Músicas
Extra 2 (O rock do segurança)
Gilberto Gil
Eu disse: “Nada de crachá, meu chapa
Eu sou um escrachado, um extra achado
Num galpão abandonado, nada de crachá
“Sei que o senhor é pago pra suspeitar
Mas eu estou acima de qualquer suspeita
Em meu planeta, todo povo me respeita
Sou tratado assim como um paxá
“Essa aparência
De um mero vagabundo é mera coincidência
Deve-se ao fato
De eu ter vindo ao seu mundo com a incumbência
De andar a terra
Saber por que o amor, saber por que a guerra
Olhar a cara
Da pessoa comum e da pessoa rara
“Um dia rico, um dia pobre, um dia no poder
Um dia chanceler, um dia sem comer
Coincidiu de hoje ser meu dia de mendigo
Meu amigo, se eu quisesse, eu entraria sem você me ver”
Gravações
Gilberto Gil – Raça humana, 1984 – Warner Music
Alceu Valença – Songbook Gilberto Gil, 1992 -Lumiar
Nego Alvaro – Cria do Samba, 2016 – Coqueiro Verde
Comentário*
A música foi feita em meia hora, na mesa de um quarto do Hotel Marina, no Rio, onde eu estava morando um tempo com Flora. Eu estava criando as canções do Raça humana (metade do disco era na linha rock brasileiro) e, uma noite, antes de sairmos pra jantar, fiquei fazendo um riff de rock e quis usar um mote ligado às vivências típicas do mundo do rock ‘n’ roll. Pensei então na situação dos seguranças barrando os fãs no ímpeto de entrar nos lugares onde estão os ídolos, e o impasse natural e necessário que se cria. A partir daí, as associações foram sendo feitas naturalmente por necessidade de criação do personagem, um et divino que vem como um homem simples, humilde — uma imagem cristã, a do Deus que encarna para se solidarizar com o ser humano. “Extra 2” dá sequência a “Extra”; lá, o et era epifânico, aqui ele é crístico, e na primeira pessoa: eu sou ele. Já é outra visão, influenciada pelo mito de que extraterrenos se disfarçam de humanos, por várias razões.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Extra
Gilberto Gil
Santo Salvador
Baixa
Seja como for
Acha
Nossa direção
Flecha
Nosso coração
Puxa
Pelo nosso amor
Racha
Os muros da prisão
Extra
Resta uma ilusão
Extra
Resta uma ilusão
Extra
Abra-se cadabra-se a prisão
Baixa
Cristo ou Oxalá
Baixa
Santo ou orixá
Rocha
Chuva, laser, gás
Bicho
Planta, tanto faz
Brecha
Faça-se abrir
Deixa
Nossa dor fugir
Extra
Entra por favor
Extra
Entra por favor
Extra
Abra-se cadabra-se o temor
Eu, tu e todos no mundo
No fundo, tememos por nosso futuro
ET e todos os santos, valei-nos
Livrai-nos desse tempo escuro
Gravações
Gilberto Gil – Extra, 1983 – Warner Music
Cidade Negra – Acústico Cidade Negra, 2002 – Sony Music
Gilberto Gil – Kaya n’gan daya (Ao vivo), 2003 – Warner Music
Gilberto Gil e BaianaSystem – Gil Baiana Ao Vivo em Salvador, 2020 – Gege e Máquina de Louco
Comentário*
A música foi inspirada pelo conjunto de referências da literatura que associava as aparições descritas na Bíblia (o anjo Gabriel, as carruagens de fogo) a seres extraterrenos e discos voadores. É, nesse sentido, tardia para mim, porque não corresponde ao momento do meu interesse profundo por essas coisas. Para mim, o assunto esteve mais em voga na década de 70, em Londres e na volta ao Brasil, na época do Refazenda, do general Uchôa e das reuniões de ufologia. “Extra” chegou, portanto, dez anos depois. É uma espécie de oração, de pedido de socorro, de invocação aos céus, na expectativa de que a vinda do et, assimilado a um santo, traga um melhoramento do ser humano e da vida no planeta Terra.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Êxtase
Gilberto Gil
“Brasil ano 2000”, vários, Universal Music
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
Expresso 2222
Gilberto Gil
Que parte direto de Bonsucesso pra depois
Começou a circular o Expresso 2222
Da Central do Brasil
Que parte direto de Bonsucesso
Pra depois do ano 2000
Dizem que tem muita gente de agora
Se adiantando, partindo pra lá
Pra 2001 e 2 e tempo afora
Até onde essa estrada do tempo vai dar
Do tempo vai dar
Do tempo vai dar, menina, do tempo vai
Segundo quem já andou no Expresso
Lá pelo ano 2000 fica a tal
Estação final do percurso-vida
Na terra-mãe concebida
De vento, de fogo, de água e sal
De água e sal
De água e sal
Ô, menina, de água e sal
Dizem que parece o bonde do morro
Do Corcovado daqui
Só que não se pega e entra e senta e anda
O trilho é feito um brilho que não tem fim
Oi, que não tem fim
Que não tem fim
Ô, menina, que não tem fim
Nunca se chega no Cristo concreto
De matéria ou qualquer coisa real
Depois de 2001 e 2 e tempo afora
O Cristo é como quem foi visto subindo ao céu
Subindo ao céu
Num véu de nuvem brilhante subindo ao céu
Gravações
Gilberto Gil – Live in London ’71, Vol. 2 (Ao Vivo), 1971 – Gege
Gilberto Gil – Expresso 2222, 1972 – Philips
Gilberto Gil – Back in Bahia (Ao Vivo), 1972 – Gege
Gilberto Gil – Ao Vivo na USP, 1973 – Gege
Gilberto Gil – O Viramundo, Vol. 1 (Ao Vivo), 1976 – Gege
Ana Belén – Ana En Rio, 1982 – Sony Music (Spain)
João Bosco – Songbook Gilberto Gil, Vol. 3, 1992 – Lumiar
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
João Bosco – Da licença meu senhor, 1995 – Sony Music
Armandinho Macedo – A voz do bandolim – Caetano e Gil, 2001 – Visom Digital
Marco Pereira – O samba da minha terra, 2004 – Marco Pereira
João Bosco – Maxximum, 2005 – Sony Music
Gilberto Gil – Bandadois (Ao Vivo), 2009 – Gege
Wilson Simonal – Um sorriso pra você, 2009 – Universal Music
Maria Bethânia – Noite Luzidia (Ao Vivo), 2012 – Biscoito Fino
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Dois Amigos, um Século de Música (Ao Vivo), 2015 -Gege e Uns Produções Artísticas
Daniela Mercury – Baile Barroco, 2015 – Páginas do Mar
Wilson Simonal – A Arte de Wilson Simonal, 2015 – Universal Music
Vanessa Moreno e Fi Maróstica – Cores Vivas: canções de Gilberto Gil, 2016 – Tratore
MPB 4 – Barra Pesada (Ao Vivo), 2019 – Discobertas
Gilberto Gil – Concerto de Cordas e Máquinas de Ritmo – Extra (Ao Vivo), 2020 – Biscoito Fino
Nicolas Krassik – Expresso 2222 (single), 2020 – Gege
Trio Nordestino – Canta Gilberto Gil, 2020 – Biscoito Fino
Caraivana – Caraivana toca Gil Ep. 1, 2021 – Tratore
Carlos Malta e Pife Muderno – Carlos Malta e Pife Muderno em Gils: Suíte Viramundo, 2022 – Deck
Comentário*
Um dia em Londres eu anotei num caderno: ‘Começou a circular o expresso 2222, que parte direto de Bonsucesso pra depois’ – e esse pra depois me suscitou imediatamente uma parada. Não tive o mínimo ímpeto de continuar nada; decidi deixar aquilo ali como um vinho, num barril de carvalho, pra envelhecer. Só quase um ano mais tarde, já em outra casa, peguei de novo o caderno (onde, além de versos, eu anotava recados telefônicos, bilhetes para Sandra), musiquei o que tinha escrito e, com o violão, fui fazendo o resto.
Por que 2222 – Da infância até a idade adulta eu fiz muita viagem de trem, que era um dos meios de transportes fundamentais para nós da Bahia. Os trens da Companhia Leste Brasileira – e outros – saindo e entrando nas estações, em Salvador, em Ituaçu, em Nazaré das Farinhas, me marcaram. Não sei por que cargas d’água, essa repetição do 2 era algo de que eu estava impregnado; alguma locomotiva, de número 222, que eu vi, ficou na minha cabeça e, quando comecei a letra, a primeira imagem que me veio foi dela.
As metáforas da canção – É evidente que a ideia de viagem, expressa na letra, está ligada às drogas, os modificadores e expansores de consciência da época. Era um tempo de muita maconha, LSD, mescalina; Londres vivia o auge dessa cultura. O expresso foi uma alegoria literal disso. E ‘Bonsucesso’ entrou porque era rima e, além disso, referência a um lugar de onde eu vinha, de onde a viagem poderia ter-se iniciado – o Brasil, o Rio de Janeiro, aquele bairro -, seguindo dali pra depois…
Vocativo funcional – A tal menina que aparece no meio da música é uma interlocutora fictícia, que só entrou para fazer a transição rítmica entre uma linha e outra, como um engate dos vagões de um trem, mas que ganhou personalidade e reapareceu na estrofe seguinte. Eu senti necessidade de chamá-la à cena de novo, de revê-la na próxima estação… Essas coisas malucas; o feitio de uma canção é uma loucura!
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Eu vim da Bahia
Gilberto Gil
Eu vim da Bahia cantar
Eu vim da Bahia contar
Tanta coisa bonita que tem
Na Bahia, que é meu lugar
Tem meu chão, tem meu céu, tem meu mar
A Bahia que vive pra dizer
Como é que se faz pra viver
Onde a gente não tem pra comer
Mas de fome não morre
Porque na Bahia tem mãe Iemanjá
De outro lado, o Senhor do Bonfim
Que ajuda o baiano a viver
Pra cantar, pra sambar pra valer
Pra morrer de alegria
Na festa de rua, no samba de roda
Na noite de lua, no canto do mar
Eu vim da Bahia
Mas eu volto pra lá
Eu vim da Bahia
Mas algum dia eu volto pra lá
Gravações
Maria da Graça (Gal Costa), 1965 – RCA
Quarteto em Cy e Tamba Trio – Som Definitivo, 1966 – Universal Music
Stan Getz e João Gilberto – The best of two world, 1986 – Sony Music
Gilberto Gil – Em Concerto, 1987 – Gege
Leila Pinheiro e Oscar Castro Neves – Songbook Gilberto Gil, 1992 – Lumiar
João Gilberto – João Voz e Violão, 1999 – Universal Music
Baden Powell – O Universo Musical, 2002 – Universal Music
Gilberto Gil – Concerto de cordas e Máquinas de ritmo (Ao vivo), 2012 – Biscoito Fino
Luciana Souza e Marco Pereira – Duos III, 2012 – Sunnyside Communications
Gilberto Gil – Gilbertos Samba, 2014 – Gege
Gilberto Gil – Gilbertos Samba Ao Vivo, 2014 – Sony Music
Jaques Morelenbaum – Coellosam3atrio – Saudade do Futuro Futuro da Saudade, 2014 – Biscoito Fino
Caetano Veloso & Gilberto Gil – Dois Amigos, um Século de Música (Ao vivo), 2015 – Sony Music
Alexandre Leão – O Teatro (Ao Vivo), 2016 – Alexandre Leão
Coral cant’duRio – Na Onda de João 73, 2021 – Mills Records
Margareth Menezes e Rosa Passos – Para Gil & Caetano, 2015 – Estrela do Mar
Stan Getz e João Gilberto – Getz/ Gilberto ’76, 2016 – Resonance Records
Bebel Gilberto – João, 2023 – [PIAS]
João Gilberto – Ao Vivo em Buenos Aires, 2023 – Ipanema Discos
Comentário*
Eu estava em Salvador ainda, quando a compus. Era janeiro, e, a convite da Gessy Lever, eu estava indo a São Paulo, já com a viagem marcada. Fiz a música querendo ou necessitando antecipar uma sensação para me precaver, digamos. Uma coisa assim: ‘Deixa eu experimentar logo essa coisa de estar fora da Bahia, já imaginar como é’. Mas também por uma vaidade de baiano, de querer descrever as riquezas, as belezas, os encantos da terra, aquilo que a particulariza, aquilo que a faz minha, aquilo que faz da Bahia a Bahia, que faz do baiano um filho dela. E foi assim: quando eu soube que eu ia fazer um show de despedida, aí preparei uma canção como se me despedindo, mas já longe, despedindo já à distância, já como se a Bahia estivesse dormindo quando eu saí em viagem, e ao acordar eu já estava longe, então tive que saudá-la de longe…
Sobre o fato de João Gilberto, em sua segunda gravação (de 1999) da música, ter deixado de cantar todo um verso (‘Na Bahia, que é meu lugar’) e o início do seguinte (‘Tem meu chão’), além de ter omitido uma (‘outro’, ao cantar: ‘E do lado o Senhor do Bonfim’) e substituído outras palavras (cantando ‘Se a gente não tem pra comer/ De fome não morre’ nos versos correspondentes e, no último, “um” no lugar de “algum”) – João faz com ela o que ele fez com a grande quantidade de canções que já cantou: ele dá a leitura mais escorreita, filtrada, quase como uma complementação, de um alter-ego deslocado, fora da própria pessoa do autor, um alter-ego de fora, o nosso alter-ego numa outra pessoa. Ele
omite as palavras, como nessa última gravação: dessa vez foi um trecho grande. Um dia ele já me perguntou: ‘Você achou demais’? Eu disse: ‘Não, eu achei da conta’. No caso do trecho ‘Na Bahia, que é meu lugar/ Tem meu chão’, ele cortou o que não precisava [juntando o ‘tem’ do final de ‘Tanta coisa bonita que tem’ com o ‘tem’ de ‘tem meu céu, tem meu mar’, e estabelecendo uma nova sequência: ‘Tanta coisa bonita que tem/ Tem meu céu, tem meu mar’], formando essa ligadura textual e ajudando mesmo a ligadura da música. João faz esse processo de recomposição. Em várias canções ele omite estrategicamente algumas palavras, no sentido de reforçar e esclarecer significados.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Eu te dei meu ané
Gilberto Gil
Marlui Miranda
Eu te dei meu ané
Eu te dei meu ané
Foi simbora o ané
Foi simbora o ané
Num aperto de mão
Ê
Menina de ouro
Menina de prata
Menina de cobre
Menina de lata
Ê
Menina direita
Menina suspeita
Menina tão cara
Menina barata
Ê
Você dizia que você me queria
Eu te dei meu ané
Eu te dei meu ané
Foi simbora o ané
Foi simbora o ané
Num aperto de mão
Eu quero andar ligeiro
Pegar o meu pandeiro
Eu quero o meu dinheiro
Eu quero ter de volta o meu ané
Ê
Menina de ouro
Menina de prata
Menina de cobre
Menina de lata
Ê
Menina, desgruda
Menina, se muda
Menina, desanda
Menina, desata
Eu e ela estávamos ali encostados na parede
Gilberto Gil
Caetano Veloso
José Agrippino de Paula
Ela estava em silêncio e eu estava em silêncio
Eu sentia o corpo dela junto ao meu
Os dois seios, o ventre, as pernas e os seus braços me envolviam
Eu pensei que ela deveria sentir o calor que eu estava sentindo
Nós dois estávamos imóveis encostados na parede
Eu não me recordo quanto tempo
Mas nós estávamos abraçados
E encostados ali há muito tempo
Eu não me recordava se eram horas, dias, meses
Nós dois esquecemos naquele momento
Que nós dois pretendíamos a paz
Dentro da violência do mundo
E sem perceber a chegada da paz, nós dois estávamos
Alojados dentro dela
Nós não saímos da parede, e a paz nos encontrou
Subitamente
Não enviou nenhum sinal
E nós não procuramos a paz
Eu e a noite
Gilberto Gil
A saudade e o silêncio
O desespero e a escuridão
As batidas monótonas de meu coração
Eu e a noite
Uma estrela cadente que passa
Uma esperança que as horas destroem
A angústia e a impaciência que alma corroem
Eu e a noite
Triste melodia vem de longe
Louco pensamento me tortura
Provo gotas enormes de amargura
Eu e a noite
A noite a esperar que venha o dia
E eu a esperar que ela volte
Não virá, e ainda assim esperamos
Eu e a noite
Eu descobri
Gilberto Gil
Um dia o antes, o agora e o depois
No mesmo dia o sim, o não e o talvez
No mesmo dia o zero, o um e o dois
E tudo que acontece depois do três
Grande emoção
A mesma das batidas de um coração
A mesma das ondas que vão e que vem
A mesma do chão da janela de um trem
Vertiginoso caos e fascinação
Pobre de mim
Pensei que ainda havia o que descobrir
Pensei que aquele dia fossem surgir
Anjos no céu, pobre de mim
Pobre de mim
Ali naquele instante igual aos demais
Eu percebi que o encoberto jamais
Nos mostrará seu corpo, a escuridão
Porque a escuridão é o que não se vê
A não ser
Que um novo Cristo volte mais uma vez
Agora, ontem, hoje, antes e após
Para mostrar a todos todos os sóis
E todos os buracos negros também
Quem me diz
Que a gente nunca poderá ser feliz
A menos que alcancemos o além da luz
Oh! Meu Jesus, meu bom Jesus.
Gravação
Gilberto Gil – Concerto de cordas e máquinas de ritmo, 2012 – Biscoito Fino
Comentário*
Essa foi pro Sérgio Dias, dos Mutantes. Ele estava morando nos Estados Unidos na ocasião e me telefonou pedindo uma canção, e aí eu fiz, partindo dessas palavras contraditórias:
“o antes, o agora e o depois; o sim, o não e o talvez; o zero, o um e o dois”. “E tudo o que acontece depois do três”: aquela coisa de “o um dá o dois, o dois dá o três, e o três dá tudo”, do Tao; uma das explicações do Tao.
[“Na hora eu tive dificuldade pra resolver”, conta Gil, “com a concisão das frases”, a segunda estrofe, a que começa com a “grande emoção”, emoção que “fui encontrando, de fazer a canção”. E ele chama a atenção, no verso “A mesma do chão, da janela de um trem”, para a vírgula após “chão”, para significar que se trata “do chão vislumbrado a partir da janela”.]
Sobre a terceira e quarta estrofes, interligadas. — Segue-se então, de novo, a interiorização, o voltar-se pra dentro. “Eu percebi que o encoberto jamais/ Nos mostrará seu corpo, a escuridão/ Porque a escuridão é o que não se vê/ A não ser/ Que um novo Cristo volte mais uma vez”: aqui a ideia da luz, do ser luminoso, do Redentor, da redenção, “agora, ontem, hoje, antes e após” [remontando ao — e remontando o — sentido do segundo verso da letra: “Um dia o antes, o agora e o depois”]. Sobre o final. — É uma das bases da crença, da adoção do Cristo como Salvador, como filho de Deus, a ideia da parousia, da volta do Cristo, a dimensão crística da transcendência dos seres iluminados. Cristo, a encarnação do ser supremo, é tido por uma dessas figuras. Pra nós do Ocidente, pra boa parte do mundo, Jesus é o maior símbolo disso.
A letra que começa aludindo a uma descoberta chega no miolo à constatação do indescobrível, do que não dá pra descobrir (e que é a escuridão). — A não ser através desses que são considerados, por nós, os descobertos. Os que dobraram a escuridão com a luz.
Através de quem viria a felicidade. — Que é a luz. A associação da luz com a felicidade, com o feliz. Feliz luz, luz feliz. Essa articulação.
Sobre a citação (“Quem acreditou…”) de “Meditação” (de Tom Jobim e Newton Mendonça) no fim da canção. — É pra dizer que a harmonia e a toada da canção seguem a mesma direção [de “Meditação”].
Quando ao pedido… — Sérgio Dias não deu indicação nenhuma sobre a canção que queria. Foi puro afeto. Ele sempre foi muito afetuoso comigo. Ele é uma bela figura, o Serginho.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Estrela azul do céu
Gilberto Gil
Do céu do meu balão
De antigamente
Sumiu de repente
Da noite de São João
Azul do céu na noite só
Papel de seda faz
Balão era isso
Magia, feitiço
Milagre que não tem mais
Papel de seda azul e vermelho e amarelo
E verde a cintilar
Translúcido vitral
O balão se elevava, súbito pairava lá no ar
Ser sobrenatural
Aquela estrela azul do céu
O tempo carregou
O tempo não falha
O tempo atrapalha
O tempo não tem pudor
A fila anda, a vida vai
Propondo a mutação
Então de repente
Ficou diferente
A noite de São João
Gravação
Gilberto Gil – Fé na festa, 2010 – Gege
Comentário*
Nostálgica e ao mesmo tempo conformada com a ideia da conformação, da transformação: conforme a transformação, você vai adotando novas posturas, novas posições. A canção tematiza a magia do balão como um dos símbolos maiores da festa junina, de São João. Ele também, o próprio balão meio amaldiçoado, meio banido, proibido, tendo inserções espúrias nos céus das noites juninas modernas.
Você faz uma espécie de resgate, pelo menos simbolicamente, no campo da memória. — É isso. Essa música é reminiscência pura, clara. Reminiscência da inocência no tempo.
Sua alma poética tão aberta e receptiva às mudanças evolucionárias trazidas pelo tempo também é lugar para o lamento e a nostalgia daquilo que ficou no passado e não volta mais. O tempo é assim, mais uma vez, objeto de uma canção sua.
— É. A contemporaneidade do passado e do futuro. Passado e futuro contemporâneos, permanentemente contemporâneos, um deslocado pelo outro o tempo todo. E essa fusão/difusão: passado e futuro fundidos e difundidos o tempo todo. Nos quereres, nos fazeres, nos prazeres, nas assunções, no assumir de cada momento da vida, de cada instante. Síntese. Tempo. É no tempo que cabe — e cabe ao tempo — fazer com que caiba esse encontro permanente entre passado e futuro. A concretude vivencial do tempo com seus ardores, tremores, fervores, sabores, tudo. O tempo factual, o tempo quando as coisas se dão, as coisas se fazem. Tempo material, tempo vivencial, as dimensões do tempo.
A saudade é um sentimento que toca você bastante, não é? Eu já vi você chorar de saudade. — Muitas vezes. Cada vez mais. É comum. Porque vai se adensando a percepção da multiplicidade de aspectos do tempo e de nós agentes disso, cada eu em si processando isso tudo. Emoção é onde se dá essa vibração do eu, toda vez que esse eu vibra com essas minúcias, a partir do encontro com essas minúcias todas das suas definições do tempo. Quando essa emoção vibra, a gente chora. Não tem saída. Vaza em lágrimas.
E naturalmente, pela sua origem, muitas das suas saudades estão sediadas, digamos assim, no sertão. — A maior parte delas. Ituaçu é uma das locações mais frequentes dos meus sonhos. Toda hora, toda semana, todo mês eu estou sonhando com Ituaçu. Com tudo. Com a casa, com situações, com lembranças, com pessoas, com meu pai, com minha mãe; com margem do canavial, margem da beira-rio. O balão na festa junina é um momento em que isso se eleva, e se tem essa epifania.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Estrela
Gilberto Gil
De surgir
Uma estrela no céu cada vez que ocê sorrir
Há
De apagar
Uma estrela no céu cada vez que ocê chorar
O contrário também bem que pode acontecer
De uma estrela brilhar quando a lágrima cair
Ou então de uma estrela cadente se jogar
Só pra ver a flor do seu sorriso se abrir
Hum
Deus fará
Absurdos, contanto que a vida seja assim
Sim
Um altar
Onde a gente celebre tudo o que Ele consentir
Gravações
Carlos Pita – Coração de índio, 1981 – Continental
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – To be alive is good (Anos 80), 2002 – Warner Music
Gilberto Gil – Concerto de cordas e máquinas de ritmo, 2012 – Biscoito Fino
Sandy e Lucas Lima – Estrela (single), 2020 – Letra S Promoções Artísticas/ Universal Music
Comentário*
Qualquer coisa que ocorra, quer dizer, uma folha que se mexa aqui, reflete lá longe, em qualquer lugar do universo, que é um grande campo onde as relações se dão em conexão constante, onde tudo está ligado e tudo tem a ver, não havendo fato isolado no universo. ‘Estrela’ é sobre isso, que certas considerações filosóficas sempre levam em conta; sobre a ideia do campo, das relações do campo, o campo cósmico; sobre a ideia da física sobre o campo, onde tudo que ocorre é inter-relacionado, tudo se dando no campo.
É a física quântica: não é à toa que a canção acabou entrando somente no disco ‘Quanta’, embora tenha sido feita mais de quinze anos antes. Ela só foi caber, só teve amparo semântico de repertório completo no ‘Quanta’, onde finalmente se encaixou. Nesse sentido, parece com ‘Átimo de pó’, com ‘A ciência em si’, com todas as canções do CD; ela tem o mesmo locus embrionário que essas outras todas têm. E é sobre isso: a ideia do grande campo universal onde todos os eventos estão relacionados.
‘Estrela’ foi feita pensando na Estrela, filha do Paulo Leminski e da Alice Ruiz [casal de poetas que viviam em Curitiba, no tempo da canção], que era na época uma menina pequenininha ainda. Na verdade, a canção não mexe com a questão da pessoa, não toca na pessoa. ‘Estrela’ é dedicada à Estrela, não é sobre a Estrela; não é para a pessoa dela, é para o nome dela. Para o que o nome dela pode despertar como reflexão.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Está na cara, está na cura
Gilberto Gil
Você não vê
Que a caretice está no medo
Você não vê
Está na cara
Você não vê
Que o medo está na medula
Você não vê
Está na cara
Você não vê
Que o segredo está na cura, está na cara
Está na cura desse medo
Quem tem cara tem medo
Quem tem medo tem cura
Essa história de medo é caretice pura
Vou brincar que ainda é cedo
Que o brinquedo está na cara
Está na cara, está na cara
Que o segredo está na cura do medo
Gravações
Gilberto Gil – Expresso 2222, 1999 (reedição) – Universal Music
Carla Visi – Carla visita Gilberto Gil, 2008 – MZA
Comentário*
O medo como elemento bloqueador do fluxo vital; como sintoma da dificuldade, nos indivíduos, de mantê-lo em permanente movimento; o medo ligado à ideia dos bloqueios, dos coágulos, dos nós, dos momentos de interrupção, de descontinuidade do élan vital; o medo associado a esses múltiplos significados dos impedimentos de várias ordens do fluxo vital. Esse o tema de ‘Está na cara, está na cura’. A caretice estava muito relacionada na ocasião a uma reação às modas, aos modelos então mais atuais de vida, às propostas desafiadoras aos sistemas de vida estabelecidos, ao status quo, aos modos convencionais da família. E também à noção de que careta era aquele que não consumia droga, que não fumava maconha, que não se dedicava ao jogo com a operação dos estados de consciência; aquele que não se animava com a ideia de alterar estados de consciência através de droga ou coisa que o valha. Então, a música era também para criticar o reducionismo dessa ideia de que careta era aquele que não ficava doidão.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Essa é pra tocar no rádio
Gilberto Gil
Essa é pra tocar no rádio
Essa é pra vencer o tédio
Quando pintar
Essa é um santo remédio
Pro mau humor
Essa é pro chofer de táxi
Não cochilar
Essa é pro querido ouvinte
Do interior
Essa é pra tocar no rádio
Essa é pra tocar no rádio
Essa é pra sair de casa
Pra trabalhar
Essa é pro rapaz da loja
Transar melhor
Essa é pra depois do almoço
Moço do bar
Essa é pra moça dengosa
Fazer amor
Essa é pra tocar no rádio
Essa é pra tocar no rádio
Gravações
Gilberto Gil – Cidade do Salvador, 1973 – Gege
Gilberto Gil – Umeboshi (Ao vivo), 1973 – Discobertas
Gilberto Gil e Jorge Ben Jor – Gil e Jorge, 1975 – Universal Music
Gilberto Gil – Refazenda, 1977 – Warner Music
Cacala Carvalho e João Braga – Cada tempo em seu lugar, 2012 – Zênitha Música [Dist. Quae]
Fernando Caneca e Davi Moraes – Refazendo, 2021 – Deck
Comentário*
‘Essa é pra tocar no rádio’ foi feita para brincar com o fato de que a execução de música no rádio é demasiadamente seletiva em função de uma série de valores próprios do veículo, de sua própria cultura interna e da cultura dos mass media, principalmente nessa fase de extrema especialização dos meios de comunicação; para fazer piada, blague, com essa ideia seletiva das ‘quinze mais’, das ‘dez mais’, da parada de sucesso – daquilo que só toca no rádio porque é sucesso e só é sucesso porque toca no rádio, esse círculo vicioso, essa coisa fechada da comunidade dos eleitos do sucesso paradístico.
Um pouco como quem diz: ‘Essa não vai tocar no rádio, então essa é pra vocês do rádio: vocês que não tocam as coisas que poderiam ser tocadas; vocês que não têm espaço, nem tempo, nem projeto para tocar tudo, e têm que tocar apenas algumas coisas; vocês que têm que viver essa exiguidade, esse confinamento, esse reducianismo necessário para o meio’.
Ao mesmo tempo, a letra é constituída de elementos de apelo extraordinariamente popular que fariam a música tocar no rádio, ingredientes tirados como amostra do universo semântico radiofônico mesmo: a menina, a balconista, o motorista de táxi, o rapaz da loja, o bairro de Bangu (subúrbio do Rio de Janeiro). A música tem também, por isso, a intenção de estabelecer um jogo de contrários. Musicalmente, ela é um híbrido de funk – talvez uma das primeiras que eu tenha trabalhado com a nítida intencionalidade de me utilizar do gênero funk – com algo nordestino; ela remete para um desses gêneros aforrozados.
No sentido radiofônico da parada de sucesso, do hit, ‘Essa é pra tocar no rádio’ não tocou no rádio.
Ficou talvez até como talismã para a visão autocrítica bem-humorada do próprio rádio. Houve rádios de São Paulo e do Rio que tocavam essa música em determinados horários.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Esotérico
Gilberto Gil
Porque mistério sempre há de pintar por aí
Pessoas até muito mais vão lhe amar
Até muito mais difíceis que eu pra você
Que eu, que dois, que dez, que dez milhões
Todos iguais
Até que nem tanto esotérico assim
Se eu sou algo incompreensível
Meu Deus é mais
Mistério sempre há de pintar por aí
Não adianta nem me abandonar
Nem ficar tão apaixonada, que nada!
Que não sabe nadar
Que morre afogada por mim
Gravações
Doces Bárbaros – Doces Bárbaros, 1976 – Universal Music
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Kid Abelha – Songbook Gilberto Gil, 1992 – Lumiar
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Maria Bethânia – Brincar de viver, 1999 – Universal Music
Gilberto Gil – Bandadois (Ao Vivo), 2009 – Gege
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Dois Amigos, Um Século de Música (Ao vivo), 2015 – Gege e Uns Produções Artísticas sob licença de de Sony Music
Gil, Nando e Gal – Trinca de Ases (Ao vivo), 2018 – Gege
Gilberto Gil – Em Casa Com Os Gil, 2022 – Gege
Comentário*
Uma tentativa de transpor a ideia do mistério divino, místico-religioso, para o campo do amor terreno; de desmistificar e humanizar a categorização do esotérico como algo inatingível, colocando-o como inerente à nossa natureza, à complexidade de nosso afeto. O ímpeto da canção nasceu da vontade de falar do sentido esotérico das coisas através de algo que fosse demasiadamente humano como é a relação amorosa entre duas pessoas — não deixando, no fim, de remeter a questão para a divindade (qualquer mistério está aquém do mistério do Criador).
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Escolha da liberdade
Gilberto Gil
Gravação
Vários – Brasil ano 2000, Universal Music
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
Era nova
Gilberto Gil
Quase esquecem do eterno é
Só você poder me ouvir agora
Já significa que dá pé
Novo tempo sempre se inaugura
A cada instante que você viver
O que foi já era, e não há era
Por mais nova que possa trazer de volta
O tempo que você perdeu, perdeu, não volta
Embora o mundo, o mundo, dê tanta volta
Embora olhar o mundo cause tanto medo
Ou talvez tanta revolta
A verdade sempre está na hora
Embora você pense que não é
Como seu cabelo cresce agora
Sem que você possa perceber
Os cabelos da eternidade
São mais longos que os tempos de agora
São mais longos que os tempos de outrora
São mais longos que os tempos da era nova
Da nova, nova, nova, nova, nova era
Da era, era, era, era, era nova
Da nova, nova, nova, nova, nova era
Da era, era, era, era, era nova
Que sempre esteve e está pra nascer
Falam tanto
Gravações
Gilberto Gil – Refavela, 1977 – Philips
Vilma Nascimento – Conquistado, 1980 – Top Tape
Patricia Calcado – Contraveneno, 2004 – Patricia Calcado
Comentário*
[Em “Era nova”, Gilberto Gil sublinha uma crítica à ideia de sempre se querer decretar a disfunção de certos tempos e prescrever a vigência de outros; de se buscar instalar um novo ciclo histórico, um “novo início”, seja do ponto de vista religioso ou do político, ideia presente tanto no sonho da Era de Aquário (tematizada mais claramente pela canção) como no sonho revolucionário de esquerda — em todos os messianismos, enfim.] Querer uma “era nova” ou “o fim da história” [referência à sua música assim intitulada, e que data de 1991], o começo ou o fim: duas pontas de um mesmo absurdo. [Ainda segundo Gil, “Era nova”, no que é para ele o momento-chave da canção, trata da imperceptibilidade da passagem do tempo, mais exatamente] da ambiguidade eternamente presente em nós de termos em relação ao tempo uma percepção e uma não percepção: a de que ele passa quando pensamos e a de que ele não passa quando não pensamos, isto é: “sem que você possa perceber”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Entre os ateus
Gilberto Gil
Também brinco o carnaval
Rezo, medito, me irrito
Dou grito por dentro
Esperando por Deus
Não tenho muito de bom
Tampouco muito de mal
Não acredito em crenças
Não temo doenças
E vivo contente entre os ateus
Penso que tudo dá nada
E que nada dá tudo que a gente quiser
E se alma não é pequena vai saber
Que vale a pena viver
Pena e mais pena
O tribunal condena
Julgando ensinar a lição
Eu só me condeno a mim
Quando me esqueço o perdão
Entre a sola e o salto
Gilberto Gil
Por aquela janela
Entre a sola e o salto do sapato alto dela
Vê
Por ali, pelo vão
Entre a sola, o salto do sapato alto dela e o chão
Vê
Como existe um abrigo
Entre a sola e o salto do sapato alto
Contra o perigo do orgulho, da ilusão
Basta um centímetro prum grande coração
No espaço, ali embaixo
Entre a sola e o salto existe a imensidão
Vê
Como cabe folgada
A imensidão do olhar numa nesga de chão
Num pedaço de calçada
Vê
Que há bastante lugar
Prum coração chegar ali, ficar ali
Passar dali pra acolá
Ê, ê, quanto amor
No espaço embaixo do sapato dela
Ê, ê, quanto amor
No abrigo embaixo do sapato dela
Ê, ê, quanto amor
No teto embaixo do sapato dela
Ê, ê, quanto amor
Na tenda embaixo do sapato dela
Gravação
Alcione – Alerta Geral, 1978 – Philips
Comentário*
Feita para Alcione, de encomenda. E eu pensava mesmo no salto alto dela, me lembrava dela sobre o salto e vivia essa fantasia de diminuir de tamanho, como no livro ‘Viagens de Gulliver’ [de Jonathan Swift] e nos filmes em que um personagem encolhe, encolhe, encolhe, vai diminuindo até…: essa fantasia de miniaturização. Eu me miniaturizava e me escondia embaixo do salto do sapato dela, que virava uma grande estrutura, uma grande marquise, e eu ficava ali, entre a sola e o salto, naquele vão, e dali eu fazia uma descrição da situação. Uma sugestão também da ideia de ser pisado pela mulher; da ideia da subordinação, da submissão à força da mulher, à coisa de ser ela quem manda, comum nas regiões mais matriarcais ou matriarcalizantes, como a Bahia, o Rio Grande do Sul, a Argentina, a Espanha, a Itália, o Mediterrâneo todo. Veja-se o grau de recolhimento em que eu estava naquele momento, para poder me dar o direito a desenvolver uma fantasia tão absurda; a ponto de engendrar e viver toda uma estória ali embaixo daquele sapato. Uma ideia delirante. Uma canção também sobre a humildade, exprimindo um destemor absoluto em ser pequeno, em ser menor. E um samba bonito musicalmente, com o sentido rasgado dos sambas da Alcione, muito parecido com ela.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Então vale a pena
Gilberto Gil
E se vale a pena viver
Então morrer vale a pena
Se a gente teve o tempo para crescer
Crescer para viver de fato
O ato de amar e sofrer
Se a gente teve esse tempo
Então vale a pena morrer
Quem acordou no dia
Adormeceu na noite
Sorriu cada alegria sua
Quem andou pela rua
Atravessou a ponte
Pediu bênção à dindinha lua
Não teme a sua sorte
Abraça a sua morte
Como a uma linda ninfa nua
Gravações
Simone – Cigarra, 1978 – EMI
Moisés Navarro e Zé Manoel – Aquele Abraço, Gilberto Gil, 2022 – Alves Madeira
Comentário*
O tema da morte retomado. São duas músicas dedicadas explicitamente a ele: ‘A morte’ e esta, que o abordam diretamente, que foram feitas pensando na morte. De ‘Então vale a pena’ eu gosto muito, por causa do sentido de complementaridade outra vez embutido numa letra minha, a morte como o momento simetricamente oposto ao do nascimento, a morte como encerramento de um ciclo. Nesse caso a única ressalva que eu faço na canção é para a morte prematura, como sendo uma anomalia ou algo assim, uma interrupção no processo. É um mero reparo psicológico, um remendosinho, talvez um resquício de receio; uma tentativa de fazer um julgamento, de dar valores diferentes a mortes diferentes. É interessante a associação da morte com o sono e do renascimento com o acordar, além da ideia de abraçar a morte como a uma deusa – uma ideia antiga da morte.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ensaio geral
Gilberto Gil
O Cordão da Liberdade
E o Bloco da Mocidade
Vão sair no carnaval
É preciso ir à rua
Esperar pela passagem
É preciso ter coragem
E aplaudir o pessoal
O Rancho do Novo Dia
Vem com mais de mil pastoras
Todas elas detentoras
De um sorriso sem igual
O Cordão da Liberdade
Ensaiado com carinho
Pelo Zé Redemoinho
Pelo Chico Vendaval
Oh, que linda fantasia
Do Bloco da Mocidade
Colorida de ousadia
Costurada de amizade
Vai ser lindo ver o bloco
Desfilar pela cidade
Minha gente, vamos lá
Nossa turma vai sair
Nossa escola vai sambar
Vai cantar pra gente ouvir
Tá na hora, vamos lá
Carnaval é pra valer
Nossa turma é da verdade
E a verdade vai vencer
Gravações
Elis Regina – Viva o Festival da Música Popular Brasileira, 1966 – Artistas Unidos
Gilberto Gil – Louvação, 1967 – Philips
Chico Buarque – Songbook Gilberto Gil, 1992 – Lumiar
Comentário*
‘Ensaio Geral’ foi composta para o [II] Festival [de Música Popular Brasileira, da TV Record]. Samba socialmente engajado, impregnado do espírito universitário, típico da época; canção de protesto utilizando a imagem de ‘um novo dia’, ‘um novo amanhã’ – o futuro idealizado, redentor, igualitário, comunista: o próprio sonho comunista – e, ao mesmo tempo, vários elementos do imaginário popular do samba: a escola, o bloco, o cordão, o rancho, a fantasia, a costura. Tecendo as fantasias das inter-relações entre a arte e a política, o carnaval e a marcha da sociedade. ‘É preciso ter coragem e aplaudir o pessoal’, quer dizer, as novas milícias revolucionárias…
‘Ensaio Geral’ apresenta também uma veia poética prevalecente no meu trabalho, que é a do garimpo na poesia da música popular, como se a música popular fosse uma grande jazida onde eu vou pegar minhas pepitas, como qualquer outro compositor; a música popular como uma grande Serra Pelada. Para mim a música popular foi sempre um campo de exploração comum, mais do que qualquer outra coisa, e a sua beleza e o seu interesse sempre estiveram exatamente nessa grandeza e nessa riqueza comum, acumulada, formada ao longo da história dos grandes compositores; dos compositores todos, enfim. Essa música garimpa os vários lugares-comuns que vão sendo justapostos, montados, editados, para formar uma canção – uma característica observável também em várias outras músicas da época.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Emoriô
Gilberto Gil
João Donato
Ê, emoriô
Emoripaô
Emoriô deve ser
Uma palavra nagô
Uma palavra de amor
Um paladar
Emoriô deve ser
Alguma coisa de lá
O sol, a lua, o céu
Pra Oxalá
Gravações
João Donato – Lugar Comum, 1975 – Philips
Fafá de Belém – Fafá de Belém, 1975 – Universal Music
Sandra de Sá – E-collection, 1998 – Warner Music
Gilberto Gil e BaianaSystem – Gil Baiana Ao Vivo em Salvador, 2020 – Gege e Máquina de Louco
Comentário*
‘Emoriô’ é uma exclamação. Nos Filhos de Gandhi a gente canta: ‘Emoriô, emoripaô, emoriô babá’. Na verdade, ao fazer a música, e durante esse tempo todo, até hoje, eu nunca tive muita curiosidade – deveria ter tido – de saber o que o termo, de língua africana, provavelmente de origem nagô mesmo, significa. É um canto, entre outros tantos cantos que se cantam no Gandhi e que estão associados diretamente ao candomblé. Uma expressão própria do mundo religioso afro-baiano.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ella
Gilberto Gil
Carol Rogers
Eu vivo o tempo todo com Ella
Ella
Eu vivo o tempo todo pra Ella
Through the magic night
She’s my guiding light
Her love glows like a fire deep in my heart
Everywhere that I go
Her name seems to follow singing
Ella
Ella que me faz um navegador
Ella
Ella que me faz um navegador
[ Ela, de Gilberto Gil ]
Gravação
Gilberto Gil – Nightingale, 1978 – Elektra
Eleve-se alto ao céu (Lively up yourself)
Gilberto Gil
Robert Nesta Marley (Bob Marley)
Você que eleve-se alto ao céu
Com seus pés no chão
Eleve-se alto ao céu
Que o reggae é o dono do salão
Você que eleve-se alto ao céu
E não diga não
Você que eleve-se alto ao céu
Em afirmação
Que que cê fez então
Cê faz assim, faz assim
Como nunca fez em mim
Cê que sobe assim, desce assim
Dança pra mim
Cê vem assim, vai assim, assim
Skanka assim, skanka assim
Skankaradamente
Você que eleve-se alto ao céu
Não diga não
Você que eleve-se alto ao céu
Assim diz o papaizão
Eleve-se alto ao céu
Com seus pés no chão
Você que eleve-se alto ao céu
Que o reggae é o dono do salão
Gravações
Gilberto Gil – Kaya N’Gan Daya, 2002 – Warner Music
Gilberto Gil – Kaya N’Gan Daya (Ao vivo), 2003 – Warner Music
Comentário*
Do emprego, em versões, de termos em português que remetem sonoramente às palavras correspondentes em inglês – Este é um recurso que eu gosto de usar em versões, principalmente de canções muito emblemáticas, nas quais a sonoridade de termos-chave já se universalizou: todo mundo já ouve aquele som internamente, o som da palavra já está muito impregnado na lembrança da canção. Em ‘Não chore mais’, a versão de ‘No woman, no cry’, eu aplicava isso [usando ‘mais’ no lugar de ‘cry’ para explorar a semelhança fônica entre ‘ais’ e ‘ai’, no refrão], mas com menor intensidade. No caso da versão de ‘Lively up yourself’, eu fiquei meses à procura da solução para o verso que iniciava a canção, à qual eu cheguei um dia de manhã, quando eu estava na Cicília, ao acordar.
Eu já havia tentado outras fórmulas, tinha comigo as anotações de pelos menos duas, que na verdade não satisfaziam. Até que naquela manhã me ocorreu o ‘leve-se/ eleve-se’, a ideia de usar a dupla opção alternadamente, ‘Leve-se alto ao céu’ e ‘Você que eleve-se alto ao céu’, da mesma forma que o Marley alterna “Lively up yourself” e “You’re gonna lively up yourself’, acrescentando alguma coisa antes, no início do verso. Com isso, eu tentei me aproximar sonoramente do original e cobrir semanticamente dois sentidos: o de alçar-se, com ‘eleve-se’, e o de peso, com ‘leve-se’, uma forma com uma sílaba a mais. Para completar, no final do verso eu emprego ‘céu’ em correspondência sonora a ‘self’, de ‘yourself’. A recriação dessa frase é talvez a melhor solução que eu já tenha dado para uma versão de letra de música.
No caso da versão de ‘Kaya’, a utilização do termo homófono em português – a forma verbal ‘caia’ – é mais direta. A transposição da letra original não demandava tanta modificação, as palavras foram surgindo bem naturalmente. Alguma coisa especial nela talvez seja a reconstituição, na segunda parte, do trecho que faz menção à comunidade [‘neighborhood’; a versão sugere nessa passagem uma alusão ao ato de fumar maconha, ‘kaya’, em roda]: na verdade a comunidade de afeto, com o compromisso com a paz, ligada por uma linha ideológica pacifista e de traço nitidamente hippie.
A propósito de ‘Tempo só’, a versão apenas do estribilho de ‘Time will tell’, se afastar do sentido do trecho correspondente no original – Meu objetivo foi me deslocar do tom condenatório, de julgamento, que o texto em inglês adquire no trecho (literalmente: ‘Você pensa que está no céu, mas vive no inferno’), um traço extremamente maniqueísta (bem/mal, céu/inferno), de implicação salvacionista, da letra, que eu desloquei para um plano mais suave.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Eles
Gilberto Gil
Caetano Veloso
A vida começa no ponto final
Eles têm certeza do bem e do mal
Falam com franqueza do bem e do mal
Crêem na existência do bem e do mal
O florão da América, o bem e o mal
Só dizem o que dizem, o bem e o mal
Alegres ou tristes, são todos felizes durante o natal
O bem e o mal têm medo da maçã
A sombra do arvoredo, o dia de amanhã
Eis o que eles sabem, o dia de amanhã
Eles sempre falam no dia de amanhã
Eles têm cuidado com o dia de amanhã
Eles cantam os hinos no dia de amanhã
Eles tomam o bonde no dia de amanhã
Eles amam os filhos no dia de amanhã
Tomam táxi no dia de amanhã
É que eles têm medo do dia de amanhã
Eles aconselham o dia de amanhã
Eles desde já querem ter guardado
Todo seu passado
No dia de amanhã
Não preferem São Paulo nem o Rio de Janeiro
Apenas têm medo de morrer sem dinheiro
Eles choram aos sábados pelo ano inteiro
E há só um galo em cada galinheiro
E mais vale aquele que acorda cedo
E farinha pouca, meu pirão primeiro
E na mesma boca sempre o mesmo beijo
E não há amor como o primeiro amor
Como o primeiro amor, que é puro e verdadeiro
E não há segredo e a vida é assim mesmo
E pior a emenda do que o soneto
Está sempre à esquerda a porta do banheiro
E certa gente se conhece no cheiro
Em volta da mesa
Longe da maçã
Durante o natal
Eles guardam o dinheiro
O bem e o mal
Pro dia de amanhã
Gravação
Caetano Veloso – Caetano Veloso, 1967 – Philips
Ele falava nisso todo dia
Gilberto Gil
Alaiá, alaiá, alaiaialeluia
Ele falava nisso todo dia
Ele falava nisso todo dia
A herança, a segurança, a garantia
Pra mulher, para a filhinha, pra família
Falava nisso todo dia
Ele falava nisso todo dia
Ele falava nisso todo dia
O seguro da família, o futuro da família
O seguro, o futuro
Falava nisso todo dia
Alaiá, alaiá, alaiaialeluia
Alaiá, alaiá, alaiaialeluia
Ele falava nisso todo dia
A incerteza, a pobreza, a má sorte
Quem sabe lá o que aconteceria?
A mulher, a filhinha, a família desamparada
Retrata a carreira frustrada de um homem de bem
Ele falava nisso todo dia
O seguro de vida, o pecúlio
Era preciso toda a garantia
Se a mulher chora o corpo do marido
O seguro de vida, o pecúlio
Darão a certeza do dever cumprido
Alaiá, alaiá, alaiaialeluia
Alaiá, alaiá, alaiaialeluia
Ele falava nisso todo dia
Ele falava nisso todo dia
Se morresse ainda forte, um bom seguro era uma sorte
pra família
A loteria
Falava nisso todo dia
Era um rapaz de vinte e cinco anos
Era um rapaz de vinte e cinco anos
Hoje ele morreu atropelado em frente à companhia
de seguro
Oh! que futuro!
Oh! Rapaz de vinte e cinco anos
Alaiá, alaiá, alaiaialeluia
Alaiá, alaiá, alaiaialeluia
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil, 1968 – Philips
Maria Bethânia – Recital na Boite Barroco, 1968 – Odeon
Rogério Duprat – A Banda Tropicalista do Duprat, 1968 – Universal Music
Lulu Santos – Letra & Música, 2005 – BMG
Comentário*
Um dia eu li num jornal de São Paulo a notícia de um jovem que tinha se casado, feito seguro de vida e morrido; a família estava reclamando o seguro. Eu tinha 25 anos na época, estava casado, mas não tinha seguro de vida. Fiquei pensando: ‘E se tivessse sido eu?’ Aí eu fiz Ele Falava Nisso Todo Dia, uma música de militância, uma investida contra a busca de toda a segurança burguesa, de todos os anteparos, armaduras e ações contra as intempéries da vida. Estávamos todos investindo contra essas coisas.
O que a canção condena é o desprezo pela vida nesse cultivo excessivo das formas de proteção, as cercas, do mundo burguês. É incrível como, aos 25 anos, o ‘rapaz’ – que personifica o ideal mediano, de classe média, de homem do mundo na sua versão mais comum – reitera com tanta obsessão esse cultivo; é lamentável a desimportância da vida para alguém tão jovem. E é paradoxalmente trágico que tudo que ele fala, tudo com que sonha, finalmente se realize com a sua morte prematura. Como uma fatalidade apropriada, ‘desejada’, uma auto-imolação para a vitória dos seus princípios: ele falava tanto naquilo que aquilo teve de acontecer para materializar o valor do ideal burguês.
Em resumo, é a minha posição ideológica que decreta a morte da ideologia dele. Quer dizer, quem o mata sou eu. Na frente da companhia de seguros! Pra esfregar no rosto dele: ‘Tá vendo? Você não queria tanto? Foi morto por isso’.
Por outro lado, é tão louvável que o homem seja capaz de levar o sentimento básico de proteção à prole, de provisão do futuro dos filhos, àquele paroxismo. Essa música é ingênua por isso (ela ataca mas ao mesmo tempo justifica tanto ter um seguro de vida…): ela tem a ingenuidade do maniqueísmo ideológico típico da época. À leitura dialética, distanciada, a sua retórica não resiste. Hoje, numa situação mais cuidadosa, eu teria elaborado outros versos; já vejo daqui, de lá… No embate ideológico daquele tempo a parcialidade era radical porque a briga era de porrada, bando contra bando, USP contra Mackenzie…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ele e euGilberto Gil
Ele vive calmo Ele vive eletriconsumida, consumada ou mudamente Eu vivo calmargalarga, abertamente
© Gege Edições Musicais
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Gravações
Gilberto Gil – Expresso 2222, 1972 – Philips
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao Vivo na USP, 1973 – Discobertas
Gilberto Gil – O Viramundo Ao Vivo, vol. 1, 1976 – Polyrgram
Comentário*
“Ele” é Caetano, obviamente.
O Porto da Barra entra como símbolo dos grandes desafios, sendo o enclave da vida cosmopolita na Bahia, o grande ponto de confluência, o ponto das discussões, das modas e dos desvios. Já era tudo isso na época e continua sendo hoje. Uma ágora à beira d’água: ele substitui com funcionalidade as praças antigas de Salvador, onde tais tipos de encontro já não se dão, mas ali no Porto sim. Vão os poetas, os músicos, os artistas, os intelectuais, os pequenos agentes culturais e econômicos, as pessoas da moda, as emergentes. Como os cafés de Paris, esses lugares de cultura. A praça onde se discute tudo.
A “hora do Porto da Barra” é, então, a do exercício da função política, da dimensão citadina. E, nas grandes discussões da ágora, Caetano é a própria eletricidade. “Ele vive eletriconsumida, consumada ou mudamente/ Bem mais calmo”: ele é autocentrado, autorreferente, leonino. “Porque curte cada golpe do martelo/ Na bigorna do destino”: porque tem essa visão profunda do trágico, uma profunda vivência em acordo com o aqui e agora. “Porque espero pelo beijo arrependido/ Da serpente do começo”: porque sou religioso, guardo essa ideia da redenção, me projeto no campo da divindade, o que ele não faz — ele é autocentrado, no aqui e agora. Eu não: “E na hora do Porto da Barra fico aflito”. A canção é uma discussão sobre aspectos das nossas personalidades.
Ninguém se mete no meio da gente. Nada se interpõe a nós dois. Há uma aliança mesmo, como se houvera sido feita num plano anterior e posterior a nós próprios. Smetak se referia a nós como gêmeos espirituais. Ainda recentemente, numa entrevista que ele deu em Salvador [em janeiro de 2003], para um jornal, A Tarde — já quando eu tinha sido feito ministro, e o tema girava sobre isso —, Caetano reitera a ideia de uma amizade intransponível entre nós. “Gil acredita em Deus, e eu acredito em Gil”, disse ele uma vez, para se referir a uma forma oblíqua de acreditar em Deus, não acreditando; um crer-não-crer.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ela e a lua
Gilberto Gil
É como um sopro de paz e ternura
É como um rasgo de afeto e doçura
Para uma alma tão triste e vazia
Traz à noite sublime enlevo e calma
Em seu fluxo pálido e brilhante
Vem com seu bálsamo leve, inebriante
Acariciar e confortar minha alma
E minha alma é tão triste e tão nua
Por causa dela, amor de minha vida
Por ela, sim, minha doce querida
Que era também tão bela como a lua!
Ela e a lua, poemas de carinhos
Cantos de afeto, de candura e paz
Eu e a saudade, companheira mordaz
Eu e a saudade, tristonhos, sozinhos
Ela Diz Que Me Ama
Gilberto Gil
E ela diz que me ama
Eu gosto tanto dela
E ela diz que me ama
As coisas começam simples e depois vão crescendo, ai ai
A gente vai vivendo, a gente vai se envolvendo
Até descobrir que está feliz ou sofrendo
Coração, coração
Aguenta mais essa, meu irmão
Quando ela diz que continua esperando por mim
A hora que eu chegar
A hora que eu puder ir
Ela diz que me ama
Ela diz que me ama
Coração, amor, razão, paixão
Paixão
Eu gosto tanto dela
É ombro, é colo, é cama
Será que ela sabe mesmo que o amor é chama
Acende quando é fogo, apaga quando venta
O amor é sempre aquilo que se tenta
Aquilo que se reinventa
O dia que reparte, a noite que inaugura
O prato de ternura com tempero de paixão e zelo
É hoje sim, mas amanhã só pra quem se agarrar bem firme ao fio do novelo
Ela diz que me ama
Eu gosto tanto dela
Ela diz que me ama
Eu gosto tanto dela
Ela diz que me ama
Eu gosto tanto dela
Ela diz que me ama
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
“É ombro, é colo, é cama/ Será que ela sabe mesmo que o amor é chama?” Eu peguei daí em diante. Eu comecei com isso e fui adiante.
Ah, eu achei mesmo que era a sua cara o que vem em seguida: a sequência de definições do amor. — É, não parece com o Jorge. Ele usaria outras palavras.
E o trecho que termina falando em fio de novelo combina com coisas que você tem escrito sobre casamento, sobre sua relação com Flora, no momento de maturidade e longevidade do próprio casamento de vocês. — Sim, isso. Tem todos esses elementos, e o verso “Ela diz que me ama” é um mote benjoriano total.
De como a canção veio a ser feita para Roberta Sá. — Nós estávamos um dia num jantar na casa de uns amigos, entre os quais eu, ela e Jorge, e ela pediu ao Jorge que fizesse uma música pra ela. Estávamos começando o trabalho do disco dela, o Giro. Aí dias depois o Jorge me mandou um esboço, uma boneca com “Ela diz que me ama”, à qual eu só acrescentei a segunda parte.
[Gil e Ben Jor não faziam uma parceria oficial desde quando compuseram “Sarro”, um tema instrumental que integrou Gil Jorge Ogum Xangô, o álbum de 1975 dividido pelos dois; antes, em 1968, haviam feito “Rei do maracatu”, gravada por Cyro Aguiar dois anos mais tarde. Gil, porém, agrega ao repertório de canções dos dois “Jurubeba” (assinada somente por Gil) e “Meu glorioso São Cristóvão” (oficialmente de Ben Jor), faixas de Gil Jorge Ogum Xangô. “Naquele disco várias das canções foram parcerias, se não propriamente operadas no fazer, mas pelo menos sugeridas, como o caso da canção sobre são Cristóvão. Eu achei um santinho de são Cristóvão no chão do estúdio, numa das gravações, e dei a ele, sugerindo que fizesse uma música”, explica.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ela
Gilberto Gil
Eu vivo o tempo todo com ela
Ela
Eu vivo o tempo todo pra ela
Minha música
Musa única, mulher
Mãe dos meus filhos, ilhas de amor
Cada ilha, um farol
No mar da procela, ela
Ela
Ela que me faz um navegador
Sobretudo ela
Ela que me faz um navegador
Gravações
Gilberto Gil – Refazenda, 1975 – Philips
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao vivo em Montreux), 1978 – Gege
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases (Ao Vivo), 2018 – Gege
Comentário*
Uma música sobre o princípio feminino, estimulado em mim pela música e pela mulher. Um tributo ao papel e à presença da música e da mulher em minha vida e na vida em geral, usando da associação entre as palavras ‘musa’ e ‘música’ no plano semântico, que eu acho que existe de alguma forma, e no plano da sonoridade, por causa das duas sílabas comuns a ambas.
‘Ella’, como título de uma das versões para o inglês da letra, é uma alusão a Ella Fitzgerald, ela própria uma musa-música: uma grande musa.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ela (Rap da Clara)
Gilberto Gil
Eu vivo o tempo todo com ela
Ela
Eu vivo o tempo todo pra ela
Minha música
Musa única, mulher
Mãe dos meus filhos, ilhas de amor
Cada ilha, um farol
No mar da procela, ela
Ela
Ela que me faz um navegador
Sobretudo ela
Ela que me faz um navegador
Carioca da gema
Geração 71
Vim do Rio de Janeiro
Batucada baticum
Bate o pé meu batuqueiro
Bate o pé meu sambador
Na Mangueira mora o samba
Na cadência do calor
Segue a orla de Ipanema
Do Leblon aos Dois Irmãos
Na Rocinha só tem bamba
Na Gamboa só tem bom
Gravação
Clara Moreno – Morena Bossa Nova, 2004 – YB Music
Edyth Cooper
Gilberto Gil
Bochechas de anjo barroco
Nádegas de anjo barroco
Bugigangas, velhos pincéis
Cem mil réis de carne com osso
Cem mil réis de queijo de prato
Cem mil réis de filó barato
Gesso, cola, tintas, telões
Abstrações, visões coloridas
Cena do balé dos anões
No ateliê da louca varrida
Dando, rindo, lendo Camões
Representações de cenas proibidas
Obcenas obsessões
No ateliê da louca varrida
Vivendo, varrendo os salões
Edyth Cooper, Edyth Cooper
Edyth Cooper, vem me consolar
Edyth Cooper, Edyth Cooper
Faz minha vassoura voar
Edyth Cooper, Edyth Cooper
Os morcegos vão me chupar – será?
Edyth Cooper, Edyth Cooper
Sem você eu vou me borrar de tinta
Eu vou me pintar de gesso
Eu vou me engessar de cola
Eu vou descolar de medo
Gravações
Gilberto Gil – Cidade do Salvador, Vol. 1, 1973 – Polygram
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao Vivo na USP, 1973 – Discobertas
Gilberto Gil – Umeboshi (Ao Vivo), 1973 – Discobertas
Edy Star – Sweet Edy, 1974 – Som Livre
Comentário*
Uma homenagem ao Edy Star [referido no comentário sobre a gênese de ‘Procissão’], um homossexual que em algumas situações se travestia: quando cantava, por exemplo, em boates, em Salvador e no Rio, para onde ele depois se mudou. Eu o conheci num lugar chamado Barroco, em Salvador – um lugar de pequenas exposições, um misto de galeria, bar e ponto de encontro que ele frequentava, que vários de nós frequentávamos. A canção sugere um ateliê, um estúdio, um lugar de arte, de artistas, uma galeria. O título é para fazer uma associação entre o universo dele – e o seu traço performático – e o do Alice Cooper, um roqueiro que se travestia também, mas que era posterior a ele: Edir é da nossa época, do início dos anos 60. Ele também tinha ligação com o teatro, e na sua performance incluía traços da acidez do rock’n’roll. Nunca chegou, porém, a ter uma banda; era mais um performático. Dos que vieram depois, quem se parece um pouco com ele é o Eduardo Dusek, de quem é um precursor – assim como do Ney Matogrosso.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ê, povo, ê
Gilberto Gil
A alegria estava então
Tão longe
O seu sorriso de verão
Eu sei
Quanto custou ter que esperar
Até
Seu precioso bom humor voltar
Ê, povo, ê, povo, ê
Desabafa o coração
Ê, povo, ê, povo, ê
Viver
É simplesmente um grande balão
Voar
Pro céu azul é a missão
Ê, povo, ê, povo, ê
Pelo amor de deus, cantar
Ê, povo, ê, povo, ê
Pelo bom humor, dançar
Ê, povo, ê, povo, ê
Pelo céu azul voar
Ê, povo, ê, povo, ê-ê
Gravação
Gilberto Gil – Refazenda, 1975 – Philips
Comentário*
“Ê, povo, ê” é exortativa. É uma exortação ao bom humor, à boa vontade, ao afeto generoso. É como se fosse um “Barato total” (“Quando a gente tá contente/ Tanto faz o quente/ Tanto faz o frio,/ Tanto faz”). É uma canção sobre estar bem — sobre o bem-estar.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
E lá poeira
Gilberto Gil
Celso Fonseca
Gerson Santos
Jorjão Barreto
Repolho
Rubens Sabino (Rubão)
Wilson Meirelles
Elá, poeira
Poeira, iaiá Maria
Poeira, que levantou
Por causa da ventania
Que o seu samba provocou
Você quando rodopia
É pior que um furacão
Ainda bem que vem da alegria
A poeira desse chão
Elá, poeira
Elá, poeira
Poeira, iaiá Maria
Leva um dia pra assentar
Por causa dessa magia
Que você deixa no ar
Você quando rodopia
É pior que um furacão
Ainda bem que é de alvenaria
Que é feito meu barracão