Músicas
Xote da Modernidade
Gilberto Gil
Uma maneira de encarar a vida
Tá tudo fora do lugar
Vamos achar nossa medida
Uma verdade dura de enxergar
Mas acredito que a felicidade
É a gente conseguir se enroscar
No xote da modernidade
Sei que a vida é um desatar de nós
Os nós de tantos fios de uma vez
Embaraçarmos com desembaraço
Foz de muitos rios a desembocar
Num mar de rios num braço de mar
Em tantos mares e rios sem braços
Vem cá que eu vou te arrastar
Pela corrente presa em teu pescoço
E as correntes desse novo mar
Nos levarão até o porto
Onde as sereias vão nos esperar
Com risos cheios de felicidade
E todos nós vamos dançar, dançar
O xote da modernidade
E todos nós vamos dançar, dançar
O xote da modernidade
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
[De acordo com Gil, “Xote da modernidade” é outra canção em parceria com Roberta Sá proposta e iniciada por ela. “Ela fez todo o começo, até o verso com os termos com que ela nomeou a canção. Eu comecei com ‘Sei que a vida é um desatar de nós’”, conta Gil sobre a parte da letra cuja música correspondente foi feita pelo Bem. Complexizando o conteúdo da canção, Gil cria então as imagens poéticas inusitadas — “um tanto pra confundir a topografia, a geografia, o mapa do lugar, o território” — que preenchem as duas estrofes seguintes, até “Em tantos mares e rios sem braços”. A estrofe final retoma a parte musical inicial criada por Roberta, à qual Gil sobrepõe outros versos. “ ‘Xote da modernidade’ é expressão que ela inventou e que eu tive que buscar traduzir”, conta Gil, explicando como exprimiu a fé na felicidade possível de um casal encontrar hoje, com os dados da contemporaneidade que, segundo ele, “ela representa”.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Xote
Gilberto Gil
Rodolfo Stroeter
Deixando o Monte da Viúva sem molhar
Que eu me dei conta que a santa lá da fonte
Ficou três dias sem beata pra rezar
Ficou três dias sem beata pra cantar a cantoria
Que há dez anos todo dia vêm cantar
As rezadeiras, todas filhas de Maria
Todas vindas da Bahia com promessas pra pagar
Rezadeiras, todas filhas de Maria
Todas elas com um bocado de promessas pra pagar
Aquela fonte permanece desaguando
De um milagre que há dez anos acontece no lugar
Ela não brota de uma grota, de uma pedra
Nunca medra como qualquer fonte costuma medrar
Bem na caatinga, onde quase nunca pinga
Nessa fonte sempre chove todo dia sem falhar
Esse fenômeno de fato inusitado
Parece que é provocado pela firme devoção
Das rezadeiras que vêm sempre em romaria
De Alagoas, Pernambuco, Paraíba e região
Mas todos sabem se a oração não principia
Com uma moça da Bahia, então chover, não chove, não
Algumas moças rezadeiras que vieram
De outros lugares sem ligar pra tradição
Cantaram tudo, tudo, tudo que puderam
Mas nos três dias não choveu no lajedão
Nesses três dias sem as moças da Bahia
Pra cantar a cantoria, todo mundo percebeu
Não adianta, pirulito é pirulito
Piriquito é piriquito, mito é mito, Deus é Deus
Gravação
Gilberto Gil – O sol de Oslo, 1994/1998 – Pau Brasil
Comentário*
Essa era uma composição do Rodolfo para a qual fiz uma letra e dei o nome de ‘Xote’, como dei o nome de ‘Rep’ a outra do mesmo disco. Inventei a história, fantasiosa, sobre um lugar de romaria, milagroso, que na verdade é como um terreiro de candomblé, onde são as baianas que estimulam o ethos local. Todo ano elas fazem uma romaria para aquele lugar, que se torna milagroso com a presença delas. Num determinado ano elas não vão, por alguma razão, e os milagres não brotam.
É uma homenagem às baianas e ao candomblé; às relações profundas que o candomblé tem com as outras formas religiosas manifestadas no Nordeste, com o curandeirismo de outros teores e o próprio catolicismo – Padre Cícero e todos os milagreiros, todas as romarias, os locais de peregrinação da região. Compus ‘Xote’ para marcar esse sentido iniciático, fundamental, da presença fundadora da baiana. Sem a ala das baianas, a escola de samba não sai, não é? É proibido. O próprio baião era chamado primitivamente de baiano; assim como as bandas de pífaros, que eram chamadas de conjuntos baianos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil