Músicas
Pai e mãe
Gilberto Gil
Aprendendo a beijar
Outros homens
Como beijo o meu pai
Eu passei muito tempo
Pra saber que a mulher
Que eu amei
Que amo
Que amarei
Será sempre a mulher
Como é minha mãe
Como é, minha mãe?
Como vão seus temores?
Meu pai, como vai?
Diga a ele que não
Se aborreça comigo
Quando me vir beijar
Outro homem qualquer
Diga a ele que eu
Quando beijo um amigo
Estou certo de ser
Alguém como ele é
Alguém com sua força
Pra me proteger
Alguém com seu carinho
Pra me confortar
Alguém com olhos
E coração bem abertos
Pra me compreender
“Composta no dia em que eu completei 33 anos, 26 de junho de 1975. Uma música de confissão de afeto profundo pelos pais, colocando todos os homens queridos como sendo um prolongamento do pai e todas as mulheres amadas como um prolongamento da mãe. Meus pais moravam em Vitória da Conquista na época e festejaram muito a canção.”
Palco
Gilberto Gil
Minha alma cheira a talco
Como bumbum de bebê
De bebê
Minha aura clara
Só quem é clarividente pode ver
Pode ver
Trago a minha banda
Só quem sabe onde é Luanda
Saberá lhe dar valor
Dar valor
Vale quanto pesa
Pra quem preza o louco bumbum do tambor
Do tambor
Fogo eterno pra afugentar
O inferno pra outro lugar
Fogo eterno pra consumir
O inferno fora daqui
Venho para a festa
Sei que muitos têm na testa
O deus Sol como um sinal
Um sinal
Eu, como devoto
Trago um cesto de alegrias de quintal
De quintal
Há também um cântaro
Quem manda é a deusa Música
Pedindo pra deixar
Pra deixar
Derramar o bálsamo
Fazer o canto cântaro cantar
Lalaiá
Fogo eterno pra afugentar
O inferno pra outro lugar
Fogo eterno pra consumir
O inferno fora daqui
De que fala Palco (“o primeiro afoxé forte”) – “De um espaço semi-sagrado; da sua função exorcizante, catártica, clínica – daí o refrão (na hora em que compus, eu me lembrava muito do pouco que sabia sobre as tragédias gregas, o palco grego, Dionísios).
“De um sacerdócio; da capacidade de administrar um ritual – o da música em funcionamento, cumprindo seus ditames; de como eu me vejo nesse papel, como eu fantasio a minha visão e como eu vejo essas fantasias do meu próprio olhar.
“Do aspecto transmutador da música para mim no palco: de como estar ali faz provavelmente desaparecer uma opacidade natural do caráter bruto das coisas comuns sem sabores especiais do cotidiano, e como o haver ali sabores especiais em tudo me dá um aspecto de transfiguração – daí a idéia de que ali se propicia que alguém veja minha aura.”
Compor e cantar – “Duas dimensões e dois retornos diferentes à alma. Compor é motivo de extraordinário, transcendental orgulho pela vida, o de fazer parte do universo da criação; cantar é motivo de vaidade. É muito envaidecedor estar num palco e produzir prazer instantaneamente para todos – uma afirmação anímica de vida da música através das energias dos corpos humanos ao vivo. No palco, além de diversão, a sensação é de doação, de benfeitoria do homem para o homem. Já o momento da composição é solitário, individual, e, ao se esgotar, daí por diante é como se a música partisse para o mundo, como um filho. Cantar é reabraçar os filhos, reuni-los de novo ao seu corpo, fazê-los parte do seu corpo.”
“Cântaro = cantar o” – “Quando eu digo ‘cantar o’, eu digo de novo ‘cântaro’. Mais do que rima, é recomposição: a palavra ‘cântaro’ é reconstituída, como se tivessem embutido ali o cântaro. Muitas pessoas não devem nem perceber o ‘cantar o’; na audição deve prevalecer ‘cântaro’ mesmo.”
Panis et Circenses
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e em morrer
Mandei fazer
De puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e em morrer
Mandei plantar
Folhas de sonho no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar
Mas as pessoas na sala de jantar
Essas pessoas da sala de jantar
São as pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e em morrer
Parabolicamará
Gilberto Gil
Porque Terra era grande
Hoje mundo é muito grande
Porque Terra é pequena
Do tamanho da antena parabolicamará
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo dá volta, camará
Antes longe era distante
Perto, só quando dava
Quando muito, ali defronte
E o horizonte acabava
Hoje lá trás dos montes, den de casa, camará
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo dá volta, camará
De jangada leva uma eternidade
De saveiro leva uma encarnação
Pela onda luminosa
Leva o tempo de um raio
Tempo que levava Rosa
Pra aprumar o balaio
Quando sentia que o balaio ia escorregar
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo dá volta, camará
Esse tempo nunca passa
Não é de ontem nem de hoje
Mora no som da cabaça
Nem tá preso nem foge
No instante que tange o berimbau, meu camará
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo da volta, camará
De jangada leva uma eternidade
De saveiro leva uma encarnação
De avião, o tempo de uma saudade
Esse tempo não tem rédea
Vem nas asas do vento
O momento da tragédia
Chico, Ferreira e Bento
Só souberam na hora do destino apresentar
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo dá volta, camará
*
“Em Parabolicamará pus o tempo existencial, psíquico, em contraposição ao tempo cronológico – a eternidade, a encarnação e a saudade à jangada e ao saveiro – e estes dois ao avião -, para insinuar o encurtamento do tempo-espaço provocado pelo aumento da rapidez dos meios de comunicação física e mental do mundo-tempo moderno e das velocidades transformadoras em que vivemos. Pus também o tempo sub-atômico, da partícula, da subfração de tempo; do átomo de tempo – cuja imagem mais representativa é exatamente a correção equilibradora que a Rosa faz com o balaio. E pus por fim o tempo da morte, o tempo-corte, o tempo que corta, ceifa, o tempo-foice, onde alguma coisa é e de repente foi-se, lembrando – na citação dos caymmianos Chico, Ferreira e Bento – a morte do meu filho: a situação, segundo se imagina, de ele meio sonolento no volante do carro sendo subitamente assaltado pelo evento acidental que o levaria à morte.”
Patumbalacundê
Gilberto Gil
João Donato
Durval Ferreira
Orlandivo
Patumbalacundê – um pé
Patumbalacundê – um lá
Patumbalacundê – um sol
Patumbalacundê – um faz
Patumbalacundê – um diz
Patumbalacundê – um dez
Patumbalacundê – um ás
Patumbalacundê – um giz
Patumbalacundê – um tom
Patumbalacundê – talvez
Patumbalacundê – um gás
Pé da roseira
Gilberto Gil
E as flores caíram no chão
Quando ela chorava, eu dizia:
“Tá certo, Maria
Você tem razão”
Quando ela chorava, eu dizia:
“Tá certo, Maria
Você tem razão”
Maria chorava, eu fugia
Sem ter nada mais pra dizer
O amor terminado e Maria
Me via partindo, sem saber por quê
Me via partindo e chorava
Me amava e não podia crer
Que o mundo afinal me levava
E nada lhe dava o jeito de entender
Eu também não compreendia
Porque terminava um amor
Nem mesmo se o amor terminava
Só sei que eu andava
E não sentia dor
Me lembro na porta da casa
Lá dentro Maria chorava
Depois, caminhando sozinho
Lembrei da ciranda que meu pai cantava
Depois, caminhando sozinho
Lembrei da ciranda que meu pai cantava
O pé da roseira murchou
E as flores caíram no chão
Quando ela chorava, eu dizia:
“Tá certo, Maria
Você tem razão”
Quando ela chorava, eu dizia:
“Tá certo, Maria
Você tem razão”
Pé quente, cabeça fria
Gilberto Gil
Pé quente, cabeça fria, dou-lhe duas
Pé quente, cabeça fria, dou-lhe três
Saia despreocupado
Você pode conquistar o mundo dessa vez
Pé quente, cabeça fria, dou-lhe uma
Pé quente, cabeça fria, dou-lhe duas
Pé quente, cabeça fria, dou-lhe três
Saia despreocupado
Faça tudo que você queria e nunca fez
Pé quente, cabeça fria, numa boa
Pé quente, cabeça fria, na maior
Pé quente, cabeça fria, na total
Saia despreocupado
Mas cuidado porque existe o bem e o mal
Pé quente, cabeça fria, numa boa
Pé quente, cabeça fria, na maior
Pé quente, cabeça fria, na total
Saia despreocupado
Mas se alguém se fizer de engraçado, meta o pau
Pedaços de sinceridade
Gilberto Gil
Desejava ardentemente possuí-la
Melhor será, porém, sofrer do que traí-la
Sofrer a dor de não poder ser feliz
Viver na angústia, se Deus assim o quis
Há alguém em nossos caminhos
Pedra gigante
Gilberto Gil
Vaza um sol
A grandeza da Gávea
Zé Ninguém
Lá, gravita, levita o que era pó
Lá, fagulha a paisagem
Zoom e zen
Lá, descasca do corpo o fruto nu
Goza montanhas no mar
Beira céus, asa delta, ela feliz
Ela vem da fenícia, lenda flor
Xangô na força lunar
Na floresta ela vinga o dom da luz
A pedra, a glória de um Deus
Outras gravações:
“Cássia Eller”, Cássia Eller, Polygram
Pega a voga, cabeludo
Gilberto Gil
Juan Arcon
Que eu não sou cascudo
Tenho muito estudo
Pra fazer minha embolada
Cá na batucada não me falta nada
Eu tenho tudo
Tenho uma tinta
Que no dia que não pinta fica feia
Tenho uma barca
Que no dia de fuzarca fica cheia
E a mulata que tem ouro
Que tem prata, que tem tudo
É quem grita: “Pega a voga
Pega a voga, cabeludo!”
[ Recolhida por Juan Arcon e adaptada por Gilberto Gil
e Juan Arcon, do folclore amazonense ]
Pela graça do sol
Gilberto Gil
Sofro as peripécias do amor
Luto pela praça maior
E a permanência da flor
Sonho com a raça melhor
Filha do prazer e da dor
Rolo como as pedras do chão
Quebro como as ondas do mar
Mudo como as nuvens do céu
Sempre soltas pelo ar
Amplo, abro o meu coração
Pra que tudo entre e encontre lugar
Lá-laiá-laiá
Lá-laiá-laiá
O que me faz cantarolar
Lá-laiá-laiá
Lá-laiá-laiá
É a esperança
De chegar criança
Ainda que crescida
Aos jardins do fim da vida
[ inédita ]
Pela Internet
Gilberto Gil
Fazer minha home-page
Com quantos gigabytes
Se faz uma jangada
Um barco que veleje
Que veleje nesse infomar
Que aproveite a vazante da infomaré
Que leve um oriki do meu velho orixá
Ao porto de um disquete de um micro em Taipé
Um barco que veleje nesse infomar
Que aproveite a vazante da infomaré
Que leve meu e-mail até Calcutá
Depois de um hot-link
Num site de Helsinque
Para abastecer
Eu quero entrar na rede
Promover um debate
Juntar via Internet
Um grupo de tietes de Connecticut
De Connecticut acessar
O chefe da Macmilícia de Milão
Um hacker mafioso acaba de soltar
Um vírus pra atacar programas no Japão
Eu quero entrar na rede pra contactar
Os lares do Nepal, os bares do Gabão
Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular
Que lá na praça Onze tem um vídeopôquer para se jogar
Pela Internet 2
Gilberto Gil
Lancei minha homepage
Com 5 gigabytes
Já dava pra fazer um barco que veleje
Meu novo website
Minha nova fanpage
Agora é terabyte
Que não acaba mais por mais
que se deseje
Que o desejo agora é garimpar
Nas terras das serras peladas virtuais
As criptomoedas, bitcoins e tais
Novas economias, novos capitais
Se é música o desejo a se considerar
É só clicar que a loja digital já tem
Anitta, Arnaldo Antunes, e não sei mais quem
Meu bem, o iTunes tem
De A a Z quem você possa imaginar
Estou preso na rede
Que nem peixe pescado
É zapzap, é like
É instagram, é tudo muito bem bolado
O pensamento é nuvem
O movimento é drone
O monge no convento
Aguarda o advento de Deus pelo iPhone
Cada dia nova invenção
É tanto aplicativo que eu não sei mais não
What’s app, what’s down, what’s new
Mil pratos sugestivos num novo menu
É Facebook, é Facetime, é Google Maps
Um zigue-zague diferente, um beco, um CEP
Que não consta na lista do velho correio
De qualquer lugar
Waze é um nome feio, mas é o melhor meio
De você chegar
Pessoa nefasta
Gilberto Gil
Vê se afasta teu mal
Teu astral que se arrasta tão baixo no chão
Tu, pessoa nefasta
Tens a aura da besta
Essa alma bissexta, essa cara de cão
Reza
Chama pelo teu guia
Ganha fé, sai a pé, vai até a Bahia
Cai aos pés do Senhor do Bonfim
Dobra
Teus joelhos cem vezes
Faz as pazes com os deuses
Carrega contigo uma figa de puro marfim
Pede
Que te façam propícia
Que retirem a cobiça, a preguiça, a malícia
A polícia de cima de ti
Basta
Ver-te em teu mundo interno
Pra sacar teu inferno
Teu inferno é aqui
Pessoa nefasta
Tu, pessoa nefasta
Gasta um dia da vida
Tratando a ferida do teu coração
Tu, pessoa nefasta
Faz o espírito obeso
Correr, perder peso, curar, ficar são
Solta
Com a alma no espaço
Vagarás, vagarás, te tornarás bagaço
Pedaço de tábua no mar
Dia
Após dia boiando
Acabarás perdendo a ansiedade, a saudade
A vontade de ser e de estar
Livre
Das dentadas do mundo
Já não terás, no fundo, desejo profundo
Por nada que não seja bom
Não mais
Que um pedaço de tábua
A boiar sobre as águas
Sem destino nenhum
Pessoa nefasta
“Eu havia sido assaltado e, sem dúvida alguma, o fato influiu na minha criação: Pessoa Nefasta foi pra eles. Eram dois e, armados, nos imobilizaram, ficaram nos encarando, ameaçaram estuprar minha mulher e poderiam ter me matado, porque eu discuti com eles. É pro tipo de espírito deles que eu falo na letra, de sonoridades agressivas, toda no imperativo, como se dita por uma mãe de santo, um padre, um sacerdote, um guia espiritual, um exorcista: como um ‘vadi retro, Satanás’. Pessoa Nefasta é uma canção de exorcismo.”
Pílula de alho
Gilberto Gil
Da pílula de alho?
É uma pílula amarela
Cê toma uma daquela
Nem sabe o que é que sente
Mas a infecção já era
Eu tive dor de dente
Tomei algumas delas
As bichinhas logo agiram
Depois de certo (pouco) tempo
Senti-me melhorado
E os sintomas maus sumiram
A pílula de alho
Feita de alho e calor
É puro óleo de alho
É como a flor de dendê
É mel da planta isenta
De qualquer outro fator
A pílula de alho
Feita de alho e calor
A luminosidade
É de bola de gude
A transparência é cristalina
Vê-se que é coisa pura
Sente-se que é coisa nova
Sabe-se que é coisa fina
A pílula de alho
Da planta antibiótica
Da velha medicina
Que desenvolvimento!
Que belo (lindo) ensinamento
A pílula de alho ensina!
A pílula de alho
Feita de alho e calor
É puro óleo de alho
É como a flor de dendê
É mel da planta isenta
De qualquer outro fator
A pílula de alho
Feita de alho e calor
Platéia
Gilberto Gil
Representaria aquela idéia pagã
Da tribo frente ao ídolo
Do encanto frente ao brilho
Visão dum pai prum filho
Medo, espanto e adoração
Os olhos febris ali na frente
Buscariam encontrar a face de um deus
O pasmo frente ao mito
O afã do orgasmo pelo grito
Os corações aflitos
Dos hebreus frente a Moisés
Na derradeira fila da platéia, ao invés
Algo diferente dessa febre se dá
Como se os olhos, dali, fitassem através
Para além, depois, atrás do santo no altar
Sobre o palco, lá de longe, o que se retém
É mais etéreo, mais mistério, mais compaixão
Como se o olhar ali fosse o olhar da mãe
Meditando, vendo o filho a brincar no chão
Poço fundo
Gilberto Gil
Um mundo de mistério
Será que assim pareço
Pra você?
Pareço uma Alemanha
Montanha de minério
Será que assim mereço
Parecer?
Uma montanha negra
Consagrada ao rito
Dos pactos de amor que faço em mim
Pareço com uma pedra
Bruta
Preta de granito
Mereço mesmo parecer assim?
Pergunto porque junto do meu leito
Toda noite
Há sempre uma florzinha de cheirar
Pergunto porque junto do meu jeito
Meio afoito
Carrego uma ternura, um bem-estar
Pergunto porque dentro do meu peito
Todo dia
Se cria uma cantiga para o amor
Pergunto porque, embora de aparência
Um tanto fria
Nunca eu estou feia
Nunca estou vazia
Vivo sempre cheia
De uma simpatia
Nunca uma Alemanha
Sempre uma alegria
E a minha manha
É manhã de calor
Pode, Waldir?
Gilberto Gil
Pra prefeito, não
E pra vereador:
Pode, Waldir? Pode, Waldir? Pode, Waldir?
Prefeito ainda não pode porque é cargo de chefia
E na cidade da Bahia
Chefe!, chefe tem que ser dos tais
Senhores professores, magistrados
Abastados, ilustrados, delegados
Ou apenas senhores feudais
Para um poeta ainda é cedo, ele tem medo
Que o poeta venha pôr mais lenha
Na fogueira de São João
Se é poeta, veta!
Se é poeta, corta!
Se é poeta, fora!
Se é poeta, nunca!
Se é poeta, não!
O argumento é que o momento é delicado
E prum pecado desse tipo
Pode não haver perdão
Mudança é arriscado, muda-se o palavreado
Mas o indicado
Isso ele não muda, não
O indicado deve ser do tipo moderado
Com um mofo do passado
Peça do status quo
Se é poeta, veta!
Se é poeta, corta!
Se é poeta, fora!
Se é poeta, nunca!
Se é poeta… oh!
O certo poderia ser o voto no Zelberto
Mas examinando mais de perto
Ele tem que duvidar
A dúvida de que a Bahia tenha um dia tido a primazia
De nos dar folia
De nos afrocivilizar
Pra ele civilização é a França que balança
No seu peito de homem direito
Homem de jeito sutil
Se é poeta, veta!
Se é poeta, corta!
Se é poeta, fora!
Se é poeta, nunca!
Se o poeta é Gil!
Pra prefeito, não
Pra prefeito, não
E pra vereador:
Pode, Waldir? Pode, Waldir? Pode, Waldir?
[ inédita ]
Poema aritimimético
Gilberto Gil
Nove sílabas, mais, três a três
Esculpido, expandido de cor
Poema aritmético
Tema aritimimético
Recitado por nove casais
Evocando a memória de seis
Legendários senhores feudais
São dezoito jograis, vezes dez
São trezentas e sessenta mãos
São trezentos e sessenta pés
São as vozes na triste canção
São castelos, tavernas, bordéis
Castelos, tavernas, bordéis
São baladas de amor, catedrais
Armaduras, espadas, anéis
Sedução de vassalos leais
Traição de amantes fiéis
Protitutas, bufões, tribunais
Um complô de cardeais contra o rei
Trágicos, fatídicos finais
Os punhais por detrás matam seis
Lendários senhores feudais
Matam mais os audazes vilões
Matarão mesmo os nove casais
De jograis provençais, vezes 10
Cortam-lhes as cabeças e os pés
As trezentas e sessenta mãos
É um massacre, a matança cruel
Semelhante a São Bartolomeu
Já não matam mais seis, mas seis mil
Não matam mais seis, mas seis mil
Mil e quinhentos Pedro Cabral
De repente já é o Brasil
Como em 2001, A Odisséia no Espaço
No tempo, no breu
No espaço, no tempo, no breu
Na noite de São Bartolomeu
Versos de arte maior já não são
É o osso quebrado, é o céu
É a nave varando a amplidão
A nave varando a amplidão
Mil anos-luz daqui e de agora
Valei-me Deus e Nossa Senhora
Guiai-me no campo magnético
Poema aritmético
Tema aritimimético
Pop wu wei
Gilberto Gil
Assim como o sofrimento está para o gozo
Por isso eu faço tudo pra não fazer nada
Ou então não faço nada pra tudo fazer
Eu gosto de deixar a onda me levar sem nadar
Deixar o barco correr
Mas como o povo diz que Deus teria dito:
“Faz a tua parte que eu te ajudarei”
Melhor considerar o dito por não dito e dizer:
“Tudo que eu puder farei”
Meu bem, eu sei que posso estar contando prosa
E como é perigosa minha afirmação
Sair do movimento bem que pode ser um tormento
Eis outra constatação
O fato é que eu sou muito preguiçoso
Tudo que é repouso me dará prazer
Se Deus achar que eu mereço viver sem fazer nada
Que eu faça por merecer
Por que alguém tem inveja de você
Gilberto Gil
Por que que alguém tem de querer lhe negar valor?
Porque seu coração é bom
E na competição moral
Você contempla o bem e enfrenta o mal
Com a mesma decisão
Porque seu coração é bom
E em sua vida espiritual
Você vai à igreja e ao carnaval
Com a mesma devoção
Por que que alguém tem de implicar com você?
Por que que alguém tem tanta inveja de você, meu amor?
Por que que alguém tem de querer lhe negar valor?
Porque seu coração é bom
Seu dia a dia natural
Uma vida tão simples, tão normal
Sem drogas, com compaixão
Porque seu coração é bom
Sua bondade sutil
Se alguém repele ou finge que não viu
É pra não ter que ser igual a você
Por que que alguém tem de implicar com você?
Por que que alguém tem tanta inveja de você, meu amor?
Por que que alguém tem de querer lhe negar valor?
Porque seu coração é bom
E você ama o Lobo Mau
Você adora macarrão
Você gosta de dar quinau
Você detesta o gênero pinel
Você evita o que é vão
Você representa bem o seu papel
Você morre de medo de ladrão
[ inédita ]
Pra fazer o sol nascer
Gilberto Gil
Acende a luz
Atende à minha voz
A(s)cende de acender e de subir
De clarear
De despertar assim
A mim, a tudo mais
Atende à minha voz
Ao meu saxofone
Cor do sol
Sol
Nasce d’ouro pra nós
[ para o filme Um Trem para as Estrelas, de Carlos Diegues ]
Pra que mentir
Gilberto Gil
Geraldo Vandré
Minha dor
Não vá mentir
Que dor maior
Vou chorar se descobrir
Que a flor
Enganou pra não ferir
Sofrer
Todo mundo um dia vai
E eu
Já sabia que viria o dia de
Perder a flor
Chorar a dor
Pra que mentir
Sem ter porquê
Não vou guardar você
Pra que mentir
Pratitude
Gilberto Gil
Carlos Mendes
Igualitude
Venha, venha crer
Venha, venha crer
Uma delícia de prazer
Muita malícia de fazer
De fazer a preguiça
Foi na soma das cores
Corais e cantores
Vitória (a)tonal
Somatória total
Sobressai, sobressai
Sobressai, sobressai
Sobressai o normal
Quando fica uma face que faz
Com que brinca uma arte que arde
Que d’África
Arte que arde que d’África traz
Uma praia de cor
Traz uma praia de cor
Como casa de quem nunca saiu
Como asa de quem sempre voou
Prece
Gilberto Gil
Todos os dias rezarás por mim
Num pacto de orações e de energias
Que os nossos corações fazem entre si
Aos santos, aos iogues e orixás
Rogaremos os cuidados e atenção
As preces que eu farei, que tu farás
Nos trarão luz e paz
Nos unirão
Rezaremos na hora marcada
Às seis da tarde como reza a lei
No encontro entre o dia, a noite e o nada
Salve rainha amada, amado Cristo rei
Pelo amanhã que tu não sabes
E eu também não sei
Preciso aprender a só ser
Gilberto Gil
É tanta coisa pra gente saber
O que cantar, como andar, onde ir
O que dizer, o que calar, a quem querer
Sabe, gente
É tanta coisa que eu fico sem jeito
Sou eu sozinho e esse nó no peito
Já desfeito em lágrimas que eu luto pra esconder
Sabe, gente
Eu sei que no fundo o problema é só da gente
É só do coração dizer não quando a mente
Tenta nos levar pra casa do sofrer
E quando escutar um samba-canção
Assim como
Eu Preciso Aprender a Ser Só
Reagir
E ouvir
O coração responder:
“Eu preciso aprender a só ser”
Preciso de você
Gilberto Gil
Uma triste história de amor
Tudo
Solto na poeira de luz
Atrás do coração
Coração, meu motocross
Das estradas da ilusão
Um dia me acho
Um dia relaxo e gozo
Férias
Paro na soleira da paz
Em frente ao coração
Coração, meu aprendiz
És e hás de ser feliz
Sou a garota papo firme que o Roberto falou
Continuo a merecer
A confiança que essa juventude depositou
No meu jeito de dizer
Tudo que a bondade achar por bem que eu diga
Tudo que a cidade queira ouvir da amiga
E pra que eu prossiga
Eu preciso de você
Pretinha
Gilberto Gil
João Donato
Kátia Falcão
Eu queria te falar desse calor, ô, ô
Minha Preta gostosinha do Pelô
Me diga que você é meu amor
Porque não consigo viver sem você
Eu sei que você sente isso também
Pretinha venha logo viver comigo essa emoção
Cada vez que eu te vejo
Bate forte o meu coração!
Cada vez que eu te amo
Bate forte o meu coração!
Procissão
Gilberto Gil
Edy Star
Se arrastando que nem cobra pelo chão
As pessoas que nela vão passando
Acreditam nas coisas lá do céu
As mulheres cantando tiram versos
Os homens escutando tiram o chapéu
Eles vivem penando aqui na terra
Esperando o que Jesus prometeu
E Jesus prometeu vida melhor
Pra quem vive nesse mundo sem amor
Só depois de entregar o corpo ao chão
Só depois de morrer neste sertão
Eu também tô do lado de Jesus
Só que acho que ele se esqueceu
De dizer que na terra a gente tem
De arranjar um jeitinho pra viver
Muita gente se arvora a ser Deus
E promete tanta coisa pro sertão
Que vai dar um vestido pra Maria
E promete um roçado pro João
Entra ano, sai ano, e nada vem
Meu sertão continua ao deus-dará
Mas se existe Jesus no firmamento
Cá na terra isto tem que se acabar
Explicação do Gil:
“A clássica composição é “locada1 em Ituaçu, cidade da infância de Gil, localizada no interior baiano, onde ele se acostumou a assistir às procissões católicas durante as festas religiosas. A religião é vista como ‘ópio do povo’, bem de acordo com a perspectiva marxista da realidade, que orientava o pensamento do compositor, alinhado ao do CPC (Centro Popular de Cultura), à época. Testemunha da situação de abandono do homem do campo nordestino, o músico-poeta a denuncia.
A questão da exploração do homem pelo homem, das grandes diferenças sociais, das grandes dívidas históricas, da colonização, da escravidão: era o momento em que se tomava consciência de tudo isso através dos livros, da ampla discussão no mundo estudantil, universitário; em que se passava a ter o hábito sistemático, quase imposto mesmo, obrigatório, de todos nós lermos as obras dos pensadores brasileiros de esquerda, o Caio Prado Júnior, o Florestan Fernandes, o Nelson Werneck Sodré.
A releitura do marxismo a partir da realidade brasileira e a situação pós-45, de ilegalidade, do Partido Comunista. Os intelectuais comunistas e o legado que eles deixaram retomado com intensidade pela nossa geração, com a fase pós-Juscelino, pós-desenvolvimentista-brasileira, e com a crítica ao modelo de neo-colonização americano, no momento em que o Brasil entra de novo no ciclo dos grandes empréstimos internacionais para financiamento do seu desenvolvimento. Os economistas liberais Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos. O confronto marxismo/liberalismo. E nós, os compositores, e os estudantes, com suas várias interpretações individuais desses grandes temas, dessas grandes discussões.
‘Procissão’ é uma música que relata isso e que, ao mesmo tempo, retoma, faz a re-apropriação, no sentido de resgate, do linguajar popular, da linguagem simples do homem sertanejo; ela é, toda, como se fosse um sertanejo falando; a narrativa, toda, feita através de um personagem próprio, típico, local, eu vindo disso, tendo vivido no sertão, e tendo o fato de que essa música nasceu de uma memória muito clara das procissões em Ituaçu.
Uma contribuição – Eu recebi uma pequena contribuição de um amigo, o Edy, na letra; ele sugeriu dois ou três dos versos da terceira estrofe. Edy é um cantor, compositor, também travesti, baiano, para quem eu vim a fazer, anos mais tarde, ‘Edith Cooper’. Ele chegou a escrever vários versos; eu aproveitei apenas um trechinho e o incluí na música.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Pronto pra preto
Gilberto Gil
Pronto pra preto, pronto pra preto
De nouveau noir
Pronto pra preto, pronto pra preto
Back to black
Pronto pra preto, pronto pra preto, pronto pra preto, pronto pra preto, pronto pra preto, pronto pra preto,oh vamos ver
Vamos ver que se pode fazer nessa tenda pra bem receber os irmãos, os que vem, vamos ver
Vamos ver quantos são nessa aldeia os que vão abraçar e beijar os irmãos, os que vem, vamos ver
Que essa aldeia comungue da idéia da comunhão
(refrão) oh, vamos nós
Vamos ver que se pode obter dessa lenda de paz, se de fato ela faz mais sentido pra nós
Por menor que seja o gesto, por mais modesto que seja, que esteja por trás nossa convicção
Que essa aldeia comungue da idéia da comunhão
(refrão) oh, vamos ver
Vamos ver o que há na panela, maxixe, xuxu, galinha de cabidela, angu de milho, arroz e feijão,
Vamos dar pra esse povo de fora uma festa de arromba, uma linda kizomba, um fuzuê, uma baita recepção
Que essa aldeia comungue da idéia da comunhão
A noite o lual
Pronto pra preto, pronto pra branco
A dança geral
Pronto pra branco, pronto pra índio
Aldeia global
Pronto pra índio, pronto pra japa, pronto pra preto, pronto pra branco, pronto pra tudo, junto com todo mundo afinal.
Punk da periferia
Gilberto Gil
Sou o pus
Sou o que de resto restaria
Aos urubus
Pus por isso mesmo este blusão carniça
Fiz no rosto este make-up pó caliça
Quis trazer assim nossa desgraça à luz
Sou um punk da periferia
Sou da Freguesia do Ó
Ó
Ó, aqui pra vocês!
Sou da Freguesia
Ter cabelo tipo índio moicano
Me apraz
Saber que entraremos pelo cano
Satisfaz
Vós tereis um padre pra rezar a missa
Dez minutos antes de virar fumaça
Nós ocuparemos a Praça da Paz
Sou um punk da periferia
Sou da Freguesia do Ó
Ó
Ó, aqui pra vocês!
Sou da Freguesia
Transo lixo, curto porcaria
Tenho dó
Da esperança vã da minha tia
Da vovó
Esgotados os poderes da ciência
Esgotada toda a nossa paciência
Eis que esta cidade é um esgoto só
Sou um punk da periferia
Sou da Freguesia do Ó
Ó
Ó, aqui pra vocês!
Sou da Freguesia