Músicas
Rancho da Boa Vinda
Gilberto Gil
Torquato Neto
De dizer por que é que vem
Se é de paz e se é de amor
Pode entrar, que eu sou também
Se a tristeza já deixou
Bem pra lá do meu portão
Pode entrar, pode dispor
Faça o rancho do meu coração
Tanto amor tenho pra dar
Só que não achei pra quem
Se você vem pra passar
E traz tristezas também
Melhor então nem entrar
Melhor seguir seu caminho
Que de triste neste mundo
Já me basto a mim sozinho
[ inédita ]
Rancho da Rosa Encarnada
Gilberto Gil
Torquato Neto
Geraldo Vandré
Nas cantigas mais antigas
Que o meu Rancho da Rosa Encarnada escolheu pra cantar
Pelas calçadas enfeitadas se vê
Tanta gente pra nos receber
Somos cantores
Cantamos as flores
Cantamos amores
Trazemos também
A notícia da grande alegria que vem
Pra durar mais que um dia
E ficar como antigas cantigas
Que não morrem
Que não passam jamais
Como passam sempre os carnavais
Realce
Gilberto Gil
O que a gente pode, pode
O que a gente não pode, explodirá
A força é bruta
E a fonte da força é neutra
E de repente a gente poderá
Realce, realce
Quanto mais purpurina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo
De real teor de beleza
Não se impaciente
O que a gente sente, sente
Ainda que não se tente, afetará
O afeto é fogo
E o modo do fogo é quente
E de repente a gente queimará
Realce, realce
Quanto mais parafina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo
De real teor de beleza
Não desespere
Quando a vida fere, fere
E nenhum mágico interferirá
Se a vida fere
Como a sensação do brilho
De repente a gente brilhará
Realce, realce
Quanto mais serpentina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo
De real teor de beleza
“Por causa dos questionamentos com relação ao seu significado – a imputação de uma minoridade que ela teria dentro de minha obra, já que representaria uma escorregadela na facilidade do efeito pop -, a necessidade, que eu sinto, de fazer a defesa de uma canção que tem para mim um sentido profundo no meu trabalho e no processo de aprendizado que eu coloco como dado essencial da minha relação com o fato de fazer canções – de dizer coisas através de canções populares -, e que diz muito sobre quem eu sou como compositor e sobre o grau de exigência que me imponho para que minhas canções exprimam alguma coisa importante na minha vida.
“Realce é de uma época em que eu me introduzira no campo da meditação, entendida como uma arte mais formal e rigorosa de pensar-se e refletir-se, e estava interessado em possíveis traduções da filosofia oriental para o idioma da canção, tendo resultado num dos concentrados das meditações que eu então fazia e sido resultado de um processo profundo e ruminante, um longo trabalho de elaboração e meditação, sendo ela mesma uma canção sobre o wu wei, termo chinês que significa ‘ação da não-ação’, ou, a impotência que se torna potência, ou, o esgotamento dos contrários nas suas polaridades (um polo se esgota e inicia o que está contido no seu oposto) etc.
“É nesse sentido uma canção ambiciosa e carregada de significados embutidos que vão sendo des-cobertos, como, na cebola, as camadas por debaixo das camadas.
“A letra parte de um escopo geral que é falar do que, à época, eu chamava de ‘salário mínimo de cintilância a que têm direito todos os anônimos’ – nos terminais de metrô, nas arquibancadas dos estádios, nas discotecas. Esse lado saturday night fever está propositalmente explicitado nos três pseudo-refrões, que funcionam para reiterar a macdonaldização da vida cotidiana nas grandes cidades, mas também para dar-lhe uma qualificação de profundidade que necessariamente também existe nessas coisas tão associadas à superficialidade. Por outro lado, cada uma das estrofes que antecedem os ‘refrões’ remontam ao sentido de potência contido no wu wei.
Estrofe I; versos 1, 2 e 3 – “Há uma idéia da força que remete às mudanças geológicas; a um revolver da natureza que se dá por si só. As grandes catástrofes das idades do universo passam como um trator por sobre a condição humana. Ao mesmo tempo, a fonte da força também está à disposição do que chamamos consciência, inteligência, vontade: homo sapiens.” Versos 4, 5 e 6 – “O homem como combustível e energia do motor da natureza, parte e partícipe do moto-contínuo, ciclico-recorrente (o eterno retorno), de criação e destruição, anulação e afirmação, operado pela natureza na história e pela história na natureza. A relação dinâmica entre ambas e o homem como o corte.”
II; 1, 2 e 3 – “O interstício sutil entre a vontade e o resultado, o fazer e o não fazer. O fato de que tudo está ‘afeto’; de que, do ponto de vista quântico, digamos, a mínima partícula de emanação pensátil está ‘afeta’; de que o afeto pertence à totalidade do pulsar existencial das coisas, à dança de Shiva; e mesmo o sentir quieto ali naquele canto pode estar afetando uma estrutura qualquer de uma parte qualquer do universo.” 4, 5 e 6 – “O afeto, portanto, é fogo; portanto, se cuide – mas se descuide, também, do seu sentir; pois de todo modo ele é pleno, dono de si; ele trabalha no campo onde as bactérias se criam, os átomos se criam e os eventos se dão; e, mesmo entre as partículas, o que não é visível nem palpável ainda assim é e pertence ao intercâmbio das afeições amplas, universais.”
III; 1, 2 e 3 – “A autonomia plena da vida sobre nós e o imperativo da fatalidade de ter nascido e ter que morrer; ter que viver esse ‘alfômega’ nascimento-morte, a grande questão colocada para nós.” 4, 5 e 6 – “De como a vida entra pelos olhos e é o ferir incondicional do brilho neles. Sob o sol ou sob a lua, a esteira de luz estendida sobre a superfície do mar será irremediavelmente captada pelos olhos abertos. A irredutibilidade do fenomenólogico. O ser sendo ferido pelos estímulos externos aos quais os seus sentidos, todos, dão sentido; a natureza se fazendo linguagem através do homem.
“A simples exposição dos versos pode não remeter de imediato a significados tão vastos, múltiplos e profundos, que, no entanto, estão engastados na intenção processual da canção; no porquê de ela ter sido feita. Eu não posso exigir de todo mundo a apreensão de todos esses sentidos, mas não posso aceitar a negação deles. Minha impressão é de que, no âmbito das pessoas cultas e inteligentes, afeitas ao dimensionamento cultural encarregador das leituras, Realce não é tão hermética; lida sua letra com o mínimo de atenção, muitos dos seus significados logo se insinuam, e as portas para outras digressões possíveís se abrem.”
*
“Era o momento auge da música disco – aquela linfa, aquela liquefação pop depois da época rock, da época hippie, conceitualmente mais densa. Iniciando o processo de expansão geográfica das minhas atividades e vivenciando o cotidiano das pessoas comuns de vários lugares do mundo, eu desejava conciliar os lugares-comuns das pessoas desses lugares e trazer os elementos da cultura de massa contemporânea internacional em sua complexidade.
“Por ter em mim os traços nítidos do criador marcado pelo compromisso com a banalidade, egresso de uma tradição cultural média brasileira, a da canção popular, eu me sentia parte integrante daquele fenômeno, a que vim a me referir como a ‘superfície do profundo’ – onde o profundo não é captado como tal e só pode ser captado como superficial porque só está na superficialidade.
“E é disso que falam Realce e outras canções minhas da época. Utilizando-se de elementos fáceis e flácidos mas remetendo também aos sentimentos de elevação que cada simples ser pode e deve ter, elas trabalhavam para uma conciliação do conceito de sofisticado com o conceito de banal, contra o reducionismo cataloguista dos cânones clássico e popular e contra a idéia do estanque prevalescendo sobre a do osmótico e interpenetrante.”
*
“Diziam: ‘Ah, o brilho! Está se referindo a cocaína!’ Nunca me passou cocaína pela cabeça, mas é evidente que, no campo da abrangência da canção, você tinha coisas como saturday night fever como elementos, e que a cocaína também estava ali; tudo estava: sexo, drogas e rock and roll, o prazer do hedonismo – assim como o prazer do acetismo. Cortes muito claros entre os dois lados; Ocidente-Oriente.”
*
“Realce custou muito tempo e aflição para ser feita pelas muitas funções sobrepostas com as quais ela se comprometeu de antemão, a começar pela de fecho da triologia dos ‘re’ – que tinha em Refazenda o primeiro e em Refavela o segundo ponto -, em substituição a Rebento, samba que fiz antes e que acabou estando no mesmo álbum, mas que não dava conta do conceito do álbum – que incluía a maré rasa da efervescência disco e o poço fundo da contemplação espiritual.
(“Minhas músicas têm quase sempre um estímulo conceitual, que é também quase sempre o do disco de que fazem parte. Raramente uma canção minha nasce da simples decisão de exercitar as palavras e os sons, fazer quebra-cabeças, ludos criativos. Em geral elas partem de um fundamento religioso, filosófico ou político, de alguma intenção pré-determinada, de algo a ser dito e explicado).
“Eram muito apriorísticas as proposições e o alcance de Realce. Sentidos novos iam sendo exigidos e agregados ao longo do tempo da sua realização, e a cada dia a música ficava mais dificil. Começada aqui, onde anotei as primeiras idéias, soltas, ela tomou umas dez páginas de esboços, e eu só a terminei após dois meses de excursão pelos Estados Unidos, quando já estava gravando o disco, lá.”
*
“A expressão-título surgiu por causa da Lita Cerqueira, fotógrafa, negra, baiana, vinda de Santo Antonio, meu bairro, frequentadora da minha casa e da casa de Caetano, pessoa das nossas relações íntimas e com muitos interesses comuns a nós na época. Ela falava muito em ‘realce’, ‘realçar’…”
Rebento
Gilberto Gil
O ato, a criação, o seu momento
Como uma estrela nova e o seu barato
Que só Deus sabe lá no firmamento
Rebento, tudo que nasce é rebento
Tudo que brota, que vinga, que medra
Rebento raro como flor na pedra
Rebento farto como trigo ao vento
Outras vezes rebento simplesmente
No presente do indicativo
Como a corrente de um cão furioso
Como as mãos de um lavrador ativo
Às vezes mesmo perigosamente
Como acidente em forno radioativo
Às vezes, só porque fico nervoso
Às vezes, somente porque eu estou vivo
Rebento, a reação imediata
A cada sensação de abatimento
Rebento, o coração dizendo: “Bata”
A cada bofetão do sofrimento
Rebento, esse trovão dentro da mata
E a imensidão do som
E a imensidão do som
E a imensidão do som desse momento
Refarm
Gilberto Gil
The Eternal Life is sending me
On the task of speaking to you
Words of paciency
I bring the lion
And the duck as country fellows
May they tell you many fairy tales
Avocato tree
Oh, avocato tree
The Eternal Life is knowing
How misleading technology
Has been to us, so far
We can see
Devastation in the forest
Desolation in the city
We can feel destruction in the air
Oh, avocato tree
Although the picture is so dark
And the blue sky is no longer blue
Oh, don’t be sad, and never
Let the dead leaves of Automn time
Be the only choice for you
Spring is coming
Somewhere in the future
In the Universal Vegetal Union
Avocato tree
Let our free wings
Fly together over lands
Of Rebirth in a Refarm
In a world of Fantasy
Refarm is a dream land
In Tennessee
Where they grow a dream
Avocato tree
[ inédita – Refazenda, de Gilberto Gil ]
Refavela
Gilberto Gil
A refavela
Revela aquela
Que desce o morro e vem transar
O ambiente
Efervescente
De uma cidade a cintilar
A refavela
Revela o salto
Que o preto pobre tenta dar
Quando se arranca
Do seu barraco
Prum bloco do BNH
A refavela, a refavela, ó
Como é tão bela, como é tão bela, ó
A refavela
Revela a escola
De samba paradoxal
Brasileirinho
Pelo sotaque
Mas de língua internacional
A refavela
Revela o passo
Com que caminha a geração
Do black jovem
Do black-Rio
Da nova dança no salão
Iaiá, kiriê, kiriê, iáiá
A refavela
Revela o choque
Entre a favela-inferno e o céu
Baby-blue-rock
Sobre a cabeça
De um povo-chocolate-e-mel
A refavela
Revela o sonho
De minha alma, meu coração
De minha gente
Minha semente
Preta Maria, Zé, João
A refavela, a refavela, ó
Como é tão bela, como é tão bela, ó
A refavela
Alegoria
Elegia, alegria e dor
Rico brinquedo
De samba-enredo
Sobre medo, segredo e amor
A refavela
Batuque puro
De samba duro de marfim
Marfim da costa
De uma Nigéria
Miséria, roupa de cetim
Iaiá, kiriê, kiriê, iáiá
“Em 77, eu fui participar do Festac, festival de arte e cultura negra, em Lagos, na Nigéria, onde reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas.
“Para abrigar os 50 mil negros do mundo inteiro que para lá acorreram, tinha sido construída uma espécie de vila olímpica com pequenas casas feitas com material barato e um precário abastecimento de água e luz, que reavivou em mim a imagem física do grande conjunto habitacional pobre. Refavela foi estimulada por este reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já houvesse o compromisso conceitual com o re para prefixar o título do novo trabalho, de motivação urbana, em contraposição a Refazenda, o anterior, de inspiração rural.
“A esses fatores se somaram outros, locais: a mobilidade, por vezes difícil, outras vezes facilitada, dos negros cariocas na relação morro-asfalto e o movimento da juventude black-Rio, que se instalava propondo novos estilos de participação na questão da negritude no Brasil e no mundo, com mais atividade cultural e absorção de elementos do discurso e da luta negra da América e da África.
“A dificuldade com que a história tem-se defrontado para proporcionar o verdadeiro resgate da cultura e da natureza dos negros, exatamente pela manutenção reiterada da sua condição paupérrima; a coisa da ‘miséria roupa de cetim’, da ‘Belíngia’ (Bélgica/Índia), esse binômio de disparidades – Refavela é sobre isso. A informação forte da música está nas duas primeiras estrofes; perto delas, o resto é ornamento.”
*
“Preta Maria, Zé, João” – “‘Preta Maria’: Preta Maria e Maria, as minhas filhas e da Sandra (Preta é de 74, Maria, de 76; era pequenininha na época). A música ‘antevê’ José, meu filho, que nasceria em 91, e João, meu neto, em 90; ‘Zé, João’: brasileiros.”
Refazenda
Gilberto Gil
Acataremos teu ato
Nós também somos do mato
Como o pato e o leão
Aguardaremos
Brincaremos no regato
Até que nos tragam frutos
Teu amor, teu coração
Abacateiro
Teu recolhimento é justamente
O significado
Da palavra temporão
Enquanto o tempo
Não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate
E anoitecerá mamão
Abacateiro
Sabes ao que estou me referindo
Porque todo tamarindo tem
O seu agosto azedo
Cedo, antes que o janeiro
Doce manga venha ser também
Abacateiro
Serás meu parceiro solitário
Nesse itinerário
Da leveza pelo ar
Abacateiro
Saiba que na refazenda
Tu me ensina a fazer renda
Que eu te ensino a namorar
Refazendo tudo
Refazenda
Refazenda toda
Guariroba
“Refazenda resultou de uma justaposição de nonsenses. Começou com um brainstorm com sons: fui aleatoriamente escolhendo palavras que rimassem e cheguei a um embrião interessante – um desses troncos de árvores tronchas sobre os quais o cinzel dos artistas populares vai trabalhar para fazer esculturas loucas, à la Antonio Conselheiro, do Mario Cravo, nascida de um tronco com dois galhos de braços abertos. O esboço era maior e muito mais absurdo: não tinha sentido nenhum! Aos poucos fui criando sentidos parciais a certas frases, até desejar um sentido geral para todas.
“Os versos foram feitos antes da música, obedecendo a um ritmo que eu tinha na cabeça. Para o primeiro, escolhi o alexandrino, um dos preferenciais do cantador nordestino, pois queria a priori uma canção com esse direcionamento country.”
“Abacateiro, acataremos teu ato” – “Na época pensaram que eu me referia à ditadura militar (o verde da farda) e ao ato institucional, o que nem me passou pela cabeça. O que me veio mesmo foi a natureza em seu contexto doméstico, amansada, a serviço da fruição – daí a idéia de pomar e das estações. Refazenda é rememoração do interior, do convívio com a natureza; reiteração do diálogo com ela e do aprendizado do seu ritmo.”
Linguagem transgressiva – “O período em que compus a canção é permeado pelo nonsense ou o que o tangenciasse; por um despudor audacioso de brincar com as palavras e as coisas; por um grau de permissibilidade, de descontração, de gosto pela transgressão do gosto. É uma fase muito ligada aos estados transformados de consciência, pelas drogas, e a consequente multiplicidade de sentidos e não-sentidos.”
Guariroba – “Nome de uma palmeira do Planalto Central, a palavra dava nome também a uma fazenda que um grupo de amigos (Roberto Pinho, Pontual e outros) tinha a uns cem quilômetros de Brasília. Chegou-se a pensar em criar lá uma comunidade alternativa, onde nos juntássemos todos com nossas famílias. Não deu certo, e a fazenda foi vendida.”
Refestança
Gilberto Gil
Rita Lee
Quem pode dançar
Refestança, canta, canta, canta, canta
Quem pode cantar
Na hora, aqui agora, quando a banda tocar
Senhoras e senhores, crianças, vamos voar
Voar, voar, podem desatar os cintos de segurança
Que a esperança é vontade
Que a bonança é verdade
Que a verdade é amar
Refestança, dança, dança, dança, dança
Quem pode dançar
Refestança, canta, canta, canta, canta
Quem pode cantar
Só não pode quem não quiser
Ver que o céu da terra é azul
Ver que o verde é verde
Que a vida viaja
E com a vida a gente vai, vai, vai, vai
Refestança, dança, dança, dança, dança
Quem pode dançar
Refestança, canta, canta, canta, canta
Quem pode cantar
Regina de janeiro, fevereiro e março
Gilberto Gil
Arlindo Cruz
É tão gente fina que sabe chegar
Em qualquer esquina
Lá na cobertura, na laje ela está
É quem domina.
Porque tem a sina de ser popular… alô
Alôôôô rainha
Se vai ter churrasco, feijão, vatapá
Vai pra cozinha.
Tem coisa gostosa de todo lugar
Traz a farinha!
O camarão seco, o jambu eo fubá
E faaaaaaz verão
E hoje é domingo
Dia que o povão… agita!
Se liga, se encontra, faz conexão, twita
Ou pra se dar bem,
Ou pra botar alguém na fita.
Bateria arrebenta, todo mundo comenta,
Que feito pimenta, o programa domingo esquenta.
Regina de janeiro, fevereiro e março…
Alô, alô…
Rei do maracatu
Gilberto Gil
Jorge Ben Jor
Pulou pra qui pulou pra lá
Mas não pediu licença pra sambar
Coitado do nego, o nego vai apanhar
Mas nego não precisa de licença
Pois nego é nego tu
O nego não vai apanhar
Pois nego é rei, rei, rei
É rei do maracatu
Toda vida trabalhando, se virando
E o capitão da mata procurando
Um jeito de evitar que o nego
Bote pra quebrar
Pois ele é nego tu
Pois ele é rei, rei, rei
É rei do maracatu
Relógio do tempo
Gilberto Gil
“Brasil ano 2000”, vários, Universal
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
Rep
Gilberto Gil
Mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O que não sabe, o que não saberia
O que não saboreia porque é só visão
E tão somente cores, a cor do veludo
Ludo, luz, brinquedo, ledo engano, tele
Teletecido à prova de tesoura
Que não corta, não costura, que não veste
Que resiste ao teste da pele, não rasga
Nunca sai da tela, nunca chega à sala
Que é pura fala, que é beleza pura
É a pura privação de outros sentidos tais
Como o olfato, o tato e seus outros sabores
Não apenas cores, mas saliva e sal
Veludo em carne viva, nutritiva
Não apenas realidade virtual
Veludo humano, pano em carne viva
Menos realce, mais vida real
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O que não sabe, o que não saberia
Porque morreria sem poder provar
Como provar a pilha com a ponta da língua
Receber o choque elétrico e saber
Poder matar a fome é pra quem come, é claro
Não apenas pra quem vê comer
Assim feito a criança pobre esfarrapada
Come feijoada que vê na TV
Essa criança quer o que não come
Quer o que não sabe, quer poder viver
Assim como viveu um Galileu, um Newton
E outros tantos muitos pais do amanhã
Esses que provam que a Terra é redonda
E a gravidade é a simples queda da maçã
Que dão ao povo os frutos da ciência
Sabores sem os quais a vida é vã
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
Réquiem
Gilberto Gil
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Réquiem pra Mãe Menininha do Gantois
Gilberto Gil
Minha mãe se foi
Minha mãe se foi
Sem deixar de ser – ora, iêiê, ô
Dói
Minha alma ainda dói
Minha alma ainda dói
Sem deixar doer – ora, iêiê, ô
Foi
Tão boa pra nós
Tão boa pra nós
Não deixa de ser – ora, iêiê, ô
Mãe
Do orum, do céu
Do orum, do céu
Me ajuda a viver neste ilê aiê
Rara
Ouro
Guarda o tesouro pra nós
Riso
Puro
Porto Seguro pra nós
Vemos
Vivo
O brilho da tua luz
Iluminando nossos corações
Ouve nossa oração
Escuta a demanda de cada um
Manda teu doce axé
Recomenda ao santo o teu candomblé
Fala com cada um
Fala com cada um
Fala com cada filho fiel
Canta pra todos nós
Derrama sobre todos o teu mel
Foi
Minha mãe se foi
Minha mãe se foi
Sem deixar de ser a Rainha do Trono Dourado de Oxum
Sem deixar de ser
Mãe de cada um
Dos filhos pra quem eternamente sempre haverá
Mãe Menininha
Mãe Menininha
Mãe Menininha
Mãe Menininha
Mãe Menininha
Retirante
Gilberto Gil
Eu tenho que voltar
Tenho que ver ainda o meu sertão
Que um dia eu deixei por lá
Eu tenho que voltar
Eu tenho que voltar
Pra ver se existe ainda
A esperança, ainda
Que eu deixei por lá
Eu tenho que voltar
Eu tenho que voltar
Tenho que ver se o tempo
Já mandou o mato verde
Que o sertão sempre esperou
Tanta esperança deram pro povo
Triste do meu sertão
Foi tanta oração, tanta procissão
Foi tanta gente pra dizer
Que dava de comer pro meu sertão
Mas eu não creio, não
Mas eu não creio, não
Do jeito que anda a vida
A esperança ainda de lutar se vê
Pro homem não morrer
Meu homem do sertão
[ inédita ]
Retiros espirituais
Gilberto Gil
Descubro certas coisas tão normais
Como estar defronte de uma coisa e ficar
Horas a fio com ela
Bárbara, bela, tela de TV
Você há de achar gozado
Barbarela dita assim dessa maneira
Brincadeira sem nexo
Que gente maluca gosta de fazer
Eu diria mais, tudo não passa
Dos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo o que eu disse
Reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, ó
Luar tão cândido
Nos meus retiros espirituais
Descubro certas coisas anormais
Como alguns instantes vacilantes e só
Só com você e comigo
Pouco faltando, devendo chegar
Um momento novo
Vento devastando como um sonho
Sobre a destruição de tudo
Que gente maluca gosta de sonhar
Eu diria, sonhar com você jaz
Nos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo que eu disse
Reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, ó
Luar tão cândido
Nos meus retiros espirituais
Descubro certas coisas tão banais
Como ter problemas ser o mesmo que não
Resolver tê-los é ter
Resolver ignorá-los é ter
Você há de achar gozado
Ter que resolver de ambos os lados
De minha equação
Que gente maluca tem que resolver
Eu diria, o problema se reduz
Aos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo que eu disse
Reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, ó
Luar tão cândido
“Retiros Espirituais lança um olhar singelo, simplório, sobre a questão filosófica do ser e não ser; sobre o paradoxo do princípio da incerteza, do que é e não é. É uma das minhas músicas sobre o wu wei, a ação-não-ação, a idéia de superação e alcance do ser, onde tudo é; sobre o fato de que o pensamento consciente, sob a égide da volição, ainda é o que se chamaria o estágio zen, o satori, o samadhi, o sat ananda indiano, onde arqueiro, arco e alvo se confundem e sujeito, ato e objeto são uma só coisa.
“Talvez seja a minha obra-prima nesse sentido, porque a mais engenhosa do ponto de vista poemático; uma letra que transcende ao aspecto comum da letra de música, na verdade um poema musicado. No trato da sua criação, os versos não serviram apenas para preencher os vazios das caixas das frases sonoras. Quando eu sentei para escrever, eu já escrevi com o sentimento do poema, como se já houvesse algo sendo dito e o frasear fosse apenas uma explicação do que estava sendo dito. Como uma nuvem que fosse um poema cujos versos fossem a chuva: a chuva é depois da nuvem, dissolução em gotas, fragmentação do ‘denso-condenso’ que é a nuvem: assim eram os versos em relação ao poema e vice-versa.
“Eu estava sozinho na sala de jantar, uma hora da manhã, a família já recolhida, tendo ido dormir, após uma daquelas noites que eu tinha passado com todos sentado defronte a televisão vendo o jornal e a novela, e quis buscar e revelar através da escrita, numa espécie de poema-espírito, poema-situação, o que era estar ali diante do mistério da solidão, na meditação, no compartilhar do silêncio que substituía o ruído da vida, da casa, na madrugada, com a sua capacidade de assepcia, de filtragem do que tinha sido o dia. E a canção foi sendo feita, letra e música juntas.
“É uma das músicas minhas que mais prezo, por ser das primeiras que dão uma radiografia da minha subjetividade e visceralidade interior, álmica. E é dividida em três partes para apresentar o movimento de tese-antítese-síntese de que gosto muito.”
Retrata
Gilberto Gil
“Brasil ano 2000”, vários, Universal
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
Rio eu te amo
Gilberto Gil
e associar a isto a minha dor
de onde quer que eu esteja, qual seja
longe ou perto o lugar
de pedra sobre a pedra ele luar
esta paisagem bela toda cor
da tela que tanto pintor pintou
basta avistar o Cristo e a isto
poder associar
amor e dor e amar e amar
Rio Rio Rio choro e rio rio e choro
Rio Rio Rio rio e choro choro e rio
Acompanhar-te os passos da paixão
tem sido em parte a arte da nação
tantos poetas tantos cantores traçando teus perfis
e olhos do mundo inteiro pro teu nariz
ontem nos deste um jeito de dançar
hoje eu trago no peito o teu penar
eta cidade imensa quem pensa poder te entender
x’que entenda e venha me dizer
Rio Rio Rio choro e rio rio e choro
Rio Rio Rio rio e choro choro e rio
Roda
Gilberto Gil
João Augusto
Na roda que eu te fiz
Quero mostrar a quem vem
Aquilo que o povo diz
Posso falar, pois eu sei
Eu tiro os outros por mim
Quando almoço, não janto
E quando canto é assim
Agora vou divertir
Agora vou começar
Quero ver quem vai sair
Quero ver quem vai ficar
Não é obrigado a me ouvir
Quem não quiser escutar
Quem tem dinheiro no mundo
Quanto mais tem, quer ganhar
E a gente que não tem nada
Fica pior do que está
Seu moço, tenha vergonha
Acabe a descaração
Deixe o dinheiro do pobre
E roube outro ladrão
Agora vou divertir
Agora vou prosseguir
Quero ver quem vai ficar
Quero ver quem vai sair
Não é obrigado a escutar
Quem não quiser me ouvir
Se morre o rico e o pobre
Enterre o rico e eu
Quero ver quem que separa
O pó do rico do meu
Se lá embaixo há igualdade
Aqui em cima há de haver
Quem quer ser mais do que é
Um dia há de sofrer
Agora vou divertir
Agora vou prosseguir
Quero ver quem vai ficar
Quero ver quem vai sair
Não é obrigado a escutar
Quem não quiser me ouvir
Seu moço, tenha cuidado
Com sua exploração
Se não lhe dou de presente
A sua cova no chão
Quero ver quem vai dizer
Quero ver quem vai mentir
Quero ver quem vai negar
Aquilo que eu disse aqui
Agora vou divertir
Agora vou terminar
Quero ver quem vai sair
Quero ver quem vai ficar
Não é obrigado a me ouvir
Quem não quiser escutar
Agora vou terminar
Agora vou discorrer
Quem sabe tudo e diz logo
Fica sem nada a dizer
Quero ver quem vai voltar
Quero ver quem vai fugir
Quero ver quem vai ficar
Quero ver quem vai trair
Por isso eu fecho essa roda
A roda que eu te fiz
A roda que é do povo
Onde se diz o que diz
Roque Santeiro, O Rock
Gilberto Gil
Agora, o menino é tudo de novo no front
Outrora, só rebeldia
Agora, soberania na noite neon
Outrora, mera fumaça
Agora, fogo da raça, fogoso rapaz
Outrora, mera ameaça
Agora, exige o direito ao respeito dos pais
E tem mais, e tem mais, e tem mais
E tem mais, e tem mais
Outrora, arraia miúda
Agora, lobão de boca bem grande a gritar
Outrora, pirado e louco
Agora, poucos insistem em negar-lhe o lugar
Outrora, frágil autorama
Agora, três paralamas de grande carreta de som
Outrora, simples bermuda
Agora, ultravestido de elegante ultraje a rigor
E o amor, e o amor, e o amor, e o amor
E o amor, e o amor, e o amor
Só quem não amar os filhos
Vai querer dinamitar os trilhos da estrada
Onde passou passarada
Passa agora a garotada, destino ao futuro
Deixa ele tocar o rock
Deixa o choque da guitarra tocar o santeiro
Do barro do motocross
Quem sabe ele molde um novo santo padroeiro
Outrora, o seio materno
Agora, o meio da rua, na lua, nas novas manhãs
Outrora, o céu e o inferno
Agora, o saber eterno do velho sonho dos titãs
Outrora, o reino do Pai
Agora, o tempo do Filho com seu novo canto
Outrora, o Monte Sinai
Agora, sinais da nave do Espírito Santo
E o encanto, e o encanto, e o encanto, e o encanto
E o encanto, e o encanto, e o encanto, e o encanto