Músicas
Axé, babá
Gilberto Gil
Dá-nos a luz do teu dia
De noite a estrela-guia
Da tua paz
Dentro de nós
Meu pai Oxalá
Dá-nos a felicidade
O pão da vitalidade
Do teu axé
Do teu amor
Do teu axé
Do teu amor
Ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô
Axé, babá
Ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô
Axé, babá
Ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô
Axé, babá
Ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô
Gravação
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
Comentário*
Mais uma canção cuja música existia antes, na qual eu tive que encaixar a poesia, desbastando a madeira e quebrando a pedra, para colocá-la numa fôrma previamente estabelecida. E aí me veio a ideia de fazer uma letra sobre Oxalá, para Oxalá. A canção é um afoxé ao estilo dos Filhos de Gandhi, com quem eu tinha iniciado uma relação havia um tempo (fazia uns seis anos que eu saía no bloco) – daí, ‘Axé, babá’.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Autorretratinho
Gilberto Gil
Revelam meu sorriso azulejado
Emoldurado por lábios salientes
Certamente ardentes se beijados
A fronte suavemente projetada
Como nas estátuas primitivas
A testa de feição mais alongada
Como nas estirpes mais antigas
Me atenho aqui a descrever meu rosto
Que o resto só com os olhos de um pintor
Suficientemente hábil e de bom gosto
Pra retratrar-me toda em toda cor
Apenas cito a mais as minhas pernas
Raramente expostas por inteiro
Qual montanhas sob neves eternas
Encobertas janeiro a janeiro
Talvez a breve referência aos dentes
E ao meu sorriso aberto azulejado
Já seja tão ou mais que o suficiente
Para explicar as fadas do meu fado
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
Um retrato físico e álmico da mulher na persona dela, para ela, Roberta Sá, cantar. — “Os dentes levemente mais à frente”, porque ela tem uma protuberância na arcada dentária que lhe dá um charme grande, muito a embeleza. O sorriso “emoldurado por lábios salientes/Certamente ardentes se beijados” — aí já é a minha fantasia em relação a ela, condição feminina profunda, atraente dela. A descrição da fronte e da testa é mais neandertálica, ligada àquele Homo sapiens mais antigo: tem algo nela que me produz essa impressão. A referência às pernas se deve ao hábito frequente de usar calças e saias longas. Não me lembro de uma oportunidade que a tenha visto de saias curtas ou algo assim. Ela estava sempre, pelo menos pra mim, na maior parte das oportunidades em que a encontrei, com as pernas encobertas — enfim, ela dizendo isso. “As fadas”, no verso final, são para explicar o aspecto das entidades que a circundam, que estão ali ao entorno dela: entes, duendes, fadas, esse mundo de fantasias, esse mundo mágico; e “do meu fado”, porque é como se ela fosse uma fadista; não é? A última estrofe tem mesmo um elemento lusitano no próprio desdobrar dos versos; poderia ter sido escrita por um poeta português.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Atrás do trio
Gilberto Gil
Tou atrás do fio pra ligar
O pavio dessa minha bomba H
Tou atrás há três
Horas atrozes sem poder lhe ver
Será que eu vou ter
De atravessar três dias?
Será que eu vou ter
De atravessar três dias
Sem poder, sem poder
Explodir a bomba H maiúsculo
Relaxar a fibra desse músculo
Já cansado de trombar
De dar encontrão
Na esperança de lhe encontrar
Na contramão
Tou atrás do trio
Tou tão apressado
Tou tão por um fio
Tou tão precisado
De lhe encontrar
De ver você se dependurar em mim
Me fazer de trapézio, de trampolim
Gravação
Dodô e Osmar – Ligação, 1978 – Continental
Comentário*
Estar atrás do trio é um pretexto para estar atrás da menina, já que ela estava lá, e a única maneira de alcançá-la seria me meter naquele fuzuê, enfrentar cotoveladas, encontrões, bordoadas de todo tipo.
Por exemplo, Caetano não cantaria, não falaria essas coisas.
— Não, ele ia, ele gostava. Ele fez várias canções saudando essa “pauleira Hendrix”, como diriam os meninos da Bahia. Já o Gil é um pífio carnavalesco. Estava só de olho nela, na menina. É por ela que ele está enfrentando… — Aquela tormenta.
O que para outros é ótimo, uma maravilha… — Pra mim era uma tempestade.
Muito bom! [risos] Não é à toa que, pra sair no Carnaval, você se identificou mesmo foi com os Filhos de Gandhy. — É claro. Atrás do trio elétrico é trincheira de guerra.
“Atriz atroz atrás há três”. — A canção contém uma citação a uma tirada muito conhecida, atribuída a Emílio de Menezes, que era um satirista [jornalista e poeta parnasiano, imortal da Academia Brasileira de Letras; segundo Glauco Mattoso, o maior poeta satirista brasileiro após Gregório de Matos]. Ele estaria na plateia de um teatro, e atrás, nas filas, estariam fazendo comentários, barulhos. Ele teria então se referido à atriz ao lado dele dizendo essa frase: “Atriz atroz atrás há três”. Não se sabe exatamente a quem ele estava se referindo, mas ele costumava criar frases de efeito dessa. Na hora me ocorreu essa boutade, que eu fiquei sabendo depois que seria do Emílio de Menezes.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Átimo de pó
Gilberto Gil
Carlos Rennó
O germe e Perseu
O quark e a Via-Láctea
A bactéria e a galáxia
Entre agora e o eon
O íon e Órion
A lua e o magnéton
Entre a estrela e o elétron
Entre o glóbulo e o globo blue
Eu, um cosmos em mim só
Um átimo de pó
Assim: do yang ao yin
Eu e o nada, nada não
O vasto, vasto vão
Do espaço até o spin
Do sem-fim além de mim
Ao sem-fim aquém de mim
Den de mim
Assimétrica
Gilberto Gil
Quer dizer sem você
Prefiro assim, assimetricamente
Viver com você
Assimetricamente nós dois
Assim como um mais um são três
Algo não se encaixa mas quem acha
Que dá certo somos nós
Nós e nós e nós e nós e nós
Todos desatados de uma vez
Quando nos atamos e amamos
Debaixo dos nosso lençóis
Muitos torcem, rezam, fazem ebó
Só pra ver você longe de mim
Só porque cismaram e inventaram que assim
Seria melhor
Só porque preferem me ver só
Só pra que só eles possam enfim
Ver-me, ter-me, beber-me, comer-me
Tomar-me pra eles
E só pra eles só
Assim, sim
Gilberto Gil
Diz pra mim que assim, não
Se eu chegar mansin
Diz pra mim que assim, sim
Se eu descer a mão
Diz pra mim que assim, não
Se eu fizer carin
Diz pra mim que assim, sim
Me diz assim, não, quando eu chego reclamando, resmungando, espinafrando, nega
Espinafre cru
Me diz assim, sim, quando eu chego
calmamente, docemente, simplesmente, nega
Suflê de chuchu (ou caruru)
Ocê vai me comer, vai me saborear…
Me diz assim, não, quando eu chego muito cedo, meio amargo, meio azedo, nega
Casca de limão
Me diz assim, sim, quando eu chego muito tarde, amolecido, já com ar de bobo
Creme de mamão (que tentação)
Ocê vai me comer, vai me saborear…
Gravação
Gilberto Gil – Fé na festa, 2010 – Gege Produções Artísticas
Comentário*
Também um forró. Uma tentativa de solução da atitude machista, da condicionante cultural etc. que impõe ao homem a figura varonil; da atitude de agressividade, violência. Evidentemente o ponto de vista da canção é o ponto de vista a partir das démarches feministas, das proposições feministas de mudanças, de transmutação, de transformação do macho. Na verdade o personagem masculino já é basicamente um convertido ou em processo de conversão para um adoçamento. Ele vai sendo adoçado. Ele próprio é quem fala; é ele a primeira pessoa falando para todos, abrindo mão disso que está associado à violência doméstica, à coisa toda do macho, senhor do terreno, dono da história, imperial, dominante: “Se eu vier dessa maneira, não. Se eu chegar ‘mansin’, sim. Se eu descer a mão, não. Se eu fizer ‘carin’, sim”. “Carin’”, em vez de “carinho” — uma contração muito popular que se faz em várias partes do Brasil, nos contextos mais interioranos. A ideia dos alimentos é para associar com a ideia do banquete sexual do refrão; pretexto para, na volta pra casa e no encontro com a parceira, seu amor, ele, o personagem, dizer: “Você vai me comer, vai me saborear”. E aí proporcionar musicalmente a ênfase da zabumbada, tum tum! Você vai me comer, tum!, vai me saborear, tum! Pum-pum-pá, pum-pum-pá! Aproveitar esse mote para um refrão musical também; o refrão não é só de letra, mas de música também. Refrão de gênero baião. Porque a música é um baião.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
As pegadas do amor
Gilberto Gil
Nem um bé
Uma cabra a esperniar
Um baé
Um porquinho, um bezerrinho
Uma pomba, uma preá
Animal de sangue quente
Atacado a sangue frio
Só prá ver sangue jorrar
Nem um pouco de pesar
De pavor
Nem um cabra a me implorar
Por favor
Nem um corpo a estrebuchar
Ao tremor das minhas mãos
Nem uma marca de horror
No chão do meu coração
Só as pegadas do amor
Gravações
Gilberto Gil – As canções de Eu, tu, eles, 2000 – Warner Music
Comentário*
Possivelmente algum momento do filme, alguma imagem despertou a ideia; a narrativa provocou a necessidade de tocar no tema do sacrifício animal. [Andrucha Waddington: “No filme não tem sacrifício animal. Gil criou as canções a partir das sensações que o filme lhe causou; ele conhecia o roteiro, mas compôs depois de ver o filme montado ainda sem trilha sonora, que é toda dele”.]
Toda essa coisa do sacrifício animal para a nutrição do homem. Os animais sacrificados para o alimento do homem levando à reflexão até das situações extremas como os grandes matadouros de aves. Aqui [em “As pegadas do amor”] não temos uma situação extrema; aqui é uma situação em que ainda há, digamos assim, um grau de equilíbrio razoável, sem a hipertrofia da larga produção em escala industrial. Mas a reflexão vai até lá.
A assimilação do ato de matar para comer pela execução do ato de matar para punir, do assassino; essas relações possíveis. Daí “Nem um cabra a me implorar:/ “Por favor”/ Nem um corpo a estrebuchar/ Ao tremor das minhas mãos”. A ideia de que é quase forçosa a alienação do fato de matar pra que se justifique a necessidade de comer. Todo esse jogo psicológico.
“Nem um pouco de pesar”: a frieza para o ato.
No final, nada, “só as pegadas do amor”. O redimir-se da agressão, da violência contra os animais.
Eu me lembro que era muito comum o fato de que se matavam animais no nosso quintal. Logo na infância nós éramos expostos ao ato de pegar a galinha, o porco, pra sangrar; lá em casa sangravam-se esses bichos. A memória do sangue jorrando, do animal estrebuchando. A naturalização muito cedo dessas coisas por força do hábito, da necessidade, da cultura do sacrifício animal para a alimentação do homem. E a associação disso com a violência, as facadas, os assassinatos cruéis muito típicos e comuns no Nordeste; os capangas sangrando os homens, matando-os por encomenda. Isso alimentando, realimentando a violência dos jagunços, dos patrões, dos senhores contra os escravos. A violência humana, o crime que advém de tudo isso. Acho que tem todas essas coisas em suspensão ali na — e pra — construção da canção. E sobre os ingredientes todos dela este trecho resume muito bem a perversidade humana envolvida no simples ato de matar para comer corrompido pelo desejo de matar para matar: “Animal de sangue quente/Atacado a sangue-frio/ Só pra ver sangue jorrar”.
Uma coisa do homem mais do que dos outros animais, que matam pra viver, enquanto o prazer de matar é tipicamente humano. — Exatamente. “Nem um pouco de pesar”. A malvadeza do ato.
Baé é um sinônimo de porco, de leitão; é um porquinho. “Uma cabra a espernear”: aí, cabra no feminino. “Nem um cabra a me implorar:” no masculino. No começo, um animal, a cabra; depois, um rapaz, o cabra. No mesmo ponto da melodia, da música.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
As coisas
Gilberto Gil
Arnaldo Antunes
Peso, massa, volume
Tamanho, tempo
Forma, cor
Posição
Textura, duração
Densidade
Cheiro
Valor
Consistência
Profundidade, contorno
Temperatura, função
Aparência
Preço, destino, idade
Sentido
As coisas não têm paz
As coisas
As camélias do quilombo do Leblon
Gilberto Gil
Caetano Veloso
As camélias do Quilombo do Leblon
As camélias do Quilombo do Leblon
As Camélias
As camélias do Quilombo do Leblon
As camélias do Quilombo do Leblon
As camélias do Quilombo do Leblon
Nas lapelas
Vimos as tristes colinas logo ao sul de Hebron
Rimos com as doces meninas sem sair do tom
O que fazer
Chegando aqui?
As camélias do Quilombo do Leblon
Brandir
Somos a Guarda Negra da Redentora
Somos a Guarda Negra da Redentora
Somos a Guarda Negra da Redentora
As camélias da Segunda Abolição
As camélias da Segunda Abolição
As camélias da Segunda Abolição
As Camélias?
As camélias da Segunda Abolição
As camélias da Segunda Abolição
As camélias da Segunda Abolição
Cadê elas?
Somos assim, capoeiras das ruas do Rio
Será sem fim o sofrer do povo do Brasil?
Nele e em mim
Vive o refrão
As camélias da Segunda Abolição
Virão.
Gravação
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois amigos, um século de música, 2015 – Gege Produções Artísticas e Uns Produções Artísticas (Sony Music)
Comentário*
A música foi deflagrada na nossa visita à região da Faixa de Gaza. Eu e Caetano estávamos em Israel fazendo shows e recebemos um convite pra visitarmos a Faixa de Gaza, conhecermos o local e as lideranças no movimento; as dificuldades físicas de alojamento, nas casas, a invasão das terras, tudo. Foi o que despertou em Caetano a associação com o movimento abolicionista brasileiro. Eu participei com uma palavrinha ou outra. Eu tenho a impressão que a complementação de frase “cadê elas?” fui eu que pus. A palavra “virão” também foi uma sugestão minha.
[Como se trata de uma letra sobretudo de Caetano, com a visão dele da questão, e como já houve questões que foram tocadas em canções por Gil e por Caetano, naturalmente, de uma perspectiva diferente — caso, por exemplo, do tema abordado por “Tempo rei” e “Oração ao tempo” —, e como Caetano adota uma posição de valorização da Abolição da escravatura no Brasil, mas sentindo a necessidade do que ele chama de Segunda Abolição; e como, ao mesmo tempo, há tempos vemos da parte de vertentes dos movimentos negros a disseminação do pensamento de que, na verdade, não houve Abolição, de que ainda é preciso haver a Abolição de fato, pergunto a Gil qual a sua posição a respeito disso. Que é esta:]
Eu sou partidário do sentimento do Caetano, que coincide com o de Joaquim Nabuco e tantos outros, e que reitera uma Segunda Abolição. Ou seja, uma complementação, uma completude. Eu acho muito importante o episódio da Abolição, o próprio envolvimento da princesa Isabel e o modo como aquilo tocou, numa certa forma, o tecido social; como aquilo vibrou na população, nas classes médias brasileiras, no próprio povo negro pobre, com comemorações prolongadas durante semanas, com festas no Rio de Janeiro, em Salvador, em vários lugares. [Caetano tematiza reverberações disso em “13 de maio”, falando de Santo Amaro da Purificação.] Que de uma certa forma inauguraram a ideia de capacidade de intervenção em bloco da população negra na formação da festa popular do Brasil. A semana da Abolição teve um papel extraordinário nesse sentido. Os negros todos foram pra rua celebrar uma coisa, pela primeira vez, acolhidos integralmente pelos brancos, pelos senhores e tudo mais. A festa negra é adotada na sua integridade pela primeira vez naquele momento. Essas são coisas importantes. O sentido cultural da Abolição. Não é só o sentido político, mas o cultural. A Abolição teve um sentido cultural profundo. Além da questão propriamente política, como, aliás, a canção coloca, com o envolvimento dos abolicionistas e a aproximação entre o universo dos homens políticos e a casa real. Esse diálogo, essa mútua autorização que o símbolo das camélias exatamente revela, é importante; tudo isso importa muito e precisa ser considerado pelos movimentos negros, queiram eles o que venham a querer.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
As ayabás
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Pra que todo mundo ouça
Eu agora vou cantar
Para todas as moças
Eu agora vou bater
Para todas as moças
Eu agora vou dançar
Para todas as moças
Para todas ayabás
Para todas elas
Iansã comanda os ventos
E a força dos elementos
Na ponta do seu florim
É uma menina bonita
Quando o céu se precipita
Sempre o princípio e o fim
Obá
Não tem homem que enfrente
Obá
A guerreira mais valente
Obá
Não sei se me deixo mudo
Obá
Numa mão, rédeas, escudo
Obá
Não sei se canto ou se não
Obá
A espada na outra mão
Obá
Não sei se canto ou se calo
Obá
De pé sobre o seu cavalo
Euá, Euá
É uma moça cismada que se esconde na mata
E não tem medo de nada
Euá, Euá
Não tem medo de nada
O chão, os bichos, as folhas, o céu
Euá, Euá
Virgem da mata virgem
Da mata virgem, dos lábios de mel
Oxum
Oxum
Doce mãe dessa gente morena
Oxum
Oxum
Água dourada, lagoa serena
Oxum
Oxum
Beleza da força da beleza da força da beleza
Oxum
Oxum
Aroma
Gilberto Gil
A-a-a-a-aroma
Vem pelo vento
Aroma
Fragrância, odor
Vem da pitanga
Da manga
Perfume da flor
Vem do estrume
Cheiro do gado
Vem do pecado (aroma-amor)
Do corpo dela (aroma-amor)
Todo molhado
Aroma
Um cheiro de suor
Ah, ah, ah, ah, aroma
Ah, ah, ah, ah, aroma
Vem pelas ventas
Aroma
Do pobre ou rico
Embriagado
Tu ficas
Eu também fico
Vem da macela
Da graviola
Vem do pé de manjericão
Todo o planeta
Aroma
De planta do sertão
Todo o planeta (que cheirinho gostoso)
Aroma (de capim cheiroso)
De planta do sertão
Aqui e agora
Gilberto Gil
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Aqui, onde indefinido
Agora, que é quase quando
Quando ser leve ou pesado
Deixa de fazer sentido
Aqui, onde o olho mira
Agora, que o ouvido escuta
O tempo, que a voz não fala
Mas que o coração tributa
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Aqui, onde a cor é clara
Agora, que é tudo escuro
Viver em Guadalajara
Dentro de um figo maduro
Aqui, longe, em Nova Deli
Agora, sete, oito ou nove
Sentir é questão de pele
Amor é tudo que move
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Aqui perto passa um rio
Agora eu vi um lagarto
Morrer deve ser tão frio
Quanto na hora do parto
Aqui, fora de perigo
Agora, dentro de instantes
Depois de tudo que eu digo
Muito embora muito antes
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Gravações
Gilberto Gil – Refavela, 1977 – Philips
Gilberto Gil – Giluminoso, 1999 – Gege Produções Artísticas
Carla Visi – Carla visita Gilberto Gil, 2001 – MZA Music
Comentário*
“O ‘aqui e agora’ reivindicado pelos místicos: a situação confortável, que deveria ser buscada e atingida pelo homem, de integridade na vivência de cada momento, de cada centímetro de espaço ocupado; o ethos, no sentido mais absoluto e profundo da palavra.
“Aqui e Agora é de uma sensorialidade tanto física quanto álmica, quer dizer, fala de como ver, ouvir, tocar as superfícies do que é sólido e do que é etéreo, denso e sutil; de uma visão voltada para dentro, o farol dos olhos iluminando a visão interior.
“A letra é uma colagem de fragmentos de manifestações mentais não necessariamente associáveis: dissociadas. Como, na estrutura subatômica, a dinâmica das partículas: vagalumes apagando e acendendo em lugares inusitados – estando aqui, e já ali; estando sim, e já não…”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Aquele abraço
Gilberto Gil
O Rio de Janeiro continua sendo
O Rio de Janeiro, fevereiro e março
Alô, alô, Realengo – aquele abraço!
Alô, torcida do Flamengo – aquele abraço!
Chacrinha continua balançando a pança
E buzinando a moça e comandando a massa
E continua dando as ordens no terreiro
Alô, alô, seu Chacrinha – velho guerreiro
Alô, alô, Terezinha, Rio de Janeiro
Alô, alô, seu Chacrinha – velho palhaço
Alô, alô, Terezinha – aquele abraço!
Alô, moça da favela – aquele abraço!
Todo mundo da Portela – aquele abraço!
Todo mês de fevereiro – aquele passo!
Alô, Banda de Ipanema – aquele abraço!
Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço
A Bahia já me deu régua e compasso
Quem sabe de mim sou eu – aquele abraço!
Pra você que meu esqueceu – aquele abraço!
Alô, Rio de Janeiro – aquele abraço!
Todo o povo brasileiro – aquele abraço!
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil, 1969 – Philips
Elis Regina e Miele – Show Elis e Miele, 1970 – Philips
Gal Costa e Gilberto Gil – Live in London 71, 1971 – Gege/Discobertas
Gilberto Gil – Back in Bahia – ao vivo, 1972 – Gege/Discobertas
Gilberto Gil – Ao vivo em Tóquio, 1986 – Warner Music
Gilberto Gil – Soy loco por ti America, 1987 – Warner Music
Tim Maia – Songbook Gilberto Gil, 1992 – Lumiar Discos
Gilberto Gil – Unplugged, 2002 – Warner Music
Gilberto Gil – Eletracústico, 2004 – Warner Music
Alexandre Pires – Show da Paz – Cristo Redentor 80 anos, 2011 – Emi Music
Eliane Elias – Light my fire, 2011 – Concord Music
Angelique Kidjo, Forro In The Dark – Red Hot + Rio 2, 2011 – Red Hot Organization
Gilberto Gil – Gilbertos Samba ao vivo, 2014 – Sony Music
Diogo Nogueira – Samba de verão – Lua, 2021 – Dig Nog Produções
Gilberto Gil & Família – Single 2023 – Gege
Comentário*
“Meses depois de solto, eu vim ao Rio tratar da questão da saída do Brasil com o Exército. Na manhã do dia da minha volta para Salvador, fui visitar Mariah Costa, mãe de Gal; ali, na casa dela, eu ideei e comecei Aquele Abraço. Finalmente eu ia poder ir embora do país e tinha que dizer ‘bye bye’; sumarizar o episódio todo que estava vivendo, e o que ele representava, numa catarse. Que outra coisa para um compositor fazer uma catarse senão numa canção?
“No avião mesmo eu terminei a música, escrevendo a letra num papel qualquer, um guardanapo, e mentalizando a melodia. Tanto que é uma melodia muito simples, quase de blues; como eu não dispunha de instrumento, tive que recorrer a uma estrutura fácil para guardar na memória. Quando cheguei à Bahia, eu só peguei o violão e toquei; já estava comprometido afetivamente com a canção.”
“Aquele abraço, Gil!” – “Era assim que os soldados me saudavam no quartel, com a expressão usada no programa do Lilico, humorista em voga na época, que tinha esse bordão. Ele até ficou aborrecido com a música; achou que deveria ter direito à canção. Mas eu aprendi a saudação com os soldados. Eu não tinha televisão na prisão, evidentemente, mas eles assistiam o programa; eu só vim a ver depois, quando saí.”
Retificação ratificada – Não foi no quartel de Realengo que Gil e Caetano ficaram presos, e sim no de Marechal Deodoro. “De todo modo”, diz Gil, “a ideia em Aquele Abraço era citar um local qualquer da zona norte do Rio (onde ficamos), um daqueles beira-estrada-de-ferro (Beira Central, Beira Leopoldina), e Realengo é um deles. Uma associação inexata, feita por aproximação; eu nem queria me referir ao lugar certo onde havia ficado preso.”
Uma canção de quarta-feira de cinzas – “O reencontrar a cidade do Rio na manhã em que nós saímos da prisão e revimos a avenida Getúlio Vargas ainda com a decoração de carnaval foi o pano de fundo da canção. Na minha cabeça, Aquele Abraço se passa numa quarta-feira de cinzas; é quando o ‘filme’ da música é em mim mentalmente locado.”
The three tops – “Aquele Abraço é uma das músicas minhas mais populares, a mais tocada e o segundo mais vendido dos meus discos (compactos). Uma das três gravações minhas que ficaram em primeiro lugar nas paradas de sucesso durante maior tempo (dois meses; eu já estava na Europa). As outras são Xodó (três meses, em 73), da autoria do Dominguinhos e Anastácia, e Não Chore Mais (cinco, em 78), versão que fiz para uma música cantada pelo Bob Marley. Foram as três mais vendidas também.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Antigamente
Gilberto Gil
Não conheço, na verdade
Passado meu que me desse o que sofrer
Só pode ser de mim mesmo essa saudade
Do meu tempo em que a brincar corria
Sem nada saber de amor
Sem nada saber de dor
Sem ter que chorar por não ter nem saudade
De um bem pra chorar
Andar com fé
Gilberto Gil
Que a fé não costuma faiá
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Que a fé tá na mulher
A fé tá na cobra coral
Ô-ô
Num pedaço de pão
A fé tá na maré
Na lâmina de um punhal
Ô-ô
Na luz, na escuridão
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
A fé tá na manhã
A fé tá no anoitecer
Ô-ô
No calor do verão
A fé tá viva e sã
A fé também tá pra morrer
Ô-ô
Triste na solidão
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Certo ou errado até
A fé vai onde quer que eu vá
Ô-ô
A pé ou de avião
Mesmo a quem não tem fé
A fé costuma acompanhar
Ô-ô
Pelo sim, pelo não
Gravações
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Jorge Mautner e Nelson Jacobina – Songbook Gilberto Gil, Vol. 3, 1992 – Lumiar Discos
Ney Matogrosso – Sangue Latino: o melhor de Ney Matogrosso, 1997 – Universal Music
Estevão Teixeira – Flauta brasileira, 1998 – CID
Carla Visi – Carla visita Gilberto Gil, 2001 – MZA Music
Leila Pinheiro – Mais coisas do Brasil (Ao vivo), 2001 – Universal Music
João Bosco – Malabaristas do Sinal Vermelho, 2002 – Sony Music
Gilberto Gil – Eletroacustico (Ao vivo), 2004 – Warner Music
Rappin’ Hood – Sujeito Homem 2, 2005 – Trama
Rastapé – Tudo é Forró, 2006 – EMI Music
Gilberto Gil e Preta Gil – Gil + 10, 2011 – Pedra da Gávea
Gilberto Gil – Concerto de cordas e máquinas de ritmo, 2012 – Biscoito Fino
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Dois Amigos, um Século de Música (Ao Vivo), 2015 – Gege e Uns Produções Artísticas
Margareth Menezes – Para Gil & Caetano, 2015 – Estrela do Mar
Menina do Céu – Festa no céu, 2015 – Sony Music
Skank – Rock in Rio 30 anos, 2015 – Musickeria
Lucy Alves – Lucy Alves (single), 2020 – Lucy Alves
Gilberto Gil – Em casa com os Gil, 2022 – Gege
Mundo Bita – Andar com fé (single), 2023 – Mr. Plot – Mundo Bita
Comentário*
A fé e a “faia”. — O uso do “faiá” é assumido com a intenção de legitimar uma forma popular contra a hegemonia do bem falar das elites. É uma homenagem ao linguajar caipira, ao modo popular mineiro, paulista, baiano — brasileiro, enfim — de falar “falhar” no interior. É quase como se a frase da canção não pudesse ser verdade se o verbo fosse pronunciado corretamente — o que seria um erro… Outro dia cometeram esse “deslize” na Bahia, ao utilizarem a expressão na promoção de uma campanha de cinto de segurança. Nos outdoors, saiu: “A fé não costuma falhar” (a propaganda associava o cinto à fitinha do Senhor do Bonfim). Eu deixei, mas achei a correção desnecessária.
“Faiá” é coração, “falhar” é cabeça, e fé é coração. — É isso aí. “A fé não costuma faiá”: é pra quem fala assim que ela não costuma “faiá”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Amor até o fim
Gilberto Gil
Eu quero e sei que vou ficar
Até o fim eu vou te amar
Até que a vida em mim resolva se apagar
O amor é como a rosa no jardim
A gente cuida, a gente olha
A gente deixa o sol bater
Pra crescer, pra crescer
A rosa do amor tem sempre que crescer
A rosa do amor não vai despetalar
Pra quem cuida bem da rosa
Pra quem sabe cultivar
Amor não tem que se acabar
Até o fim da minha vida eu vou te amar
Eu sei que o amor não tem que se apagar
Até o fim da minha vida eu vou te amar
Gravações
Elis Regina e Jair Rodrigues – 2 Na Bossa, 1966 – Universal Music
Os Cariocas – Passaporte, 1966 – Universal Music
Elis Regina – Elis, 1974 – Universal Music
Emílio Santiago – Songbook Gilberto Gil, Vol. 1, 1992 – Lumiar Discos
Wanda Sá e Bossa Três – Wanda Sá & Bossa Três, 2001 – Deckdisc
Daniela Mercury – Acústico, 2005 – Páginas do Mar
Gilberto Gil e Maria Rita – Duetos 2, 2008 – Warner Music
Henrique Lissovsky – Solo, 2008 – Henrique Lissovsky [dist. Tratore]
Gilberto Gil – Bandadois (Ao vivo), 2009 – Gege
Trovadores Urbanos – Amor até o fim, 2010 – Dabliú Discos [dist. Tratore]
Mário Eugênio – Contramão, 2011 – Tratore Distribuição
Gilberto Gil, Ivete Sangalo e Caetano Veloso – Especial Ivete, Gil e Caetano, 2012 – TV Globo
Katia Rocha – Hoje o samba saiu, 2012 – Tratore Distribuição
Orquestra de Sopros da Pro Arte e Flautistas da Pro Arte – Ituaçú – Gilberto Gil, 2012 – Geringonça Filmes
Rosa Passos – Azul, 2013 – Galeão
Fernando Lauria – Fernando Lauria, 2013 – Fernando Lauria
Deborah Vasconcellos – Casa arrumada, 2013
Diogo Nogueira – Elis Por Eles (Ao vivo), 2014 – LAB 344
Grupo Instrumental Brasilidade Geral – Brasilidade Geral e Bob Mintzer Live, 2014 – Luiz Renato da Silva Rocha
Raquel Saraceni – O tempo me guarda você, 2015 – Raquel Saraceni
Mauro Senise – Amor até o fim, Mauro Senise toca Gilberto Gil, 2016 – Fina Flor
Alexandre Pires – DNA Musical, 2017 – Som Livre
Arranco de Varsóvia – Quem é de sambar, 2017 – Mills Records
Trio Corrente – Tem que ser azul, 2019 – Abeat
Comentário*
“Amor até o fim” foi feita logo após minha primeira separação. Quanto ao fato de a canção, que explora o tema do amor como algo infindo, ter se originado justamente de um sentimento tido ao final de um casamento, isso não constitui um fato único: “Drão” também é assim. Eis uma recorrência: exatamente quando uma relação está terminando, vem uma canção tratando da infinitude do amor.
Aqui entra a necessidade de manifestar minha visão particular, de ser pessoal, próprio; o momento confessional exigindo que a sinceridade prevaleça, que eu seja sincero e diga aquilo que realmente eu acho. É um desses momentos especiais na minha obra em que eu realmente sou único, sou original, sou autoral, dizendo que o amor não tem que se acabar quando uma relação está se acabando.
Ao mesmo tempo, em “Amor até o fim” já há sinais das questões filosóficas que vão ocupar espaço mais tarde em minha obra, como a do eterno retorno e a ideia taoista do tempo. A canção antecipa a ideia do amor como campo da existência total, dentro de uma visão ecológica dos sentimentos humanos, que vai depois aparecer em canções seminais da minha fase filosófica. Já é um pouco isso: a filosofia do amor.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Amor de carnaval
Gilberto Gil
Por causa de um amor qualquer
Minha dor tem que acabar
No carnaval, se Deus quiser
Faz um ano deste amor
Esperei até cansar
Carnaval me trouxe a dor
Carnaval tem que levar
outro título: “Decisão”
Gravações
Gilberto Gil – Retirante, 1961 – Gege
Zimbo Trio – Zimbo Trio + Cordas, Vol. 2, 1968 – Som Livre
Gilberto Gil – Salvador, 1961 – 1963, 2002 – Warner Music
Daniela Mercury e Gilberto Gil – Carnaval Eletrônico, 2004 – BMG
Elizeth Cardoso – Eu sou o samba, 2004 – EMI Records
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Warner Music
Gilberto Gil – Retirante, 2010 – Discobertas
Comentário*
Gosto muito da concisão desse samba. Puro e simples. Um pouco na linha dos velhos sambas de Carnaval. É bem uma homenagem àquele tipo de sambas carnavalescos curtinhos, fáceis de cantar, com letras pequenas e ideias concisas do ponto de vista da mensagem. Com uma edição de frases típicas do samba de rua, montadas em quatro, oito versos, duas quadras, bem assim; uma edição muito exigente, no sentido da concisão. E as ideias também embutidas nas frases de forma muito fácil, de percepção muito imediata do que está se querendo dizer. Uma narrativa bem fraterna, no sentido do entendimento imediato.
Você veio a revisitá-lo muito tempo depois. — E a Daniela Mercury o gravou [em 2004], depois de mais de cinquenta anos da existência dele. Eu o regravei porque gosto muito desse samba, porque é muito exemplar de um gênero de samba de Carnaval.
Você chegou a me dizer uma vez que o Carnaval trazia recordações tristes pra você. — Melancolia. Está associado a uma melancolia. Eu nunca fui folião. Nem nos momentos mais foliões eu era folião. O Carnaval tinha lembranças românticas, no sentido clássico, no sentido Romeu e Julieta, das tragédias amorosas, dos encontros inviáveis, impossíveis, irrealizáveis, esboçados mas frustrados, e sempre foi isso. Essa música “Decisão” é exatamente isso. “Carnaval me trouxe a dor,/ Carnaval tem que levar”: quer dizer, a gente brinca porque brincando a gente quem sabe faz com que as águas do Carnaval limpem aqueles resíduos de dor, de penar. Eu lembrava das festas nos salões, dos esboços de namoro que não se concretizavam, que não passavam do dibujo para um desenho nítido. E aquilo: as Quartas-Feiras de Cinzas eram sempre, quase sempre, muito doloridas. Cinzentas mesmo. Essa canção diz isso. Duas pequenas estrofes e pronto. Com aquela concisão dos velhos sambas de Carnaval.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Amo tanto viver
Gilberto Gil
Transfigurado na luz
Nos raios mágicos de um refletor
Na cor que o instante produz
Todas as vezes que eu canto é a dor
Todos os fios da voz
Todos os rios que o pranto chorou
Na vida de todos nós
Tudo que eu sei aprendi
Olhando o mundo dali
Do patamar da canção
Que deixa descortinar
O cenário da paixão
Aonde vejo a vagar meu coração
Tudo que eu canto é a fé, é o que é
É o que há de criar mais beleza
Beleza que é presa do tempo
E, a um só tempo, eterna no ser
A beleza que é presa do tempo
E eterna no ser
Todas as vezes que eu canto
Amo tanto viver
Gravação
Maria Bethânia – Talismã, 1980 – Polygram
Comentário*
“‘Amo tanto viver’ faz uma das leituras interpretativas do cantar de Maria Bethânia e do seu significado. Representa ainda uma tentativa de recuperar memórias que eu tinha de como eu a via desde que a conheci; de como eu entendia a vocação dela, o gosto dela pelo canto, o porquê do canto dela; o sentido profundo, trágico, que ela gosta, quer e reivindica como incorporação para o canto dela. É uma maneira de lê-la, a ela, Bethânia, através e por dentro do seu próprio canto. A letra diz bem – para mim e eu sei que para muita gente – o que ela passa e que constitui uma das características unânimes do significado do seu cantar: a coisa de viver as dores e os prazeres do mundo, de ser totalizante, a intencionalidade de ser totalizante: ela é convincente nisso, e assim tem sido ao longo da carreira e ao longo da vida de artista, quer dizer, ela tem nos convencido seguidamente da força e da abrangência que o seu canto tem, dessa qualidade trágica, grega – que eu não tenho tanto. A música é sobre isso.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Amiga dos ventos
Gilberto Gil
Sou amante dos mares
Sou bem-vinda nos lugares
Aonde vou
Sou a força da terra
Sou a luz dos luares
Sou a chama nos altares
Do amor
Não que algo aconteça
De especial comigo
Que eu possua mil poderes
Celestiais
Nem que eu seja dotada
De um saber feiticeiro
Protegida dos potentados
Astrais
O que eu trago é mais simples
É banal como a chuva
Natural como uma uva
Ter sabor
Vem da vida o mistério
Dessa facilidade
De ser tudo e nada disso
Ter valor
Gravação
Maria Bethânia – Alteza, 1981 – Polygram
Comentário*
Não tenho certeza se a canção foi feita a pedido dela, nem mesmo que eu tenha feito pensando nela. Mas tenho a impressão de que os elementos da construção denotam essa filiação, esse pertencimento, essa afinidade com ela. É que acontecia muito com a Bethânia de, de vez em quando, ela dizer: “E aí? Me mande umas músicas pra eu ouvir, pra eu escolher”. E aí eu mandava três, quatro, cinco músicas; ela escolhia uma ou duas. Não sei se foi num desses processos que saiu “Amiga dos ventos”, que eu não sei se foi mais efetivamente dirigida, endereçada a ela. Mas a julgar pelo primeiro verso [e título], em alusão a Iansã, é bem possível que tenha sido. A letra trata de desapego. Possivelmente eu estava pensando mesmo nela, na Bethânia, tentando fazer uma tradução da imagética, do sentimento que eu nutria por ela, do que ela representava ser para mim, do que ela representa.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Amarra o teu arado a uma estrela
Gilberto Gil
Ainda não são
Tão doces e polpudos quanto as peras
Da tua ilusão
Amarra o teu arado a uma estrela
E os tempos darão
Safras e safras de sonhos
Quilos e quilos de amor
Noutros planetas risonhos
Outras espécies de dor
Se os campos cultivados neste mundo
São duros demais
E os solos assolados pela guerra
Não produzem a paz
Amarra o teu arado a uma estrela
E aí tu serás
O lavrador louco dos astros
O camponês solto nos céus
E quanto mais longe da terra
Tanto mais longe de Deus
Gravações
Gilberto Gil – Em Concerto, 1987 – Gege
Gilberto Gil – O salvador da pátria (trilha sonora), 1988
Gilberto Gil – O eterno Deus Mu Dança, 1989 – Warner Music
Comentário*
Participando de uma gincana escolar do Isba (Instituto Social da Bahia), onde cursava a oitava série, Fátima Giordano, irmã de Flora Gil e cunhada de Gilberto Gil, recebeu a tarefa de levar, no dia seguinte, gravada, uma canção sob o tema: “Amarra o teu arado a uma estrela”. O compositor achou a frase “estranha, provocativa”, e fez a música, que venceu o concurso.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Altos e… Baixos
Gilberto Gil
Aquela ave que voa, pequenina
Na imensidão do céu azul, tão grande!
Agora olha, olha pra mim aqui embaixo
Repara bem o estado em que me acho
Nesta miséria que o meu ser expande
Algum dia
Gilberto Gil
Você julga que eu também brinco com o amor
Você pensa que é mentira o meu imenso querer
E tem medo que eu lhe traga mais uma mágoa, mais uma dor
Você pensa, vá pensando, não importo
Pois a vida é sempre a vida, viver é amar
Não me ame, ame a vida, goste do mundo enfim
E algum dia eu serei seu mundo
E algum dia eu serei sua vida
E neste dia você gostará de mim
Alfômega
Gilberto Gil
Somatopsicopneumático
Que também significa
Que eu não sei de nada sobre a morte
Que também significa
Tanto faz no sul como no norte
Que também significa
Deus é quem decide a minha sorte
Gravação
Caetano Veloso – Caetano Veloso, 1969 – Universal Music
Pato Fu – Incidental em a necrofilia da arte, 1998 – BMG
Caetano Veloso – Durval discos (trilha sonora), 2003
Comentário*
“O ‘analfomegabetismo’ – o analfabetismo cósmico, a nossa profunda ignorância acerca do universo aberto, vasto e vago do esoterismo; o mistério sobre isso. E ‘somatopsicopneumático’ – a trindade, a soma de: soma, corpo, carma, encarnação do homem; psique, alma; e neuma (do grego ‘sopro’), espírito. A consciência disso.
“Os termos vêm do procedimento concretista de ligar palavras e inventar neologismos compostos. Começando a estudar religiões orientais e ciências ocultas, eu convivia com palavras não popularmente difundidas, algumas de cujo significado até então eu não sabia (como ‘neuma’, ‘neumático’; ‘soma’ eu já conhecia dos rudimentos de anatomia dados no ginásio) e que eram novidade para mim.
“Fiz a música na Bahia, depois do episódio da prisão, quando encontro o Rogério Duarte e o Walter Smetak, e se dá a transposição desses interesses intelectuais e espirituais em minha música.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Alapala (The myth of Shango)
Gilberto Gil
Carol Rogers
Alapala, Alapala, Alapala
Shango, Aganju
A little boy, the age of three
He asked about his family tree:
“Oh, father, who is my grand papa?”
The father said: “My boy, grandpa is dead
And right before he died
He told me who was my grandpapa
“My grandpapa, your grandpapa’s
Daddy was born in Africa
A king, a tribal king Yoruba
“So you, my boy, you’ve got to be
Yourself a little new Shango”
Oh, Aganju, baba Alapala
Aganju, Shango
Alapala, Alapala, Alapala
Shango, Aganju
Alapala, egun, spirit of the family man
Ancestral soul of our tribe until this day
The tribe of Aganju-Shango, an axe is in his hand
His lightning axe could strike the sky above
And make the sound of crashing thunders threaten God
And that is why Shango became a God himself
And that is why you should be proud, my boy
[ Babá Alapalá, de Gilberto Gil ]
Água de meninos
Gilberto Gil
Capinan
Entre o mar e a poesia
Tem um porto, Salvador
As ladeiras da cidade
Descem das nuvens pro mar
E num tempo que passou
Toda a cidade descia
Vinha pra feira comprar
Água de Meninos
Quero morar
Quero rede e tangerina
Quero peixe desse mar
Quero vento dessa praia
Quero azul, quero ficar
Com a moça que chegou
Vestida de rendas, ô
Vinda de Taperoá
Por cima da feira, as nuvens
Atrás da feira, a cidade
Na frente da feira, o mar
Atrás do mar, a marinha
Atrás da marinha, o moinho
Atrás do moinho, o governo
Que quis a feira acabar
Dentro da feira, o povo
Dentro do povo, a moça
Dentro da moça, a noiva
Vestida de rendas, ô
Abre a roda pra sambar
Moinho da Bahia queimou
Queimou, deixa queimar
Abre a roda pra sambar
A feira nem bem sabia
Se ia pro mar ou sumia
E nem o povo queria
Escolher outro lugar
Enquanto a feira não via
A hora de se mudar
Tocaram fogo na feira
Ah, me diga, minha sinhá
Pra onde correu o povo
Pra onde correu a moça
Vinda de Taperoá
Água de Meninos chorou
Caranguejo correu pra lama
Saveiro ficou na costa
A moringa rebentou
Dos olhos do barraqueiro
Muita água derramou
Água de Meninos acabou
Quem ficou foi a saudade
Da noiva dentro da moça
Vinda de Taperoá
Vestida de rendas, ô
Abre a roda pra sambar
Moinho da Bahia queimou
Queimou, deixa queimar
Abre a roda pra sambar
Agonia de Drime
Gilberto Gil
© Gege Edições Musicais
Água benta
Gilberto Gil
Contaminou o bebê
A medicina e o seu doutor
Nada puderam fazer
O desespero se apoderou
Do padre, do pai, da mãe
Foi quando então alguém se lembrou
De um feiticeiro de Ossãin
Um simples banho de folhas fez
O que não se esperava mais
Depois, depois muitos muitos anos depois
Rapaz, aquele menino já então rapaz
Se fez um rei entre os grandes babalaôs
Dos tais, dos tais como já não se fazem mais
A água benta que ao bel prazer
Se desmagnetizou
Desconectada do seu poder
Por um capricho do amor
Amor condutor do élan vital
Que o chinês chama de ch’i
Que Dom Juan chama de nagual
Que não circulava ali
Ali na grã pia batismal
O amor deixara de fluir
Talvez por mero defeito na ligação
Sutil entre a essência e a representação
Verbal que tem que fazer todo coração
Mortal ao balbuciar sua oração
A água benta que o bom cristão
Contaminou sem querer
A fonte suja que o sacristão
Utilizou sem saber
A força neutra que move a mão
Do assassino o punhal
E o bisturi do cirurgião
O todo total do Tao
Lâmina quântica do querer
Que o feiticeiro o sabe ler
Fractal, de olho na fresta da imensidão
Sinal, do mistério na cauda do pavão
Igual, ao mistério na juba do leão
Igual, ao mistério na presa do narval
Gravações
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – Projeto especial IBM, 1997 – Warner Music
Comentário*
“A água contaminada da pia batismal, a despeito da água benta, contamina o moleque, que vai ser curado no curandeiro. O poder milagroso da água benta não estava imune à contaminação do campo material da água, quer dizer, os micróbios estavam na água benta e acabaram, de alguma forma, naquele caso, contaminando o bebê; ou seja, o poder milagroso da água benta não prevaleceu diante da força da contaminação física da água, que estava cheia de micróbios. Mas esse mesmo poder milagroso vai ser restaurado pelo pai de santo, que através das instâncias milagrosas vai curar o menino contaminado pela água da pia batismal. É de um grau de delírio incrível essa canção. Mas ao mesmo tempo é uma reiteração do sentido do eterno retorno, quer dizer, ali onde a negação negou a negação, a afirmação vai restaurar o poder afirmativo da afirmação negada. E há ainda a reivindicação do sentido do amor como o grande detergente universal, o que limpa tudo, assim como a água é o grande solvente universal.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Africaner brother bound
Gilberto Gil
Henrique Hermeto
Jean Pierre
Quanto tempo ainda mais
Já durou até demais
O que não devia ser jamais
Poeta calou por um dia ou dois
Bandeira arriada pra descansar
O batuque ficou pra depois
Que o coração desenfrear
Africaner brother bound
Quanto tempo ainda mais
Já durou até demais
O que não devia ser jamais
Quem é que no mundo pode impedir
O sol de nascer e de brilhar
A palmeira, de crescer, crescer
A noite na mata, de clarear
Do lado da gente, nós e nós e nós
Na luta feroz até o fim
A vitória deixará pra trás
Um tempo de guerra, tempo ruim
Africaner brother bound
Quanto tempo ainda mais
Já durou até demais
O que não devia ser jamais
Gravação
Obina Shok – Obina Shok, 1986 – RCA
Comentário*
Uma canção com os meninos do Obina Shok, africanos, senegaleses. Meninos da classe média, da burguesia urbana africana, filhos de diplomatas que vieram pro Brasil e aqui se juntaram em Brasília, e fizeram esse grupo, na época em que surgem os grupos de rock brasileiros. Eles são dessa fornada e trazem todo o engajamento deles com a questão das várias vertentes de luta na África. Naquele momento havia as partidarizações muito variadas e contraditórias na África do Sul. Mandela preso ainda. É um momento culminante da luta antiapartheid que vai se completar com a volta do Mandela à liberdade, e aí a África do Sul resolve se juntar pra se configurar um novo momento, e é este momento o da canção. Os meninos do Obina estavam engajados nisso. “Africaner Brother Bound” era uma corrente apartheidiana.
[Gil conta que fez a letra inspirado neles, no que eles viviam. Que não se lembra se se tratava de um poeta específico o referido nos versos; considera que “poeta” ali pode ter tido o sentido de “uma figura geral como o guia, o porta-voz”. E sobre ninguém no mundo poder impedir o sol de brilhar, a palmeira, de crescer etc.? “Era um processo que estava já em curso, irreversível — tinha que dar no que deu”, diz ele, concluindo: “Era a oração pela libertação da África do Sul”, numa referência à canção que havia composto um ano antes. Eu lembro então de “A mão da limpeza” — de mais um ano antes, de 1984. Por fim, sobre os versos da última estrofe (“A vitória deixará pra trás/ Um tempo de guerra, tempo ruim”), ele comenta: “A antevisão da alvorada, do sol brilhar, raiar um novo dia”.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Afoxé é
Gilberto Gil
Ê-ô, ê-ô
É bom pra ioiô
É bom pra iaiá
O afoxé é da gente
Foi de quem quis
É de quem quiser
Sair do Pé do Caboclo
Até a Praça da Sé
O afoxé é semente
Plantou quem quis
Planta quem quiser
Tem que botar fé no bloco
Tem que gostar de andar a pé
Tem que aguentar sol a pino
Tem que passar no terreiro
E carregar o menino, oh, oh
Tem que tomar aguaceiro
Tem que saber cada hino
E cantar o tempo inteiro, oh
O afoxé, seu caminho
Sempre se fez
Sempre se fará
Por onde estiver o povo
Esperando pra dançar
O afoxé vai seguindo
Sempre seguiu
Sempre seguirá
Com a devoção do negro
E a bênção de Oxalá
Gravação
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Comentário*
O afoxé como uma forma, celebradíssima, de candomblé de rua — lúdica, em vez de religiosa. Todo o ritual que se reconstitui em torno do desfile. Os requisitos necessários para se poder participar do bloco; o estoicismo requerido: o pai que faz o percurso inteiro (saindo da praça da Sé até o Campo Grande e voltando: como no desfile dos Filhos de Gandhy, no Carnaval da Bahia) carregando o filho nas costas, para iniciá-lo na tradição.
“Afoxé é” se refere a uma mandala da coesão comunitária; trata-se de uma evocação do gregário, uma convocação à participação. A canção fala não do ser individual, mas do ser social e suas implicações. Quer dizer: do sacrifício que um indivíduo faz para ser um partícipe; de em que grau o coletivo se sobrepõe ao individual com qualidade, valor e vantagens; de quando é melhor, no sentido de necessário, deixar de ser um para ser muitos. Daí, remeter para o ritual, a celebração grupal; para arquétipos cívico religiosos.
Não é, contudo, o objeto da crença — não é Deus — que é comentado na canção, ou o que nela comove, mas o humano, demasiadamente humano; o compromisso do homem com a comunidade. A Revolução Francesa inaugurou a fase popular da história e trouxe os humanismos todos que desembocaram no sentido democrático, aquilo que o Nietzsche, por um lado, critica muito: a fraqueza do homem moderno — é essa nossa fraqueza que nos comove. Somos código genético programado pra viver essa fase da história, essa coisa Spartacus; tudo que diz respeito às libertações, às ações em nome da igualdade, às ideias de socialismo, nos são comoventes. Toda vez que a comuna é reunida, há comoção.
Sobre o caráter peculiar da rima “Caboclo/ bloco” e sua relação com o conteúdo geral da música. — Uma rima longínqua: uma telerrima à distância. Gosto dessas rimas que explodem lá adiante; quando você ouve o segundo termo, este remete àquela palavra que já passou muito tempo antes. No caso de “Caboclo/ bloco” em “Afoxé é”, isso fica especialmente bonito porque a rima contém em si o sentido da canção, que trata de algo que já é movimento em bloco. A ideia de percorrimento de um trajeto é reiterada na ocorrência da rima, que só acontece depois de você percorrer certo espaço da canção.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Afogamento
Gilberto Gil
Sob o peso da insensatez
Já sem poder boiar
Estarei com alguém, nariz contra nariz,
O afogamento por um triz,
Tentarei me salvar
Sempre assim,
Sempre que o amor vaza a maré
Vou parar bem longe, aonde não dá pé, difícil de nadar
Outro dia o fato aconteceu enfim
Um golfinho-anjo, um boto-serafim
Chegou pra me ajudar
Me agarrei
Aquele corpo liso e me deixei levar
Ao lado o seu sorriso aberto a me guiar
Então eu relaxei
E me entreguei completamente ao mar
Gravação
Gravada por Gilberto Gil e Roberta Sá em single para a novela Segundo sol, de João Emanuel Carneiro, Rede Globo (Gege Produções Artísticas, 2018).
Comentário*
Uma parceria sui generis essa, porque a contribuição do parceiro — o Jorge Bastos Moreno — é o personagem, uns dos personagens da canção: o boto, assim referido em alusão ao boto amazônico, a figura mitológica. Que era um dos amigos sempre presente nos nossos encontros, nas nossas reuniões à época, e que suscitou um caso de amor com uma das jovens frequentadoras da nossa turma, do nosso meio. Então eu tomei os dois personagens, ela e ele. Ela, como o eu lírico da canção, vai falando, desenvolvendo uma metáfora do sentimento amoroso, da paixão, do envolvimento, do risco de se afogar no mar do amor. Há essa locação aquática, esse lugar na água e a luta para boiar, para se sustentar na água; a dificuldade enfrentada para evitar o afogamento, a submersão. A ideia de nadar já estava presente, sim, em “Exotérico”, só que lá o eu lírico sou eu mesmo falando pra ela, dizendo a ela: “Não adianta…”. Aqui é ela falando dele, e ele aparece como golfinho, como anjo, como alguém que vai socorrê-la. É mais misterioso ainda, porque é como se o afogamento dela fosse uma coisa ligada a uma abstração de um ente amoroso distante, inatingível, inalcançável. Só que um possível afogamento aí é consequência de uma carência, de um vazio, um grande vácuo, a grande falta do amor. E ele, o boto, é o salvador, que chega pra dizer: “Aqui estou! Aqui estamos”. Pra dizer: “Você pode encontrar a concretude do amor, da paixão, e isso salva. Isso evitará que você submerja, isso vai lhe manter na superfície, você vai boiar, vai se livrar do risco de se afogar de vez”. O mar do final é o campo do afeto, do amor, ao qual ela se entrega já sustentada pela companhia do parceiro, pelo encontro com aquele boto salvador. E é como se ele fosse trazendo-a de volta à praia depois de ela ter desgarrado para bem longe, onde não dava mais pé. Na praia então ela relaxa e se entrega ao mar que ela pode avistar já sem os riscos de ter que nele se debater ou nadar. Um mar contemplado por quem está na beira dele; o mar à beira dele. Não mais o mar perigoso, mas o mar absolutamente metafórico do amor, da paixão, da entrega, com todos os aspectos redentores que isso tem. É a salvação.
Sobre a participação, na história da canção, de Roberta Sá, que não só a gravou, mas, antes, a motivou. — Ela é o personagem feminino da canção. É ela que corria o risco de se afogar naquela determinada circunstância. A canção, que eu não fiz pensando que seria pra que ela cantasse propriamente, canta sobre ela, ela como o par romântico do boto, que era, como ela — e como Maria e Andreia [da canção “Lia e Deia”] —, um dos frequentadores da casa do Moreno. Ela tinha ido de férias passear em Fernando de Noronha, e o Moreno, num dos telefonemas pra ela, brincou: “Cuidado com os botos, com os golfinhos aí na ilha!”.
Sobre Jorge Bastos Moreno, que faleceu pouco depois de feita a canção. — Foi um amigo tardio na minha vida que se tornou muito próximo. Nos frequentamos durante uns dois, três anos de uma forma muito intensa. Eu ia muito à casa dele, ele ia muito à minha, nós saíamos pra almoçar, jantar em restaurantes. Ele reunia toda uma turma: jornalistas, amigos, colegas dele, atrizes, atores, músicos, gente de cinema, político; todo um mundo amplo diverso do campo de relacionamento dele. E eu acabei sendo uma daquelas pessoas do círculo relacional dele. Ele era muito amável, muito bem-humorado, muito inteligente, muito perspicaz, muito agudo na coisa do cortejar as meninas, tendo algumas das minhas canções da época sido suscitadas pelo modo romantizado dele.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Academia
Gilberto Gil
A cada epidemia
A cada epica-tragi-cômica mania
De abusar o mudo
Absurdo e cego
Querer que o mundo recite poesia
Academia
A cada epidemia
A cada nova epidérmica mania
De querer mais tudo
Sobre mais que tudo
Como se tudo não fosse todo dia
Academia
A cada epidemia
A cada epidemia nova
Eu volto imediato pra Bahia
Abrir a porta para você
Gilberto Gil
É o que há de mais normal
E ainda assim lhe receber
É comungar, é um ritual
Tão rotineiro como o sol
Tão corriqueiro como o mal
Banal como qualquer prazer
E no entanto é com você
É por amor, é pura dor, é puro sal
Cada pitada é pra valer
Um pouco mais pode passar
Salgar a nossa refeição
Nossa afeição pode morrer
Nossa aflição, nos sufocar
Portanto deixe eu me benzer
Pedir a Deus pra iluminar
O corredor e o coração
Quando eu tiver de abrir a porta pra você
Gravação
Marília Gabriela – Marília Gabriela, 1983 – Opus Columbia/CBS
Abri a porta
Gilberto Gil
Dominguinhos
Apareci
A mais bonita
Sorriu pra mim
Naquele instante
Me convenci
O bom da vida
Vai prosseguir
Vai prosseguir
Vai dar pra lá do céu azul
Onde eu não sei
Lá onde a lei
Seja o amor
E usufruir do bem, do bom e do melhor
Seja comum
Pra qualquer um
Seja quem for
Abri a porta
Apareci
Isso é a vida
É a vida, sim
Gravações
A Cor do Som – Frutificar, 1978 – Warner Music
A Cor do Som – Geração Pop, 1978 – Warner Music
Dominguinhos – Nas Costas do Brasil, 1999 – Velas
Ito Moreno – Ito Moreno e Banda Clube do Forró, 2001 – Veleiro
Banda Plinta – Isso aqui tá bom demais, 2004 – Plinta Music/ Radar Records
Rastapé – Cantando A História do Forró (Ao vivo), 2005 – EMI Music
Priscila Castro e Beto Paiva – MPB Brasil, 2005 – Ultra Music
A Cor do Som – A Cor do Som Acústico, 2006 – Performance Be Record
Gilberto Gil – Duetos 2, 2008 – Warner Music
Quinteto Violado e Cézinha – Quinteto Violado Canta Dominguinhos, 2015 – Atração Fonográfica
Sandro Haick – Forró do Haick Vol. 1, 2016 – Eldorado
Flávia Bittencourt – Todo Domingos, 2017 – Flavia Bittencourt
Waldonys – Waldonys (Ao vivo), 2017 – Waldonys
A Cor do Som e Gilberto Gil – A Cor do Som 40 Anos, 2018 – A Cor do Som
Sandro Haick e Luciano Magno – Viva Dominguinhos (Instrumental), 2019 – Canal 3 Distribuidora
Trio Nordestino – Trio nordestino canta Gilberto Gil, 2020 – Biscoito Fino
Zezo – O Príncipe dos Teclados, Vol. 13, 2020 – Gema Produtora
Elba Ramalho e Toni Garrido – Elba Ramalho No Maior São João do Mundo (Ao vivo), 2022 – Deck
Comentário*
Eu estava na casa de Caetano, na rua Peri, no Jardim Botânico, na mesma ocasião da composição de “Super-Homem — A canção”, quando fiz “Abri a porta”. A canção não teve uma musa; eu tinha mesmo que escrever a letra para a música de Dominguinhos e escrevi. “Abri a porta”, o primeiro verso que saiu e que puxou o resto, já apresenta uma imagem propiciatória; já dá uma ideia de que “alguma coisa começou, vamos entrar nessa história”; é uma maneira de fazer entrar na história. A letra, toda, possui um sentido econômico, nas frases pequenas, minimalistas, feitas de acordo com a própria música, pela exigência do compromisso métrico da música. É bem-sucedida.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Abra o Olho
Gilberto Gil
Ele disse: “abra o olho”
Caiu aquela gota de colírio
Eu vi o espelho
Ele disse: “abra o olho”
Eu perguntei como é que andava o mundo
Ele disse: “abra o olho”
O telefone tocou
Soando como um grilo de verdade
Eu ouvi o grilo
Ouvi o grilo cantando
Tava eu no mato de novo
No mato sem cachorro
Eu pensei: “tá direito?”
Que eu nunca tive cachorro ao meu lado
Ele disse: “abra o olho”
Eu disse: “aberto”, aí vi tudo longe
Ele disse: “perto”
Eu disse: “está certo”
Ele disse: “está tudinho errado”
Eu falei: “tá direito”
Eu falei: “tá direito”
Tudo numa gota de colírio
Ele disse: “é delírio
Navegar nas águas de um espelho”
“Meu nego, abra o olho”
Ele disse: “abra o olho”
Ele disse: “abra o olho”
Com aquela sua voz suave, amiga e franca
Eu falei “tá direito” de olho fechado e gritei:
“Viva Pelé do pé preto
Viva Zagallo da cabeça branca”
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao Vivo, 1974 – Polygram
Lanny Gordin – Lanny Duos, 2007 – Participação Gilberto Gil – Barravento
Peu Meurray – Pneumaticamente falando, 2012 – Odò Produção Cultural
Comentário*
“Sou eu pondo colírio nos olhos depois de ter fumado um cigarro de maconha, em Manaus. O hotel ficava fora da cidade, no meio do mato. Fui ao espelho, vi meus olhos vermelhos, pus colírio e fiz a música. Um diálogo de mim pra mim. O ‘ele’ é ‘o outro’, o outro eu, o do espelho. Um pingue-pongue-bumerangue: você joga pra atingir o que está lá, a seta volta e lhe atinge. Pelé e Zagallo dão o sentido de contradição e complementaridade yin-yang; um é África, o outro, Europa.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Aboio
Gilberto Gil
Capinan
Meu povo, tome coragem
Se aventure, se levante
Na arribação deste boi
Se aproxime dos apelos
E chamamento
Do canto do boiadeiro, oi
Levanta, meu companheiro
Boi Fulorô e Judeu
Levanta, Maracajá
Boi Estrela, Boi Espaço
Boi da serenidade
Da vida que Deus me deu
Ecô
Levanta, meu Boi Remanso
Desencantado e Chuvisco
Boi Cigano e Desengano
Levanta, Boi Alegria
Acorda, meu Boi Canário
Nas veredas do perigo
Ecô
Ramalhete e Nuvem Escura
Flor de maio e de janeiro
Bondade de meu sentido
Menina de meu desejo
Silêncio dos cemitérios
Do sofrer do boiadeiro
Ecô
Minha santa e namorada
Companheirinho da sede
Dou-te pão, cerveja e mel
Te dou água e te dou leite
Levanta, Boi Operário
Estrela D’Alva do céu
Ecô
No desespero do mundo
Acorda, meu coração
Levanta, Boi Valoroso
Levanta, meu Boi Desordem
Pra viver o teu destino
De martírio ou salvação
Ecô
A Vida de Um Casal
Gilberto Gil
Que não se acaba nunca de subir
Degrau após degrau, longa escalada
E o medo permanente de cair
O casamento é vento que não para
Às vezes brisa leve e pouca mágoa
Às vezes tempestade em copo d’água
Que a gente não consegue resistir
Pra conjugar o conjugal
Do verbo amar o essencial
Está na primeira pessoa do plural
Aval incondicional
E a adesão quase total
De uma pessoa a outra pessoa no final
Para seguir a vida a dois
Ou três ou quatro pessoinhas
Que virão depois no verbo procriar
A vida de um casal
Escada que não para de subir
Degrau após degrau
E nunca vai chegar ao céu
Que o céu já não tem mais lugar
Pra mais nenhum mortal
O céu real nós vamos construindo aqui no chão
Porção de sofrimento, tijolo, cimento e cal
A laje do bem, no lamaçal do mal
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
Uma canção que eu fiz pra mim mesmo. Que saiu assim das minhas elucubrações a respeito de relações humanas e amorosas, afetivas, e o casamento, essa instituição tão polêmica. Aí vem uma série de versos que vão tentando descrever as sensações, os pensamentos, as reflexões sobre a questão, sobre esse ato humano, partindo da metáfora da escada pra vida a dois. Do medo, que é um dos fatores desestabilizadores, por um lado, mas estabilizadores, por outro, das relações amorosas que se querem permanentes. Segue-se, na segunda estrofe, uma associação à natureza, nas imagens do vento, da brisa, da tempestade. Enfim, é desenvolvida a metáfora do casamento como construção mesmo, que se dá um dia após o outro, feita de empenho, desejo renovado, compromisso renovado. Da renovação que a permanência do casamento exige.
“A vida de um casal” foi feita na mesma época das canções para o disco Giro, da Roberta Sá, um pouco antes de eu ter feito “Afogamento”, só que não era uma canção pra ela. “Afogamento” foi, assim como tantas outras que a gente fez pro Giro. Essa eu fiz pra mim. Quando ela ouviu, quis gravar.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A última valsa
Gilberto Gil
Rogério Duarte
Me alça
No astral
A espiral é de fumaça
E o pensamento é de cristal
A última coisa bonita
Gilberto Gil
Que possa lhe prender
Não há mesmo amor
Pra lhe fazer ficar
Você não pode ser
A mim não pode dar
Amor inteiro
A vida inteira
E agora vai embora assim
Sem dor, sem nem deixar eu ver
Saudades em seu olhar
Sem nem dizer adeus
Que era a última coisa bonita
Que você podia me deixar
A sociedade afluente
Gilberto Gil
Depois que todos comeram
Depois que os pratos sujaram
Depois que os copos secaram
Depois que os discos tocaram
Depois que todos já foram
Ainda a lata do lixo
Pra pôr na porta da rua
Que amanhã é outro dia
Como todo e qualquer dia
Dia da Limpeza Pública
Mandar seu carro alegórico
Recolher nosso tributo
Bem cedo, antes que os detritos
Da banheira e da cozinha
Encham os olhos da vizinha
E ela coma do presunto
Que ficou na geladeira
Muito mais de uma semana
No final da noite
Depois que todos comeram
Depois que os pratos sujaram
Depois que os copos secaram
Depois que os discos desceram
Depois que todos já foram
Ainda a lata do lixo
Pra pôr na porta da rua
Gravação
Gilberto Gil – O Viramundo, 1976 – Gege
Comentário*
“Houve uma época em que se falava em ‘sociedades afluentes’, uma expressão que antecipa o que veio depois a ser chamado de sociedade pós-moderna; uma expressão para designar as sociedades de ascensão das grandes classes médias urbanas, modernas, consumistas – não só de bens materiais, como também de bens simbólicos novos, de novas formas de direito e de cidadania; sociedades de consumo com considerável grau de distribuição de renda, de um consumismo autorreferente como forma de qualificação de vida; com nova arquitetura e novas formas de urbanismo… Depois o termo entrou um pouco em desuso.
Hoje em dia eu ainda associo muito a expressão ‘afluente’ à expressão ‘pós-moderna’. É na sociedade afluente que aparecem os primeiros grandes sintomas da fragmentação pós-moderna, que veio a dar os motes para a cunhagem dessa expressão.
A música exprime a ideia da uma cidade que se encontra articulada através de símbolos como o fast-food, através do consumo de bens acessíveis às grandes massas – sociedade afluente é a sociedade da cultura de massa, produtora de lixo, os resíduos sólidos da vida moderna. Esse sentido de sociedade afluente como consumidora e produtora da desqualidade, da não qualidade, da quantidade pura, da qual o lixo é o principal centro, é a quantidade desqualificada, é o produto já sem a qualidade, a qualidade já foi consumida, só ficou o resto… ‘Sociedade Afluente’ foi composta no Rio.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A rua
Gilberto Gil
Torquato Neto
Tem seu leito de água clara
Por onde passa a memória
Lembrando histórias de um tempo
Que não acaba
De uma rua, de uma rua
Eu lembro agora
Que o tempo, ninguém mais
Ninguém mais canta
Muito embora de cirandas
(Oi, de cirandas)
E de meninos correndo
Atrás de bandas
Atrás de bandas que passavam
Como o rio Parnaíba
Rio manso
Passava no fim da rua
E molhava seus lajedos
Onde a noite refletia
O brilho manso
O tempo claro da lua
Ê, São João, ê, Pacatuba
Ê, rua do Barrocão
Ê, Parnaíba passando
Separando a minha rua
Das outras, do Maranhão
De longe pensando nela
Meu coração de menino
Bate forte como um sino
Que anuncia procissão
Ê, minha rua, meu povo
Ê, gente que mal nasceu
Das Dores, que morreu cedo
Luzia, que se perdeu
Macapreto, Zé Velhinho
Esse menino crescido
Que tem o peito ferido
Anda vivo, não morreu
Ê, Pacatuba
Meu tempo de brincar já foi-se embora
Ê, Parnaíba
Passando pela rua até agora
Agora por aqui estou com vontade
E eu volto pra matar esta saudade
Ê, São João, ê, Pacatuba
Ê, rua do Barrocão
A raça humana
Gilberto Gil
Uma semana
Do trabalho de Deus
A raça humana é a ferida acesa
Uma beleza, uma podridão
O fogo eterno e a morte
A morte e a ressurreição
A raça humana é
Uma semana
Do trabalho de Deus
A raça humana é o cristal de lágrima
Da lavra da solidão
Da mina, cujo mapa
Traz na palma da mão
A raça humana é
Uma semana
Do trabalho de Deus
A raça humana risca, rabisca, pinta
A tinta, a lápis, carvão ou giz
O rosto da saudade
Que traz do Gênesis
Dessa semana santa
Entre parênteses
Desse divino oásis
Da grande apoteose
Da perfeição divina
Na Grande Síntese
A raça humana é
Uma semana
Do trabalho de Deus
Gravação
Gilberto Gil – Raça Humana, 1984 – Warner Music
Comentário*
A música foi feita após uma estada de Gilberto Gil em Israel, durante a qual visitou os locais bíblicos como o túmulo de Jesus, a casa de Lázaro e outros. “O mote – ‘a raça humana é uma semana do trabalho de Deus’ – surgiu em Tel-Aviv”, reporta o autor. “Ao voltar, elaborei a letra toda. A canção é a emanação das sensações vividas por mim naqueles lugares”.
– Às vezes, ao final de uma frase melódica que requer uma palavra oxítona também pode se justapor uma proparoxítona; o cantar faz a acentuação recair tanto na antepenúltima quanto na última sílaba. É o que acontece em A Raça Humana no verso que termina com “gênesis”, proporcionando o fenômeno rítmico com “giz”.
Gil: “Sem descaracterizar o acento gramatical e sem criar a sensação de problemas prosódicos. Porque, você quase não ouve o ‘sis’ da palavra, falada: a ênfase fica no ‘gê’; mas na música, você canta ‘gênesis’. Soa bem a incidência acentual nas duas sílabas. É a liberdade que só a música dá, de entoar diversamente.”
– Uma particularidade da poesia de música, porque esse tipo de rima só se efetua realmente, claramente, na melodia. E depois, mais abaixo, você ainda diz ‘parênteses’, rimando com ‘gênesis’ (e ‘giz’).
Gil: “Eu adorava essa expressão do Caetano Veloso, ‘ferida acesa’ [de Luz do Sol: “Marcha o homem sobre o chão/ Leva no coração uma ferida acesa”], e resolvi transpô-la, traduzi-la para o contexto de A Raça Humana. ‘Ferida acesa’: como se o pus fosse luz.”
– Luz e pus, beleza e podridão.
“A ideia é essa.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A paz
Gilberto Gil
João Donato
A paz
Invadiu o meu coração
De repente, me encheu de paz
Como se o vento de um tufão
Arrancasse meus pés do chão
Onde eu já não me enterro mais
A paz
Fez o mar da revolução
Invadir meu destino; a paz
Como aquela grande explosão
Uma bomba sobre o Japão
Fez nascer o Japão da paz
Eu pensei em mim
Eu pensei em ti
Eu chorei por nós
Que contradição
Só a guerra faz
Nosso amor em paz
Eu vim
Vim parar na beira do cais
Onde a estrada chegou ao fim
Onde o fim da tarde é lilás
Onde o mar arrebenta em mim
O lamento de tantos “ais”
© Gege Edições Musicais / © Acre Editora Musical LTDA.
Gravações
Zizi Possi – Amor & Música, 1987 – Universal Music
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
André Mehmari e Célio Barros – Prêmio Visa (Edição comemorativa: 10 anos de lançamento), 1998 – Gravadora Eldorado
Brazilian Tropical Orchestra – Plays Caetano, Gil e Djavan, 1999 – Movieplay Digital
Rosa Passos – Songbook João Donato, Vol. 3, 1999 – Lumiar Discos
João Bosco – Um barzinho, um violão 2 (Ao vivo), 2001 – Universal Music
Jarbas Tauryno – O Canto da Transformação, 2002 – Lua Music
Max Vianna – A Escrava Isaura (trilha sonora), 2004 – Record Music
Fabio Bortoleto – Coisas de novela, 2006 – Atração
Antonio Villeroy e Orquestra de Câmara Theatro São Pedro – Sinal dos Tempos (Ao vivo), 2006 – PIC Music
Gilberto Gil e João Donato – Duetos, 2007 – Warner Music
João Donato – O piano de João Donato, 2007 – Deckdisc
Paula Morelenbaum e João Donato – Água, 2011 – Biscoito Fino
Revelação – A luz das estrelas, 2014 – Universal Music
Rodrigo Braga – Piano Bar (Nacional 1), 2014 – Música Fabril
Cibele Codonho – Afinidade, 2016 – Eldorado
Gilberto Gil e Carolina Ferraz – Ação da Cidadania 25 Anos, 2018 – Biscoito Fino
Oswaldo Montenegro – Canto uma canção bonita, 2019 – Albatroz Brasil
João Donato – Donatural (Ao vivo), 2024 – Biscoito Fino
Comentário*
João Donato apareceu em casa um dia com uma fita com várias canções, todas chamadas “Leila” — “Leila 1, 2, 3, 4” — umas quinze ou dezesseis no total. Eu disse: “Deixa pra outro dia, hoje a gente não tem tempo…”. E ele: “Não, vá, apure aí, faça alguma coisa”. E começou a cochilar ao meu lado. A imagem dele dormindo sossegado, em plena luz do dia, me chamou a atenção para o sentido da paz. Me veio à lembrança o título do livro Guerra e paz, de Tolstói, e a letra foi sendo construída sobre essa contradição, reiterando minha insistência sobre o paradoxo.
Uma bomba sobre o Japão/Fez nascer o Japão da paz”, em “A paz”; “a luz nasce da escuridão”, em “Deixar você”; “minha religião é a luz na escuridão”, em “Minha ideologia, minha religião”, o canto de abertura do disco Dia dorim noite neon. Essa é a recorrência básica no meu trabalho: yin e yang, noite e dia, sim e não, permanência e transcendência, realidade e virtualidade: a polaridade criativa (e criadora). “Pois eu sou e Deus é/ E disso é que resulta toda a criação”, como diz uma outra música minha, “É”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A novidade
Gilberto Gil
Bi Ribeiro
Herbert Vianna
João Barone
Na qualidade rara de sereia
Metade, o busto de uma deusa maia
Metade, um grande rabo de baleia
A novidade era o máximo
Do paradoxo estendido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Outros a desejar seu rabo pra ceia
Ó, mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ó, de um lado este carnaval
Do outro a fome total
E a novidade que seria um sonho
O milagre risonho da sereia
Virava um pesadelo tão medonho
Ali naquela praia, ali na areia
A novidade era a guerra
Entre o feliz poeta e o esfomeado
Estraçalhando uma sereia bonita
Despedaçando o sonho pra cada lado
Ó, mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ó, de um lado este carnaval
Do outro a fome total
Gravações
Os Paralamas do Sucesso – Selvagem?, 1986 – EMI Music Brasil
Os Paralamas do Sucesso – D, 1987 – EMI Records Brasil
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Waner Music
Os Paralamas do Sucesso – Vamo batê lata, 1995 – EMI Music Brasil
Gilberto Gil – Quanta gente veio ver (Ao vivo), 1998 – Gege
Chama Chuva – Forró Chama Chuva, 2001 – EMI Music
Biquini Cavadão – 80, 2001 – Universal Music
Gilberto Gil – Kaya n’gan daya (Ao vivo), 2003 – Warner Music
Cidade Negra – Cidade Negra, 2006 – Sony BMG
Os Paralamas do Sucesso e Titãs – Paralamas e Titãs juntos e ao vivo, 2008 – Planmusic
Gilberto Gil, Ivete Sangalo e Caetano Veloso – Especial Ivete, Gil e Caetano, 2012 – TV Globo
Os Paralamas do Sucesso – Multishow Ao Vivo, 2014 – Mangaba Produções Artísticas Ltda
Comentário*
Gilberto Gil estava em Florianópolis quando Herbert Vianna ligou pra ele e lhe pediu para pôr letra na única música que faltava para fechar o disco (Selvagem) que os Paralamas do Sucesso estavam terminando de gravar. Logo, Herbert mandava via sedex a gravação instrumental da música, que Gil retirou no correio.
Gil: “Fui pro hotel e botei a fita no gravador. Depois de umas quatro passadas, saí anotando. Eram mais ou menos duas da tarde. Às três horas eu estava ligando pro estúdio já para passar a letra. Foi uma coisa assim: bum! A letra veio como um tiro certeiro, absolutamente de chofre, inteira. E de um modo surpreendente até pra mim, porque, mesmo sem tempo pra qualquer avaliação crítica no dia seguinte, resultou no que eu acho um dos meus melhores textos – pela escolha e pela maneira de tratar o assunto, pela concisão e pela elegância da construção.”
Um estímulo visual… – “O quarto do hotel dava para o mar, e eu estava escrevendo na mesinha de frente para a janela, com a visão do mar ao fundo. Daí a ideia da sereia que vinha dar à praia.”
… e outro, sonoro – “Algumas sílabas no início do cantarolar do Herbert na fita me insinuaram algo que soava como a palavra ‘novidade’, e eu aproveitei essa sugestão sonora. O restante veio por acaso mesmo.”
Riqueza versus miséria – “O tema da desigualdade sempre fez parte do modo de inserção da minha geração na discussão dos problemas da sociedade; do nosso desejo de expressá-los. Universitário por excelência, o tema é portanto anterior e recorrente em meu trabalho. Está em Roda, em Procissão, em Barracos. Agora, em A Novidade, a imagem da sereia é que dá a partida para o tratamento da questão; a novidade é essa. Pode-se imediatamente pensar no Brasil, mas é sobre o Terceiro Mundo em geral; mais: sobre todo o ‘mundo tão desigual’, mesmo, de que fala o refrão.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A notícia
Gilberto Gil
Que trouxe a notícia
Que o meu amor tinha morrido
Teria sido encontrado
Coração varado
Por flechas de algum cupido
Novo bandido talvez contratado
Por alguém bem interessado
Na minha solidão
Minha desilusão
Na vaga aberta na minha paixão
Tramaram tudo
De forma perfeita
Aproveitaram a estação
Insuspeita:
O verão
– Provavelmente um cupido de cara morena
De voz tão serena –
E o luar
Sabiam que ela gostava da praia
Não há quem não caia
Seu coração caiu
Sob as flechadas desse bandido
Cupido
E a polícia, que passava, viu
Foi a polícia
Que trouxe a notícia
E agora alguém deve estar pronto
Agradecendo, sorrindo
Pagando ao cupido
Saindo
Ao meu encontro
Rei morto, rei posto
Devo estar disposto
A conhecer o interessado
Na minha solidão
Minha desilusão
Na vaga aberta na minha paixão
Gravações
Maria Bethânia – Ciclo, 1983 – Philips
Wando – Coisa cristalina, 2017 – Discobertas
Comentário*
Essa foi uma daquelas canções às quais me refiro [no comentário sobre “Plateia”] que eu mandei pra Bethânia, uma das quatro ou cinco daquela fornada, entre as quais “Plateia”, e eu me lembro que ela escolheu essa, “A notícia”. Quem é louca por essa música — cantou em shows — é a nossa gauchinha, Adriana Calcanhotto.
Eu tenho coisas aqui e ali, que eu nem cheguei a terminar, que juntavam fantasia e realidade. “tv Punk”, por exemplo, é um pouco assim. Mas eu acho que com um enredo desse, de “A notícia”, não. Por causa da inserção dos elementos que vêm da vida real pra uma história incrível. A polícia no meio de um caso de paixão, vindo com a notícia sobre uma ação fictícia. O criminoso é Cupido, que mata o amor com uma flechada. O Cupido é um desses assassinos de aluguel. Ele é pago por alguém pra matar o amor, pra abrir a vaga no coração de uma pessoa [a primeira, da canção]. Quer dizer, é uma encomenda. A trama é muito louca. Ao mesmo tempo remonta às histórias de crimes encomendados e tão frequentes nas grandes cidades do Brasil, como o Rio de Janeiro. A canção aproveita essas lembranças do mundo real pra criar uma trama criminosa no mundo da fantasia, com personagens do mundo fantástico, como o Cupido.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A mulher que eu sou
Gilberto Gil
Ruy Guerra
A morte
Gilberto Gil
Não precisa do nosso chamado
Recado
Pra chegar
Ociosas, oh sim
As rainhas são quase sempre prontas
Ao chamado dos súditos
Súbito colapso
Pode ser a forma da morte chegar
Não precisa de muito cuidado
Ela mesma se cuida
É rainha que reina sozinha
Não precisa do nosso chamado
Medo
Pra chegar
Gravação
Jards Macalé – Jards Macalé, 1972 – Universal Music
Comentário*
“O esoterismo implica a concepção inclusiva da morte; a morte não exclui nada, a morte está incluída; ela é fechamento de ciclo; a ideia de que não há vida sem morte; de que tudo que nasce, morre; tudo que tem um começo, tem um fim; toda face tem um dorso. Do equilíbrio com a relação dinâmica da permanência da interação dos opostos: a morte é um desses opostos; então, não há vida sem morte, nem morte sem vida. Pelo menos no campo da camisa de força da dualidade – a superação do dual oferecida, sugerida pelos sábios, pelos santos.
Compus essa música em Londres, quando eu voltei para lá, em 72, para arrumar as coisas para regressar ao Brasil em definitivo. Ela veio de um daqueles insights, uma daquelas emanações de sentimento profundo que dão um pensamento. A canção faz uma associação interessante da morte com as rainhas ociosas, e dos seus súditos com a gente.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A mão direita
Gilberto Gil
Torquato Neto
A mão da limpeza
Gilberto Gil
Quando não suja na entrada
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Que mentira danada, ê
Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o negro penava, ê
Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza
Negra é a vida consumida ao pé do fogão
Negra é a mão
Nos preparando a mesa
Limpando as manchas do mundo com água e sabão
Negra é a mão
De imaculada nobreza
Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
Eta branco sujão
Gravação
Gilberto Gil – Raça humana, 1984 – Warner Music
Comentário*
“Eu fiz A Mão da Limpeza para repor certas coisas no lugar e remendar um preconceito histórico contra os negros; para responder, no mesmo tom, um desaforo – o velho ditado: ‘Negro, quando não suja na entrada, suja na saída.’
“Ocorriam-me imagens de lavadeiras lavando roupa nas beiras de rios, inúmeros, por que eu passei no interior da Bahia e outros lugares; de cozinheiras negras, jovens e velhas, espalhadas pelas cozinhas do Brasil; de várias faxineiras limpando as casas. Ocorria-me com muita nitidez o quão acionados e quão importantes são os negros para o trabalho de limpeza em geral que é feito na vida, e também com tamanha nitidez o quão sujadores são exatamente os que têm mais recursos, os mais ricos, os mais beneficiados da sociedade que, em sua grande maioria, correspondem à classe mais clara, a faixa mais branca.
“Quer dizer, os negros são tão maciçamente empenhados na função da limpeza da comunidade e acabam sendo acusados de ser os sujões. No fundo, o provérbio tem uma conotação nitidamente moral, além de física; o que se tenta considerar como sujo no negro é sua existência, sua pessoa, sua condição humana. Nesse sentido é muito mais terrível, e a música nem alcança a dimensão da crítica disso; ela apenas toca nisso.
“Mas jogando a sujeira como algo produzido preferencialmente pelos brancos, ela faz a limpeza da nódoa que quiseram impor aos negros. E deixa implícita também uma condenação moral aos brancos. Ou seja: ‘Sujos na verdade são vocês, de corpo e alma; pelo menos, mais sujos que os negros vocês são. Há muito mais sujeira a apurar ao longo do processo da civilização de vocês do que da nossa.’ É o que a música diz. E ela diz o que tem a dizer, com contundência e eficácia.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A luz e a escuridão
Gilberto Gil
Dos mistérios do universo
A luz e a escuridão
Fazem par, verso e reverso
Dos percursos da visão
A luz que corta qual faca
Afiada e bem precisa
E a escuridão, faca cega
Que só apalpa e alisa
A luz e a escuridão
As duas irmãs babaças
Uma diz sim e outra não
E ambas fazem suas graças
Aqui estão três irmãs
A quem a luz disse não
E a escuridão disse sim
Acendendo a inspiração
Oh, vida de tanto enredo
De tantas contradições
Aqui estão olhos que veem
Pela luz dos corações
Ali, onde o olhar é oco
É a voz da luz que fala
Luz das ceguinhas do coco
Iluminando esta sala
Gravação
Gilberto Gil – A pessoa é para o que nasce (trilha sonora do filme), 2005 – Tratore
Comentário*
Uma canção pra um filme sobre as velhinhas cegas, feita quando elas participaram do [festival] PercPan, que eu dirigia com o Naná Vasconcelos. O cineasta Roberto Berliner tinha feito um filme com elas e me solicitado uma música. Eu aproveitei e fiz essa homenagem a elas, recepcionando-as no palco do Castro Alves com essa canção. Um dos versos fala: “Luz das ceguinhas do coco/ Iluminando esta sala”. É isto: elas três sentadinhas ali no palco, já diante daquela plateia, e eu introduzindo-as, fazendo essa cantiga de boas-vindas pra elas. Que é muito explícita nesse aspecto; direta.
Poético-filosófica também. Você aproveita pra tratar de luz e escuridão: é seu campo, seu terreno, sua praia. — Exatamente. O poetar é razoavelmente interessante. “A luz que corta qual faca/ Afiada e bem precisa/ E a escuridão, faca cega/ Que só apalpa e alisa”. Isso parece João Cabral. — Parece mesmo.
Por essas comparações, essas analogias que ele faz. Aqui você associa luz e escuridão com faca; duas facas diferentes. — A escuridão com “faca cega”, a expressão pra faca que perde o corte. “Que só apalpa e alisa”.
É de fato cabralina essa quadra. — Uma lâmina que não fere, uma lâmina sem…
Aí já nos lembramos do livro Uma faca só lâmina, do Cabral.
— Sim. É bem possível que lá no fundo, na hora, tivesse um residuozinho qualquer da memória desse poema dele.
Muito original o emprego desta palavra que eu nunca vi numa canção: “mabaças” (gêmeas). — E bonita a estrofe também “A luz e a escuridão/As duas irmãs mabaças/ Uma diz sim, a outra não/ E ambas fazem suas graças”. A escuridão, no caso, é a delas, dos olhos delas, e a graça, a do encanto, da capacidade de cantar e versejar, da inspiração das irmãs. Nem sei o que é feito delas…
Num vídeo no YouTube, você conta que compôs a canção enquanto esperava a chegada delas, que atrasaram, e aí você aproveitou para fazer alguma coisa pra recepcioná-las. — A ideia da canção é exatamente isso: ser uma canção de recepção. Aí você a mostrou pro Naná, que gostou… — Foi.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A luta contra a lata ou A falência do café
Gilberto Gil
O barulho que vocês estão ouvindo é um barulho de latas!
De latas! Eu disse: “Latas! Latas!”
O exército de latas mil do inimigo
Tomou de assalto as prateleiras e os balcões
Em nome das plebéias chaminés plantadas
Em nossos quintais
Palavras proferidas por um velho dono
De terras roxas de uma vasta região
Em nome das grã-finas tradições plantadas
Em seu coração
(Café! Café! Café! Café!)
Chaminés plantadas nos quintais do mundo
As latas tomam conta dos balcões
Navios de café calafetados
Já não passeiam portos por ai
Rasgados velhos sacos de aninhagem
A grã-finagem limpa seus brasões
Protege com seus sacos de aninhagem
Velha linhagem de quatrocentões
Os sacos de aninhagem já não dão
A queima das fazendas também não
As latas tomam conta do balcão
Vivemos dias de rebelião
Enlate o seu café queimado
Enlate o seu café solúvel
Enlate o seu café soçaite
Enlate os restos do barão
A lata luta com mais forças
Adeus, elite do café
Enlate o seu café solúvel
Enquanto dá pé
Gravação
Gilberto Gil e Os Mutantes – Tropicália, Millennium, 1998 – Universal Music
Comentário*
“Essa canção desdobra a lógica da música de protesto que vinha da fase pré-tropicalista, anterior, incluindo signos de composição, de decupagem, de montagem, de edição, típicos da fase tropicalista. Faz uma crítica direta, territorializada no campo da alta burguesia paulista, aos barões do café; aos resíduos de aristocracia descurada, descaracterizada já, paulista, quatrocentona, na segunda metade do século 20, àqueles resíduos já macilentos da aristocracia do café, sendo tudo isso figurado com a imagem dos sacos de aniagem que se desfazem, pela capacidade que eles têm de se esfarrapar, se desfazer, com o seu tecido provisório, improvisado, típico para ser apenas um invólucro rápido para o café ou o cacau. Uma crítica à burguesia ainda semi-aristocratizada, já dominada pela lata, já sujeita à nova lógica produtiva da indústria moderna, mas ainda vivendo sentimentos de altivez e de soberba da aristocracia antiga.
– Para um tropicalista, um prato cheio.
Gil: Uma xícara cheia…
– Uma lata cheia…
Gil: Uma lata cheia de muitas xícaras…
– Cheias de ironia, de sarcasmo mesmo.
Gil: De sarcasmo.
A ideia do café solúvel como uma grande ameaça: no momento em que o café se tornou solúvel, se tornou enlatável, acabou-se o reinado da saca de café. É uma maneira de associar estágios tecnológicos – formas de produção – aos estágios sociológicos. A música quer fazer essa associação: o saco de aniagem estava para a aristocracia, assim como a lata está para a burguesia. Dá conta da luta interna, transcorrendo no próprio extrato, na própria cripta social, das elites: da luta das elites, com a superação da aristocracia pela burguesia. Quanto ao proletariado, é como se ele estivesse ironicamente do lado, afastado de braços cruzados, vendo a burguesia apunhalando a aristocracia…
Quanto ao jogo aliterativo de trechos da letra (‘Café calafetados’, ‘a lata luta/ elite/ enlate’) que, sonoramente tão carregado, aparece pioneiramente em sua obra – São procedimentos tropicalistas ligados já à poesia concreta. Estímulos novos trazidos pelo concretismo.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A linha e o linho
Gilberto Gil
Como se eu fosse o pano e você fosse a linha
E a agulha do real nas mãos da fantasia
Fosse bordando, ponto a ponto, nosso dia-a-dia
E fosse aparecendo aos poucos nosso amor
Os nossos sentimentos loucos, nosso amor
O ziguezague do tormento, as cores da alegria
A curva generosa da compreensão
Formando a pétala da rosa da paixão
A sua vida, o meu caminho, nosso amor
Você a linha, e eu o linho, nosso amor
Nossa colcha de cama, nossa toalha de mesa
Reproduzidos no bordado a casa, a estrada, a correnteza
O sol, a ave, a árvore, o ninho da beleza
Gravações
Gilberto Gil – Extra, 1983 – Warner Music
Gal Costa e Marco Pereira – Songbook Gilberto Gil, Vol. 1, 1992 – Lumiar Discos
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Gilberto Gil e Arthur Moreira Lima – MPB Piano Collection, 1999 – Sony Music
Gilberto Gil – Eletroacustico (Ao vivo), 2004 – Warner Music
Andréa Dutra e Marcus Nabuco – O amor de uns tempos pra cá, 2008 – Soladesom
Zé Mauricio – Além da razão, 2008 – Gionva Serviços Ltda
Gilberto Gil – Bandadois (Ao vivo), 2009 – Gege
Diogo Poças – Tempo, 2009 – Warner Music
Gilberto Gil e Lenine – Gil + 10, 2011 – Pedra da Gávea
Gilberto Gil, Ivete Sangalo e Caetano Veloso – Especial Ivete, Gil e Caetano, 2012 – TV Globo
Carla Bezerra – Meu amanhã, 2014 – Carla Bezerra [dist. Tratore]
Joana D’ Arc – Com o som no coração, 2015 – Tribo Records
Mauro Senise – Amor até o fim: Mauro Senise toca Gilberto Gil, 2016 – Fina Flor
Comentário*
Na vida a dois, a pessoalização do amor; o êxtase pré-samádico; nas gradações religiosas, um estágio no qual, ainda em corpo, tem-se a dimensão divina; um ponto onde humano e sobre-humano superpõem-se.
Nós estávamos em Paris, no Hotel Meurice, onde Hitler havia feito o seu quartel-general quando da ocupação, e onde também saiu “Extra” na mesma ocasião. Flora tinha acabado de adormecer; ainda a acariciei um pouco e já estava entrando num estado de torpor quase sonho, quando me chegaram as primeiras frases. Havia a maciez da pele dela, a do tecido do lençol e os bordados na colcha — todos os elementos; minha sensação era de leveza, paixão e afeto. Aquelas palavras ficaram como que boiando num éter, e eu já tinha me deitado, mas resolvi me levantar e completar a letra toda. No final ainda me lembrei da minha mãe e da minha avó bordando nos panos os motivos que eu cito. Dias depois fiz a música.
Recentemente, eu recebi de uma família de bordadeiras, mãe e filhas, de Três Marias, interior de Minas, um lenço bordado junto com uma carta de agradecimento pela canção. No lenço, a inscrição “A linha e o linho”. Para mim foi instigante o fato de, nesses dois substantivos, apenas o o e o a finais os diferenciarem, determinando também a diferença dos sexos. E propiciando que um momento tocante, especial, se transformasse em poesia, como num lance de ilusionismo, prestidigitação.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A jovem vizinha
Gilberto Gil
Pena que ela ache tão estranha minha maneira de ser
Ser do meu jeito, bem que ela queria
Pena que a vontade foi tão reprimida que não dá mais pé
Porque ela pensa que a culpa é minha
Da natureza ter espalhado a vida por aí
Mas tudo é só porque ela está sozinha
Com grilos e grilhões que a mãe deixou antes de sair
Às compras
Eu também gosto da mãe da vizinha
Pena que ela faça uma ideia tão errada de Jesus
Parece até que ela não adivinha
Que não foi exatamente por ser como ela é
Que o mestre foi parar na cruz
Que não foi exatamente por dizer o que ela diz
Que o mestre foi parar na cruz
Que não foi exatamente por fazer como ela faz
Que o mestre foi parar na cruz
Gravação
Sérgio Sá – Fora de prumo, 1984 – Warner Music
A gaivota
Gilberto Gil
De asas paradas
Voando no sonho
D’aguas da lagoa
Gaivota querida
Voa numa boa
Que o vento segura
Voa numa boa
Gaivota na ilha
Sem noção da milha
Ficou longe a terra
Gaivota menina
Gaivota querida
Voa numa boa
Que o alento segura
Voa numa boa
Gaivota, te amo e gaivotaria sempre em ti
Gaivotar seria poder te eleger para mim
Eu te quero, e se fosse o caso, quereria mais ainda
Ser, eu mesmo, gaivota sobre mim
Sobrevoar meus temores, meus amores
E alcançar o alto, alto, o mais alto dos teus sonhos
Dos teus sonhos de subir
De subir aos ares
Gaivota querida
Gaivota menina
Pousa perto de mim
Gravações
Ney Matogrosso – Bandido, 1976 – Continental
Gilberto Gil – O viramundo ao vivo, 1998 – Polygram
Gilberto Gil – E- collection disco 2, 2000 – Warner Music
Gilberto Gil – Série sem limite – cd 1, 2001 – Universal
Gilberto Gil – Refavela, 2002 – Warner Music
Gilberto Gil – Original álbum series (cd 4), 2012 – Warner Music
Ney Matogrosso – 70 anos, 2015 – Warner Music
Comentário*
Eu já tinha saído da cadeia propriamente dita, mas estava internado como determinação judicial, por causa da prisão por porte de maconha, em Florianópolis. Estava numa clínica, e as gaivotas eram muito presentes ali no dia-a-dia da gente; elas voavam sobre a Ilha e a Lagoa da Conceição, e um dia uma delas, voando, me inspirou a escrever uma canção.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A força secreta daquela alegria
Gilberto Gil
Jorge Mautner
Que me olha tão aflita
Que roseira bonita
Que me olha tão aflita
Pela chuva que não vem
Corro, pego o regador
Ela me olha com amor
Sabe o que lhe convém
Sabe o que lhe convém
Às vezes falo ao acaso
Com a samambaia de um vaso
Em cima da janela olhando a baía
Em cima da janela olhando a baía
Usamos telepatia
Falamos da vida
Sobre os amores das flores
E a força secreta daquela alegria
A fogueira
Gilberto Gil
A família no caminhão
Gilberto Gil
Capinan
Caetano Veloso
[instrumental]
“Brasil ano 2000”, FORMA/CIA 1969
A existência do sol
Gravação
Gilberto Gil – Um trem para as estrelas (filme de Cacá Diegues, 1987) – Globo/Som Livre
A faca e o queijo
Gilberto Gil
Que eu não lhe faço uma canção
Acha que a chama
A velha chama da paixão
Não nos inflama mais
Com tanto ardor
Como na época em que éramos
A faca e o queijo
A faca e o queijo
E o desejo tinha mãos
E as mãos, traquejo
No bom manejo da emoção
No jeito de tomar
No ato de cortar
No simples fato de juntar
A faca e o queijo
A gente ama
E o amor produz transformações
A velha chama
Acende novas ilusões
Com mãos bem mais sutis
Novos desejos
Vão tornando nossos beijos
Mais azuis, menos carmins
Você reclama
E eu sei que é só por reclamar
Como quem chama
Outra criança pra jogar
Seus jogos infantis
Ainda nos vejo como outrora
Faca e queijo, sim
Num tempo mais feliz
Gravações
Gilberto Gil – It’s good to be alive – anos 90, 2002 – Warner Music
Gilberto Gil – Banda larga cordel, 2008 – Warner Music
Comentário*
“Fiz essa canção no avião. Eu saí de Salvador para Brasília pela manhã, e escrevi as duas primeiras estrofes; voltando de Brasília à noite, no mesmo dia, para Salvador, eu escrevi as duas finais.
Fui fazendo só a letra, mas na verdade já pensando, vivendo a música silenciosa que estava ali – porque todo compositor que trabalha com letra e música, com os dois códigos, muitas vezes, quando está fazendo uma coisa, já está fazendo a outra. Então, enquanto eu escrevia os versos dessa canção no avião, na verdade a música de uma certa forma já estava ali, no silêncio; depois, as notas musicais que já estavam ali, eu então peguei em casa…
‘A faca e o queijo’ é uma canção sobre o amor maduro, o amor cujo fogo já é de uma chama azulada, de gás, de fogão a gás: quando já é o gás – uma substância mais sutil – que queima, não a lenha, nem o carvão, nem o petróleo, mas o gás em si: essas imagens de sutileza, que no fundo, no fundo, são o próprio mundo feérico do poeta. O poeta gosta do mundo onde pululam os entes leves, os entes sutis – isso constitui o próprio ideal do poeta; o poeta gosta quando esses mundos se insinuam, porque ele é identificado com a leveza: poesia é leveza, é delicadeza, mesmo quando ela está falando do peso bruto, da brutalidade; porque ela quer fazer com que o pesado voe.
(Eis por que eu adoro avião: porque eu acho o avião poético. Em determinados coisas a ciência e a tecnologia alcançam o nível poético: o avião é uma delas).
Uma canção de amor maduro: na aceitação da não volúpia e da sutilização da volúpia sexual, uma das vantagens que o homem velho vai tendo em relação aos outros. Uma das razões, também, de eu me referir ao envelhecimento como uma coisa prazerosa, ao invés do tom normalmente queixoso que a maior parte das referências à velhice têm.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A coisa mais linda que existe
Gilberto Gil
Torquato Neto
É sair por um segundo
E te encontrar por aí
E ficar sem compromisso
Pra fazer festa ou comício
Com você perto de mim
Na cidade em que me perco
Na praça em que me resolvo
Na noite da noite escura
É lindo ter junto ao corpo
Ternura de um corpo manso
Na noite da noite escura
A coisa mais linda que existe
É ter você perto de mim
O apartamento, o jornal
O pensamento, a navalha
A sorte que o vento espalha
Essa alegria, o perigo
Eu quero tudo contigo
Com você perto de mim
A ciência em si
Gilberto Gil
Arnaldo Antunes
Tende a que se entenda
E toda lenda
Quer chegar aqui
A ciência não se aprende
A ciência apreende
A ciência em si
Se toda estrela cadente
Cai pra fazer sentido
E todo mito
Quer ter carne aqui
A ciência não se ensina
A ciência insemina
A ciência em si
Se o que se pode ver, ouvir, pegar, medir, pesar
Do avião a jato ao jaboti
Desperta o que ainda não, não se pôde pensar
Do sono do eterno ao eterno devir
Como a órbita da terra abraça o vácuo devagar
Para alcançar o que já estava aqui
Se a crença quer se materializar
Tanto quanto a experiência quer se abstrair
A ciência não avança
A ciência alcança
A ciência em si
A bruxa de mentira
Gilberto Gil
João Donato
Bombom de rapadura
Saborosa figura
A bruxa de mentira
Não vejo a hora de ir
Na barraquinha comprar
Rapadoçura bombom
Bruxinha gostosura
A bruxa de mentira
Bombom de rapadura
Saborosa figura
A bruxa de mentira
Bombom de rapadura
Exdrúxula figura
Bruxinha gostosa
Neném rapadoçura
A abóbada da vida
Gilberto Gil
É a abóbada
Lá no alto da cabeça
De onde a alma brilha pendulada
Como um cristal num pingente
É a mente
É a mente atônita
Descendo e subindo a escada
Da coluna vertebral da gente
Tentando alcançar a abóbada
Da vida
É a vida abobalhada
Ilhada dentro do corpo
Notre Dame imaculada
Órgãos por todos os lados
Tocando música
E os olhos da vida em êxtase
Vendo a alma brilhar pendulada
Presa no alto da abóbada
Da vida
© Gege Edições Musicais
Gravações
A Cor do Som – E-collection, 2001 – Warner Music
Gilberto Gil – Teste, 2005 – Universal Music