Smetak, tak, tak

Eu costumava chamá-lo carinhosamente de Tak, Tak. Não só pelo expediente afetivo de abrandar, com um apelido, a suposta/imposta seriedade da relação mestre/discípulo que entre nós se estabelecera, como pela lembrança que a sua condição de suíço trazia de relógios. Relógios grandes, antigos, engenhosos e artísticos como os elaborados e intrigantes cucos de mecanismos intrincados […]

Eu costumava chamá-lo carinhosamente de Tak, Tak. Não só pelo expediente afetivo de abrandar, com um apelido, a suposta/imposta seriedade da relação mestre/discípulo que entre nós se estabelecera, como pela lembrança que a sua condição de suíço trazia de relógios. Relógios grandes, antigos, engenhosos e artísticos como os elaborados e intrigantes cucos de mecanismos intrincados e simplória atmosfera caseira. Smetak me dava a sensação de um misto de cientista louco e Papai Noel de província; misto de chefe religioso severo e ameaçador, e velho manso conselheiro de farta cabeleira branca e porta sempre aberta aos curiosos do Antique e do Mistério.

Smetak era muita coisa a um só tempo e fica muito difícil separar e analisar as partes de que foi composta sua vida, sua figura e seu papel, na sua existência brasileira que cobriu os seus últimos 30 anos. Desde que resolveu incorporar ao mundo CLEAN de sua razão de viver européia o misterioso e irracional de uma demência vaporosa dos trópicos, sua nova existência brasileira passou a desenvolver-se em nome de uma vertigem delícia/delírio que, ao assumir-se como tônica de seus impulsos novos, desejava-se ao mesmo tempo submissa (microtônica) ao encaixe da Razão Maior, austera, rigorosa e petrificante do frio de onde veio.

Cristal e Vapor, Tom e Microtom, Deus e Natureza, Matemática e Metafísica, Apolo e Dionísios, Nirvânico e Orgiástico, o plástico e a cabaça, a inteligência exata de homem branco e sexo alucinado da mulher negra, tudo a oscilar vertiginosamente de pólo a pólo, de pêlo a pêlo de sua pele de animal em mutação. O mutante em exercício pleno de sua entrega consciente ao Novo Modo.

Os resultados práticos de seu trabalho marcavam essa oscilação assumida entre a Grandeza Antiga de uma Europa, Atlante, Vitoriosa, Afirmada e Ariana, e o resgate de uma Grandeza Perdida de uma África/América, Lemuriana, Submetida e Adormecida. No vértice do seu triângulo, na cunha/quilha de seu barco: indicações de um claro avanço rumo a um sonho de homem novo. Novo Modo, Novo Mundo.

É óbvio que ao examinar seus escritos, suas partituras e gravações, seus instrumentos e plásticas sonoras, seus interesses e estudos esotéricos e filosóficos/religiosos, seu rigor suíço e seu amor ao caos do trópico, fica difícil para o leigo compreender o que se avançou com Smetak. Não creio que Smetak tenha tido sua função ligada ao mundo leigo. Ele era um iniciado e tratava com signos iniciáticos para os que miravam o Início. De uma Nova Era. De uma Nova Espécie, velha espécie de homens divididos entre a Morte e a Eternidade, por uma remota e difícil promessa de Redenção que só se encontra ao alcance da arte radical ou da busca obstinada; só ao alcance dos que resolvem escolher um dos oceanos da Dúvida e nele mergulhar.

Smetak é isso, um mergulhador de excelente performance e vários records de profundidade no oceano da Dúvida.

Eu, jamais serei impune ao fato de ter sido seu discípulo, seu amigo, seu irmão.

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Gilberto Gil