Músicas
Futurível
Gilberto Gil
Seu segundo estágio de humanóide hoje se inicia
Fique calmo, vamos começar a transmissão
Meu sistema vai mudar
Sua dimensão
Seu corpo vai se transformar
Num raio, vai se transportar
No espaço, vai se recompor
Muitos anos-luz além
Além daqui
A nova coesão
Lhe dará de novo um coração mortal
Pode ser que o novo movimento lhe pareça estranho
Seus olhos talvez sejam de cobre, seus braços de estanho
Não se preocupe, meu sistema manterá
A consciência do ser
Você pensará
Seu corpo será mais brilhante
A mente, mais inteligente
Tudo em superdimensão
O mutante é mais feliz
Feliz porque
Na nova mutação
A felicidade é feita de metal
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1969), 1969 – Universal Music
Gilberto Gil – Concerto de cordas e máquinas de ritmo, 2012 – Biscoito Fino
Comentário*
Em relação às perspectivas de um “mundo novo” e suas implicações, diferentemente de “Lunik 9”, que reagia contrariamente a elas, “Cérebro eletrônico” já as admitia, mas com certa ironia; ali, o homem diz para o computador: “Tudo bem você, mas eu sou mais eu” (o que, aliás, é o pressuposto básico da cibernética e continua sendo o pressuposto do que está a serviço do homem, as novas inteligências artificiais colocadas sob o controle da inteligência original, a humana, a dos neurônios).
“Futurível” vai além, ao ponto de propor um futuro possível (futurível: mais uma vez, o procedimento concretista). O eu da música é o cientista detentor da tecnologia (ou o extraterreno mais avançado) falando para o homem comum (a cobaia…) do teste de iniciação aos novos tempos a que ele será submetido, nesses termos: “Olha, você está sendo trazido pra um novo estágio de humanidade, mas não se preocupe, isso é muito natural”.
Outro dia eu estava lendo uma entrevista com o Buckminster Fuller que o Arnaldo Antunes me mandou, onde ele, respondendo a várias questões relativas a tecnologia e ecologia, dizia: “Não temos com o que nos preocupar, não; nós vamos virar náilon mesmo”. Ele elabora uma trança de pensamentos para chegar a isso. Então, não tem muito jeito — por mais reativo que a gente seja a essas ideias, elas estão em andamento, em processamento.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Funk-se quem puder
Gilberto Gil
É imperativo dançar
Sentir o ímpeto
Jogar as nádegas
Na degustação do ritmo
Funk-se quem puder
É imperativo tocar
Fogo nas vértebras
Fogo nos músculos
Música em todos os átomos
A nossa atlântica e atlética
Romântica e poética
República da música
Conclama os físicos, místicos
Bárbaros, pacíficos
Índios e caras-pálidas
Nossos exércitos, políticos
Poder eclesiástico
E o comitê do carnaval
É hora de salvar a pélvis
Soltá-la, libertá-la
Agitá-la como o Elvis
Grande guerreiro e mártir
Da nação do rock’n’roll
Funk-se quem puder
Se é hora da barca virar
Não entre em pânico
Jogue-se rápido
Nade de volta à mãe África
Funk-se quem puder
Se é tudo que resta a fazer
Não perca o ânimo
Chegue mais próximo
Sambe e roque-role o máximo
Na degustação do ritmo
Música em todos os átomos
Nade de volta à mãe África
Sambe e roque-role o máximo
Gravações
Gilberto Gil – Extra, 1983 – Warner Music
Myrian Eduardo – Sentidos, 1996 – Myrian Eduardo
Cacala Carvalho e João Braga – Cada tempo em seu lugar, 2012 – Zênitha Música [Dist. Quae]
Comentário*
“Funk-se quem puder” era para dar qualificação ao funk e a tudo o que ele significa, tudo que vem com ele como cultura: o funk como música, como diversão, como catarse, como revolução, como libertação; o mundo da música funk e seus símbolos adicionais. O recado era: “Há uma salvação, você pode se salvar, salve-se quem puder; há uma válvula de escape: o funk”. Então, funk-se quem puder: vamos dançar para não dançar.
A terceira estrofe [formada pela longa série de proparoxítonas] parece uma procissão tropicalista daquelas encenadas por Zé Celso ou por Glauber Rocha: um auto encenado, um auto de graças tropicalistas pagão.
A quinta estrofe [com o verso “Se é hora da barca virar”] faz uma leve referência, de passagem, ao Brasil daquele momento; ao clima generalizado de descrença com relação ao futuro que imperava e a um possível futuro auspicioso para o país. Como se, o barco — o Brasil — afundando, fosse possível se jogar no mar e sair nadando de volta à África para sobreviver ao naufrágio.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Frevo rasgado
Gilberto Gil
Bruno Ferreira
Que a coisa virou confusão
No salão
Porque parei, procurei
Não encontrei
Nem mais um sinal de emoção
Em seu olhar
Aí eu me desesperei
E a coisa virou confusão
No salão
Porque lembrei
Do seu sorriso aberto
Que era tão perto, que era tão perto
Em um carnaval que passou
Porque lembrei
Que esse frevo rasgado
Foi naquele tempo passado
O frevo que você gostou
E dançou e pulou
Foi quando topei com você
Que a coisa virou confusão
No salão
Porque parei, procurei
Não encontrei
Nem mais um sinal de emoção
Em seu olhar
A coisa virou confusão
Sem briga, sem nada demais
No salão
Porque a bagunça que eu fiz, machucado
Bagunça que eu fiz tão calado
Foi dentro do meu coração
Porque a bagunça que eu fiz, machucado
Bagunça que eu fiz tão calado
Foi dentro do meu coração
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1968), 1968 – Philips
Claudette Soares – Gil, Chico e Veloso por Claudete Soares, 1968 – Philips
Rogério Duprat – A Banda Tropicalista do Duprat, 1968 – Philips
Som Três – Som Três Show, 1968 – EMI Records Brasil
Caetano e Gil – Barra 69, 1972 – Universal Music
Elba Ramalho – Arquivo II, 2000 – Nova Estação
Comentário*
Bruno Ferreira, filho do Abel Ferreira – o grande clarinetista, saxofonista e compositor –, era jovem músico – violonista também – de formação erudita. Na época, ainda estava se formando. Depois, ele se tornou regente da Orquestra Sinfônica da Universidade da Paraíba. Agora o nome dele é Leonardo Bruno. As últimas notícias que tive dele, em 2002, davam conta de que estava trabalhando com orquestra na Universidade do Espírito Santo, lecionando nas áreas de regência e composição, e também com um coral em Petrópolis. Bruno fez parte da música de ‘Frevo Rasgado’ – pequenos trechos da composição – comigo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Fox no mercado
Gilberto Gil
Gravação
Vários – Um trem para as estrelas, 1987 – Som Livre
For a hungry man
Gilberto Gil
There is no great appeal in God
For a hungry man
There is no being good
For a hungry man
Everybody is bad
For a hungry man
Every dream is dread
For a hungry man
The only thing is food
For a hungry man
There is no great deal in life
For a hungry man
There is nothing he could
But to be alive
As if already dead
But to see a stone
And want it to be bread
For a hungry man
The only thing is food
Fogo líquido
Gilberto Gil
A mania de queimar
O que é bom e o ruim
Meu fogo vem
Do meu modo de esfregar
Todas as partes de mim
Seja paixão
Seja o que você quiser
Meu fogo existencial
É a combustão
Da razão do meu viver
Na chama do irracional
O coração
Risca o fósforo do ardor
E a dor se inflama voraz
Consumição
Numa fogueira de amor
De gralhos secos da paz
Bem mais pra lá
Do distante azul do céu
Na escuridão total
Se encontrará
Meu destino junto ao seu
Nas mãos de Deus, afinal
Gravação
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Comentário*
Sobre viver requerer fogo: a gente morre quando perde o fogo; esfria. — Exatamente.
A letra já começa falando do fogo como resultado da fricção das partes da pessoa. — “Todas as partes de mim”. E aí vem uma tentativa de explicação. “Seja paixão/ Seja o que você quiser/ Meu fogo existencial/ É a combustão/Da razão do meu viver/Na chama do irracional”. Essa química ou alquimia, essa condição físico-química do fogo, do arder, porque alguma coisa arde; o fogo existencial, a razão de viver, ardendo na chama do irracional. É interessante isso.
Interessante também a entrada inesperada de uma segunda pessoa no final. Um interlocutor a quem a música está sendo endereçada. Mas é como se endereçada a um vago, a uma vaga amorosa, um vago amor. Um amor a ninguém. — Não transitivo. Um amor a alguém ninguém.
Nem transitivo direto, nem indireto. Intransitivo. — Intransitivo. Amor por esse segundo personagem que entra ali.
“Na escuridão total/ Se encontrará/ Meu destino junto ao seu/ Nas mãos de Deus, afinal”. — Onde todos nos encontraremos. É isso. É um ninguém todos. Um alguém todos ninguém. Ninguém todo mundo. É essa coisa louca, maluquice.
E esse “Meu destino junto ao seu” é algo que retorna depois, no final também, em “Quatro pedacinhos”, com o verso “Por ter juntado o meu destino ao seu”.
Alguns compositores como você, usando da linguagem da canção popular, a partir de um momento da história, sobretudo dos anos 1960, vão se permitir criações que têm um pé no popular, mas também se abrem para o que é simplesmente artístico. — Independentemente de serem de alta ou baixa cultura, abrem-se pra algo menos imediatamente comunicável. Mais filosofal. Meu trabalho é muito permeado por isso, é quase que caracterizado basicamente por isso. É a característica principal do meu trabalho, da relação palavra-som-palavra-som, juntar formas de canção, de cancionetar, do cancioneiro popular, com assuntos variados que vão desde os corriqueiros, banais, do romantismo comum, até isso — até a ousadia filosofante. Minha obra é muito isso.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Fogo de Palha
Gilberto Gil
Ou vai virar paixão
Não me deixe só agora
Segure a minha mão
Que a sanfona tá chorando
E a lua clareando a nossa união
Se a paixão não pega
É o amor que pega sim
Mesmo que “cê” vá embora
O xodó nunca tem fim
Sempre há de chegar a hora
De ver você de novo aqui no meu jardim
É assim com todo mundo
Com nós dois também será
Quando o amor é verdadeiro
Quando o afeto é bem sincero
Não há como se livrar
Mesmo se e fogo de palha
O bicho quando se espalha
Tudo em volta vai queimar
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
O tema também já foi proposto pela Roberta Sá [a exemplo do que ocorreu em “Cantando as horas”, outra parceria de Gil com Roberta, e de outras canções feitas para o álbum Giro]. Ela escreveu até “E a lua clareando a nossa união”; música e letra. Eu peguei daí em diante. Fui pegando o mote da música e também a métrica versificante que ela tinha proposto e fiz todo o resto. Mas o título “Fogo de palha” e tudo mais já veio dela, sugerido já na primeira estrofe. É bem um xote bem clássico. Roberta é potiguar, tem afinidade absoluta com isso [embora tenha ido para o Rio adolescente ainda]. E tem ampliado seu interesse por todos os gêneros brasileiros — baianos, mineiros, paulistas, cariocas etc. Mas a origem dela é nordestina.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Flecha ao alvo
Gilberto Gil
Gravação
Vários – Brasil Ano 2000, 1969 – Universal Music
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
Flora
Gilberto Gil
Frondosa toda a folhagem
Multiplicada a ramagem
De agora
Tendo tudo transcorrido
Flores e frutos da imagem
Com que faço essa viagem
Pelo reino do teu nome
Ó, Flora
Imagino-te jaqueira
Postada à beira da estrada
Velha, forte, farta, bela
Senhora
Pelo chão, muitos caroços
Como que restos dos nossos
Próprios sonhos devorados
Pelo pássaro da aurora
Ó, Flora
Imagino-te futura
Ainda mais linda, madura
Pura no sabor de amor e
De amora
Toda aquela luz acesa
Na doçura e na beleza
Terei sono, com certeza
Debaixo da tua sombra
Ó, Flora
Gravações
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
Gilberto Gil – Ao Vivo em Tóquio, 1982 – Warner Music
Elis Regina – Trem Azul, 1982 – Som Livre
Comentário*
[Para Gil, seria difícil não aproveitar a sugestão poética de um nome tão bonito] para expressar todo um afeto a partir de uma “[…] viagem pelo reino do teu nome”. Eu não resisti. Assim, os elementos e as imagens da canção são todos extraídos do reino vegetal. “Flora” é como se eu penetrasse no bosque para encontrar a fada.
Das relações entre música e números e do gosto pela composição dividida em três partes, com sua justificativa. — Fiz as duas primeiras partes [cada parte dividida, na presente transcrição, em duas estrofes] num dia e, insatisfeito com isso, fiz no outro a terceira, que me satisfaz menos. Aquelas são muito profundas, densas, e a última mais diluída, ornamental — ficou como se fosse de presente pra ela, Flora. Ainda assim achei melhor mantê-la, pela minha mania do três; pela ideia de síntese que o número três dá. Às vezes duas partes são suficientes, mas em geral eu prefiro colocar mais uma, para promover dois deslocamentos semânticos entre as unidades — um, da primeira para a segunda, e outro, da segunda para a terceira. Quer dizer: três (partes) pra dois (movimentos).
Música-anzol. — Era o verão de 79. Ela estava passando férias em Salvador. Eu a tinha conhecido um mês antes, e nós ainda não namorávamos. Telefonei para um amigo comum. “Diga que eu quero vê-la, que vou estar no Teatro Vila Velha entre quatro e seis da tarde. Tenho uma coisa pra mostrar a ela.” Quando ela chegou, eu cantei a música.
