de uma velha forma de desenvolvimento.

É importante lembrar o papel desempenhado pelo Brasil, ao lado de muitos outros países, na formação de uma grande base para a aprovação da Convenção da Unesco sobre a Promoção e Proteção da Diversidade das Expressões Culturais, em 2005. Nos próximos anos, essa convenção – recém-ratificada pelo Parlamento Brasileiro – poderá significar para a agenda cultural do mundo o que o Protocolo de Kyoto representa hoje para o avanço concreto das políticas de meio ambiente: não apenas uma plataforma efetiva de princípios fundamentais, mas um acordo sobre um novo papel do Estado no que diz respeito à cultura e à diversidade.

O Brasil tem importante papel porque a formação brasileira, apesar das enormes desigualdades ainda persistentes, é um feliz exemplo de diversidade e encontro cultural. Somos mestiços, produto de populações e tradições diversas e vivas que ocupam um vasto território, que compõem, juntas, um amplo imaginário. Praticamos, a olhos externos, um modo singular de viver e estar no mundo. Há uma mensagem universal de paz, convívio e enorme criatividade explícita na forma como essa população abriu seus poros e assimilou os valores de outros países e civilizações, na forma como essa população lida com seus costumes, etnias, raças e credos. Essa mensagem de paz é um patrimônio do povo brasileiro. Nesse sentido, nos últimos quatro anos de gestão, buscamos atuar na promoção da cultura brasileira como portadora de conteúdos singulares e valores universais.

O que a Convenção nos aponta é que esses valores culturais, tangíveis e intangíveis, vêm sendo cada vez mais desafiados pelo processo da globalização. A carga simbólica dos bens culturais revela a natureza especial desses bens e serviços porque, afinal, eles expressam o acúmulo de centenas de anos, o investimento de diversas gerações que depositaram em suas expressões o próprio significado da existência humana. O alto valor agregado da cultura – manifesto no interesse de corporações pelos saberes farmacológicos e tecnologias dos indígenas sul-americanos, na perícia das mãos de nossos artesãos ou, ainda, na reprodução virótica das músicas e danças do Brasil – ganhou a consciência de muitos e, especialmente, do Estado e seus órgãos responsáveis pela agenda da cultura.

É por tal razão que o governo Lula e o Ministério da Cultura vêm deslocando as políticas culturais para o centro do debate do desenvolvimento nacional e das relações de intercâmbio do Brasil com outros países. Entendemos as políticas de cultura, ao lado das políticas do meio ambiente, como dimensões que qualificam e, em certos casos, condicionam o desenvolvimento econômico e sustentável. São políticas que promovem o equilíbrio entre a produção econômica e o bem-estar da sociedade.

A cultura possui uma inegável dimensão econômica. No ano de 2003, as atividades culturais foram responsáveis pela movimentação de 7% do PIB mundial1. As suas atividades não estão concentradas apenas nas expressões simbólicas já reconhecidas – como as cadeias produtivas da música, do audiovisual e do livro, hoje mais evidentes – mas em dezenas de externalidades, em conteúdos que, apoiados na convergência tecnológica hoje em curso, deslocam-se entre os meios de comunicação tradicionais e contemporâneos. São conteúdos velozes, dinâmicos e intempestivos que hoje agregam valor a sandálias, dribles e tecidos. O advento da tecnologia digital somente aguça essas possibilidades de acesso, trabalho e intercâmbio que a cultura carrega consigo. Também potencializa novas formas de circulação monetária e novos modelos econômicos que, num futuro próximo, estarão plenamente sedimentados.

O desafio aqui é compreender a dimensão econômica crescente da cultura e encontrar formas de cooperação que permitam que as populações mais pobres detentoras de saber, cultura e identidade, usufruam plenamente dos benefícios e riquezas da propriedade intelectual. É preciso encontrar formas e meios de permitir que os saberes cultivados, formatados e industrializados possam circular e serem acessados, equilibrando direitos autorais, direitos de investidores e direitos de acesso.

Contudo, essas características contemporâneas da cultura adquirem outras feições quando encaradas no contexto dos países em desenvolvimento, como é o caso da América do Sul. Nesse viés, a política cultural internacional transforma-se em um dos principais elementos de enfrentamento de assimetrias internacionais que, no limite, resultam em modelos hegemônicos, em formas centralizadas de comunicação social, em formas concentradoras de gestão de conteúdo e em indústrias que precarizam mão de obra e poluem o meio ambiente. Trata-se, enfim, de uma luta constante para que a democracia se realize num plano mais efetivamente cultural e abrigue melhores condições de acesso a conteúdos culturais e modelos de proteção da diversidade cultural.

Vivemos um momento histórico privilegiado. As mudanças das formas de produção, significação e distribuição dos conteúdos culturais apontam para um espaço novo e dinâmico das políticas culturais. A revolução digital abre novas portas aos países em desenvolvimento. Trata-se de uma chance única de intervenção no modelo de globalização vigente, uma oportunidade de praticarmos o júbilo da diversidade cultural.

A cultura possui um incrível potencial de produzir sedimentos que ativam a mudança histórica. Em muitos casos, ela é o lugar onde a mudança efetivamente se realiza. Mas sua atuação discreta e incisiva nos rumos das relações internacionais, suas novas potencialidades econômicas e sua atuação transversal ainda padecem de um grande desconhecimento – e até desconfiança – das burocracias públicas tradicionais. É hora de atentarmos à força contemporânea da cultura, à força de modernizar agendas e atualizar discussões públicas, de promover paz, prazer e conhecimento mútuo – para o bem dos países em desenvolvimento, para o bem da América do Sul.

Do plano doméstico ao internacional

Nos primeiros quatro anos do Governo Lula, tentamos orientar as políticas públicas de cultura no Brasil a partir de três diretrizes conceituais. A cultura foi compreendida em suas dimensões simbólicas, econômicas e cidadãs. Tal conceituação representa uma tentativa de organizar o papel do Estado e reconhecer a abrangência dos fenômenos culturais no mundo contemporâneo. Representa uma forma de traduzir esses desafios, políticos e simbólicos, em ações públicas efetivas.

O Mercosul cultural abriu uma nova frente de possibilidades. Um dos seus principais eixos decorre, justamente, da ênfase dada ao Intercâmbio de Políticas Nacionais de Cultura dos países membros do Mercosul. Focamos, portanto, na interação de políticas estatais e programas voltados aos fenômenos culturais da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.

Essa troca é extremamente salutar, pois potencializa nosso patrimônio comum (como o solo arqueológico) e as nossas similaridades históricas e culturais, além de incentivar o aprendizado mútuo de programas e mecanismos que cunharam respostas consistentes e importantes para a complexidade dos fenômenos culturais que nossos países abrigam hoje em dia.

O intercâmbio, no entanto, não deve estar restrito às políticas implementadas pelos Estados. É preciso considerar as manifestações culturais que estão circunscritas, ou altamente influenciadas, pelas dinâmicas de distribuição das indústrias culturais. Dados da Unesco indicam que, no ano de 2002, os Estados Unidos, Reino Unido e China, sozinhos, foram responsáveis por 40% da circulação de mercadorias culturais no mundo.2 Outra conseqüência das assimetrias internacionais no campo da cultura é a importância assumida pela língua inglesa, que se torna a grande intermediária dos contatos entre culturas de outros idiomas. A maior parte das trocas culturais entre as diferentes regiões “periféricas” do globo é controlada pelo centro do sistema, concentrado no eixo Estados Unidos-Europa-Japão. As comunicações de massa, que constituem hoje um espaço fundamental na esfera pública de expressão, debate e formação de pensamento, estão cada vez mais absorvidas por grandes conglomerados transnacionais que oligopolizam a produção e distribuição dos bens culturais massivos. Existe um incrível potencial de interação entre as mais diversas culturas do mundo, mas esse potencial é arrefecido pelas lógicas de distribuição das mercadorias culturais.

É nessa seara que ocorre um encontro entre acesso, intercâmbio e diversidade. A posição brasileira diante desse novo cenário deve se orientar pelo exercício da pluralidade, contra a imposição de uma cultura única, ou da cultura transformada em simples mercadoria. Isso implica na defesa e na promoção tanto da diversidade cultural brasileira, no interior e exterior, quanto do acesso a outras culturas e a trocas com nossos vizinhos da América do Sul.

Diversidade das expressões culturais, propriedade intelectual e desenvolvimento

A implementação da Convenção da Unesco sobre a Promoção e Proteção da Diversidade das Expressões Culturais representa um novo marco no ordenamento jurídico internacional. Ela procura estabelecer um sistema internacional de trocas de bens e serviços culturais mais equilibrado, assegurando o direito soberano dos Estados de implementarem políticas culturais de proteção e promoção de sua diversidade cultural e de garantia de acesso à diversidade cultural de todo o mundo, por meio da implementação de uma série de políticas regulatórias, por exemplo. Essa convenção propicia a criação de um circuito de trocas sul- sul de bens e serviços culturais, criando a possibilidade de acesso, consumo e intercâmbio da produção cultural entre os países em desenvolvimento, quebrando eventuais hegemonias de segmentos do mercado cultural.

Outra frente internacional que o Ministério da Cultura do Brasil prioriza é a participação na Rede Internacional de Políticas Culturais (RIPC), uma rede informal de ministros da cultura de todo o mundo que se reúnem anualmente e que, talvez, tenha sido a grande mola propulsora da aprovação da convenção na Unesco.

Em 2006, quando fomos anfitriões da reunião anual, escolhemos o tema “Acesso à Cultura, Direitos Autorais e Novas Tecnologias: Desafios em Evolução à Diversidade Cultural” para refletir sobre duas de nossas principais preocupações políticas: direitos autorais e acesso à cultura. Nossa principal conclusão do estudo foi a de que os direitos autorais podem representar um obstáculo para o acesso à cultura, principalmente frente às novas tecnologias, com conseqüências evidentes para a diversidade cultural. Tal fato pode ser explicado pela crescente ampliação do alcance e do escopo das leis e dos tratados que regulam o setor em todo o mundo nas últimas décadas, fazendo com que vários países em desenvolvimento venham contraindo obrigações muito restritivas em matéria de propriedade intelectual, mesmo se não dispõem de infra-estrutura e capacidade institucional necessárias à assimilação de novas regras.

Temos hoje um sistema de Propriedade Intelectual totalmente discordante das modernas tendências tecnológicas, econômicas e sociais. Um sistema que transforma a Propriedade Intelectual e, dentro dela, os direitos autorais, num fim em si mesmo.

Nosso encontro da RIPC em 2006 demonstrou que o problema com os direitos autorais é mais grave para os países em desenvolvimento, uma vez que são nesses países que as leis autorais são mais restritivas, seja pela maior vulnerabilidade aos lobbies das grandes corporações transnacionais da indústria cultural, seja pela ausência, nesses países, de organizações da sociedade civil que defendam os interesses dos usuários de obras protegidas e o interesse público, em geral, a exemplo do que ocorre nos países desenvolvidos.

O Ministério da Cultura do Brasil também elaborou, em estreita parceria com o governo argentino, a Agenda para o Desenvolvimento. Nossa preocupação foi incorporar os temas relativos aos direitos autorais no estabelecimento de um programa voltado ao desenvolvimento na OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual). Dessa forma, defendemos um domínio público robusto, com um efetivo respeito às limitações e exceções aos direitos autorais, assim como à promoção de formas alternativas de licenciamento de obras, como o Software Livre, o Copyleft e o Creative Commons.

As discussões na OMPI sobre esse tema continuam a ocorrer, com a participação ativa do “Grupo dos Amigos do Desenvolvimento”, bloco de países em desenvolvimento liderado por Argentina e Brasil em oposição ao grupo dos países desenvolvidos. A depender dos resultados das discussões, os países em desenvolvimento poderão contar, na OMPI, com um programa onde a Propriedade Intelectual não seja um fim em si mesmo e sim uma ferramenta para o desenvolvimento, onde os países tenham espaço para a implementação de políticas públicas que garantam à sua população o acesso à cultura, ao conhecimento e à informação, bem como ao fluxo internacional dos ativos protegidos por Propriedade Intelectual de forma mais justa e menos penosa ao mundo em desenvolvimento.

Um outro tema relacionado à Propriedade Intelectual que pretendemos desenvolver nos próximos meses e anos – caro a todos os países da América do Sul – é o da Proteção dos Conhecimentos e Expressões Culturais Tradicionais. Existe um comitê especializado sobre o tema na OMPI, cujos trabalhos têm deixado muito a desejar. Pensamos que é fundamental que se chegue a algum tipo de proteção internacional de tais ativos. Essa medida poderia vir a beneficiar, principalmente, países em desenvolvimento e menos desenvolvidos e, dentro deles, suas populações tradicionais, que normalmente possuem grandes carências econômicas e sociais – embora detenham um rico patrimônio cultural. Torna-se importante uma agenda para a nossa região que inclua a proteção dos Conhecimentos e Expressões Culturais Tradicionais como uma fonte de renda econômica, digna e justa, para nossas populações.

Paz, cultura e a atual crise do multilateralismo

Meio século depois do fim da Segunda Guerra Mundial, a agenda da cultura volta a se apresentar no mundo pós-Guerra Fria e pós-11 de setembro como um elemento fundamental para a construção da paz entre os povos. O discurso do aparente “colapso simbólico”, referido às novas formas de terror e intransigência, leva-nos novamente à reflexão coletiva acerca do futuro, bem como à necessidade de desfazer sentimentos belicosos, fundamentalistas e igualmente etnocêntricos que retornam para assombrar a humanidade.

Assim como foi preciso erguer um novo organismo internacional no pós-guerra, hoje cresce o consenso de que o Sistema das Nações Unidas carece de uma reforma profunda para se fortalecer e se adaptar aos novos tempos, tornando-se ainda mais plural e representativo. Não se trata aqui de apoiar apenas uma reforma no Conselho de Segurança ou na Assembléia Geral, instituições políticas mais importantes da ONU, mas de praticar em todas as nossas relações essa agenda da centralidade da cultura para a democracia, a paz e o desenvolvimento.

A Convenção da Unesco certamente será um instrumento fundamental para a governança global no século XXI, mas precisamos ir além e aprofundar leituras nacionais e regionais dessa convenção. Ela afirma, por exemplo, o valor da diversidade cultural num plano ainda mais amplo e global. Ao fazer isso, enfrenta o discurso legitimador de conflitos e até daquela forma de guerra que, absurdamente, ainda se dá pela noção de choque de civilizações – conflitos culturais que seriam a causa maior da indústria bélica e das intervenções unilaterais. A tese de que a cultura está na gênese dos conflitos contemporâneos tem o propósito de desviar as causas reais das assimetrias que marcam o destino de multidões. O destino a formas restritivas de propriedade intelectual que limitam a tecnologia e os direitos sociais e culturais da população.

Por tudo isso, a noção de diversidade é ampla e o instrumento da convenção deve ir além da perspectiva de “proteção”. Ela autoriza os países a promover a cultura como elemento central da sua estratégia de desenvolvimento. Isso significa, por exemplo, que rodovias e portos precisam ser construídos e modernizados sob a ótica pública, pois são as populações a razão de ser dessas estruturas, são elas o ponto de chegada e partida dessas estratégias. As populações não podem ser suprimidas das análises de custo, nem das políticas de Estado. Se tomarmos a restauração de centros históricos, por exemplo, desconsiderar as populações envolvidas significaria também desconsiderar todo o valor dos centros históricos, esvaziar a vida e a dinâmica social desses centros, as feiras e festas, que são o motivo profundo das migrações turísticas no mundo atual. Foi o que – em certo momento – aconteceu na cidade de Salvador, no estado da Bahia, quando resolveram tirar a população do Pelourinho, no Centro Histórico da cidade, para os trabalhos de restauração. Tal decisão teve que ser enfrentada a duras penas por todos os que ainda compreendiam que o valor da cidade está em suas comunidades – e não exclusivamente em suas estruturas.

Do ponto de vista estritamente econômico, uma visão realista ou pragmática deixa de perceber que atualmente a economia da cultura é uma das que mais se expandem no capitalismo globalizado, crescendo a um ritmo superior à evolução do PIB mundial. A economia criativa concorre com a indústria da guerra nos Estados Unidos, já aparece como uma das mais significativas na União Européia e mostra um forte desempenho em países menos desenvolvidos, como o Brasil. A cultura é o setor da economia que mais cresce no mundo, pois gera, em média, melhores salários, mais empregos e, ainda – o que considero mais importante – inclusão social com cidadania plena.

A idéia de cultura como direito, economia, política e identidade, espreitada nas últimas décadas, deve mais do que nunca compor o ideário subjacente às propostas de reforma das instituições internacionais. Em vez de choque entre civilizações, a cultura deve ser vista como o barro flexível das relações globais, capaz de unir pela diversidade, distintas comunidades sociais, nações e, mesmo, hemisférios inteiros.

A crise do multilateralismo não poderá ser superada sem o fim de qualquer e toda pretensão hegemônica. Hegemonia, só se for a da diversidade. Se, por um lado, versões unilateralistas do mundo contemporâneo servem apenas para empobrecê-lo e ameaçá-lo, por outro, a fragmentação das relações internacionais – verificada nos últimos anos como fruto desse unilateralismo – também reforça o isolamento das culturas, impedindo que o intercâmbio cultural se coadune com as amplas oportunidades abertas pelas novas tecnologias.

O Ministério da Cultura do Brasil trabalha para restaurar o multilateralismo em todas as suas dimensões e significados. Não somente a face institucional e decisória, mas o próprio espírito de coabitação ao multilateralismo movem as ações internacionais do governo brasileiro. A concepção multilateral combina com a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais, assim como o equilíbrio entre o respeito à propriedade intelectual e o acesso menos assimétrico à cultura em suas mais diversas modalidades e vias tecnológicas.

Os laços históricos, culturais e mesmo geográficos nos impelem a combinar nosso universalismo com preocupações de ordem mais local. Fortalecem, em termos regionais, nossos vínculos com a América do Sul e com os países africanos e de língua portuguesa. Com os países sul-americanos podemos constituir, finalmente, um espaço multilateral de paz e solidariedade, sobretudo se comparado com outras regiões em situações econômicas semelhantes, com aqueles que falam nosso idioma. Podemos também fortalecer nossa inserção cultural no mundo ao mesmo tempo em que nos reconhecemos em nossa própria identidade lingüística.

Da América do Sul e da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, certamente partimos de bases mais sólidas para enfrentar, globalmente, os desafios do mundo contemporâneo com iniciativas como o Mercosul Cultural, a Recam (Rede Especializada de Cinema e Audiovisual do Mercosul), a CASA Cultural da Comunidade Sul-Americana de Nações, a Comissão Interamericana de Cultura da OEA e a Conferência de Intelectuais da África e Diáspora. No entanto, a política de promoção de uma cultura de paz e humanista, seja em nível local, regional ou global, deve reconhecer como ponto de partida todas as dificuldades existentes. A história é marcada por conflitos. Não nos enganemos. Mas a guerra tampouco é uma verdade inexorável quando a cultura de paz deixa o campo da retórica e influencia verdadeiramente as grandes decisões.

A cultura como agenda

Por fim, um pequeno retrospecto. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a cultura entrou na pauta internacional como um elemento imprescindível ao convívio harmonioso e pacífico entre os Estados, povos e nações. A imagem devastadora da bomba atômica e do Holocausto levou homens e mulheres das mais distintas origens culturais à reflexão sobre a necessidade de uma nova pactuação mundial.

É nesse contexto, no qual as questões culturais foram as principais tônicas do debate político, que emerge a moderna concepção dos órgãos multilaterais consubstanciada no Sistema ONU. Paz e cultura, nessas características históricas, tornaram-se forças e fenômenos complementares. Como pensar a paz, afinal, senão pelo convívio cultural, harmônico e equilibrado entre povos e nações? Como pensar um novo mapeamento geopolítico, teoricamente multilateral, sem reconhecer o direito a diferenças culturais e às formas distintas de organizar a vida no plano simbólico?

Não por acaso, a Unesco, pouco após a sua fundação, convidou um grupo de intelectuais renomados para elaborarem uma série de reflexões com o objetivo de revisar cientificamente as teorias racistas que singularizaram a primeira metade do século XX3. É nesse contexto que o antropólogo Claude Lévi-Strauss argumenta que a diversidade cultural é o principal elemento fomentador do desenvolvimento humano.

Lévi-Strauss lançou uma das primeiras sementes teóricas da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade Cultural da Unesco que foi ratificada em mais de três dezenas de países, no ano de 2006. Ele realçou a riqueza propiciada pela inevitável interação entre as culturas.

Essa nova concepção não emergiu como um debate apenas teórico. Ele despertou por meio da luta pelos movimentos de independência e descolonização, no contexto pós-colonial, por meio de políticas afirmativas – de gênero, grupos e etnias – além das inúmeras searas abertas pelo multiculturalismo.

Nesses sessenta anos, portanto, a cultura passou a ser afirmada e praticada como um direito, que está sendo aprofundado agora, num cenário ainda mais democrático. Um cenário que parece demandar cada vez mais a universalização do direito à cultura. Os Estados estariam aptos a garantir esse direito aos cidadãos? Que novas atualizações são necessárias para que a diversidade cultural seja um ponto de partida das formas atuais de desenvolvimento? Como as instituições nacionais e globais que financiam o desenvolvimento podem incorporar a cultura como diretriz – assim como, no passado, incorporou-se o meio ambiente? Como a tecnologia social que os povos desenvolveram pode ser potencializada, sem tutela e autoritarismo?

Estamos hoje, como há sessenta anos, diante de um grande desafio e uma enorme perspectiva de reposicionamentos, com a oportunidade de aprofundar o marco da presença da cultura não apenas no debate mundial, como adereço do desenvolvimento, mas como fator estruturante e regulador das relações sociais e do próprio projeto de desenvolvimento de nossos países. A sociedade avançou, as culturas avançaram – a agenda precisa avançar.

[addtoany]
Gilberto Gil