Músicas
Sábio sabiá
Gilberto Gil
Eu sou sábio, sim
Eu sou sábio, sim, senhor
Meu pai é quem sabe
Eu sou sabiú
Pra poder ser sabiá
Eu sou sabiá
Minha mãe que tratou de me ensinar
Quem tratou de ensinar a ela foi Lidu
Minha avó, eu menino, agora Ituaçu
Eu me lembro
Eu sou sábio
Eu sou sábio, sim
Eu sou sábio, sim, senhor
Meu pai é quem sabe
Saci-Pererê
Gilberto Gil
Ê, ê, ê, ê, ê
Vou prestigiar
O neguinho deve ser da grande escola Pelé
É, é, é, é, é
Vou prestigiar
O moleque Saci-Pererê com uma perna só
Ó, ó, ó, ó, ó
Vai ver que é melhor
Do que muitos por aí com duas pernas-de-pau
Ah, ah, ah, ah, ah
Vai ver que é melhor
Entra um time novo, troca o time inteiro, mudo tudo
Tem jeito não
Falta alguma coisa tipo liberdade, profissão de fé
Devoção
Vou buscar a fantasia no conto da carochinha
Com a varinha
De condão
Moleque Saci
Vou prestigiar
Um gol Pererê
Pra gente vibrar
Moleque Saci
Saci-Pererê
Um gol de Pelé
Que é pra gente ver
Sala do som
Gilberto Gil
Na sala do som
Só quem pode entrar
É Milton
Se ele resolver
Me acordar
Diga que é melhor
Me deixar dormir
E que é pra ele também
Se deitar
Na sala do som
Se ele descansar
Vai ser bom
Amanhã vai ser
De arrasar
Temos que fazer
Cinco ou seis horas de show
E a turma tem
Que deitar
E rolar no som
Temos que escolher
Qual o tom
Do samba que vai
Encerrar
E uns detalhes mais
Pra acertar
Diga ao Bituca pra ele entrar
Sem bater
Na sala do som
Comentários*:
“Uma música para Milton. Ele passava uns dias na casa do Caetano, na rua Delfim Moreira, no Leblon, no Rio, onde ficou uns cinco, seis dias, quase uma semana. Eu chegava e sempre o encontrava lá; aí nós conversávamos. Ele ficava num quarto que a gente chamava a ‘sala do som’. De repente eu resolvi fazer essa canção, que eu gravei para o ‘Refavela’ mas acabei não colocando no disco; ela ficou como sobra. Depois a música foi perdida, permanecendo sem paradeiro por muito tempo. Eu esqueci como ela era, já não sabia cantá-la. O único registro dela que eu sabia que havia era a gravação que tinha sido feita para o ‘Refavela’, mas eu mandei procurar no arquivo da PolyGram [a gravadora que havia lançado o disco] e ela não foi encontrada. Eu cheguei a mencionar a existência e o sumiço dela para o Milton; ele brincou e disse: ‘Faça outra; você perdeu, faça outra’. E quando eu já estava pretendendo fazer o trabalho que eu vim a fazer com ele – o do disco e show ‘Gil Milton’ –, o [pesquisador] Marcelo Fróes a descobriu, e eu finalmente a recuperei, vindo a gravá-la no ‘Quanta’.
Eu admirava Milton desde sempre. Me comovia muito a voz dele, uma voz comovida e comovente: ele trabalha com o aspecto profundo da comoção, que a sua voz manifesta de imediato. Eu gostava muito disso e também da composição mesmo dele, da maneira como ele se movia no folclore mineiro, de como ele incorporava a negritude mineira, embora ele seja menos saltitante do que eu – apesar de a música dele, em muitos momentos (‘Cravo e canela’, por exemplo), ser bastante percussiva, conter a matéria dos tambores de Minas e incorporar outras coisas: ele é louco por Jorge Ben, de quem ele tem uma influência sutil. Eu fiquei muito contente de lhe fazer a homenagem especial que foi essa canção.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Samba
Gilberto Gil
Vem da sua amargura o meu viver
Vem da sua frieza o meu calor
Vem de tudo que é seu, vem de você
Seu olhar é triste, e mesmo assim
Faz, alegre, o meu coração saltar
O seu beijo é tão frio, mas enfim
Faz meu ser de amor queimar
Meu benzinho, deixe de chorar
Meu benzinho, deixe de sofrer
Meu benzinho, viva para amar
Pois a vida ainda tem
Belas coisas pra lhe dar
Samba de Los Angeles
Gilberto Gil
Foi quebrando, foi
Foi quebrando, foi
Foi quebrar
Lá na beira do mar
Tanto que água mole
Em pedra dura bate, que fura
Da pedra rachar
Tanto que racha a rocha
Que relaxa, afrouxa, que vira
Areia do mar
Tanto que a areia arenga
Que a sereia canta pelo pé
Que areia pisar
Olha que o samba foi
Foi quebrando, foi
Foi quebrando, foi
Foi quebrar
Lá na beira do mar
Samba louco
Gilberto Gil
Todo sem jeito
Samba feito
Em contramão
Todo quebrado
Desafinado
Isto não é samba, não
Samba desse jeito
Não se pode conceber
Que melodia
Que harmonia de doer
Mas como sou louco
Também fiz um samba louco
E esta loucura
Já não consigo entender
Sampa Milano
Gilberto Gil
Napoli Salvador
Roma e Rio
Sampa Milano
Napoli Salvador
Roma e Rio
Mestre Caymmi
o exemplo melhor
o melhor do que for
mescla Itália Brasil
Mestre Caymmi
canção do mundo inteiro cantar
canção da mãe rainha do mar
o mesmo mar daqui e de lá
o mesmo mar azul do Brasil
mediterrânea Itália
Sampa Milano
Napoli Salvador
Roma e Rio
Sampa Milano
Napoli Salvador
Roma con Rio
Mastro Caymmi
Il mondo intero canta già
Come la tua Regina del mar
Lo stesso mare aqui e di là
Lo stesso azurro del tuo Brazil
Mia Mediterranea Italia
Sampa Milano
Napoli Salvador
Roma e Rio
Sampa Milano
Napoli Salvador
Roma e Rio
Sandra
Gilberto Gil
Maria Sebastiana, porque Deus fez tão bonita
Maria de Lourdes
Porque me pediu uma canção pra ela
Carmensita, porque ela sussurou: “Seja bem-vindo”
(No meu ouvido)
Na primeira noite quando nós chegamos no hospício
E Lair, Lair
Porque quis me ver e foi lá no hospício
Salete fez chafé, que é um chá de café que eu gosto
E naquela semana tomar chafé foi um vício
Andréia na estréia
No segundo dia, meus laços de fita
Cintia, porque, embora choque, rosa é cor bonita
E Ana, porque parece uma cigana da ilha
Dulcina, porque
É santa, é uma santa e me beijou na boca
Azul, porque azul é cor, e cor é feminina
Eu sou tão inseguro porque o muro é muito alto
E pra dar o salto
Me amarro na torre no alto da montanha
Amarradão na torre dá pra ir pro mundo inteiro
E onde quer que eu vá no mundo, vejo a minha torre
É só balançar
Que a corda me leva de volta pra ela:
Oh, Sandra
*
“Todas as meninas mencionadas em Sandra foram personagens daqueles dias que eu vivi entre Curitiba e Florianópolis. Maria Aparecida, Maria Sebastiana e Maria de Lourdes me atenderam no hospício durante o internamento imposto pela justiça enquanto eu aguardava o julgamento. A de Lourdes me falava a toda hora: ‘Você vai fazer uma música pra mim, não vai?’ ‘Vou’. Carmensita: essa – foi interessantíssimo -, logo que eu cheguei, ela veio e me disse, baixinho: ‘Seja bem-vindo’. Lair era uma menina de fora, uma fã que foi lá me visitar. Salete era de lá: ‘Meu café é muito ralo’, me falou. ‘É exatamente como eu gosto, chafé’, respondi. Cíntia: também de Curitiba, como Andréia. Quando passamos pela cidade, me levou ao sítio dela uma tarde; foi quem me deu uma boina rosa com a qual eu compareceria ao julgamento mais adiante, em Florianópolis, e com a qual eu apareço no filme Os Doces Bárbaros. Ana: ficou minha amiga até hoje; de Florianópolis. E Dulcina, que era a mais calada, a mais recatada de todas na clínica, a mais mansa – era como uma freira -, foi a única que um dia veio e me deu um beijo na boca.
“Sandra, citada no final da letra, era minha mulher, que preferiu não ir a Florianópolis e com a qual eu associei a idéia do hexagrama da torre, tirado no I Ching, um dos meus livros de cabeceira naquele período: a que tomava conta de tudo; onde eu estivesse, o seu olhar espiritual me acompanharia; seu ente se espraiaria, estendendo-se por todas as mulheres com quem eu convivesse. A ela as mulheres citadas na letra remetiam por representarem o feminino, a minha sustentação naquele momento.
“Mas o que ninguém sabe, e que não se revela de nenhuma maneira na canção – o seu lado oculto -, é que há duas Sandras, a que é mencionada no fim e a do título, que não se refere à Sandra com quem eu era casado, mas a uma menina linda, maravilhosa, também chamada Sandra, que tietava o Caetano em Curitiba, amiga da Andréia – que me tietava.”
São João carioca
Gilberto Gil
Nando Cordel
É forró, é alegria, é festa de São João
O Rio de Janeiro vai ser só animação
É forró, é alegria, é festa de São João
São Cristóvão, eu te convido pro chamego
São Conrado, vem que o fogo vai pegar
São Januário, pode vir com seu molejo
Diga a São Sebastião que a festa vai começar
São Judas Tadeu, Santo Antônio, Santa Bárbara
Traga São Vicente, São Bento e muita energia
São José, São Jorge e São João Batista
Santa Marta, todo mundo vai cair nessa folia
No Rio de Janeiro vai ter festa pra chuchu
Na praça da Zona Norte, na praça da Zona Sul
No Rio de Janeiro vai ter festa pra chuchu
Na praça da Zona Norte, na praça da Zona Sul
Vem Flamengo, Madureira, Botafogo
Vem pro jogo lindo que nem futebol
Nas firulas do baião e do xaxado
Driblando tristeza e fado, dançando de sol a sol
A cidade será tão maravilhosa
Quanto mais acesa no seu coração
Estiver sua fogueira, sua brasa
Aquecendo sua casa, ardendo sua paixão
São João, Xangô menino
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Da fogueira de São João
Quero ser sempre o menino, Xangô
Da fogueira de São João
Céu de estrela sem destino
De beleza sem razão
Tome conta do destino, Xangô
Da beleza e da razão
Viva São João
Viva o milho verde
Viva São João
Viva o brilho verde
Viva São João
Das matas de Oxossi
Viva São João
Olha pro céu, meu amor
Veja como ele está lindo
Noite tão fria de junho, Xangô
Canto tanto canto lindo
Fogo, fogo de artifício
Quero ser sempre o menino
As estrelas deste mundo, Xangô
Ai, São João, Xangô Menino
Viva São João
Viva Refazenda
Viva São João
Viva Dominguinhos
Viva São João
Viva Qualquer Coisa
Viva São João
Gal Canta Caymmi
Viva São João
Pássaro Proibido
Viva São João
Sarará miolo
Gilberto Gil
Sara, sara, sara, sarará
Sarará miolo
Sara, sara, sara cura
Dessa doença de branco
Sara, sara, sara cura
Dessa doença de branco
De querer cabelo liso
Já tendo cabelo louro
Cabelo duro é preciso
Que é para ser você, crioulo
Comentários*:
“A criação dessa música, durante uma viagem que eu fiz pelo Nordeste, teve dois estágios. Ela começou numa jam session de três violões num fim de tarde em Aracaju, eu e dois amigos na casa de um músico da cidade chamado Marquinho. Nós ficamos horas improvisando, e no meio do improviso eu comecei a cantar: ‘Sara, sara, sara, sarará/ Sara, sara, sara, sarará’, ficando só nisso por muito tempo.
Chegando em Fortaleza dias depois, eu – que tinha ficado com o tema na cabeça – peguei o violão e o retomei. Aí eu fui desenvolvendo-o e fiz a canção, aproveitando o mote do sarará. O ‘sara’, na jam, ocorreu só pelo som, eu nem estava pensando em ‘sarará’, que me veio como uma complementação automática.
‘Sarará miolo’ é uma expressão baiana para designar um tipo específico de sarará, o mais louro e mais carapinha, um albino negro ou mestiço com negro.
Por que essa doença de branco, essa doença infantil do hegemonismo, essa necessidade de anular qualquer traço do negro possível, se submetendo inteiramente ao valor da raça branca e desvalorizando completamente a raça negra? Esse é o sentido de ‘Sarará miolo’, em que me valho da idéia de que se trata de um mestiço por acaso louro, de um mestiço onde a cor prevalecente é a branca, um sarará alvíssimo, albino, que tem o cabelo crespo – o que caracteriza o negro nele são os traços fisionômicos, pois o cabelo é carapinha, no entanto louro. Então eu faço essa brincadeira com ele: ‘Deixa essa doença de branco, essa hipertrofia do branco em você, você não precisa disso. Você já tem uma parte branca em você, aceite então sua parte negra, admita que você tem uma coisa negra’.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Sargento Pimenta e a Banda Solidão
Gilberto Gil
Sua banda pra tocar pra nós
Hoje já tanto tempo depois
Sempre o mesmo pique e solidez
Agora, aqui, mais uma vez
Apresentamos pra vocês
Sargento Pimenta e a Banda Solidão
Sargento Pimenta e a Solidão
Que todos curtam pra valer
Sargento Pimenta e a Solidão
Até o dia amanhecer
Sargento Pimenta, Sargento Pimenta
Sargento Pimenta e a Banda Solidão
Que maravilha estar aqui
É grande a emoção
Platéia tão bonita assim
Eu até mesmo levaria pra casa, no fim
Mais uma coisa só para avisar
Antes da nossa banda atacar
É que já na primeira canção
Todos devem cantar o refrão
Sem mais cascatas, com vocês
O que arrebata a multidão:
Sargento Pimenta e a banda Solidão
[ Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band,
de John Lennon e Paul McCartney ]
Sarro
Gilberto Gil
Jorge Ben Jor
Satisfação
Gilberto Gil
Agora olhe pro chão
Agora repare a luz
Que vem lá do caminhão
Rolling’s tão tocando bem
Rolling’s tão tocando mal
Rolling’s tão tocando mil
Na boca do pessoal
Posso ter não satisfação
Posso ter não satisfação
Saudade
Gilberto Gil
Fantasma de minha vida
Consequência da despedida
Que entre nós há de vir
Saudade
Triste resto de esperança
Saudade, amarga lembrança
Do louco amor que vivi
Agora
Quando já tenho no peito
A dor de um sonho desfeito
E o presságio da solidão
Quisera
Nunca tê-la encontrado
Para não ser ao seu lado
Candidato à desilusão
Se ela me chamasse
Gilberto Gil
Atirar-me em seus braços, e em prantos
Lhe diria que a amo, que a adoro
Que ela é minha vida, a musa dos meus sonhos
Das preces que elevo, das canções que canto
Se ela me chamasse, eu iria correndo
Atirar-me em seus braços ardentes
E a sonhar, loucamente extasiado
Contemplaria aquele rostinho tão amado
E morreria em seus braços, feliz e contente
Se eu morresse de saudade
Gilberto Gil
Todos iriam saber
Pelas ruas da cidade
Todos poderiam ver
Os estilhaços da alma
Os restos do coração
Queimado, pobre coitado
Pelo fogo da paixão
Se eu morresse de saudade
Mandariam lhe prender
O povo suspeitaria
Que o culpado foi você
Pois seu retrato estaria
Estampado em cada grão
Do que de mim restaria
Feito areia pelo chão
Fantasia, fantasia, sedução
Desde o dia
Que eu segurei sua mão
Se eu morresse de saudade
Nunca iria conhecer
O prazer da liberdade
O dia de lhe esquecer
Se eu morresse de saudade
Não poderia dizer
Que bom morrer de saudade
E de saudade viver
Se eu quiser falar com Deus
Gilberto Gil
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar
” ‘O Roberto me pediu uma canção; do que eu vou falar? Ele é tão religioso – e se eu quiser falar de Deus? E se eu quiser falar de falar com Deus?’ Com esses pensamentos e inquirições feitas durante uma sesta, dei início a uma exaustiva enumeração: ‘Se eu quiser falar com Deus, tenho que isso, que aquilo, que aquilo outro’. E saí. À noite voltei e organizei as frases em três estrofes.
“O que chegou a mim como tendo sido a reação dele, Roberto Carlos, foi que ele disse que aquela não era a idéia de Deus que ele tem. ‘O Deus desconhecido’. Ali, a configuração não é a de um Deus nítido, com um perfil claro, definido. A canção (mais filosofal, nesse sentido, do que religiosa) não é necessariamente sobre um Deus, mas sobre a realidade última; o vazio de Deus: o vazio-Deus.”
*
Esse nada-Deus – Num dos encontros com Gil para as entrevistas que resultariam nas edições de seus comentários aqui apresentadas, o coordenador deste livro lhe entregou, a pedido do editor, Luis Schwarcz, um exemplar de um livro chamado Uma História de Deus, escrito pela norte-americana Karen Armstrong. Na mesma noite Gil começou a lê-lo, e na tarde seguinte leu para este interlocutor uma longa passagem do mesmo que ele relacionou com o tema de Se Eu Quiser Falar com Deus, que, por coincidência, tinha sido objeto das conversas no dia anterior.
Parte do trecho dizia: “Sem dúvida, (Deus) parece estar desaparecendo da vida de um número crescente de pessoas, sobretudo na Europa Ocidental. Elas falam de um buraco em forma de Deus em suas consciências, onde antes Ele estava: onde antes havia Deus, hoje há um buraco em forma de Deus.” Segundo o compositor, essas observações da autora imediatamente o fizeram pensar em Se Eu Quiser Falar com Deus. “Alguma coisa desse Deus-buraco parece estar contida na letra da canção”, disse, querendo se referir especialmente ao trecho final da letra.
*
O pós possível – “A criação do efeito veio por impulso, instintivamente: a sequência de ‘nadas’ (treze no total) insinuando sucessivas camadas de buraco, criando a expectativa de algo e culminando com uma luz no fim (do túnel, da estrada, da vida), quer dizer, deixando entrever, embutida na morte, a possibilidade de realização de uma existência num plano diferente de tudo que se possa imaginar, mas que de qualquer maneira se imagina existir; a possibilidade de transmutação – com o desaparecimento do corpo físico, da entidade psíquica que chamamos de alma, inconsciente, eu – para outra coisa, outra forma de consciência de todo modo imprevisível, se não for mesmo nada.”
Sebastian
Gilberto Gil
Milton Nascimento
Diante de tua imagem
Tão castigada e tão bela
penso na tua cidade
Peço que olhes por ela
Cada parte do teu corpo
Cada flecha envenenada
Flechada por pura inveja
é um pedaço de bairro
é uma praça do Rio
Enchendo de horror quem passa
Oô cidade, oô menino
Que me ardem de paixão
Eu prefiro que essas flechas
Saltem pra minha canção
Livrem de dor meus amados
Que na cidade tranqüila
Sarada cada ferida
Tudo se transforme em vida
Canteiro cheio de flores
pra que só chorem, querido,
Tu e a cidade, de amores
Sei que me amavas
Gilberto Gil
Giuseppe Carella
Alfredo Rapetti
Non dirme no
Os tempos vão
Foram-se os tempos e agora te calas
Tu já não falas se falo de amor
Se tens as malas prontas, não finjas, tudo acabou
Porque já não se vê
O teu sorriso ao amanhecer
Porque já não sou mais teu bem-querer
Se ami sai quando tutto finisce
Se ami sai come un brivido triste
Come in un film dalle scene già viste
Che se ne va oh no !
Se o amor acaba a ninguém cabe a culpa
Se o amor acaba não cabe desculpa
Agora aperte as minhas mãos, sim
Pra que reste o recordar, sim.
Amanhã.
E non si può
Chiudere gli occhi e far finta di niente
Come fai tu quano resti con me
E non trovi il coraggio di ddirmi che cosa c´è
Erá dentro di me come una notte d´inverno perché
Será da oggi in poi senza di te
Sei que me amavas e agora é tão tarde
Sei que me amavas e agora é saudade
No nosso filme o fim será triste
Não quero ver, oh não !
Sabes que é chegada a hora das dores
Dores de quando se acabam os amores
Agora aperte as minhas mãos, sim
pra que reste o recordas, sim
Amanhã
Não estarás
Mais aqui.
Versão de Gilberto Gil da música “Seamisai” de Giuseppe Carella e Alfredo Rapetti.
Serafim
Gilberto Gil
O som do ferro sobre o ferro
Será como o berro do bezerro
Sangrado em agrado ao grande Ogum
Quando a mão tocar no tambor
Será pele sobre pele
Vida e morte para que se zele
Pelo orixá e pelo egum
Kabieci lê – vai cantando o ijexá pro pai Xangô
Eparrei, ora iêiê – pra Iansã e mãe Oxum
“Oba bi Olorum koozi”: como deus, não há nenhum
Será sempre axé
Será paz, será guerra, serafim
Através das travessuras de Exu
Apesar da travessia ruim
Há de ser assim
Há de ser sempre pedra sobre pedra
Há de ser tijolo sobre tijolo
E o consolo é saber que não tem fim
Kabieci lê – vai cantando o ijexá pro pai Xangô
Eparrei, ora iêiê – pra Iansã e mãe Oxum
“Oba bi Olorum koozi”: como deus, não há nenhum
Religiosamente incorreta – “Quando Serafim foi lançada, eu cantava ‘carneiro’ onde hoje está ‘bezerro’ – um erro religioso: o carneiro é um animal rejeitado por Ogum e não podia ser referido em sua homenagem. A correção veio depois (no show Tropicália 2 eu fiz a substituição), por advertência do Caetano e da Flora, que havia se iniciado no candomblé. Eu tinha usado ‘carneiro’ porque é um animal comumente sacrificado no candomblé.
“Em Lavagem do Bonfim [canção composta para Gal Costa em 1993] também há algo que pode ser visto como uma incorreção, mas que é proposital. Ao citar o caruru – que não é uma comida para Oxalá – eu não estou me referindo ao caruru como uma comida específica de oferenda a um santo, mas ao caruru como a somatória das comidas de santo, que na Bahia chamam caruru. ‘Vou ao caruru da dona Fulana’, quer dizer, ‘lá vai ter abará, acarajé, vatapá, arroz, feijão, inhame etc.’ ‘Caruru’ ali está portanto no sentido transreligioso, profano, de ‘ceia’, ‘refeição’, comida de todos os santos.”
Iorubá – ” ‘Kabieci lê’: saudação para Xangô; ‘eparrei’: para Iansã; ‘ora iê, iê’: para Oxum. ‘Oba bi olorum koozi’: a expressão eu vi inscrita num pára-choque de caminhão em Lagos, acompanhada da tradução em inglês: ‘No king as God’. ‘Um dia ainda vou usar isso numa música’, pensei. Guardei na memória e usei, acompanhada da tradução (livre) em português.”
Da utopia da poesia de as palavras serem as coisas, e da relação de correspondência entre som e sentido, fundo e forma – “O som do ferro sobre o ferro será como o berro do bezerro”: as aliterações em erres e bês parecem exprimir aquilo a que a frase alude, estabelecendo biunivocamente a conformidade fônico-semântica: como se os versos não apenas falassem de um ruído: fossem o ruído. “Os recursos sonoros empregados na construção dessa letra são mesmo muito fortes, de profunda inspiração”, reconhece Gil. “Tinha que ser assim, porque a música é sobre a potência – do axé, dos orixás”.
Um deles, Exu – aliás, referido em outro bloco de carregada sonoridade, uma sucessão tríplice de “trs” e vês e esses -, é destacado pelo compositor: “Tenho por ele uma particular admiração. No sincretismo, Exu é assimilado ao demônio, visto como uma entidade do mal, mas não é nada disso. Embora traquino, travesso, ninguém, nenhum orixá trabalha nem vive sem ele. Exu é o eixo, o mensageiro; o que dá energia a tudo – como a luz solar para a Terra.” A mesma referência reverenciadora à entidade é, aliás, repetida por Gil em outra canção, Dança de Shiva.
Serenata de teleco-teco
Gilberto Gil
Um violão gemeu num ritmo legal
E começou assim em plena madrugada
Um tamborim no samba de calçada
Visitando o sono da cidade
A lua a iluminar o grupo barulhento
Um guarda a reclamar silêncio
Silêncio pra quem dorme
E eu, que escuto ao longe
O som do meu telecoteco
Sinto o romantismo feito à porta
À porta de um boteco
Seresta de samba também tem suavidade
Samba também fala de saudade
Sereno
Gilberto Gil
Bem Gil
Vovó gostou do nome Sereno
Tem mais dois aqui
Tem mais dois aqui
Tem mais dois irmãos pra te curtir
Será que vem peixinho
Será que vem depois
Será que vem um pouco dos dois
Sereno quer dizer que você será
Será suave, ameno e tranquilo, será (?!)
E quando for mamar na mamãe, será
Não vai querer morder seu mamilo,
será (?!)
Sete sílabas
Gilberto Gil
Perinho Santana
No primeiro verso da canção
Sem mesmo saber por que juntei
Qual o motivo, a razão
Irresponsavelmente até
Até porque não sei de nada
Sob o sol
Que você não saiba também
Quanto eu sei, tão mal, quanto eu sei
O que eu sei não vale um tostão
O que eu possa lhe dizer
Não é verdade nem salvação
O que eu possa lhe dizer de cor
Não tem cor de coração
Paradoxalmente até
Até porque não há palavras
Para Deus
O mel você tem que provar
Pra saber o doce que tem
As sílabas juntei em vão
Seu olhar
Gilberto Gil
Algo que me ilude
Como o cintilar
Da bola de gude
Parece conter
As nuvens do céu
As ondas brancas do mar
Astro em miniatura
Micro-estrutura estelar
Há no seu olhar
Algo surpreendente
Como o viajar
Da estrela cadente
Sempre faz tremer
Sempre faz pensar
Nos abismos da ilusão
Quando, como e onde
Vai parar meu coração?
Há no seu olhar
Algo de saudade
De um tempo ou lugar
Na eternidade
Eu quisera ter
Tantos anos-luz
Quantos fosse precisar
Pra cruzar o túnel
Do tempo do seu olhar
Comentários*:
“Eu tinha chegado da Europa, ia gravar um disco, não tinha nenhuma música feita ainda e não sabia nem por onde começar. Uma noite sentei para compor. ‘Você tem de fazer alguma coisa para o disco’, pensei. Eu e Flora estávamos morando num pequeno apartamento que tínhamos comprado na Barra da Tijuca [no Rio]; à meia-noite ela se recolheu, foi dormir, e eu fiquei lá, meditando. Não tinha idéia nenhuma, nada na cabeça. Fiquei horas e horas, violão de um lado, caderno na frente, folha completamente em branco. ‘O que é que eu faço?’, eu pensava.
De meia-noite às quatro eu fiquei ali, sentado no chão, levantava de vez em quando, tomava água, eu ali quieto, pensando, meditando, tentando evitar a ansiedade, evitar o atropelamento da emergência, mas ao mesmo tempo tendo que fazer alguma coisa, tendo que acionar, que dar partida no motor, apertar a ignição, estava no meio da estrada, o carro parado, tinha que fazer a chave fazer o carro pegar, não adiantava apelar. Fiquei resignadamente esperando, até que lá pelas três e meia, quatro horas da manhã, começou a vir a idéia do olhar. Olhar… olhar… Aparecia vagamente aquele olhar… Tinha um pouco a ver com Flora; ‘essa música é para ela’, eu pensei, ‘o olhar dela’. Eu não tinha nada para fitar,
não havia nada no horizonte; então eu ‘vi’ o olhar dela e comecei a fazer uma descrição fantasiosa do seu olhar, e assim a canção saiu, saíram as três estrofes. A última eu comecei mas não terminei naquela noite, apenas no dia seguinte. Foi assim.
Essa música tem um significado particular, porque ela marca nitidamente um turning-point, um momento de indefinição. Eu tinha adiado a gravação de um disco, a princípio tinha ficado de compor músicas durante a excursão na Europa, não tinha conseguido, tinha chegado com o compromisso de compor para em seguida gravar. Aí fiz essa canção e, pronto, no dia seguinte fiz mais uma, depois outra…
Deslocamento inesperado – ‘Seu olhar’ é toda bem amarradinha e tem um trecho na segunda estrofe que eu particularmente adoro, quando a poesia faz um deslocamento e eu pergunto ‘quando, como e onde vai parar meu coração’ (‘parar’ relacionado tanto com paradeiro como com morrer: nos dois sentidos). Na primeira estrofe eu destaco também a imagem da bola de gude como se fosse o planeta Terra, empregada porque as bolas de gude se parecem com a Terra vista nas fotografias.
No abismos da ilusão – Eu não costumo usar ‘ilusão’ no significado corriqueiro. Eu uso a palavra preferentemente na acepção budista; é dessa forma que mais frequentemente ela aparece nas minhas letras. Nunca há a ‘ilusão’ no sentido do engano trivial, do equívoco comum, somente ‘ilusão’ no sentido do profundo engano (o que se associa com o viver). É assim em ‘Seu olhar’, como no final de ‘Cada tempo em seu lugar’, onde já aparece a palavra ‘desilusão’ (‘Solidão:/ Quando a desilusão chegar’) – ali há a conformidade com o estar só e com o morrer também. Já que temos o enigma da morte a esclarecer, só sendo a vida uma ilusão, poderá a morte ser alguma coisa; só o desiludir-se da vida pode fazer da morte alguma coisa.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Show de Me Esqueci
Gilberto Gil
Capinan
Com teu cone
Teu atômico
Combustível
Com teu jato
E parafuso
Ah, poderoso
Poderoso míssil
Quando for a uma estrela
Me leve daqui
Quando for a uma estrela
Me leve de Me Esqueci
Ha-ha-ha!
Hi-hi-hi!
Quero ir para uma estrela
Bem longe daqui
Ha-ha-ha!
Hi-hi-hi!
Bem longe de Me Esqueci
No tempo em que ouvi dizer
Que a bomba era um perigo
Eu fiquei tranquila e disse:
“Isso aqui não é comigo”
Mas um dia, dia, foi
Cata-pum-pum-pum
Lá se veio a guerra
Um e dois, já se foi
Três e quatro, lá se vão
Lá se foi um soldado
Lá se vai um batalhão
Mas um dia, dia, foi
Cata-pum-pum-pum
Um cogumelo azulado
Silenciou num segundo
Os industrializados
E lá se foi o presente
O que ficou é passado
Cata-pum
Cata-pum-pum-pum
Cata-pum
Cata-pum
Cata-pum-pum-pum
Eu ontem
Era mandado
Mas o mundo
Se acabou
Não tenho quem
Me mande rir
Ou chorar
Minha terra
Tem foguete
Onde canta o sabiá
Minha terra
Tem foguete
Onde canta o sabiá
Ha-ha-ha!
Hi-hi-hi!
Quero ir para uma estrela
Bem longe daqui
Ha-ha-ha!
Hi-hi-hi!
Bem longe de Me Esqueci
O foguete vai subir
Não encontro o meu radar
Estou cheia de culpa e de fome
Vim correndo perguntar
Engrenagem
Indestrutível
Onde está
Teu combustível?
Como vai
Você subir
Sem ninguém
Pra pilotar
E a contagem
Regressiva
Qual de nós pode contar?
Pode existir um índio
Ao lado de um foguete?
Quero mergulhar no céu
Quero ser um cosmonauta
Em vez de usar um penacho
Quero ter um capacete
Ah-ah-ah!
Ih-ih-ih!
Quero ir para uma estrela
Bem longe daqui
Ah-ah-ah!
Ih-ih-ih!
Bem longe de Me Esqueci
[ para o filme Brasil, Ano 2000 ]
Sítio do Picapau Amarelo
Gilberto Gil
Bananada de goiaba
Goiabada de marmelo
Sítio do Pica-Pau-Amarelo
Boneca de pano é gente
Sabugo de milho é gente
O sol nascente é tão belo
Sítio do Pica-Pau-Amarelo
Rios de prata piratas
Vôo sideral na mata
Universo paralelo
Sítio do Pica-Pau-Amarelo
No país da fantasia
Num estado de euforia
Cidade Polichinelo
Sítio do Pica-Pau-Amarelo
Comentários*:
“Essa foi feita de encomenda, para o programa homônimo da Rede Globo. Dori Caymmi, encarregado da trilha sonora, estava encomendando as músicas aos colegas, pedindo a um que fizesse a canção da Narizinho, a outro que fizesse a canção do Pedrinho, a outro que fizesse a canção do Visconde…
Quando ele veio me pedir uma, eu perguntei: ‘Mas eu não posso fazer uma canção – um jingle – para o sítio?’ Ele respondeu: ‘Se você quiser, pode; se ficar legal, se couber, tudo bem.’
Eu preferi fazer uma canção que falasse de todos os personagens e do sítio todo, que ocupasse aquele espaço inteiro e nela coubesse Taubaté toda. Aí fui trazendo os personagens – boneca de pano, a Emília; sabugo de milho, o Sabugosa – e sempre procurando uma rima para ‘Sítio do Pica-pau-amarelo’ ao final de cada parte, terminando com ‘Cidade Polichinelo’, que é um personagem de um outro sítio, o polichinelo europeu.
A canção ficou muito popular por causa da série. Por nove, dez anos, todo dia, toda tarde, ela tocou, martelou. Mais tarde, a sua recuperação – após ela ter entrado no show ‘Tropicália 2’ – para o repertório do ‘Unplugedd’ foi um resultado dessa popularidade. Sua inclusão se deu a pedido do Lucas Santana, o flautista que tocava no grupo, que cresceu acompanhando o ‘Sítio do Pica-pau-amarelo’ e que argumentou: ‘Ela é uma música da nossa geração, muito emblemática para nós. É como se fosse um botton na nossa camisa, sabe? Então canta!'”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Só chamei porque te amo
Gilberto Gil
Nem ano bom
Nenhum sinal no céu
Nenhum Armagedom
Nenhuma data especial
Nenhum ET brincando aqui no meu quintal
Nada de mais, nada de mal
Ninguém comigo além da solidão
Nem mesmo um verso original
Pra te dizer e começar uma canção
Só chamei porque te amo
Só chamei porque é grande a paixão
Só chamei porque te amo
Lá bem fundo, fundo do meu coração
Nem carnaval
Nem São João
Nenhum balão no céu
Nem luar do sertão
Nenhuma foto no jornal
Nenhuma nota na coluna social
Nenhuma múmia se mexeu
Nenhum milagre na ciência aconteceu
Nenhum motivo, nem razão
Quando a saudade vem não tem explicação
Só chamei porque te amo
Só chamei porque é grande a paixão
Só chamei porque te amo
Lá bem fundo, fundo do meu coração
[ I Just Called to Say I Love You, de Stevie Wonder
“Na noite em que eu me encontrei com Stevie Wonder, em Washington (ele foi ao meu show e tocou gaita em No Woman, No Cry), quando eu lhe disse que tinha vertido I Just Called to Say I Love You, ele perguntou: ‘Mas por que você escolheu essa música para fazer uma versão? Eu acho que ela é tão banal.’ Eu respondi: ‘Talvez tenha sido por isso mesmo, Stevie. Aliás, essas em geral são as que duram mais.’ Ele admitiu que a canção é linda, mas reiterou um receio de que fosse demasiadamente vulgar.
“Eu cantei a versão pra ele e expliquei o significado de algumas expressões – a tradução, paralela, tenta transportar livremente para equivalentes nossos as ocasiões festivas norte-americanas citadas no original. Ele gostou, achou legal. ‘Mas você acha que ela vai ficar?’ – a preocupação dele era essa. ‘Claro, imagina, ela já tem até uma versão em português. É sinal de que ela vai ficar’.
“A vontade de verter veio, primeiro, porque a música era dele, Stevie Wonder, uma pessoa que eu admiro muito e com quem ter algum laço aproximativo me é prazeroso, caro e interessante: eu quis tietá-lo. Além disso, a canção é abolerada, não tem os encadeamentos melódicos típicos da música americana e tem um gosto mais latino do que americano; isso também me aproximou mais dela.”
SOB PRESSÃO
Gilberto Gil e Ruy Guerra
Falta de ar, os gemidos , os ais,
a febre, seus fantasmas, seus terrores
sem pressa, passo a passo, mais e mais
a besta avança pelos corredores,
O médico caminha com cautela
estuda os segredos do inimigo
a enfermeira brava vence o medo
pouco lhe importa a extensão do perigo
O mundo está zaranza, ao Deus dará,
o povo não se entrega, é cabra cega,
é lá e cá, sem lei, sem mais aviso,
só sei que é preciso acreditar
Fazemos todos parte desta história
mesmo que os tontos blefem com a morte
num jogo de verdades e mentiras
um jogo duplo de azar e sorte
A ciência abre as suas asas,
a esperança à frente como um guia
com São João na reza, a pagelança,
a intervenção de Xangô na magia
Neste canto aqui da poesia,
casa da fantasia e da razão,
abre-se a porta, entra um novo dia,
pela janela a dentro, o coração
A Voz do bardo a bordo da alvorada
o sol da aurora secando o pulmão
” ano passado, se eu morri na Estrada,
vai que esse ano não morro mais não”
É pra montar no lombo da toada
desembarcar do trem da pandemia,
é pra fazer da rima arredondada
o rompante final de uma alegria.
“Vamos em frente, amigo, vamo embora
vamos tomar aquela talagada
vamos cantar que a vida é só agora
E sem cantar, amigo, a vida é nada!
© Gege Edições/Preta Music (EUA & Canadá)
Chico Buarque – voz
Gilberto Gil – voz e violão elétrico
Bem Gil – guitarra
Rafael Rocha – Bateria
Kiko Horta – Acordeon
Produção Musical: Bem Gil
Técnico de Gravação: Daniel Alcoforado
Roadie: Thiago Braga
Masterização e mixagem: Daniel Carvalho
Gravado no estúdio NAS NUVENS em agosto de 2020
Sol de Maria
Gilberto Gil
Uma estrelinha, a mais cadente do céu
Uma pedrinha de cascalho presa em seu colar
Pedra da rua aonde você nasceu
Se a vida resolveu que iria lhe chamar de Sol
Um raio vivo desse nosso astro rei
Que seja a luz do dia, sua guia, seu farol
Porque da noite, amor, da noite eu não sei
Que o mundo seja bom, que o mundo seja bom
pra nós
Seus pais, seus tios, seus primos, avós e bisavós
Que o mundo seja o que deseja sua geração
Todos que estão aqui e mais todos os que virão
Uma gotinha de orvalho pra lhe abençoar
Que toda água vem da fonte de Deus
Que o sol de Maria, que irradia seu chamar
Aqueça os sonhos seus
Sonho molhado
Gilberto Gil
Faz muito tempo que eu não sei o que é me deixar molhar
Bem molhadinho, molhadinho de chuva
Faz muito tempo que eu não sei o que é pegar um toró
De tá na chuva quando a chuva cair
De não correr pra me abrigar, me cobrir
De ser assim uma limpeza total
De tá na rua e ser um banho
Na rua
Um banho
De ser igual quando a gente vai dormir
Que a gente sente alguém acariciar
Depois que passa o furacão de prazer
Ficar molhado e ser um sonho
Molhado
Um sonho
Eu vou dormir (enxutinho)
E acordo molhadinho de chuva
Sonho triste
Gilberto Gil
Sonhei um sonho cheio de dor
Sonhei que você iria me deixar
Sonhei, meu amor, não quero mais sonhar
Vivi uma noite tristonha então
Sofreu sonhando o meu coração
Mas de manhã, ao despertar
Senti você junto de mim
E então chorei, chorei de amor
E o novo dia me sorriu
A noite foi, você ficou
O sonho triste se findou
Soy loco por ti, América
Gilberto Gil
Capinan
Yo voy traer una mujer playera
Que su nombre sea Marti
Que su nombre sea Marti
Soy loco por ti de amores
Tenga como colores la espuma blanca de Latinoamérica
Y el cielo como bandera
Y el cielo como bandera
Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores
Sorriso de quase nuvem
Os rios, canções, o medo
O corpo cheio de estrelas
O corpo cheio de estrelas
Como se chama a amante
Desse país sem nome, esse tango, esse rancho,
esse povo, dizei-me, arde
O fogo de conhecê-la
O fogo de conhecê-la
Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores
El nombre del hombre muerto
Ya no se puede decirlo, quién sabe?
Antes que o dia arrebente
Antes que o dia arrebente
El nombre del hombre muerto
Antes que a definitiva noite se espalhe em Latinoamérica
El nombre del hombre es pueblo
El nombre del hombre es pueblo
Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores
Espero a manhã que cante
El nombre del hombre muerto
Não sejam palavras tristes
Soy loco por ti de amores
Um poema ainda existe
Com palmeiras, com trincheiras, canções de guerra,
quem sabe canções do mar
Ai, hasta te comover
Ai, hasta te comover
Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores
Estou aqui de passagem
Sei que adiante um dia vou morrer
De susto, de bala ou vício
De susto, de bala ou vício
Num precipício de luzes
Entre saudades, soluços, eu vou morrer de bruços
nos braços, nos olhos
Nos braços de uma mulher
Nos braços de uma mulher
Mais apaixonado ainda
Dentro dos braços da camponesa, guerrilheira,
manequim, ai de mim
Nos braços de quem me queira
Nos braços de quem me queira
Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores
Superhomem, a canção
Gilberto Gil
Vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter
Que nada
Minha porção mulher, que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É que me faz viver
Quem dera
Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera
Ser o verão o apogeu da primavera
E só por ela ser
Quem sabe
O Superhomem venha nos restituir a glória
Mudando como um deus o curso da história
Por causa da mulher
“Eu estava de passagem pelo Rio, indo para os Estados Unidos fazer a excursão do lançamento do Nightingale – um disco gravado lá, com produção do Sérgio Mendes -, em março e abril de 79, e gravar o disco Realce, ao final da excursão. Na ocasião eu estava morando na Bahia e não tinha casa no Rio, por isso estava hospedado na casa do Caetano. Como eu tinha que viajar logo cedo, na véspera da viagem eu me recolhi num quarto por volta de uma hora da manhã.
“De repente eu ouvi uma zuada: era Caetano chegando da rua, falando muito, entusiasmado. Tinha assistido o filme Superhomem. Falava na sala com as pessoas, entre elas a Dedé [Dedé Veloso, mulher de Caetano à época]; eu fiquei curioso e me juntei ao grupo. Caetano estava empolgado com aquele momento lindo do filme, em que a namorada do Superhomem morre no acidente de trem e ele volta o movimento de rotação da Terra para poder voltar o tempo para salvar a namorada. Com aquela capacidade extraordinária do Caetano de narrar um filme com todos os detalhes, você vê melhor o filme ouvindo a narrativa dele do que vendo o filme… Então eu vi o filme. Conversa vai, conversa vem, fomos dormir.
“Mas eu não dormi. Estava impregnado da imagem do Superhomem fazendo a Terra voltar por causa da mulher. Com essa idéia fixa na cabeça, levantei, acendi a luz, peguei o violão, o caderno, e comecei. Uma hora depois a canção estava lá, completa. No dia seguinte a mostrei ao Caetano; ele ficou contente: ‘Que linda!’ E eu viajei para os Estados Unidos. Fiz a excursão toda e, só quando cheguei a Los Angeles, um mês e tanto depois, para gravar o disco, foi que eu vi o filme. Durante a gravação, uma amiga americana, Olenka Wallac, que morava em Los Angeles na ocasião, me levou para ver.
“A canção foi feita portanto com base na narrativa do Caetano. Como era Superhomem – O Filme, ficou Superhomem – a Canção; não tinha certeza se ia manter esse título ao publicá-la, mas mantive.”
Das relações entre o poema e a melodia no processo de composição – “Como Retiros Espirituais, Superhomem – a Canção é uma das poucas que eu fiz assim: música e letra ao mesmo tempo. É uma canção a serviço de uma letra, atrás de um sopro da poesia, mas com os versos também se submetendo a uma necessidade de respiração da canção. Há momentos em que a extensão do verso determina o estender-se da frase musical. Em outros, para se dar determinadas pausas e realizar o conceito de simetria e elegância, a extensão da frase poética se adequa à do fraseado melódico.
“Assim, depois de ‘Um dia’, há o corte e, lá adiante, ‘Que nada’, depois ‘Quem dera’ e depois ‘Quem sabe’ já surgem condicionados pelo ‘Um dia’ do início. A frase musical de ‘Um dia’ condicionou a extensão, o corte e a escolha dessas interjeições – ‘Que nada’, ‘Quem dera’ e ‘Quem sabe’. (Mesmo no primeiro caso – ‘Um dia’ -, também se reinvindica ali um sentido de interjeição; embora na construção da frase, do ponto de vista gramatical, possa não ser considerado assim, do ponto de vista do canto, é.)”
Questões de métrica e simetria; e de mnemônica – “A música tem uma cadência descansada, escorrida, e umas quebras interessantes. A melodia muda, a métrica é regular (as notas se alteram, mas os tempos são iguais). Você tem quatro estrofes com versos de 2, 14, 12 e 6 sílabas cada – assimétricas na distribuição interna, mas simétricas nas configurações finais. [A estrofe de abertura é ligeiramente diferente: o terceiro verso também apresenta 14 sílabas poéticas].
“Depois de fazer a primeira estrofe, eu decidi que aquilo seria um módulo que eu iria manter. Isso facilitou para que eu a fizesse rápido; nascida aquela célula, ela se reproduziu em mais três iguais. Dobrei o caderno, deixei o violão e fui dormir. Quando acordei pela manhã, a primeira coisa que fiz foi tocar, cantar e ver que a canção estava fixada. Se eu estivesse com um gravador, eu a teria gravado antes de dormir, para me assegurar (eu faço isso sempre hoje em dia, porque tenho cada vez menos memória). Como eu não estava, é provável que eu tenha usado algum recurso mnemônico, como fixar o número de notas ou sílabas das primeiras frases, ou então as cifras.”
Sobre a “porção mulher” – “Muita gente confundia essa música como apologia ao homossexualismo, e ela é o contrário. O que ela tem, de certa forma, é sem dúvida uma insinuação de androginia, um tema que me interessava muito na ocasião – me interessava revelar esse embricamento entre homem e mulher, o feminino como complementação do masculino e vice-versa, masculino e feminino como duas qualidades essenciais ao ser humano. Eu tinha feito Pai e Mãe antes, já abordara a questão, mais explicitamente da posição de ver o filho como o resultado do pai e da mãe. Em Superhomem – a Canção, a idéia central é de que pai é mãe, ou seja, todo homem é mulher (e toda mulher é homem).”
Comentários:
(…) – E você nunca teve dificuldade de assumir o seu lado feminino, já que nunca foi um homem machão.
Nunca fui e posso até ter estado ali na fronteira e ter sido ameaçado por isso. Mas eu tive a felicidade, num momento crucial da minha vida, de conhecer Caetano.
– Que sempre teve a coragem de assumir, com arte, o seu feminino. Pronto. É isso! Por isso me tornei discípulo dele. Em tantas coisas e nas fundamentais, sempre obedecia a uma necessidade de me deslocar com ele, acompanhando seus movimentos e aprendendo mesmo. Eu aprendi muita coisa. Quando eu digo Caetano, digo ele pessoa e tudo que vem com o seu mundo cultural e vivencial, os companheiros, a família… O mundo que aprendi com ele foi de uma arte e de uma cultura mais doce, o mundo de ternura e leveza. Fui naquela fronteira lá do ‘homem-homem’, de que eu tinha me aproximado na adolescência. Mas, na verdade, eu nunca tinha caído nela.
No colégio, era um menino que recusava a "virilidade" fácil. Por exemplo: toda vez que um menino me desafiava pra briga – aquela coisa comum que acontece constantemente no recreio das escolas, de meninos empurrando os outros, xingando a mãe e provocando, num exercício natural da manifestação da virilidade -, tudo isso em mim era difuso e confuso, e eu já não gostava. Toda vez que um menino me desafiava pra briga, eu dava as costas e recusava aquele exercício. Às vezes, me xingavam: ‘Mulherzinha! Mulherzinha!’, ‘Fugiu, maricas!’. E eu ouvia aquilo e era ela, minha ânima, quem falava de dentro: ‘Tenha paciência e resignação. Essas coisas são características minhas. É isso mesmo que você está ouvindo: mulherzinha!’.
(…) Essa mulher sempre falou muito mais alto dentro de mim. E por isso que digo na canção: ‘É a porção melhor que trago em mim agora/ É o que me faz viver’. Eu aprendi, ela foi me ensinando que aquilo que eu queria, aquilo com que meu coração se identificava, era sempre o lado que estava associado a ela e estava afiado à paz, ao apaziguamento e à recusa do conflito. A capacidade de ‘contornar’ estava ligada à visão contornada, aos contornos da mulher: os seios, a
bunda e a tudo aquilo. Essas imagens foram crescendo comigo e eu fiquei, por isso mesmo, muito sexualmente hétero.
Porque a mulher preencheu logo muito cedo esse lugar. Ela ficou muito entronizada dentro de mim e isso tem muito a ver também com minha infância, porque foram as mulheres que tomaram conta de mim muito cedo, minha mãe, minha avó e minha tia. Essa tríade tomou conta da minha cabeça. Primeiro, minha mãe, no seio materno; depois, minha avó, que me ensinou o verbo.
E, por último, minha tia, que tomou conta do menino adolescente e o orientou.
(do livro “GiLuminoso – A Po.Ética do Ser”, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB,1999)