“Flora” foi portanto uma cantada literal. Cantei Flora na canção e com a canção. É minha única canção-cantada; que bom que tenha ficado suficiente em beleza e elegância. A alma exigia capricho: o sentimento era intenso, e o desejo, de uma relação durável. O que eu cantava não era só uma pessoa, mas toda uma vida com ela. Na letra eu já a imagino “idosa”, “bela senhora”, “futura”. Elis é que me disse: “Nunca uma mulher teve de um homem uma música dessa!”. Uma música em que já se lhe oferecia a conformidade a estados que iriam aparecer na sucessão de eventos no tempo.
A canção teve pra mim, como talvez pra ela, o caráter da irrecusabilidade da proposta. “Flora” foi além das intenções nela contidas; acabou tendo uma função. A cantada funcionou. É bom que a música e a poesia também tenham essa utilidade. Um modo sutil de ser útil. Uma sutil utilidade; uma “sutilidade”…
Um não sei o que é. — Há algumas canções na minha obra que me dão a sensação de um deslocamento para um outro plano, onde a poesia tem os seus elfos, as suas ninfas… “Flora” é uma delas. Ali parece que o ser da paixão se desloca também, usando a canção como se fora instrumento, escrava dele; que o conjunto da habilidade e do talento do indivíduo, eu, esteve a serviço de uma encomenda feita por uma outra coisa, um ser, em destaque.
Minha sensação é a de que essas músicas (“Metáfora” é outra; “Dada” também) respondem a uma questão que não era minha enquanto artista; em princípio, é como se eu não as tivesse feito. É como se, de repente, através delas eu pudesse ter acesso a uma leve presença de um ser poético que fosse um espírito, um ser da categoria dos transmateriais, para o qual o criador homem fosse cego: o ser das coisas, o ser eterno.
Eu mesmo não o enxergo e tenho uma grande dificuldade com a apreensão do significado de expressões tais como “o espírito do poeta”, “o espírito das coisas”; às vezes eu chego perto de alcançá-lo, outras, ele me foge. Parece algo ao mesmo tempo palpável e fugidio; é um negar-se ao afirmar-se, um afirmar-se ao negar-se; é uma coisa… eu não sei realmente o que é…
É um não sei o que é! — Um não sei o que é! Bravo! É esse tipo de natureza que eu atribuo ao tal ser de que falo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Flagelo
Gilberto Gil
Carlinhos Brown
Gravação
Gilberto Gil – Z, 2002 – Warner Music
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Filhos de Gandhi
Gilberto Gil
Todo o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Iansã, Iemanjá, chama Xangô
Oxossi também
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Mercador, Cavaleiro de Bagdá
Oh, Filhos de Obá
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Senhor do Bonfim, faz um favor pra mim
Chama o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Oh, meu Deus do céu, na terra é carnaval
Chama o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Gravações
Gilberto Gil – Phono 73, 1973 – Philips
Maria Bethânia – Drama – 3º Ato, 1973 – Philips
Gilberto Gil e Jorge Ben – Gil, Jorge, Ogum, Xangô, 1975 – Philips
Gilberto Gil – O Viramundo, Vol. 2 (Ao Vivo), 1976 – Gege
Gilberto Gil – Em Concerto, 1987 – Gege
Caetano Veloso & Gilberto Gil – Dois amigos, um século de música, 2015 – Sony Music 2015
Wado – Ivete, 2016 – Wado [dist. Tratore]
Gilberto Gil – Ao Vivo na USP (1973), 2017 – Discobertas
Comentário*
Chegado de Londres, em 72, eu fui passar o Carnaval na Bahia, e encontrei o afoxé Filhos de Gandhy sem massa humana na avenida, reduzido a apenas uns quarenta ou cinquenta na praça da Sé. O bloco, tão vivo na minha memória, tinha sido um dos grandes emblemas da minha infância e era o mais antigo da cidade. Começou a sair em 49, quando eu tinha sete anos; os integrantes passavam pela porta de casa no bairro de Santo Antônio, todos de branco, com turbantes e lençóis, palhas de alho trançadas e fita na cabeça, e com um toque que era diferente do samba, da marcha, do frevo, dando uma sensação de espaço sagrado (depois viemos a saber que o afoxé era mesmo um toque religioso do candomblé). Eu tinha veneração pelo Gandhy, e ao revê-lo numa situação de indigência me deu uma dor seguida de um arroubo de filialidade, de amor de filho, arrimo de família; resolvi dar uma força. A primeira coisa que fiz foi me inscrever no bloco — para “engrossar o caldo”. Depois fiz a música, e continuei saindo — saí treze anos seguidos. As fileiras foram aumentando, e o Gandhy se recuperando. Os jovens ficaram entusiasmados com minha presença, e os velhos se sentiram mais estimulados a trabalhar; enfim, foi um estímulo geral. [Mercador de Bagdá, Cavaleiro de Bagdá, Filhos de Obá: outros blocos de afoxé citados na letra.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Figura de retórica
Gilberto Gil
Eu sou a frase de um discurso de paraninfia
Da turma de bacharelandos
Da Universidade da Bahia
A popular figura metafórica
Eu sou a beca preta que o doutor vestia
Na tarde daquele memorável samba
No salão nobre da reitoria
Beca preta, doutor de anedotas, normalista linda
Nossas fantasias não têm igual
Aos Fantasmas de Hamilton, Coemo, Rubinho e Mutinha
Nossas simpatias neste carnaval
Gravação
Gilberto Gil – Acústico MTV, 1994
Comentário*
Uma música ao estilo de marchas-ranchos.
Citações. — O verso “Na tarde daquele memorável samba” é de “Meu romance” [de Leonel Azevedo, sucesso de Orlando Silva nos anos 1940]. “Doutor de anedotas”, de “Café Soçaite” [de Miguel Gustavo]: “Doutor de anedota e de champanhota,/Estou acontecendo no café soçaite./Só digo ‘enchanté, muito merci, all right’./ Troquei a luz do dia pela luz da Light”. E “normalista linda” [da canção homônima de Benedito Lacerda e Davi Nasser], de outro samba: “Mas a normalista linda/Não pode casar ainda,/Só depois que se formar./Eu estou apaixonado,/O pai da moça é zangado,/ E o remédio é esperar”. São citações de memórias do cancioneiro, tão forte, tão presente.
Os Fantasmas. — Mutinha era filho da professora Guiomar, uma negra, ele negro também, negro mesmo, afro, retinto. Coemo era branco. Os outros eram mestiços. Hamilton, mestiço de índios com brancos com negros. Rubinho, de várias raças. Eles fundaram Os Fantasmas, que depois se tornaram Os Corujas, que deram origem a todos os blocos de Carnaval de classe média, ligados a um Carnaval modernizante, em Salvador. Hamilton foi quem me levou pra gravar meu primeiro jingle. Ele era o líder musical do quarteto Irapuru.
Uma música emblemática. — Não fazia muito tempo que eu tinha me formado. Seis, sete anos: eu me formei em 64. Os versos têm a ver com a aproximação entre mundo acadêmico e cultura popular, um papel dos grandes músicos dos seminários de música da Bahia, Koellreutter, Ernst Widmer, Walter Smetak, toda aquela turma — e os descendentes, os alunos: Tom Zé… A música na Universidade da Bahia era muito forte. “Figura de retórica” remete àquilo tudo. Essa música é como se fosse um emblema. Eu adoro ela. Eu vou recuperá-la.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Feliz por um triz
Gilberto Gil
Por um triz sou feliz
Mal escapo à fome
Mal escapo aos tiros
Mal escapo aos homens
Mal escapo ao vírus
Passam raspando
Tirando até meu verniz
O fato é que eu me viro mais que picolé
Em boca de banguelo
Por pouco, mas eu sempre tiro o dedo – é
Na hora da porrada do martelo
E sempre fica tudo azul, mesmo depois
Do medo me deixar verde-amarelo
Liga-se a luz do abajur lilás
Mesmo que por um fio de cabelo
Sou feliz por um triz
Por um triz sou feliz
Eu já me acostumei com a chaminé bem quente
Do Expresso do Ocidente
Seguro que eu me safo até muito bem
Andando pendurado nesse trem
As luzes da cidade-mocidade vão
Guiando por aí meu coração
Chama-se o Aladim da lâmpada neon
E de repente fica tudo bom
Gravação
Gilberto Gil – Raça humana, 1984 – Warner Music
Comentário*
Essa faz parte dos rocks de Raça humana, um disco com um repertório constituído em boa parte de músicas compostas no gênero. Assim como “Punk da periferia”, assumia-se como o discurso de um punk. “Feliz por um triz” assimila uma linguagem típica de roqueiros. Aqui eu incorporo um deles na primeira pessoa, mas não sou necessariamente eu quem fala, e sim o personagem, o roqueiro. A letra transmite um sentimento de insatisfação diante da insalubridade do entorno, sendo expressão disso por meio da acidez e da rispidez do estilo, do jeitão rock ‘n’ roll de reclamar contra o sistema da vida moderna, de vocalizar o desconforto diante dessa vida. No trecho final, no entanto, eu admito que me coloco com minha personalidade, minha visão, meu desejo e minha crença na capacidade alquímica de transformação, de transmutação. Daí esse final com um milagre, com o gênio da lâmpada dando um jeito na situação…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Felicidade vem depois (Se você disser)
Gilberto Gil
Que ainda me quer, amor
Eu vou correndo lhe abraçar
Seus beijos, seus carinhos
Vivo a procurar
Como o poeta busca a inspiração
Nas noites de luar
Se você disser
Que ainda me quer, amor
Eu vou correndo lhe abraçar
E unidos, bem juntinhos
Partiremos só nós dois
E o bom, felicidade
Vem depois
Gravações
Gilberto Gil – Retirante, Vol. 1, 1962 – Discobertas
Paulinho da Viola – Songbook Gilberto Gil, Vol. 3, 1992 – Lumiar Discos
Claudia Telles – Quem sabe você, 2009 – Nova Estação
Comentário*
É a música que eu considero a primeira composição minha. Eu fiz muitas coisas antes, na época em que tocava acordeon, antes de tocar violão; fazia composições improvisadas, que não chegava nem a definir como canções: eram improvisos que às vezes eu mantinha na forma de uma canção por alguns dias, depois abandonava. Essa é a primeira que eu me lembro de ter feito e ter considerado como uma canção definitiva, com começo, meio e fim, numa forma que se repetia. Era claramente influenciada pela bossa nova, tendo sido feita só depois de eu ter encontrado na bossa nova – de a bossa nova ter despertado em mim – uma noção mais nítida do que é uma canção, do que é haver autor, do que é haver autores para as canções; de elas serem autorais, estarem ligadas a uma pessoa ou a pessoas que as compõem. As canções de Luiz Gonzaga e Dorival Caymmi tinham despertado um pouquinho isso em mim, mas eram canções que pertenciam ao domínio público, embora tivessem autores; eram canções que se dançavam nas festas e se cantavam nas casas como as canções folclóricas, como as canções de roda, de ninar. Só a bossa nova me trouxe mais claramente a ideia da canção de autor, e “Felicidade Vem Depois” foi a minha primeira canção nesse sentido autoral, de canção que se registra para que se faça público, para que se possa propiciar o compartilhar, por outras pessoas, do que é a criação individual. E, sem dúvida alguma, era para imitar mesmo a bossa nova, para mostrar a mim mesmo que eu tinha absorvido aqueles códigos e que aquele modelo se diferenciava do que havia antes.
À observação de que o início da canção – da letra, sobretudo – se assemelha ao de “Desafinado”, de Tom Jobim e Newton Mendonça – Eu não tenho lembrança da consciência dessa influência, dessa relação, mas é possível que ela tenha havido, já que toda canção era impregnada de bossa nova, toda motivação em fazê-la era por causa da bossa nova; era o desejo mesmo de imitar Tom Jobim, Vinícius de Moraes, os compositores da bossa nova – e de imitar João Gilberto.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Feiticeira
Gilberto Gil
Bem que eu queria ser
Feiticeira
Pra enfeitiçar você
Com encanto e sedução
Lhe atrairia pro meu canto
E lhe faria amor, amor, amor
Até que o pranto
Lhe fizesse o coração
Tão duro, amolecer
Com poder de sugestão
Lhe afastaria do seu trono
E lhe faria amor, amor, amor
Até que o sono
Lhe fizesse o coração
Tirano, adormecer
Eu faria todo mundo saber
Eu traria todo mundo pra ver
Minha cama inteira só pra você
Gravação
Zezé Motta – Dengo, 1980 – Atlantic
Comentário*
[“Feiticeira” é uma das duas canções que Gil fez para Zezé Motta gravar, ambas para um mesmo disco e escritas no eu lírico feminino, intencionalmente dela.] É da época em que eu estive mais próximo dela. Convivíamos, nos encontrávamos muito e nos apreciávamos, nos admirávamos mutuamente. Foi uma época de aproximação mesmo. Ela, evidentemente, muito interessada no significado geral do meu trabalho, a questão da negritude perpassando as nossas preocupações gerais (“Poço fundo” é nessa linha). Em “Feiticeira” eu queria retratar nela o afeto que ela tinha por mim ou, mais do que isso, o afeto mútuo que tínhamos ambos pelo outro. Ambos cancerianos. Ali estão nossos amores. Os meus por ela e os dela por mim.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Fechado pra balanço
Gilberto Gil
Meu saldo deve ser bom
Tô fechado pra balanço
Meu saldo deve ser bom
Deve ser bom
Um samba de roda, um coco
Um xaxado bem guardado
E mais algum trocado
Se tiver gingado, eu tô, eu tô
Eu tô de corpo fechado, eu tô, eu tô
Eu tô fechado pra balanço
Meu saldo deve ser bom
Tô fechado pra balanço
Meu saldo deve ser bom
Deve ser bom
Um pouco da minha grana
Gasto em saudade baiana
Ponho sempre por semana
Cinco cartas no correio
Gasto sola de sapato
Mas aqui custa barato
Cada sola de sapato
Custa um samba, um samba e meio
E o resto?
O resto não dá despesa
Viver não me custa nada
Viver só me custa a vida
A minha vida contada
Gravações
Elis Regina – Em Pleno Verão, 1970 – Universal Music
Zimbo Trio – Strings & Brass Plays The Hits, 1971 – Polygram Music
Comentário*
O título e o tema da canção são autoexplanatórios: eu estou ali, em Londres, porque me obrigaram a isso, me prenderam, me tiraram de circulação, me mandaram para o exílio, e eu estou “fechado pra balanço”: uma expressão típica daquele período, que se via em placas penduradas na frente das lojas, em fim de ano. Eles fechavam os estabelecimentos para fazer o balancete anual.
Um samba cheio de balanço, de malemolência, de insinuações de ginga, de finta, no sentido futebolístico, de dribles; cheio de cascas de banana para as pessoas escorregarem…; um samba para os bons sambistas, os bons suingueiros — como Elis, que o adorou e que o cantou.
Samba de roda, coco, xaxado, trocado, gingado: uma lista do saldo, das coisas que eu tinha levado daqui, as acumulações, as riquezas da minha cultura, da minha realidade cultural, brasileira, que formavam o meu tesouro na situação de exílio. As “cartas no correio”: a forma como eu me reportava com o Brasil, como eu mantinha relações afetivas com a família, com os amigos. A “sola de sapato”: para dizer do hábito de andar muito em Londres. E, no final, “a minha vida contada”, no sentido de contabilização; eu, o contador, fazendo a minha firma.
Uma música interessante, ao mesmo tempo prosaica, ao mesmo tempo poética.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Febril
Gilberto Gil
Veio gente reclamar uma escola
Veio gente me aplaudir
Veio gente vaiar
Veio gente dormir nas cadeiras
Veio gente admirar meu talento
Veio gente adivinhar meu tormento
Veio gente me xingar
Veio gente me amar
Veio gente disposta a se matar por mim
E eu cantava aquela música, aquela música
Alucinação
Como se eu fosse um punhado de gente
E aquela gente ali, não
Como se o salão repleto fosse um deserto
E eu fosse mil
Mil troncos de árvores velhas
Árvores velhas de pau-brasil
Tanta gente, e estava tudo vazio
Tanta gente, e o meu cantar tão sozinho
Todo mundo, mundo meu
Meu inferno, meu céu
Meu vizinho
Gravações
Zizi Possi – Dê um rolê, 1984 – Universal Music
Gilberto Gil – Dia dorim noite neon, 1985 – Warner Music
Renato Braz – Casa de morar, 2012 – Renato Braz (dist. Tratore)
Comentário*
Eu tinha dois ou três dias para entregar uma música para a Zizi Possi, quando fiquei fortemente gripado. Com febre alta, mas com aquilo na cabeça – ‘a música da Zizi: o que é que eu faço?’ -, fiz essa canção sobre a solidão do artista no palco e, após terminar a sua feitura e relê-la, eu vi que o texto estava nitidamente influenciado pelo meu estado febril. Daí o título, associado, sem dúvida alguma, ao delírio do ato de se apresentar em um palco e à febre da idolatria, do fã-clube.
“Veio gente reclamar uma escola” – Enquanto compunha, eu me lembrei de um episódio ocorrido dias antes, numa ida minha a um show do Belchior no teatro João Caetano. Depois do show, já no camarim, ele atendendo as pessoas que entravam, uma delas me viu e me pediu: ‘Arranja uma escola para o meu filho, uma bolsa escolar’.
“Veio gente disposta a se matar por mim” – Essa frase é o máximo; na exposição da cena, ela tem para mim uma equivalência com os versos da música Bastidores, que o Chico Buarque fez para o Cauby Peixoto: ‘E os homens lá pedindo bis/ Bêbados e febris/ A se rasgar por mim’. Nesse aspecto da solidez da solidão do artista, as duas são canções irmãs.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Fé na festa
Gilberto Gil
Tu, tua emoção
Nós, nós e o São João
Mais não pode, não
Não, mais ligeiro não pode
Que o vento sacode, atingimos a velocidade ideal
Se esporo mais nossa jega
A bichinha escorrega e a légua manda tudo pro matagal
Calma que a nossa lambreta
Jumenta porreta, já anda espoleta demais
São João carneirinho quer devagarinho
Mansinho vamos chegar em paz na festa
Festa, festa na fé
Fé, fé na festa
Da brisa fresca da noite
Sentimos o acoite, a baforada, aquele coice de ar
Próxima curva, segura,
Me agarre a cintura que a jeguinha pode até derrapar
Anda, motoca jumenta
Não fique ciumenta
Cê traz no guidom pendurado
Um frasquinho de água benta
Do santinho amado por nós
Nós vamos chegar em paz na festa
Festa, festa na fé
Fé, fé na festa
Gravações
Gilberto Gil – Fé na Festa, 2010 – Gege
Gilberto Gil – Fé na Festa (Ao Vivo), 2010 – Gege
Gilberto Gil – São João em Araras (Ao Vivo), 2021 – Gege
Comentário*
Outra canção que dá título a um álbum, mas essa, ao contrário do sentimento que eu tenho em relação a “Banda larga cordel”, é uma daquelas que dá conta da importância disso. A história toda é bem narrada. Tem a facilidade também de ser cordelesca, porque a história é narrada com o modo versejante nordestino.
Fé na festa. — Isso que é reiterado na música nordestina, está lá em Luiz Gonzaga o tempo todo, em Jackson do Pandeiro, em todos os grandes autores e intérpretes nordestinos: a importância extraordinária da festa junina com todos os derivativos devocionais entre os santos — São João, São Pedro, Santo Antônio (e aqui trata-se de novo de Santo Antônio: não está explicitado, mas é ele que está ali). A fé com seus signos católicos; a fé católica como elemento instrutor, informador da formação daquele povo, daquela região, a herança histórica propiciada pelo catolicismo do “padim” Ciço, esse tipo de coisa, esses entes, essas entidades todas.
De a canção conferir à festa um valor especial. — Um valor pra lá da crença. O valor da assunção, assumindo a realização da festa em si, em cada um deles, em cada um de nós.
De a canção tratar do estar indo para a festa. — A maioria das canções sobre festas dos grandes compositores nordestinos, pelo menos do que eu me lembre, fala de estar na festa, de fazer a festa, mas essa inclui o elemento do transporte, do deslocamento, da distância, da busca do atingimento de um alvo em direção ao qual você atira, você se atira. Eles estão se atirando para aquela festa, são os dois namoradinhos que estão indo pra festa, ele levando a menina dele, o seu amor. E a construção musical toda tem a ver com isso, com uma ligeireza, uma rapidez.
A motoca jumenta. — Ou seja, o que foi no passado o grande meio de transporte entre as pequenas cidades, entre os pequenos lugares do interior do Nordeste, hoje é a moto. É uma transposição semântica real, realista, factual. De fato existe uma jeguinha nova, a motoca jumenta.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Fé menino
Gilberto Gil
Menino, felino, levado, feliz
Vou levando cada vez mais jeito
Bela menina, bela menina
Bela menina, minha sina, cada vez mais
Belo menino, meu destino, cada vez mais
Cada vez mais vou gostando, vou dando
Certo
Cada vez mais entendendo, chegando, chegando
Perto
King-Kong kung-fu
E tudo cada vez mais perto
King-Kong kung-fu
E nada resta como é
King-Kong kung-fu
E eu, ou três modos de Deus
Bem-querer menino
Bem-querer menina, ah
Vou levando, ô, ô, ô
Ô, ô, belo menino
Ah, ah, bela menina
Gravações
Ney Matogrosso – Feitiço, 1978 – WEA
Moisés Navarro – Aquele Abraço, Gilberto Gil, 2022 – Alves Madeira
Comentário*
Quanto às palavras (‘dando’, ‘entendendo’) que, ao que tudo indica, sugerem uma referência simpática à homossexualidade – Obviamente: ‘Fé menino’ é uma música de apologia à homossexualidade, de uma receptividade carinhosa à ideia da homossexualidade (como outras minhas – ‘Veado’, por exemplo). O homossexualismo já pertencia então ao repertório das questões libertárias, e é nesse sentido que a música é feita. Nós – eu, Caetano – contribuímos muito para a simpatia pelo traço libertário do movimento gay: nós defendemos muito isso.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil