Músicas
Buda nagô
Gilberto Gil
Dorival é ímpar
Dorival é par
Dorival é terra
Dorival é mar
Dorival tá no pé
Dorival tá na mão
Dorival tá no céu
Dorival tá no chão
Dorival é belo
Dorival é bom
Dorival é tudo
Que estiver no tom
Dorival vai cantar
Dorival em CD
Dorival vai sambar
Dorival na TV
Dorival é um Buda nagô
Filho da casa real da inspiração
Como príncipe, principiou
A nova idade de ouro da canção
Mas um dia Xangô
Deu-lhe a iluminação
Lá na beira do mar (foi?)
Na praia de Armação (foi não)
Lá no Jardim de Alá (foi?)
Lá no alto sertão (foi não)
Lá na mesa de um bar (foi?)
Dentro do coração
Dorival é Eva
Dorival Adão
Dorival é lima
Dorival limão
Dorival é a mãe
Dorival é o pai
Dorival é o peão
Balança, mas não cai
Dorival é um monge chinês
Nascido na Roma negra, Salvador
Se é que ele fez fortuna, ele a fez
Apostando tudo na carta do amor
Ases, damas e reis
Ele teve e passou (iaiá)
Teve o mundo aos seus pés (ioiô)
Ele viu, nem ligou (iaiá)
Seguidores fiéis (ioiô)
E ele se adiantou (iaiá)
Só levou seus pincéis (ioiô)
A viola e uma flor
Dorival é índio
Desse que anda nu
Que bebe garapa
Que come beiju
Dorival no Japão
Dorival samurai
Dorival é a nação
Balança, mas não cai
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil e Nana Caymmi – Parabolicamará, 1991 – Warner Music
Gilberto Gil – It’s Good To Be Alive (Anos 90), 2002 – Gege
Gilberto Gil – Som Brasil canta Caymmi, 2004 – Som Livre
Gilberto Gil – The very best of Gilberto Gil the soul of Brazil, 2005 – Warner Music
Clécia Queiroz – Chegar à Bahia, 2010 – Mauricio World Music
Nana Caymmi e Gilberto Gil – Caixa Nana Caymmi (CD eu sei que vou te amar – cd2), 2011 – EMI Music
Margareth Menezes – Para Gil & Caetano, 2015 – Estrela do Mar
Comentário*
A música, sem a letra – e sem nada pensado para ela -, nasceu em Roma, no hotel, depois de um show da família Marley (mãe, mulher e filhos), do qual eu havia participado. Na volta ao Brasil, eu já sabia que seria para Caymmi. Fui listando, experimentalmente: ‘Dorival é isso’, ‘Dorival é aquilo’ etc. etc. etc.; algumas coisas ficaram, muitas não. Até que me ocorreu: ‘Dorival é ímpar’ – e eu me tranquilizei: ali estava um começo, sem dúvida; pois em seguida veio “Dorival é par’ e, de par em par, todo o texto de contrastes.
O sagrado no profano – As semelhanças, por mim engendradas, e dessemelhanças entre as trajetórias do Buda e do Caymmi, o nosso Buda, ocidental, atual, transpreto e transreligioso. Um, abandonando o palácio e a vida principesca para iniciar sua peregrinação acética de abdicações e mortificações, até sentar-se cansado, como conta a lenda, debaixo de uma árvore e, aí, se iluminar. E o outro, obtendo a, segundo o meu ponto de vista, iluminação – a elevação de espírito que ele demonstra ter -, no percurso de uma vida mundana, de um roteiro que passa por lugares comuns.
Mais exatamente: pela praia de Armação, perto do Jardim de Alá, onde há muitos anos se concentravam as grandes comunidades de pescadores de Salvador; pelo sertão de Olho D’Água, Lagoinha e outras citadas por ele na música Fiz Uma Viagem, onde o personagem vai de uma cidade pra outra do interior; e pelas famosas mesas dos bares de Copacabana, onde Estela, sua mulher, ia buscá-lo, ele tomando seu conhaque.
A iluminação de um homem comum e a desnecessidade da visão sacralizante de um espaço especialmente ungido para obtê-la. Esses os sentidos de Buda Nagô.
Last but not least – Eu tinha me dado por satisfeito com a canção, quando dias depois senti que a parte B merecia uma replicação, e o conceito do ‘Buda nagô’, outra carga explicatória. Então, a partir de mais uma conjunção de imagens contrastantes, a do monge chinês nascido na Roma baiana, eu criei a estrofe em que faço a descrição da renúncia na vida de Caymmi – o que teria levado, nele, à limpeza do terreno interior -, com as referências às cartas de jogo aparecendo para dar a ideia dos tempos do Cassino da Urca, no Rio.
Enumeração pedagógica – ‘Dorival é o quê?’ ‘Dorival é isso.’ ‘Dorival é o quê?’ ‘Dorival é aquilo.’ ‘E o que mais?’ ‘Aquilo outro.’ Como se numa sala de aula se fizesse com as crianças um jogo de elucidação com o objetivo de se imiscuir nelas, de modo simples, o conhecimento de algo. Buda Nagô seria a resposta em série à proposta de revelar Caymmi num jogo desse. Seu pedagogismo infantil é para trazer a dimensão da inocência – que, enfim, se confunde com a iluminação.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Brincar pra valer
Gilberto Gil
Se você quer brincar pra valer
Se você quer botar pra quebrar
Vem comigo, que eu vou com você
Na patota mais quente que há
Eu já disse pra toda a moçada aprender
Dançar frevo, sambar, comemorar
Quero ver todo mundo comigo
E você, meu irmão
Na puxada do refrão
Nas quebradas da vida
No sol da subida
Na ida e na volta legal
Eu faço o que posso
Na verdade eu mando e não peço
Eu sou o progresso
Na bandeira nacional
Brazil Very Happy Band
Gilberto Gil
A gente tem que ser assim
A gente tem que ser assim
A gente tem que ser assim
Que a gente é assim
Brazil Very Happy Band
Brazil Very Happy Band
Um bando de gente cantando e dançando
Umbanda de gente
© Gege Edições Musicais
Brand new dream
Gilberto Gil
Cut that out!
Forget it all, baby
Going crazy, feeling sad
About an impossible love
Is so bad
Gimme your hand and come together
Around the corner we can find a shop
That I know has got
A brand new dream
Above on the shelf
Maybe you like
That dream on the shelf above
Tomorrow maybe
I can call you my love
Cut that out!
Bit my bit
Inch by inch
Inch by inch
Inch by inch
Inch by inch
Till you can breath and get peace in your heart
© Gege Edições Musicais
Bom dia
Gilberto Gil
Nana Caymmi
Madrugou
Madrugou
A mancha branca do sol
Acordou
O dia
E o dia já levantou
Acorda
Meu amor
A usina já tocou
Acorda
É hora
De trabalhar, meu amor
Acorda
É hora
O dia veio roubar
Teu sono
Cansado
É hora de trabalhar
O dia
Te exige
O suor e o braço
Pra usina
Do dono
Do teu cansaço
Acorda
Meu amor
É hora de trabalhar
O dia
Já raiou
É hora de trabalhar
Madrugou
Madrugou
A mancha branca do sol
Acordou
O dia
E o dia já levantou
Ele sai
Ele vai
A usina já tocou
Bom-dia
Bom-dia
Até logo, meu amor
© Gege Edições Musicais / © Editora Musical Arlequim LTDA.
Gravações
Nana Caymmi – III Festival da Música Popular Brasileira, 1967 – RGE
Agostinho dos Santos – Música Nossa, 1968 – Ritmos
Gilberto Gil e Milton Nascimento – Gil & Milton, 2000 – Warner Music
Gal Costa – Gal Costa 40 anos, 2005 – Universal Music
Vésper – Na Lida, 2012 – Por do Som Produções Artísticas
Cida Moreira – Soledade, 2015 – Joia Moderna [dist. Tratore]
Mônica Salmaso – Caipira, 2017 – Biscoito Fino
Comentário*
A cena da música, da mulher acordando o marido para ir trabalhar, tem a ver com o fato de ela ter sido composta por mim e pela Nana Caymmi no tempo em que estivemos casados. Era a projeção, inconsciente, de uma imagem de nós dois; uma homenagem a nós dois. Os substratos informacionais latentes, virtuais, acabaram se tornando atuais: se atualizaram na canção.
Nós projetávamos ali o casal modelo das classes operárias. A temática social é uma característica da música popular da época, especialmente das canções de festival [“Bom Dia” concorreu no III Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record]. Na ocasião, os festivais eram momentos especiais em que as canções de protesto apareciam com mais ênfase; era quase que recomendável que essa fosse uma das temáticas essenciais floradas.
A ideia poética da apropriação, pelo patrão, do próprio cansaço do operário, é muito interessante. De uma certa forma, ela alegoriza a leitura economicista ou puramente cientificista da divisão do trabalho, da divisão de classes; ela acrescenta uma acidez poética ao sentido já ácido da apropriação da força de trabalho do outro. Não se trata de um discurso meramente político ou científico, mas de um poema cantado.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Blind faith
Gilberto Gil
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Copacabana mon amour, 1999 – Polygram Music
Bem devagar
Gilberto Gil
Sem correr
Bem devagar
A felicidade voltou para mim
Sem perceber
Sem suspeitar
O meu coração deixou você surgir
E como o despertar depois de um sonho mau
Surgiu o amor sorrindo em seu olhar
E a beleza da ternura de sentir você
Chegou sem correr
Bem devagar
Amor velho que se perde
Sai correndo pra outro ninho
Amor novo que se ganha
Vem sem pressa, de mansinho
© Gege Edições Musicais
Gravação
Caetano Veloso – Prenda minha, 1998 – Polygram Music
Comentário*
“Uma toada.
Há toadas marcantes de Luiz Vieira, de Dorival Caymmi, de Klécius Caldas; os anos 50 foram uma época em que os toadeiros apareceram. A toada aparece em Tom Jobim; algumas canções dele são toadas; exploram, imitam ou, enfim, utilizam elementos desse estilo, que é mais sertanejo e interiorano do que urbano, estando mais associado a regionalismos. Na época da bossa nova – que tinha habilidades de compatibilizar ritmos, de criar mesmo um novo estilo rítmico com base no samba, no baião e vários outros gêneros, mas tinha sua coisa própria – a toada ficou como um gênero nacional mas particularmente ligado a narrativas de viagens pelo interior, a descrições de paisagens de vilarejos, de locais singelos. “Bem Devagar” é bossa-novista, já possui um locus mais urbano, tendo a ver com o sentimento dos homens solitários das cidades grandes, da solidão da cidade grande, da ânsia pelo encontro. Mas a sua narrativa ainda é rural, interiorana; é a narrativa dos tempos escorridos das estradas e dos caminhos, da poeira, do pedregulho, trazendo a ideia do percorrimento; nela, é como se a própria substância – essa tal “felicidade” – subjetiva da canção viajasse, fosse viajante.
Sobre Caetano Veloso tê-la gravado em 1998 – Ele acha que, com uma maneira própria, criativa, diferenciada de trabalhar, eu contribuí para criar a nova toada, a toada moderna, que ele próprio veio também a cultivar. Essa música marca muito o momento em que nós nos conhecemos. E tem uma autoralidade mais desvencilhada do encantamento, da sedução da bossa nova; ela é mais o Gil chegando à bossa nova, passando por ela e a atravessando, mas com o seu próprio corpo, sem se perder nas brumas da noite bossa-novística. “Felicidade Vem Depois” se dissolvia no fluido, no solvente da bossa nova. “Bem Devagar”, não; ela tem mais integridade interior, mais acumulação pessoal, existencial e estética.
1962 – É o ano em que se define a possibilidade de eu me tornar compositor; em que compor canções se manifesta em mim como um modo reproduzível, repetitível, e eu domino os meios; a forma do encaminhamento para compor se torna um domínio, um campo de atuação em que eu começo a ter fluência. É o ano mesmo em que eu viro compositor, em que começo a compor; estou com vinte anos.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Belo dia
Gilberto Gil
Belo dia foi aquele dia azul
Azulado pelo anil imperial
Ajudado pelo sol e o vento sul
A tornar mais branca a roupa no varal
Belo dia foi aquele dia assim
Cintilante sem as nuvens do senão
Se não fosse aquele dia lindo enfim
Não podia ter sentido esta canção
O sentido dessa vida é ao invés
Azular a cor do branco é clarear
Escurecer pra dormir é através
De uma luz que o sono apaga ao acordar
© Gege Edições Musicais
Gravações
Baby Consuelo – O que vier eu traço, 1978 – Atlantic
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois gênios, 2009 – Warner Music
Comentário*
O Anil Imperial era uma marca de anil muito conhecida nos anos 40, 50; um produto pra clarear, corar as roupas. Uma espécie de alvejante daquela época, e que não vinha com a mistura pronta nos frascos como ultimamente. Um tablete da substância se dissolvia em água; em casa você fazia seu alvejante. O Anil Imperial é então citado na letra, vira uma das estacas da rima, associado à ideia de claridade, luminosidade. A canção é sobre a concretude do abstrato, o abstrato que se torna concreto: um dia lindo. Quer dizer: uma abstração, uma referência à generalidade meteorológica, se tornando substância poética, dando completude aos versos.
No último verso da segunda quadra, a palavra “sentido” apresenta um sentido duplo, podendo ser tanto o substantivo (com a ideia de “razão, razão de ser”) quanto o particípio passado do verbo “sentir”. Outro fator de interesse do ponto de vista estilístico, na letra, e que remete a um procedimento proveniente da poesia provençal, é o começo de um verso retomar o final do verso anterior, sobretudo na quadra do meio: “Belo dia foi aquele dia assim/Cintilante sem as margens do senão/Se não fosse aquele dia lindo, enfim”. — Exatamente.
Você deve ter feito a canção a pedido da Baby Consuelo.
— Foi. Foi uma encomenda mesmo. “Faça uma música pra mim”, aquela velha história.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Beira-mar
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Na terra em que o mar não bate
Não bate o meu coração
O mar onde o céu flutua
Onde morre o sol e a lua
E acaba o caminho do chão
Nasci numa onda verde
Na espuma me batizei
Vim trazido numa rede
Na areia me enterrarei
Na areia me enterrarei
Ou então nasci na palma
Palha da palma no chão
Tenho a alma de água clara
Meu braço espalhado em praia
Meu braço espalhado em praia
E o mar na palma da mão
No cais, na beira do cais
Senti meu primeiro amor
E num cais que era só cais
Somente mar ao redor
Somente mar ao redor
Mas o mar não é todo mar
Mar que em todo o mundo exista
Ou melhor, é o mar do mundo
De um certo ponto de vista
De onde só se avista o mar
E a Ilha de Itaparica
A Bahia é que é o cais
A praia, a beira, a espuma
E a Bahia só tem uma
Costa clara, litoral
Costa clara, litoral
É por isso que é o azul
Cor de minha devoção
Não qualquer azul, azul
De qualquer céu, qualquer dia
O azul de qualquer poesia
De samba tirado em vão
É o azul que a gente fita
No azul do mar da Bahia
É a cor que lá principia
E que habita em meu coração
E que habita em meu coração
E que habita em meu coração
© Gege Edições Musicais / © Editora Musical Arlequim LTDA.
Gravações
Gilberto Gil – Retirante, 1962 – Gege
Gilberto Gil – Louvação, 1967 – Philips
Gilberto Gil e Caetano Veloso – O rancho do novo dia, 1981 – Philips
Gilberto Gil – Unplugged, 1994 – Warner Music
Gilberto Gil – Beira do mar, 2000 – Dubas Musica
Gilberto Gil – Mar 4, 2001 – Dubas Musica
Gilberto Gil – Acústico, 2001 – Warner Music
Gilberto Gil – O seu amor, 2004 – Universal Music
Batmakumba
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumba
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê
Batmakumbayê
Batmakumba
Batmakum
Batman
Bat
Ba
Bat
Batman
Batmakum
Batmakumba
Batmakumbayê
Batmakumbayêyê
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumbaoba
© Gege Edições Musicais / © Warner/Chappell Edições Musicais LTDA.
Gravações
Gilberto Gil – Tropicália ou Panis Et Circensis, 1968 – Philips
Os Mutantes – Os Mutantes, 1968 – Universal Music
Rogério Duprat – A Banda Tropicalista do Duprat, 1968 – Philips
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao Vivo em Montreux, 1978 – Gege
Rita Lee – Multishow Ao Vivo, 2008 – Biscoito Fino
Comentário*
O Caetano e eu sentados no chão do apartamento dele, na avenida São Luís, centro de São Paulo, compondo a música: o que a gente queria, hoje me parece, era fazer uma canção com um dístico que fosse despida de ornamentos e possível de ser cantada por um bando não musical, algo tribal, e que, por isso mesmo, estivesse ligada a um signo da nossa cultura popular como a macumba, essa palavra nacional para significar todas as religiões africanas, não cristãs, e que é um termo que o Oswald de Andrade usou.
O Oswald estava muito presente na época; nós estávamos descobrindo a sua obra e nos encantando com o poder de premonição que ela tem. A ideia de reunir o antigo e o moderno, o primitivo e o tecnológico, era preconizada em sua filosofia; “Batmakumba” é de inspiração oswaldiana. E concretista, na ligação das palavras e na construção visual do k como uma marca; no sentido impressivo, não só expressivo, da criação. Não é só uma canção; é uma música multimídia, poema gráfico, feita também para ser vista.
Naquele momento, nós vivíamos cercados de elementos de interesses múltiplos, ligados nas novidades sonoras e literárias trazidas pelos poetas concretos e pelos músicos de vanguarda de São Paulo.
Sobre a adoção, a partir de agora, do k na microestrutura do poema, em lugar do c (em decorrência do que também o y passa a substituir o anteriormente grafado i, para melhor expressão tipográfica da alusão ao gênero de música estrangeira em moda na época). — Eu tenho a impressão de que chegamos a grafar a palavra com k porque vimos que o poema formava um k. O k passava a ideia de consumo, de coisa moderna, internacional, pop. E também de um corpo estranho; não sendo uma letra natural do alfabeto português-brasileiro, causava uma estranheza que era também a estranheza do Batman.
Sobre “bá”, “obá”, “baobá” como alguns dos sentidos sintetizados nas duas grandes palavras-valises da canção. — Pode ser que para o Caetano essas palavras tenham sido percebidas ou colocadas conscientemente ali, mas eu não descobri a presença delas na época, pelo menos; são extrações posteriores. Para mim não havia, por exemplo, o “obá” entidade, só o “oba” saudação, interjeição. A palavra “bat”, morcego, sim.
O susto do criador diante da própria criação. — Eu não sei o que é de quem ali. Para mim, a coisa foi feita mesmo a quatro mãos, quatro olhos, quatro ouvidos, música e palavras ao mesmo tempo, seguindo o procedimento de ir cortando as sílabas e depois as reconstituindo, uma a uma, até formar as duas asas. Eu até me assusto hoje; quando vejo, me pergunto: “Você fez isso mesmo?”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Baticum
Gilberto Gil
Chico Buarque
Bia falou:
“Ah, claro que eu vou”
Clara ficou
Até o sol raiar
Dadá também
Saracoteou
Didi tomou
O que era pra tomar
Ainda bem
Que Isa me arrumou
Um barco bom
Pra gente chegar lá
Lelê também
Foi e apreciou
O baticum
Lá na beira do mar
Aquela noite
Tinha do bom e do melhor
Tô lhe contando que é pra lhe dar água na boca
Veio Mané
Da Consolação
Veio o Barão
De lá do Ceará
Um professor
Falando alemão
Um avião
Veio do Canadá
Monsieur Dupont
Trouxe o dossier
E a Benetton
Topou patrocinar
A Sanyo
Garantiu o som
Do baticum
Lá na beira do mar
Aquela noite
Quem tava lá na praia viu
E quem não viu jamais verá
Mas se você quiser saber
A Warner gravou
E a Globo vai passar
Bia falou:
“Ah, claro que eu vou”
Clara ficou
Até o sol raiar
Dadá também
Saracoteou
Didi tomou
O que era pra tomar
Isso é que é
Pepe se chegou
Pelé pintou
Só que não quis ficar
O campeão
Da Fórmula 1
No baticum
Lá na beira do mar
Aquela noite
Tinha do bom e do melhor
Eu só tô lhe contando que é pra lhe dar água na boca
Zeca pensou:
“Antes que era bom”
Mano cortou:
“Brother, o que é que há?”
Foi a G.E.
Quem iluminou
E a MacIntosh
Entrou com o vatapá
O JB
Fez a crítica
E o cardeal
Deu ordem pra fechar
O Carrefour
Digo, o baticum
Da Benetton
Não, da beira do mar
© Gege Edições Musicais / © Marola Edições Musicais LTDA.
Gravações
Gilberto Gil – O eterno Deus mu dança, 1989 – Warner Music
Gilberto Gil & Chico Buarque – Este é o Gil que eu gosto, 1995 – Warner Music
Chico Buarque – Chico ou o País Da Delicadeza Perdida, 2005 – BMG
Gilberto Gil e Chico Buarque – Duetos com Gilberto Gil, 2007 – Warner Music
Lenine – Chico Buarque por eles, 2009 – Som Livre
Lenine – Songbook Chico Buarque – vol 2, 2015 – Lumiar Discos
Bat-staka
Gilberto Gil
Pego e ligo o rádio
Busco algum remédio para o tédio
A música soa
Como o som da construção de um prédio
Zoada de serra
Onde eu deveria ouvir guitarra
Como numa obra
Vozes que sugerem uma algazarra
Mexo no ponteiro
Corro atrás de nova sintonia
A música soa
E com ela a mesma fantasia
Mais um movimento
Tudo igual na próxima estação
Tijolo, cimento
Pedra, areia e muito vergalhão
De onde viria, oh, de onde viria
Toda essa engenharia civil?
Rock maçom, funk de alvenaria
Disconcreto, deus, onde já se viu!?
Fico mais atento
Tento achar nessa alucinação
Qual o elemento
Que por trás faz toda a ligação
Súbito o estalo
O abalo no meu coração
Nítido badalo
Lá está o bat-staka
Está lá o bat-bat-stakato
Bat-bat-batidão
Não adianta mudar
Não adianta mudar de estação
O bat-staka estala
O bat-staka está lá de plantão
Barca grande
Gilberto Gil
Eu vim aqui pra te ver
Como te vi, vou-me embora
Eu vim aqui pra te ver
Como te vi, vou-me embora
Trabalho na barca grande
Só chego fora de hora
Trabalho na barca grande
Só chego fora de hora
Hoje eu cheguei atrasado
Na barca pra trabalhar
Essa noite eu fui com Rosa
No Recife passear
Rosa nunca tinha ido
No Recife passear
Aproveitei que era noite
Pra Rosa poder gostar
Rosa é minha namorada
Mora com o pai pescador
Pescador de caranguejo
Pai de Rosa, minha flor
Minha flor nasceu no mangue
Nunca pode passear
Nunca pode ver Recife
A cidade, seu sonhar
Eu que já saí do mangue
Já consegui trabalhar
Na barca do Beberibe
Quero Rosa pra casar
Já posso ter um dinheiro
Pra Rosa se divertir
Essa noite eu levei Rosa
Pra Rosa poder sorrir
Hoje à noite eu vou ver Rosa
Ela vai sorrir contente
Recife, seu sonho morto
Ficou vivo de repente
Eu que sou louco por ela
Vou fazer Rosa cantar
Vou também cantar pra ela
Essa ciranda, essa ciranda
Eu vim aqui pra te ver
Como te vi, vou-me embora
Eu vim aqui pra te ver
Como te vi, vou-me embora
Trabalho na barca grande
Só chego fora de hora
Trabalho na barca grande
Só chego fora de hora
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil, 1968 – Philips
Gilberto Gil – Tropicália – Millennium, 2004 – Universal Music
Comentário*
“De como ‘Barca Grande’ se relaciona com Pernambuco e de como Pernambuco entra como referência e como inspiração em sua obra compositória e em sua carreira, já que a gênese dessa canção se vincula a uma estada sua no Estado, em 1967 – ‘Eu vim aqui pra te ver/ Como te vi, vou-me embora/ Trabalho na Barca Grande/ Só chego fora de hora’: isto é uma ciranda que é aproveitada como tema para desenvolvimento de uma canção, em ‘Barca grande’. A canção nasce, portanto, de uma
célula folclórica que vem a ser uma daquelas cirandas pernambucanas cantadas pelos barqueiros do rio Beberibe. O barqueiro chega fora de hora por quê? Por causa das noitadas amorosas. ‘Barca Grande’ aproveita isso que o folclore tem de reivindicar o tempo humanizado do trabalhador, o direito ao seu lazer, qualificado pelo amor, e o direito à preguiça, ao atraso no trabalho. As cançõezinhas folclóricas costumam fazer esse tipo de brincadeira jocosa do homem simples, trabalhador, com a quase escravidão imposta a ele; elas sempre expõem o modo como ele ludibria, contorna isso, reinstalando seu tempo autônomo, seu espaço afetivo, e o modo como ele reifica esse espaço individual no comentário irônico – um modo de enganar o patrão – sobre a noite bem vivida que o leva a chegar atrasado ao trabalho. Uma coisa que está nos sambas também, no cancioneiro popular todo, mas que no folclore, especialmente, aparece a toda hora.
No caso de “Barca Grande’, Pernambuco é obviamente uma fonte direta de inspiração para mim, relacionando-se com um momento em que eu faço a minha primeira visita prolongada ao Estado, onde fico um mês e vou a Caruaru com o compositor Carlos Fernando, que me dá uma fita com cirandas gravadas em Nazaré da Mata.
A importância de Pernambuco na minha obra é uma coisa muito clara para mim que cada vez mais eu venho reiterando. Recentemente mesmo, eu tive a oportunidade de reiterar esse afeto especial por Pernambuco, o sentido profundo de que o conjunto das manifestações musicais do Estado – a ciranda, o maracatu, o frevo, a banda de pífano, tudo isso – sempre exerceu uma influência no meu trabalho.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Barato total
Gilberto Gil
Lá, lalalalalalalá
Lá, lalalalalalalá
Quando a gente tá contente
Tanto faz o quente
Tanto faz o frio
Tanto faz
Que eu me esqueça do meu compromisso
Com isso e aquilo que aconteceu dez minutos atrás
Dez minutos atrás de uma ideia já dão
Pra uma teia de aranha crescer
E prender
Sua vida na cadeia do pensamento
Que de um momento pro outro começa a doer
Lá, lalalalalalalá
Lá, lalalalalalalá
Quando a gente tá contente
Gente é gente, gato é gato
Barata pode ser um barato total
Tudo que você disser deve fazer bem
Nada que você comer deve fazer mal
Quando a gente tá contente
Nem pensar que tá contente
Nem pensar que tá contente a gente quer
Nem pensar a gente quer
A gente quer, a gente quer
A gente quer é viver
Lá, lalalalalalalá
Lá, lalalalalalalá
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gal Costa – Cantar, 1974 – Philips
Zizi Possi – Este é o Gil que eu gosto, 1995 – Warner Music
Zélia Duncan – Novo Millennium, 2006 – Universal Music
Gal Costa – Recanto Ao Vivo, 2013 – Universal Music
Gil, Nando & Gal – Trinca de Ases (ao vivo), 2018 – Gege
Gilberto Gil – Em casa com os Gil, 2022 – Gege
Comentário*
“Outra música da época inspirada em e versando sobre a yoga, a macrobiótica, tudo isso. Discorre poeticamente acerca da ideia de bem-estar, do homem em situação plena de bem-estar. Eu não a fiz para a Gal – Gal a ouviu, gostou e gravou; eu a fiz para mim, para dizer aquelas coisas, para eliminar. ‘Barata pode ser um barato total’: o verso é para me referir ao fato de que Caetano tinha medo de barata; para brincar com ele, como quem diz: ‘O que é isso! Você está ótimo, não tem medo de nada’.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Banda Um
Gilberto Gil
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô-iê
Iê-iê-iê-iê
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô-ô
(Iô-iô-iô-iô)
Banda Um que toca um balanço parecendo polka
UmBandaUmBandaUm
Banda Um que toca um balanço parecendo rumba
UmBandaUmBandaUm
Banda Um que é África, que é Báltica, que é Céltica
UmBanda América do Sul
Banda Um que evoca um bailado de todo planeta
UmBandaUm, Banda Um
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô-iê
Iê-iê-iê-iê
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô-ô
(Iô-iô-iô-iô)
Banda pra tocar por aí
No Zanzibar
Pro negro zanzibárbaro dançar
Pra agitar o Baixo Leblon
O Cariri
Pra loura blumenáutica dançar
(Hum…) Banda Um, Banda Um
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô-iê
Iê-iê-iê-iê
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô, ô
Banda Um que soa um barato pra qualquer pessoa
UmBanda pessoa afins
Banda Um que voa, uma asa delta sobre o mundo
UmBanda sobre patins
Banda Um surfística nas ondas da manhã nascente
UmBanda, banda feliz
Banda Um que ecoa uma cachoeira desabando
UmBandaUm, bandas mis
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô-iê
Iê-iê-iê-iê
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô-ô
(Iô-iô-iô-iô)
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Gilberto Gil – Ao vivo em Tóquio, 1986 – Warner Music
Gilberto Gil – Bandadois, 2009 – Gege
Comentário*
A umbanda – “O sentido universalista da umbanda como uma cisão do culto fechado das religiões, seja candomblé, seja a católica, ambas monistas, cada uma com a sua verdade; o panteísmo necessário da umbanda, uma religião que não é uma mas ‘todas’, misturando o kardeccismo, o catolicismo, o politeísmo africano. (E Banda Um é uma música-síntese com uma intenção e um conceito panculturalista, uma canção que cultiva as idéias de música, de juventude, de comportamento, de consumo e de vários nacionalismos.)”
A Banda Um – “E, ao mesmo tempo, o fato de sermos um pouco a Banda do Zé Pretinho [Gil se refere aqui ao grupo de Jorge Benjor, ao qual compara o seu]: Banda Um é como se fosse o nosso hino, o nosso prefixo musical.”
A UmBandaUm – “Banda Um é uma coisa, e umbanda é outra, exatamente o oposto: Banda Um é uma banda; umbanda são todas as bandas – ou nenhuma, em princípio. ‘UmBandaUm’ [a repetição seguida de ‘Banda Um’ no verso faz ressoar a palavra ‘umbanda’] estabelece o jogo dos contrários: faz o embutimento mútuo dos dois sentidos.
“A descoberta de todas essas coisas me animou à escolha, embora eu tenha hesitado muito em optar por Um Banda Um para nomear o disco e me apaziguar com a idéia de fazer esse tipo de brincadeira (que às vezes pode ficar gratuito; mas quando você descobre uma solução que, embora fácil, esteja carregada de sentido, e esse era o caso – ‘umbanda’ é uma palavra com uma carga enorme no Brasil -, aí, tudo bem). Acabei topando.”
Palavras-valise – ” ‘Zanzibárbaro’: do Zanzibar, um bar de negros, da Federação (bairro de Salvador). A loura ‘blumenáutica’: de Blumenau, e ao mesmo tempo náutica (a referência, embutida, aos esportes aquáticos, ao surfe, à juventude, ao mar, ao verão). Palavras-valises. Nelas cabe um bocado de idéias: você vai botando. É um dos procedimentos concretistas que mais me interessam. A invenção da palavra que é um condensado de significados.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Banda Larga Cordel
Gilberto Gil
Pôs na boca, provou, cuspiu
É amargo, não sabe o que perdeu
Tem um gosto de fel, raiz amarga
Quem não vem no cordel da banda larga
Vai viver sem saber que mundo é o seu
Mundo todo na ampla discussão
O neuro-cientista, o economista
Opinião de alguém que esta na pista
Opinião de alguém fora da lista
Opinião de alguém que diz que não
Uma banda da banda é umbanda
Outra banda da banda é cristã
Outra banda da banda é kabala
Outra banda da banda é alcorão
E então, e então, são quantas bandas?
Tantas quantas pedir meu coração
E o meu coração pediu assim, só
Bim-bom, bim-bom, bim-bom, bim-bom
Ou se alarga essa banda e a banda anda
Mais ligeiro pras bandas do sertão
Ou então não, não adianta nada
Banda vai, banda fica abandonada
Deixada para outra encarnação
Rio Grande do Sul, Germania
Africano-ameríndio Maranhão
Banda larga mais demografizada
Ou então não, não adianta nada
Os problemas não terão solução
Piraí, Piraí, Piraí
Piraí bandalargou-se um pouquinho
Piraí infoviabilizou
Os ares do município inteirinho
Com certeza a medida provocou
Um certo vento de redemoinho
Diabo de menino agora quer
Um i pod e um computador novinho
Certo é que o sertão quer virar mar
Certo é que o sertão quer navegar
No micro do menino internetinho
O Netinho, baiano e bom cantor
Ja faz tempo tornou-se um provedor – provedor de acesso
À grande rede www
Esse menino ainda vira um sábio
Contratado do Google, sim sinho
Diabo de menino internetinho
Sozinho vai descobrindo o caminho
O rádio fez assim com seu avô
Rodovia, hidrovia, ferrovia
E agora chegando a infovia
Pra alegria de todo o interior
Meu Brasil, meu Brasil bem brasileiro
O You Tube chegando aos seus grotões
Veredas do sertão, Guimarães Rosa,
Ilíadas, Lusíadas, Camões,
Rei Salomão no Alto Solimões,
O pé da planta, a baba da babosa.
Pôs na boca, provou, cuspiu
É amargo, não sabe o que perdeu
É amarga a missão, raiz amarga
Quem vai soltar balão na banda larga
É alguém que ainda não nasceu
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Banda larga cordel, 2008 – Warner Music
Comentário*
É a música-título. A questão de adotar para uma canção o título de um disco ou vice-versa, o título de uma canção para um disco. Como Refazenda, Refavela, Quanta e tantos discos meus. Então tinha este desafio: como é que faço uma canção que ilustre o fato do que nós estamos falando, de um conjunto conceitual que aparece nesse disco inteiro ou pelo menos pretende aparecer nesse disco inteiro? A canção foi se tecendo em função disso. Os vários elementos ligados às próprias tecnologias, a ideia da própria banda larga, a denominação que se popularizou, que se disseminou na época. Banda larga como o nome da nova entidade técnica, de transporte de informação. Esse novo telégrafo. Sentimento de frustração. — Aí, sei lá, restou, resta pelo menos um pouco até hoje, um certo sentimento de não atingimento do desejo fundamental; uma certa, pequena frustração, no sentido de que talvez a canção não tenha dado conta do modo final; de que as pedras, os tijolos da construção não tenham cumprido a função de uma arquitetura mesmo nova; de que eu não tenha construído uma casinha fiel ao meu mapa mental-sentimental inicial, que deu margem à canção. É uma canção para a qual eu talvez não tenha conseguido resolver bem as questões da gravação, do arranjo, da execução com um conjunto de músicos.
Porque tem isso: músicas que acabam melhor realizadas do que outras. E essa é uma das que eu acho que fiquei devendo. É uma impressão forte. Talvez a inspiração tenha, quem sabe, sonegado um pouco a sua generosidade, mais uma coisa assim; a inspiração se escondeu um pouquinho ali e ficou. Talvez tenha a ver com o fato de que eu à época estava completamente absorvido por aquelas coisas: Banda larga cordel é um disco que eu faço quando estou no ministério [da Cultura]. A questão do artista com dificuldade de reproduzir a ideia inicial de uma obra. A defasagem entre a imagem mental, o pincel e a tela. A dificuldade em cumprir esse percurso com total integridade, desde a ideia até o instrumento, até o suporte. Eu tenho uma sensação que eu atribuiria mais àquele momento de absorção muito grande, de concentração difícil — eu fui fazendo o disco todo nos momentos de folga das minhas viagens, das minhas atribuições de gabinete em Brasília. E também ao desafio de cobrir com sons e palavras consistentes as novidades, de dar conta do novo elemento que surgia ali. O interesse apresentado pela letra. — “A internet e o ‘internetinho’”: eu adoro esse momento, porque o Netinho tinha sido o primeiro artista a adotar um aparato, um aparelho de internet, a se tornar um provedor. Na Bahia, inclusive. Ele, fascinado pela internet. A canção não é de forma alguma desinteressante. Não, ela é interessante. A sensação de incompletude talvez seja só minha, seja solitária. Pra alguém que ouve, pra alguém que lê, pra alguém que se debruça sobre a letra e a pluralidade dos aspectos abordados, pra alguém assim, pro ouvinte e pro leitor, talvez a canção não se apresente dessa forma como pra mim.
Ela dá uns saltos surpreendentes, mas com sustentação. Quando fala do menino, tem a ver chamá-lo de internetinho. Porque quem fica com a internet é neto, é o netinho. E a isso vem se acrescentar a alusão ao Netinho que não é gratuita, tanto que, como você diz, ele foi um pioneiro nesse campo. — É o netinho dele e de todos nós. São todas essas crianças que hoje manipulam celulares. Como os meus netos Dom, Sereno, minha bisneta, brincando com os aparelhinhos deles. A canção era a antevisão desse mundo que chegou, que está aí, e que já se anunciava ali muito claramente. São elementos trazidos pra dentro da canção que são muito interessantes. Talvez o que eu sinta é exatamente a falta de alguns outros que transcendessem o pitoresco de uma forma mais evidente, de um semantismo mais brutalmente impactante: talvez falte um certo brutalismo que essa canção deveria ter mais. Talvez eu tenha sido muito benevolente com a ideia.
As circunstâncias, porém, exigiam uma resolução não demorada. Você não poderia se debruçar muito tempo sobre ela. Outro aspecto interessante é que se trata de mais uma canção sua a fazer convergir o político e o poético. Tanto no plano estilístico, com o emprego de um bom número de palavras compostas, inventadas, de extração literária joyceana, tipo infovia, infoviabilizou, demografizada, bandalargou-se, internetinho. Quanto no sentido político mais propriamente dito, na chamada à atenção para a necessidade de levar os avanços pros sertões. — Exato. A distribuição da riqueza. A insistência na socialização necessária de todo bem, toda riqueza, todo produto. Esse aspecto socializante é importante, sim.
E também tem a ver com o seu trabalho à frente do Ministério. Os “pontos de cultura”. — Exatamente. Exatamente esse convite ao mundo cibernético para vir discutir com a institucionalidade cultural brasileira. O trabalho do John Perry Barlow, o trabalho do Berners-Lee, o Stalk e todos esses, os grandes mentores da cultura livre que se discutia muito naquele momento, a questão proprietária versus a questão livre. Todos esses aspectos da socialização necessária, da distribuição da riqueza simbólica e material também trazida pela dimensão cibernética nova.
Tem tudo isso. Só que era tanta coisa que eu fico com a sensação de que a canção não tenha dado conta de tudo. Mas é isso mesmo: ela teve que fazer as escolhas editoriais do momento.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Bananeira
Gilberto Gil
João Donato
Bananeira, não sei
Bananeira, sei lá
A bananeira, sei não
A maneira de ver
Bananeira, não sei
Bananeira, sei lá
A bananeira, sei não
Isso é lá com você
Será
No fundo do quintal
Quintal do seu olhar
Olhar do coração
© Gege Edições Musicais / © Guilherme Araújo Produções Artísticas LTDA. (adm. por Warner/Chappell Edições Musicais LTDA.)
Gravações
João Donato – Lugar Comum, 1975 – Philips
Emílio Santiago – Emílio Santiago (Remastered), 1975 – Emílio Santiago
Bebel Gilberto – Tanto Tempo, 1996 – Crammed Discs
J. T. Meirelles e Ed Motta – Songbook João Donato, Vol. 1, 1999 – Lumiar Discos
João Donato – Millennium, 2000 – Universal Music
Joyce – Tudo Bonito, 2000 – Sony Music
Maogani – Cordas cruzadas, 2001 – ROB Digital
João Donato – BIS Bossa Nova, 2001 – Emi Music Brasil
Bebel Gilberto – Serie Gold II / Bossa Nova Lounge, 2002 – Universal Music
Bebel Gilberto – The Best o Brazilian Jazz, 2002 – Universal Music
João Donato – Presente cotidiano, 2002 – Dubas Musica
Quarteto em Cy – Quarteto em Cy Ao Vivo, 2002
Garrafieira – Garrafieira, 2004 – Biscoito Fino
João Donato – Retratos, 2004 – Emi Music Brasil
Joyce e João Donato – Bossa Nova, 2005 – Sony Music
João Donato – Electric Samba Groove – Pure Brazil II, 2005 – Universal Music
João Donato – Coisas tão simples, 2006 – Emi Music Brasil
Sérgio Mendes – Timeless, 2006 – Concord Music Group, Inc
Caio Mesquita – Jovem Brazilidade 2, 2007 – Luar Music
João Donato – The Bossa Nova Wave, 2008 – Emi Music Brasil
João Donato & Gilberto Gil – Donatural – João Donato e convidados, 2009 – Biscoito Fino
Emílio Santiago e João Donato – GNT: Programa Mulheres Possíveis, 2009 – Globosat Programadora
João Donato – Ê Menina, 2011 – Emi Music Brasil
João Donato – Sambou, Sambou, 2011 – Emi Music Brasil
Eliane Elias – Light My Fire, 2012 – Universal Music
Emílio Santiago – Chill Brazil 7, 2012 – Warner Music
João Donato e Gilberto Gil – De conversa em conversa – o melhor da bossa nova, 2012 – Biscoito Fino
João Donato – Welcome to Copacabana – the brazilian melting pop, 2012 – Emi Music Brasil
Bebel Gilberto – Bebel Gilberto in Rio, 2013 – Biscoito Fino
João Donato – O couro tá comendo – João Donato Live, 2014 – Discobertas
João Donato – Bossa Dubas Posto 9 (cd3), 2014 – Dubas Musica
Hamleto Stamato – Speed Samba Jazz 5, 2015 – L.PE Produções Musicais
João Donato – Sambolero, 2017 – Mills Records
João Donato – Raridades (anos 70), 2017 – Discobertas
Balé de Berlim
Gilberto Gil
Nossa seleção chega a Berlim
Numa perna só
Moleque saci
Uma perna só jogando por tantos milhões
De corações de curumins
Uma perna só pra tantos olhos e pulmões
Tantos estômagos e rins
Tantos fígados
Nossa seleção chega a Berlim
Traz um protetor
Senhor do Bonfim
Traz um protetor no amor que integra essa nação
Amor de pai, de mãe, de irmão
Traz um protetor no amor ao mar, amor ao sol
Amor aos dias de verão
E o carnaval
O carnaval não mata a fome
Nem mata a sede o São João
Mas nem só de pão vive o homem
Por isso viva a seleção
Nossa seleção chega a Berlim
Perder ou ganhar
Será sempre assim
Será sempre a vibração no ar, no ar o ardor
Meu coração de torcedor
Guardará sempre a lembrança de uma ilusão
E o nome de um jogador
Beckenbauer
Bauer
Barbosa
Bobo
Bobby Charlton
Puskas
Bellini
Eto´o
Viva Pelé!
Viva Mané!
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil e Zeca Pagodinho – Single, 2006 – Warner Music
Comentário*
“Balé de Berlim” foi feita especialmente pra Copa da Alemanha [de 2006], utilizando o mesmo começo e praticamente toda a mesma estrutura da canção que havia sido feita pra Copa da França [de 1998], “Balé da bola”. A da França começava: “Quando o meu olhar beijar Paris,/Terei mais amor, serei mais feliz”. E a da Alemanha: “Nossa seleção chega a Berlim/Numa perna só, moleque Saci”. É a mesma música. Ambas pra saudar nossa seleção na Copa do Mundo. Ambas sambas animados, rasgados, como a gente costuma classificar esse tipo de samba. E a motivação era o futebol, que tem seu lugar razoável na minha obra, e eu gosto. Eu queria replicar o samba de saudação à seleção. É claro que as paisagens eram diferentes, que eram duas seleções também diferentes, já oito anos depois — e eram duas cidades. O que Berlim despertava em mim não era exatamente a mesma coisa que Paris, que tem um lugar na vida da gente bem mais destacado — um pouco mais associado mesmo com a beleza e a grandeza da cidade. De todo modo, era a seleção, era Copa do Mundo, e “Balé de Berlim” é um samba-exaltação pra essa seleção. Aí as imagens e as ideias foram surgindo, e veio a do moleque Saci; a de um balé jogado numa perna só, por essa entidade tão tipicamente brasileira e tão especial, tão ligada à capacidade de desempenho de um ser humano de uma perna só. A coisa dos negros todos associados numa forma magistral ao futebol brasileiro. Essas coisas vinham nos substratos da ideia de escrever, de encontrar versos, palavras, expressões pra compor a canção. E ela tem no final aquela enumeração de jogadores, começando com Beckenbauer, vindo o Bauer, do São Paulo, grande jogador da década de 50, e Barbosa, da seleção de 50. E Bobô, que chegou a ser convocado e a jogar na Seleção, um ou dois jogos. Ele, jogador do Bahia, meu primeiro time de estimação.
Você enumera oito jogadores no final, seis com nomes começados com a letra B. — Tem Bobby Charlton, da seleção da Inglaterra, de 66. Bellini, do Brasil de 58. E aí Pelé e Mané.
O Saci é o símbolo do Internacional. — Eu não sabia na época. Eu só vim a me dar conta disso agora. Foi muito recentemente que eu vi a associação do Saci ao símbolo, à emblemática geral do Internacional.
Eu também. Foi mais recentemente que isso veio a me chamar a atenção. Foi por ocasião das cenas de racismo protagonizadas por alguns torcedores do Grêmio. — Mas o nosso querido Lupicínio [Rodrigues, o compositor, autor do hino do Grêmio] era gremista. Isso [a percepção atual do racismo no futebol] pode dar a oferecer fragmentos da história, da dimensão, das relações, mas não dá conta de tudo. O futebol transcende tudo isso. Pelo menos deveria transcender. Já houve tempos em que transcendia mais, não ficava tão submisso à lógica do corretamente político. Futebol era mais solto. Hoje em dia nós todos estamos mais presos a condicionantes variadas que não eram muito presentes no futebol antigo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Balafon
Gilberto Gil
Isso que toca bem, bem
Isso que toca bem, bem
Chama-se balafon
Em cada lugar tem
O nome deve ser outro qualquer
No Camerum
Isso que a gente chama marimba
Tem na África todo mesmo som
Isso que toca bem, bem
Num lugar, não lembro bem
Chama-se balafon
Marim-bajé
Iré-xiré
Balafonjá
Orim-axé
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Refavela, 1977 – Warner Music
Gilberto Gil – Nightingale, 1979 – Gege
Comentário*
Balafon é uma marimba africana que reproduz escalas pentatônicas; um instrumento que existe em todo canto da África e em cada lugar tem um nome. A música fala disso.
Sobre os quatro termos finais. — “Marim-bajé/ Iré-xiré/ Balafonjá/ Orim-axé” são aliterações de palavras africanas. Algumas são em quimbundo (marimba [tambor]) e em iorubá (bajé […], iré […], xiré […], orim […], axé […]), que eu fui justapondo. Outras, como “balafonjá”, uma palavra-valise, foi mesmo um procedimento concretista.
Jamesjoycianos. — Sim.
Quem primeiro veio com esse procedimento, na verdade, foi Lewis Carroll. James Joyce, depois, radicalizou seu uso, num romance todo composto de compósitos, de palavras-valises.
— Todo assim. Finnegans Wake.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Balé da Bola (Copa 98)
Gilberto Gil
Quando meu olhar beijar Paris
Terei mais amor
Serei mais feliz
Sentirei no ar a emoção, no ar o ardor
Meu coração de torcedor
Esperou tanto tempo por esta ocasião
Que um dia o menestrel sonhou
Magos da bola na Cidade Luz
Fazem milagres, transmutações
Dores e horrores que a vida produz
São transformados no balé da bola
Suor e sangue no balé da bola
Crime e castigo no balé da bola
Quando a seleção marcar um gol
Serão séculos
E mais séculos
Desde que na velha China, no velho Japão
Jogava-se com um balão
E na antiga Grécia ou na França medieval
Praticava-se o futebol
Quando a seleção marcar um gol
Serão séculos
E mais séculos
Transcorridos desde que os astecas e os tupis
Conforme a voz da lenda diz
Pelejavam com a lua-bola e o balão-sol
Num jogo de viver feliz
E hoje a bola rola mais perfeita
Esfera mágica, elevação
Nos pés dos ídolos deste planeta
Tem seu momento de consagração
A bola símbolo da perfeição
Tem seu momento de consagração
Quem lembrar Pelé ou Platini
Sabe o que se comemora aqui
Tantos que eu vi, tantos que eu não vi não (bis)
Todos tem aqui seu panteão
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Projeto especial Boticário, 1998 – Warner Music, Geleia Geral
Comentário*
Eu estava na França durante a Copa de 98: eu vi todos os jogos da seleção, com exceção de um, Brasil e Dinamarca, porque eu estava em Istambul, na Turquia, no dia. Eu estava em turnê pela França – pela Europa – e tudo tinha sido feito e programado para eu ir e poder ver os jogos: na final, eu estava no Stade de France.
Eu escrevi ‘Balé da bola’ por causa da Copa, poucos meses antes da competição, e a gravei pouco antes de viajar para a Europa, para cantá-la lá. O show era aberto com ela. Engraçado: do ponto de vista da qualificação da canção, do seu estar dentro e fora do tempo, foi interessante que o Brasil não tenha ganho essa Copa – porque ela não era uma daquelas músicas de torcida brasileira (era, mas ao mesmo tempo não era…).
Aí, no dia seguinte à final, nós estávamos já em Madri, onde íamos fazer um show, e na hora da passagem de som os músicos perguntaram: ‘Mas como é que vamos abrir o show?’ ‘Mas é claro que vamos abrir com ela, qual é o problema? Qual é o problema?’, eu disse. ‘É uma música sobre o futebol, imagina’. Porque ela foi feita a propósito da Copa da França – o que incluía todas as seleções.
E, nesse sentido, era interessantíssimo que a França tivesse sido campeã… Porque era ali, em Paris, e porque o samba tinha essa coisa de ‘Pelé e Platini’, porque era um ballet…
Tenho paixão por essa música. Por ser meu primeiro samba-enredo, fazendo uma viagem extraordinária por toda a coisa do futebol. E também pelo seu lado musical, pela fluidez do samba, junto com a letra.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Balada do lado sem luz
Gilberto Gil
O mundo da sombra
Caverna escondida
Onde a luz da vida
Foi quase apagada
O mundo da sombra
Região do escuro
Do coração duro
Da alma abalada, abalada
Hoje eu canto a balada do lado sem luz
Subterrâneos gelados do eterno esperar
Pelo amor, pelo pão
Pela libertação
Pela paz, pelo ar
Pelo mar
Navegar, descobrir
Outro dia, outro sol
Hoje eu canto a balada do lado sem luz
A quem não foi permitido viver feliz e cantar
Como eu
Ouça aquele que vive do lado sem luz
O meu canto é a confirmação da promessa que diz
Que haverá esperança enquanto houver um canto mais feliz
Como eu gosto de cantar
Como eu prefiro cantar
Como eu costumo cantar
Como eu gosto de cantar
Quando não tão abalada, a balada abalada
Do lado sem luz
© Gege Edições Musicais
Gravação
Maria Bethânia – Pássaro proibido, 1976 – Philips
Comentário*
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999. — “Ela tem um autoflagelo, um peso que não parece comigo, que, como compositor, sou solar e faço músicas quase sempre bem ensolaradas. Mas essa está lá embaixo, numa gruta. É estranha, porque fala de um lado sem luz e tem a vontade de abrigar um fenômeno curioso dos eclipses e do lado oculto da Lua. Me recordo que lembrei das naves que perdiam contato com a Terra, quando passavam pelo outro lado do satélite, quando o centro de operações da Nasa perdia contato com os astronautas. Era essa a ideia de bloqueio e corte nas comunicações. Escuro total, isolamento, o outro lado sem luz. Isso tudo transposto como metáfora de condição da alma humana, quando ela perde isso por alguma circunstância traumática no corte do fio de ligação com a Luminosidade. Essa música também contém a metáfora dos aprisionados e é, ao mesmo tempo, uma exortação à liberdade para eles que estão com as almas abaladas pela perda da Luz. […] “Enfim, é uma canção de compaixão pelos seres ainda embrutecidos.”
Ela traz uma carga dramática incomum na sua obra e que ficou muito bem evidenciada na voz teatral da Bethânia. Ela só pediu uma coisa: que trocasse a palavra “catacumba”, porque ela tem uma cisma com essa palavra. Aí eu coloquei subterrâneo e achei que ficou bem melhor, universalizando mais o sentido.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Baião atemporal
Gilberto Gil
No último pau-de-arara de Irará
Um da família Santana viajará
Levará uma semana até chegar
Junto com mais dois ou três outros cabras que estarão lá
No último pau-de-arara de Irará
Se essa viagem comprida fosse um cordel
Seria boa saída acabar no céu
Só que este conto que eu canto é pra lá de zen
Não tem sentido, não serve pra nada e é pra ninguém
Pra ninguém botar defeito e não ter porém
Basta pensar que Irará poderá não ser
Que os paus-de-arara de lá já não têm porquê
Porque os tempos passaram e passarão
Tudo que começa acaba, e outros cabras seguirão
Cruzando o atemporal do tão do baião
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Tropicália 2, 1993 – Universal Music
Comentário*
“Uma homenagem à família Santana, toda ela, em especial, claro, ao Tom Zé, que foi nosso colega, nosso companheiro, tropicalista da primeira hora, com um papel importantíssimo no tropicalismo, autor de várias canções do disco ‘Tropicália’, e primo de Roberto, produtor, sobrinho de Fernando, deputado, um Santana como tantos, clássico.
Em ‘Baião atemporal’ eu quis passar o sentido retirante da vida dele, que saiu do Irará, foi para Salvador, saiu de Salvador, foi para São Paulo, e os aspectos marcantes da vida nordestina, todos eles atributos muito nítidos da família, formada por nordestinos caboclos muito fortes; daí eu ter usado o baião, por ser talvez a forma clássica da música nordestina, da qual derivam todos os outros gêneros. Na canção a família Santana é tomada como um símbolo das famílias retirantes do Nordeste, e eu brinco com elementos ligados à vida nordestina, como o próprio pau-de-arara, que é o veículo da saída, o meio de transporte da retirada, e o cordel, o meio de contar histórias, especialmente para aquele que se tornava artista, no caso do Roberto Santana.
‘Um conto para lá de zen’, quer dizer: para não ter sentido, para não servir para nada, por não ser utilitarista, não ser para ser levado em conta a partir da grandeza ou da riqueza da sua narrativa, por não se tratar de uma história para ser contada, mas de um ‘conto’ a respeito da substância misteriosa, alquímica, da transformação, a que transforma tudo, que transforma os homens e os desloca de uns lugares para outros, enfim, que os faz se submeterem a essa coisa difícil do desenraizamento, da desterritorialização, das grandes migrações modernas – do que os retirantes nordestinos são um exemplo muito claro dentro do Brasil –, enfim, dos êxodos, no sentido bíblico da palavra. Como os retirantes da família Santana, que se atiraram para várias distâncias diferentes, com várias profundidades de atração pelo mundo exterior diferentes, uns tendo ficado em Salvador, outros ido para São Paulo, uns para a política, outros para o comércio, tendo outros ficado nas artes; é uma família muito grande, com muitas personalidades, e muitos retirantes.
A canção – composta especialmente para o disco ‘Tropicália 2’ – é sobre eles, com o Tom Zé como um personagem central. Ele estava retirado, havia muitos anos. Foi na verdade, o David Byrne, com a história de gostar da música brasileira e querer mostrá-la para o mundo, de uma forma especial, que o levou a voltar à cena. A partir do interesse de Byrne por Caetano, por Gil, por Tom Zé, e das aparições das canções do Tom Zé nas coletâneas de música brasileira de Byrne, nas resenhas nos jornais americanos, ele foi meio que compulsoriamente jogado de novo na vida profissional, convidado mesmo por esses eventos.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Baião / De onde vem o baião
Gilberto Gil
Debaixo do barro do chão da pista onde se dança
Suspira uma sustança sustentada por um sopro divino
Que sobe pelos pés da gente e de repente se lança
Pela sanfona afora até o coração do menino
Debaixo do barro do chão da pista onde se dança
É como se Deus irradiasse uma forte energia
Que sobe pelo chão
E se transforma em ondas de baião, xaxado e xote
Que balança a trança do cabelo da menina, e quanta alegria!
De onde é que vem o baião?
Vem debaixo do barro do chão
De onde é que vêm o xote e o xaxado?
Vêm debaixo do barro do chão
De onde vêm a esperança, a sustança espalhando o verde dos teus olhos pela plantação?
Ô-ô
Vêm debaixo do barro do chão
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gal Costa – Água Viva, 1978 – Philips
Luiz Caldas Trio Elétrico Tapajós – Cristal Liso, 1982 – Sunset Enretenimento
Gilberto Gil – Parabolicamará, 1991 – Warner Music
Elba Ramalho e Dominguinhos – Songbook Gilberto Gil, Vol. 1, 1992 – Lumiar Discos
Ito Moreno – De onde vem o baião, 1999 – Velas
Gilberto Gil – São João (Ao vivo), 2001 – Warner Music
Genaro & Walkyria – Forró N 1, 2004 – Atração
Cristina Amaral – Pérola Nordestina (Acústico), 2008 – Cristina Amaral [dist. Tratore]
Adriana Partimpim – Partimpim Tlês, 2012 – Sony Music
Orquestra de Sopros da Pro Arte e Flautistas da Pro Arte, Ituaçú – Gilberto Gil, 2012
Marcello Gonçalves e Daniela Spielmann – De onde vem o baião, 2013 – Kuarup Discos
Trio Nordestino – Trio Nordestino Canta Gilberto Gil, 2020 – Biscoito Fino
Nicolas Krassik – Estrela, Nicolas Krassik interpreta Gilberto Gil, 2021 – Gege
Comentário*
‘De onde vem o baião’ foi feita para a Anastácia. É uma canção sobre a energia telúrica que movimenta o moinho da criação musical nordestina; essas coisas que energizam o mundo poético, lírico, nordestino; essas imagens que vêm da natureza em geral e são transpostas para o espírito humano, assimiladas aos motores, aos fatores propulsores da alma criativa nordestina: o canto da ema, o mandacaru quando flora na seca, a plantação onde o verde dos teus olhos se espalha e esse barro do chão de onde vem o baião; uma canção sobre as forças deflagradas pela vivacidade rítmica do baião passando pelas pernas, pelos braços, pelas cabeças, pelos cabelos dos que dançam, dos que tocam, dos que cantam o baião; o baião como uma planta do agreste, uma coisa assim, o tal do baião.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Bacurizim
Gilberto Gil
De onde nascerá
O guri, o bacurizim
De onde nascerá
De onde virá bacurizim
Quixeramubim
No metrô de uma capital
Na metrópole
Em lugar do torrão natal
De onde nascerá
De que bucho esticadim
Nascerá meu bacurizim
Zim de Zezinho, som do z
Letra do alfabeto
Luz de uma estrela escondida
Cruz na memória gravada
Raio de um disco avistado
Pousado naquela estrada
Bacuri me-ni-na
Me-ni-no
Nuzinho no frio
Zezinho no frio
© Gege Edições Musicais
Gravação
MPB 4 – 4 Coringas, 1984 – Barclay
Bahia de todas as contas
Gilberto Gil
Rompeu-se a guia de todos os santos
Foi Bahia pra todos os cantos
Foi Bahia
Pra cada canto, uma conta
Pra nação de ponta a ponta
O sentimento bateu
Daquela terra provinha
Tudo que esse povo tinha
De mais puro e de mais seu
Hoje já ninguém duvida
Está na alma, está na vida
Está na boca do país
É o gosto da comida
É a praça colorida
É assim porque Deus quis
Olorum se mexeu
Rompeu-se a guia de todos os santos
Foi Bahia pra todos os cantos
Foi Bahia
Pra cada canto, uma conta
Pra cada santo, uma mata
Uma estrela, um rio, um mar
E onde quer que houvesse gente
Brotavam como sementes
As contas desse colar
Hoje a raça está formada
Nossa aventura plantada
Nossa cultura é raiz
É ternura nossa folha
É doçura nossa fruta
É assim porque Deus quis
Olorum se mexeu
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gal Costa – Baby Gal, 1983 – Philips
Comentário*
Interessantíssima essa imagem inicial. Não precisava mais nada… Ali há uma condensação de significâncias. A Gal também estava me pedindo uma música, e aí me veio essa imagem à cabeça: “Rompeu-se a guia de todos os santos”, imantada pelo sentido profundo do esparramar da Bahia pelo Brasil. A coisa das alas das baianas nas escolas de samba: nada é tão simbólico dessa egrégora que é a Bahia para o Brasil do que a ala das baianas. A ideia da letra parte daí. Quer dizer, a Bahia é o Brasil, como se o Brasil fosse resultante de um “esparramento” da Bahia por esse grande território. Não é por acaso; eu acho até que a sobreposição dos mapas da Bahia e do Brasil denuncia uma identidade. O mapa da Bahia é muito parecido com o mapa do Brasil. É o único território de estado brasileiro que reproduz o desenho do território nacional todo. Então na época isso foi mais um elemento na hora da composição que seguramente, eu me lembro claramente, também me ocorreu. O Brasil como uma dilatação da Bahia. Aí, claro, entra o elemento afro como centralidade na formação dessa Bahia mítica. É isto: tudo o que a gente já sabe que é, que foi e que será…
… A contribuição baiana pra civilização brasileira, privilegiando o aspecto doce, terno. — Exato.
“Nossa cultura é raiz/ É ternura nossa folha/ É doçura nossa fruta/ É assim porque Deus quis” soa como um ponto de convergência com “Toda menina baiana”. — Sim.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Back in Bahia
Gilberto Gil
Lá em Londres, vez em quando me sentia longe daqui
Vez em quando, quando me sentia longe, dava por mim
Puxando o cabelo
Nervoso, querendo ouvir Cely Campelo pra não cair
Naquela fossa
Em que vi um camarada meu de Portobello cair
Naquela falta
De juízo que eu não tinha nem uma razão pra curtir
Naquela ausência
De calor, de cor, de sal, de sol, de coração pra sentir
Tanta saudade
Preservada num velho baú de prata dentro de mim
Digo num baú de prata porque prata é a luz do luar
Do luar que tanta falta me fazia junto com o mar
Mar da Bahia
Cujo verde vez em quando me fazia bem relembrar
Tão diferente
Do verde também tão lindo dos gramados campos de lá
Ilha do Norte
Onde não sei se por sorte ou por castigo dei de parar
Por algum tempo
Que afinal passou depressa, como tudo tem de passar
Hoje eu me sinto
Como se ter ido fosse necessário para voltar
Tanto mais vivo
De vida mais vivida, dividida pra lá e pra cá
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Expresso 2222, 1972 – Polygram
Gilberto Gil – O Viramundo ao vivo (cd 1), 1976 – Polygram
Gilberto Gil e Rita Lee – Refestança, 1977 – EMI Records Brasil
Wanderléa – Maravilhosa (ao vivo), 2014 – Coqueiro Verde
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois amigos, um século de música, 2015 – Uns Produções e Gege
Barão Vermelho – Songbook Gilberto Gil – vol 2 – Lumiar Discos 2015
Gilberto Gil – Back in Bahia – ao vivo (1972), 2017 – Discobertas
Gilberto Gil – Umeboshi – ao vivo (1973), 2017 – Discobertas
Comentário*
Era o primeiro verão na Bahia depois que eu tinha voltado de Londres, e eu fui à festa de Nossa Senhora da Conceição em Santo Amaro da Purificação. Eu estava na casa onde Canô, mãe de Caetano, estava dando a festa; vendo as pessoas queridas e a alegria que emanava delas, da lembrança da saudade que eu sentia dessas e outras coisas em Londres veio o impulso para escrever a canção — que eu comecei ali, letra e música juntas, de cabeça, e complementei no dia seguinte, já na casa de Sandra, na Graça, em Salvador. “Back in Bahia” se baseia em motivos musicais muito íntimos, nordestinos — improviso, embolada, galope, martelo —, e em modos cordélicos, com rimas rítmicas [e também internas], típicas do versejar nordestino, e versos simétricos [quase todos de dezesseis sílabas]: entre eles, o “De vida mais vivida, dividida pra lá e pra cá”, de que eu mais gosto: poesia pura, concreta, como o “Fazer o canto, cantar o [cântaro] cantar”, em “Palco”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Babylon
Gilberto Gil
Jorge Mautner
First time I came to Babylon
I felt so lonely
I felt so lonely and people came along
To mistreat me
Calling me so many names in the streets
And I was so shy
That I began to cry
But now
I am so proud
Of whatever should be
Cause I have a silver knife
And my lover is Satan’s wife
And I don’t care
If you don’t dare see
© Gege Edições Musicais / © Direto
Babá Alapalá
Gilberto Gil
Aganju, Xangô
Alapalá, Alapalá, Alapalá
Xangô, Aganju
O filho perguntou pro pai:
“Onde é que tá o meu avô
O meu avô, onde é que tá?”
O pai perguntou pro avô:
“Onde é que tá meu bisavô
Meu bisavô, onde é que tá?”
Avô perguntou bisavô:
“Onde é que tá tataravô
Tataravô, onde é que tá?”
Tataravô, bisavô, avô
Pai Xangô, Aganju
Viva egum, babá Alapalá!
Aganju, Xangô
Alapalá, Alapalá, Alapalá
Xangô, Aganju
Alapalá, egum, espírito elevado ao céu
Machado alado, asas do anjo Aganju
Alapalá, egum, espírito elevado ao céu
Machado astral, ancestral do metal
Do ferro natural
Do corpo preservado
Embalsamado em bálsamo sagrado
Corpo eterno e nobre de um rei nagô
Xangô
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Refavela, 1977 – Philips
Gilberto Gil – História da MPB, 1982 – Abril Cultural
Gilberto Gil – Soy loco por ti America, 1987 – Warner Music
Zezé Mota – Este e o Gil eu gosto, 1995 – Warner Music
Gilberto Gil – 2 é demais, 1996 – Warner Music
Grupo Equale – Albatroz, 1999 – AZ
Zezé Motta – E collection, 2001 – Warner Music
Gilberto Gil – Nightingale, 2002 – Warner Music
Rita ribeiro – Tecnomacumba, 2006 – Biscoito Fino
Gilberto Gil – Bandadois, 2009 – Warner Music
Zezé Motta – Dose dupla – cd 2, 2011 – Warner Music
Comentário*
“Alapalá é um egum do terreiro de egum da Ilha de Itaparica, exatamente o egum da família de Xangô – que foi o primeiro candomblé que eu visitei, levado pelo Mestre Di, em 72. Alapalá foi um dos eguns que saíram, dançaram, ali, aquela noite, em que o Mestre Di jogou os búzios para mim e viu que eu era de Xangô, o que pesou no fato de eu mais tarde ter escolhido Alapalá para homenagear. Os versos aludem a Aganju, já na qualidade de orixá, que é um Xangô menino, e ao próprio Xangô Alapalá, que é o egum da família de Xangô, lá na Ilha de Itaparica.
Na letra eu vou fazendo um comentário sobre a ancestralidade, vista, misturadamente, tanto do ponto de vista do orixá quanto do ponto de vista do egum, que são duas coisas diferentes, os orixás sendo entidades míticas do olimpo, os deuses, e os eguns, os desencarnados, os humanos. Eu aí faço uma associação meio livre e pouco rigorosa, enfim, não necessariamente correta, entre uma coisa e outra; enfim, trata-se de uma interpretação muito pessoal.
À época em que fui ao terreiro, eu estava começando a compreender e a me interessar pelo profundo envolvimento que o candomblé tem com a cultura negra toda da Bahia, todo o universo das formas de expressão cultural da Bahia, a música, o carnaval, o modo de ser do povo e da cidade, Salvador.
Eu começava a associar o candomblé a todo esse mundo expressivo baiano, algo que eu não fazia antes e que só passei a fazer quando ele entrou na minha vida, depois que eu voltei do exílio.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil