Músicas
TV Punk
Gilberto Gil
O feijão está pouco
E o muro, sem reboco
No canal B
O planeta está oco
E o presidente, louco
No canal C
O céu deu um pipoco
E Deus levou um soco
Só animais nos canais
D, E, F, G
Só anões nos canais
H, I, J, K
Nada de mais nos demais canais
Até o V
Só travestis
No canal X
O locutor está rouco
E a imagem, sem foco
No canal Z
Da sua TV Punk
Sadomasopunk
Gravação
Gilberto Gil – To Be Alive Is Good (Anos 80), 2002 – Gege
Comentário*
Sadomasopunk. 1982. Em plena vigência do punk. Parece ser um comentário metafórico sobre a realidade, aspectos dela. — Sobre a realidade, sobre o mass media, a grande confusão das telecomunicações, o papel da televisão nisso tudo. A letra é muito autoexplanatória. De desnecessária decifra- ção; é muito óbvia. É só contextualizá-la e pronto; o contexto dá a dimensão semântica de todas as partes.
Lembra de alguma coisa em especial que o tenha estimulado a compô-la? — Possivelmente uma dessas versões mondocane.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Tudo tem
Gilberto Gil
João Donato
Tem, tem, tem
Tem, tem, tem
Tem, tem, tem
Tem, tem, tem
Sempre tem
Tem, tem, tem
Jeito tem
Tem, tem, tem
Feito bem
Tem, tem, tem
Tudo tem
Tem, tem, tem
Sempre tem jeito, tem, tem
Feito bem, tudo tem, tem
Tudo tem, sempre tem, tem
Jeito tem
Tem, tem, tem
Gravação
João Donato – Lugar comum, 1975 – Philips
Trovoada
Gilberto Gil
Milton Nascimento
Estremece os corações
Nas capitais dos estados
Nos pequenos povoados
Lá pros lados dos sertões
Quando o tempo faz zoada
Na voz grave dos trovões
Eu acho que alguém já disse
Que é como então se abrisse
a jaula para os leões
Estremecem os corações
Acredite se quiser
Que o Cavaleiro das luas e das estrelas
Abriu o céu, desceu e me ofertou
Um livro aberto na página brilhante
Que nesse instante uma poeira iluminada
me assustou
Falava de Andrômeda,
A dona da constelação do Escorpião,
Falou da outra estrela na ponta do Cruzeiro,
Falou das quatro luas
A nova, a que cresce, a cheia e a que diminui
Que a primeira, quando se esconde na escuridão,
é de mentira, pra nos tomar o coração
Me ensinou coisas que vi
E que nem são daqui
E, de repente, acordei com o ronco…
Gravação
Gilberto Gil e Milton Nascimento – Gil & Milton, 2000 – Warner Music
Comentário*
No meu trabalho de composições em parceria com o Milton, a primeira coisa que eu fiz foi pedir a ele que fizesse uma letra; ele fez a de ‘Sebastian’, e eu fiz a música. Aí eu fiz uma música e pedi a ele que fizesse outra letra; ele fez a de ‘Duas sanfonas’. Aí eu lhe pedi: ‘Faça uma música’; ele fez ‘Dinamarca’; eu fiz a letra. Aí eu disse: ‘Vamos agora fazer uma coisa misturada: eu vou fazer, letra e música, um pedaço; e você completa, letra e música, outro pedaço’. ‘Trovoada’.
Todas elas sofreram processos de feitura muito distintos e muito apropriados, tendo o de ‘Trovoada’ sido o mais peculiar. As suas duas partes poderiam ser duas peças diferentes interligadas. A primeira é um baião. Um dia, quando eu já estava em Salvador, no verão, me reunindo com o Milton para fazer as músicas; sentando, conversando, escolhendo canções e discutindo conceitos do disco; uma tarde, deu uma trovoada enorme, eu estava deitado na cama e me lembrei do tempo de menino, quando os trovões me assustavam; cheguei a recuperar um pouco do susto da infância naquele momento, peguei e escrevi essa parte, e a dei a Milton: ‘Faça a outra parte’.
Dois ou três dias depois, ele está lá perto de casa, na casa de Sue, acontece outro temporal daqueles de novo, com outra trovoada. Ele vai e pega e faz a segunda parte.
Há, portanto, duas trovoadas nessa música, ambas ocorridas no verão de Salvador, naquele ano. Eu disse a ele depois que as partes da música são como as duas partes de uma mesma ampulheta, uma de boca para baixo, a outra de boca para cima. A minha trovoada é de boca para baixo, quer dizer, são os céus descendo à Terra; a trovoada encobrindo, como uma espécie de cúpula, ao ser humano, ao ser menino. Ela trata da percepção e da captação dos trovões pelos sentidos e pelo coração.
Ela dá a ideia dos povoados, das cidades, dos sertões, quer dizer, de todo o mundo terreno, se relacionando com a trovoada como um fenômeno dos céus.
Já o Milton passa por sobre o mundo atmosférico, de onde vem a trovoada, e vai para o cosmos, para as estrelas, faz o movimento inverso. É engraçado isso; eu comentei com ele: ‘Você levou a trovoada para além dos céus’.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Triste serenata
Gilberto Gil
Deslumbrante luar a pratear a rua
Maviosas palavras a enlevar corações
Brandos sons de estrelas, fluindo em borbotões
Doce ilusão na noite triste e nua!
Fala de amor o pobre seresteiro
Canta de dor o velho violão
E a noite de lua, noite de janeiro
Brinda almas felizes com sono fagueiro
Só não acalma meu triste coração
Ó noite fria que em meu peito agora vive
Por que vens trazer a doce luz da lua?
Por que não levas o vazio que me oprime
E envias a canção do amor que redime?
Por que não vais, ó noite fria e crua?
Trinca de Ases
Gilberto Gil
Pelos muros da cidade
Três ases num jogo duro
Uma moça e dois rapazes
Um dos rapazes maduro
Calejado pela idade
Joga o jogo mais seguro
Paciência e lealdade
O outro ainda menino
Impetuoso e viril
Mesmo quando joga a mil
É jogo elegante, fino
A moça que corre livre
Na defesa e no ataque
Faz a jogada de craque
Calma e precisa no drible
Três mosqueteiros se olhavam
Como se fossem guerreiros
Três patetas se pensarmos na graça, na luz do riso
Três poetas da canção
E o nome do jogo é cantar
Castram eles para dar a vida se for preciso
Trinca de Ases na mesa
Faça agora a sua aposta
Ganhar nunca foi certeza
Cantar é o que a gente gosta
Nos cartazes espalhados
Pelos muros da cidade
Três ases num jogo duro
Uma moça e dois rapazes
Um dos rapazes maduro…
Gravação
Gilberto Gil, Gal Costa e Nando Reis – Trinca de Ases (Ao Vivo), 2018 – Gege
Comentário*
Outra canção composta para Gil, Nando & Gal — trinca de ases. Gil conta que, quando houve a ideia do show, ele já veio com o título. — Propus, eles aceitaram, aí decidi: “Vou fazer uma canção-jingle”. Com as questões das diferenças de origem, de três artistas egressos de campos diferentes de gosto e interesse musical, embutidas no título. Aí, “Trinca de ases” [lembrando o Quatro Ases e um Curinga]: três artistas, três astros, três ases; três personagens — e as características de cada um. A associação com o jogo de futebol e o jogo de cartas. Futebol, um esporte muito caro ao Nando e a mim; daí a ideia dos artistas como um time entrando em campo, das habilidades de cada jogador: o mais velho, experiente; o mais novo, impetuoso. E o baralho, das cartas de ás.
Da ligação com os grupos vocais antigos. — O Quatro Ases e um Curinga foi um conjunto vocal importantíssimo, muito influente do João Gilberto. Eu fui muito ligado nos conjuntos vocais. Eles apareceram no pós-guerra, entre os anos 40 e 50, influenciados pelos americanos. O modo de harmonização vocal, uma coisa muito comum nos Estados Unidos, veio com a música americana. E aqui no Brasil seguidores extraordinários foram surgindo. Toda cidade, todo lugar tinha um conjunto vocal. Os mpb4 todos: o Quatro Ases e um Curinga, o Trio Irakitan… O Namorados da Lua foi o conjunto de que o João Gilberto fez parte.
Da referência aos mosqueteiros e aos Três Patetas. — São figuras associadas à ideia do jocoso, do brincalhão, do picaresco, da piada, da boutade. Os Três Mosqueteiros são perfilados. E os Três Patetas, figuras soltas, com as quais a associação feita segue critérios menos exigentes, menos claros, menos nítidos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Treze de dezembro
Gilberto Gil
Luiz Gonzaga
Zé Dantas
Eu vi sapo saltitando e ao longe
Ouvi o ronco alegre do trovão
Alguma coisa forte pra valer
Estava pra acontecer na região
Quando o galo cantou
Que o dia raiou
Eu imaginei
É que hoje é treze de dezembro
E a treze de dezembro nasceu nosso rei
O nosso rei do baião
A maior voz do sertão
Filho do sonho de Dom Sebastião
Como fruto do matrimônio do cometa Januário
Com a estrela Sant’Ana
Ao romper da era do Aquário
No cenário rico das terras de Exu
O mensageiro nu dos orixás
É desse treze de dezembro que eu me lembrarei
E sei que não me esquecerei jamais
Gravação
Gilberto Gil – It’s Good To Be Alive (Anos 90), 2002 – Gege
Comentário*
Letra feita no dia 13 de dezembro de 1986, em cima da música [instrumental] ‘Treze de dezembro’, do Luiz Gonzaga, que tinha sido composta em 13 de dezembro de 1951, no dia do seu aniversário [Luiz Gonzaga nasceu em 13 de dezembro de 1913, em Exu, Pernambuco]. Ele tinha me contado: ‘Amanheci, era meu aniversário, aquele dia bonito de sol, peguei a sanfona e saí tocando.
Acabei de tocar aquilo, eu disse: isso aí é ‘Treze de dezembro’, esse dia.’ Aí deu o nome, ‘Treze de dezembro’, que era aquele dia, do aniversário dele, em 1951. Aí, 35 anos depois, no mesmo 13 de dezembro, eu também acordei – na casa dele em Exu – e disse: ‘Ah, vou escrever uma letra para ‘Treze de dezembro’.’ Eu estava com ele em Exu! Tinha ido para a festa dos seus 73 anos. Um bocado de gente estava lá com ele: Gereba, Dominguinhos, Marinês.
A letra – feita por um discípulo, um devoto – é uma homenagem a ele e ao próprio dia de seu aniversário. Nela eu descrevo a situação que vou associando à data e ao seu sentido especial, à figura dele e à origem dele – na véspera eu tinha visitado o lugarejo onde ele tinha nascido; ele tinha nos levado lá. E aí entram o pai, Januário, a mãe, Ana (Santana), e a cidade, Exu, nome que na verdade não está etimologicamente ligado à entidade mas aos índios da região, mas que eu associei à entidade – era quase irrecusável, tendo ele sido o grande Mercúrio, o grande mensageiro [atributo de Exu no candomblé, intermediário entre o mundo dos deuses e o dos homens] que foi, interligando regiões e mundos culturais, e sendo ele próprio um mestiço de índio com negro e branco, um representante do povo mestiço brasileiro.
Acordei com a ideia na cabeça, peguei um papel e escrevi a letra toda. Foi engraçado. Na hora do café da manhã, eu cheguei e disse: ‘Mestre, olha aqui’. Cantei para ele e as pessoas, que cantaram também.
‘Treze de dezembro’ na obra de Gonzaga – A música é um choro extraordinário.
Gonzaga, quando veio para o Rio, chegou com a sanfoninha dele e com aquelas coisas do Nordeste: as canções folclóricas, os fragmentos do cancioneiro da região, baiões, xotes, xaxados, composições do pai, dos amigos. Só que encontrou um ambiente urbano de uma efervescência musical diversa – com músicas regionais, tango, música americana. Ele, então, teve primeiro que se desenvolver como um músico, tocando no mangue vários outros estilos de música e interagindo com vários músicos. Até que uma hora sentiu a necessidade de cantar a sua terra, de voltar para as suas origens. Aí encontrou Humberto Teixeira e Zé Dantas, ambos também na situação de retirantes como ele que vieram vencer na vida no Sul, um cearense, outro pernambucano, um médico, outro advogado, poetas populares também, homens simples como ele, e pronto, surgiu a coisa toda dele.
‘Treze de dezembro’ foi uma decorrência do aprendizado que ele fez no campo da música, tocando os vários gêneros que aparecem fragmentariamente na sua obra, uma obra majoritariamente dedicada aos gêneros nordestinos, mas apresentando também tangos, valsas, polcas, choros.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Tradição
Gilberto Gil
Uma garota do barulho
Namorava um rapaz que era muito inteligente
Um rapaz muito diferente
Inteligente no jeito de pongar no bonde
E diferente pelo tipo
De camisa aberta e certa calça americana
Arranjada de contrabando
E sair do banco e, desbancando, despongar do bonde
Sempre rindo e sempre cantando
Sempre lindo e sempre, sempre, sempre, sempre, sempre
Sempre rindo e sempre cantando
Conheci essa garota que era do Barbalho
Essa garota do barulho
No tempo que Lessa era goleiro do Bahia
Um goleiro, uma garantia
No tempo que a turma ia procurar porrada
Na base da vã valentia
No tempo que preto não entrava no Bahiano
Nem pela porta da cozinha
Conheci essa garota que era do Barbalho
No lotação de Liberdade
Que passava pelo ponto dos Quinze Mistérios
Indo do bairro pra cidade
Pra cidade, quer dizer, pro Largo do Terreiro
Pra onde todo mundo ia
Todo dia, todo dia, todo santo dia
Eu, minha irmã e minha tia
No tempo quem governava era Antonio Balbino
No tempo que eu era menino
Menino que eu era e veja que eu já reparava
Numa garota do Barbalho
Reparava tanto que acabei já reparando
No rapaz que ela namorava
Reparei que o rapaz era muito inteligente
Um rapaz muito diferente
Inteligente no jeito de pongar no bonde
E diferente pelo tipo
De camisa aberta e certa calça americana
Arranjada de contrabando
E sair do banco e, desbancando, despongar do bonde
Sempre rindo e sempre cantando
Sempre lindo e sempre, sempre, sempre, sempre, sempre
Sempre rindo e sempre cantando
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Umeboshi, 1973 – Gege
Gilberto Gil – Cidade do Salvador, 1973 – Gege
Gilberto Gil – Realce, 1979 – Warner Music
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Tropicália 2, 1993 – Universal Music
Comentário*
Por que o título: justificativas. — Para dar um sentido aristocratizante a um tempo e espaço (Bahia, anos 50) da minha história social; uma qualificação nobilizadora a uma realidade, somente possível a posteriori, a partir de um olhar que se deslocou para um plano superior — “Tradição” é um título afastado, um sobrevoo —, elevando com ele o conceito do cotidiano relatado. (É como Caetano falando de Santo Amaro da Purificação em “Trilhos urbanos”; a ambição aristocrática é a mesma. Em “Tradição”, Lessa, o goleiro do Bahia, é um nobre.) “Tradição”, também, para dar a ideia de uma mentalidade de época; de um modo tradicional de um agrupamento social da cidade de Salvador que se pereniza ou que se transforma; para sugerir como uma célula cultural se reproduz num macroorganismo social; e “tradição”, ainda, no sentido da importância, na minha formação, de tudo o que a letra retrata — no sentido, portanto, do meu compromisso afetivo com aquilo. “Tradição” poderia ter se chamado “Garota do Barbalho”, “tranquilamente”. A definição do título só veio mais tarde, após essa elaboração aqui descrita.
Tradição e transformação. — No conjunto da obra do Caymmi, encontram-se relatos de uma outra tradição da Bahia, anterior à chegada do petróleo e ainda com o saveiro, as praias, as baianas, o acarajé. Minha música já faz a indicação de várias mudanças de tradição: a transformação do transporte urbano (os ônibus começando a circular), os navios, o contrabando, a cultura americana chegando…
Personagens reais. — O bairro do Barbalho ficava ao lado do meu, Santo Antônio. Eu e minha irmã éramos levados ao colégio pela minha tia. Todos os sábados, domingos e quartas-feiras eu ia assistir aos jogos de futebol. O rapaz era um playboy, um bon vivant; andava de lambreta, fumava maconha. A garota era do Barbalho, quer dizer, do caralho! (Dois coelhos numa só…) Eu tinha doze, treze anos; ela, uns dezoito — um amor impossível. Meu objeto do desejo sexual. E ele, meu objeto do desejo cultural.
Palavras censuradas. — [A primeira vez que “Tradição” foi registrada em disco (por Gil, em Realce, em 1979, seis anos depois de ter sido composta), onde se ouve hoje (e desde a sua gravação com Caetano, em Tropicália 2, em 1993) “procurar porrada” ouvia-se “só jogar pernada”. A atualização constituiu-se, na verdade, na retomada de uma expressão contida na elaboração original da letra e proibida pela censura na época.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Touche pas à mon pote
Gilberto Gil
Ça veut dire quoi?
Ça veut dire peut être
Que l’Être qui habite chez lui
C’est le même qui habite chez toi
Touche pas à mon pote
Ça veut dire quoi?
Ça veut dire que l’Être
Qui a fait Jean-Paul Sartre penser
Fait jouer Yannik Noah
Touche pas à mon pote
Il faut pas oublier que la France
A déjà eu la chance
De s’imposer sur la terre
Par la guerre
Les temps passés ont passé
Maintenant nous venons ici
Chercher les bras d’une mère
Bonne mère
Touche pas à mon pote
Touche pas à mon pote
Ça veut dire quoi?
Ça veut dire peut être
Que l’Être qui habite chez lui
C’est le même qui habite chez toi
Touche pas à mon pote
Ça veut dire quoi?
Ça veut dire que l’être
Qui a fait Jean-Paul Sartre penser
Fait jouer Yannik Noah
Il fait chanter Charles Aznavour
Il fait filmer Jean-Luc Goddard
Il fait jolie Brigitte Bardot
Il fait petit le plus grand Français
Et fait plus grand le petit Chinois
Touche pas à mon pote
Gravações
Gilberto Gil – Dia dorim noite neon, 1985 – Warner Music
Gilberto Gil – Em casa com os Gil, 2022 – Gege
Comentário*
Eu tinha ido ao evento do movimento SOS Racismo, na Place de la Concorde, em Paris, e, lá, sido convidado a (e aceitado) participar da edição do mesmo no ano seguinte, marcada para a praça da Bastilha. Ao voltar ao Brasil — com o slogan deles, o “Touche pas à mon pote” (“Não incomode meu chapa”), na cabeça —, resolvi fazer a canção.
O que faz o Sartre pensar faz o Yannik Noah jogar [Noah: jogador de tênis de origem africana, exemplo de imigrante bem-sucedido na França]. Ou: “Como é que vocês, povo da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, se deixam rebaixar por tamanha mesquinharia? Isso é coisa de Hitlers, não de vocês!”. É a exortação da canção à alma francesa, às suas grandes máximas cívicas — recorrendo particularmente ao truque de usar essa entidade tão importante que é o “ser”, que diz respeito profundamente à obra de Sartre —, para tocar na questão da intolerância racial.
Meu francês era limitado, mas ainda assim eu quis ousar fazer, e acabei me deparando com essas surpresas que o próprio desdobrar-se da manifestação da poesia acaba trazendo. Essa música é particularmente um típico exemplo de que as deficiências no domínio de uma língua podem ser superadas pela excelência da linguagem. A canção se tornou conhecida na França. Os franceses ficaram admirados de ver que um fenômeno interno deles pudesse ter sido revelado a partir de fora; vários jornalistas me disseram: “Mas como que é que você fez?”. “Eu fiz.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Torpedo
Gilberto Gil
Ana Carolina
Mombaça
O Bamba sempre usou
Variações inúmeras prá dar
Conta de tantas emoções
De todas as paixões
De todas as paisagens do lugar
Tantos personagens, dramas, ilusões
Tantas noites de agonia e de luar
Lares, bares, ruas, becos, ecos de trovões
Sempre, a cada dia, um samba, oh!
Meu amor, hoje eu mesma venho aqui passar por Bamba
Só me valer dessa longa tradição do “gran” compositor
Proclamando seu viver, dando à sua dor asas, pra voar
Desde que o samba começou
Alguém sempre sonhou
Hoje sou eu que venho aqui sonhar
Possa meu samba, minha dor, meu canto, meu amor
Chegar até você, lhe despertar!
Já nesse primeiro instante da manhã
Quando o dia finalmente clarear
Possa meu torpedo lhe atingir o coração!
Ao nascer do dia, um samba, oh!
Meu amor, hoje eu mesma venho aqui cantar meu samba
Só me valer dessa eterna possibilidade de alcançar
Pelas asas da canção, a distância
Não vai nos separar
Gravação
Ana Carolina e Gilberto Gil – Ana Car9lina + um, 2009 – Armazém
Comentário*
Os coautores, Ana Carolina e Mombaça, me mandaram uma música pronta pra eu pôr uma letra nela. Sem a sugestão ou a proposta de nenhum tema, nenhuma palavra. Era um samba pra um disco dela. Ele estava fazendo um disco também. Eles fizeram esse samba — somente harmonia, melodia e ritmo — e, na hora da letra, pensaram em mim. “Vamos mandar um samba pra você fazer uma letra”, disseram. Ela toca pandeiro muito bem, gosta muito de samba, faz sambas e convocou o Mombaça pra fazer esse samba com ela, um samba rasgado, e eu fiz uma letra relativa ao compromisso dela. É ela no meio dos sambistas, tirando uma. Ela se tornou um bamba, uma bamba. “Venho aqui passar por bamba.” [Um dado de interesse: Ana Carolina é mineira de Juiz de Fora, onde nasceu também Geraldo Pereira (1918–55), um dos mais inventivos criadores da história do samba.]
Ana Carolina: “Fiz um samba sem letra com Mombaça e demorei três meses pra ter coragem de pedir ao Gil que fizesse a letra. Ele fez em dois dias, muito rápido, e eu e Mombaça quase morremos de tanta emoção!”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Tomorrow vai ser bacana
Gilberto Gil
To have a bath will be so fine
Pimenta it is too hot
To have a bit will be so fine
My mother, she will be sad
I send a letter it will be so fine
My doughter she will be crazy
She got herself it will be so fine
Tomorrow vai ser bacana
To have a rest vai ser bacana
Bacana, bacana, bacana, bacana
Mangueira, it is so high
A noite inteira it will be so fine
Favela it is so nice
Beco da fome, it will be so fine
John Lennon it´s got too long
Rock´n roll it will be so fine
Morena i am so glad
Because i love you it will be so fine
Tomorrow vai ser bacana
To have a rest vai ser bacana
Bacana, bacana, bacana, bacana
Todo dia de manhã
Gilberto Gil
Todo dia de manhã, visitar a Cabana do Peji
Pedir pro orixá zelar pelo axé
Zelar pelo lar, pelo labor, pelo lazer de Iaô
De Iaô, de Iaô
Todo dia de manhã, obrigação de candomblé
Todo dia de manhã, deixar o dia amanhecer
Todo dia de manhã, quando no horizonte o sol subir
Lembrar que Tupã andou por aqui
Nosso deus tupi, tupinambá, nosso deus tupiniquim
Tupiniquim, tupiniquim
Todo dia de manhã, obrigação de ser assim
Todo dia de manhã, pensar no Cristo Redentor
Todo dia de manhã, meditar sobre a máquina a vapor
Que esse mundo atroz faz a sua cruz
Do pulsar veloz, veloz e luz
Do gerador, do gerador
Todo dia de manhã, obrigação de dar amor
Gravações
Gilberto Gil – To Be Alive Is Good (Anos 80), 2002 – Warner Music
Comentário*
A letra, dividida em três partes, é um poema mesmo, de bonita; a primeira se referindo à cultura religiosa negra, a segunda à cultura religiosa indígena, e a última à cultura religiosa branca. Uma parte para os orixás, outra para os deuses indígenas, e outra para o Cristo Redentor, a cruz e a máquina a vapor: a civilização cristã ocidental com a “veloz idade da luz”. E a “obrigação de dar amor”, como a exigência do mundo civilizado, implicando na formação de multidões, de grandes populações com as grandes dificuldades de convívio, de interação; o significado do amor como o elemento fundamental nos imensos aglomerados humanos. As duas primeiras estrofes são relativas à tradição da comunidade, dos grupos originários, da fase originária da civilização, enquanto na última já se assombra a fase mais terminal.
“Terminal”. Esse termo é interessante porque essa última parece depender hoje das outras duas para se salvar; da lição das outras duas depende uma salvação dessa civilização. — Exatamente. A aceleração da aceleração provocou possibilidade da capotagem. Eu acho que a canção transita nesse campo conceitual semântico.
De novo aqui, a divisão em três partes, algo caro a você; não? — As três partes, sempre… Na tradição do choro. Os choros clássicos têm sempre três partes; uma primeira, uma segunda e uma terceira. E há a associação também com a ideia do Tao, a ideia filosófica da tese, antítese e síntese. O três permeia fortemente os campos da hermenêutica sobre as decifrações das coisas.
Sobre a música. — Pra mim, a música trazia um pouco do mesmo sentimento de “Graça divina”. Quer dizer, a canção, a música, o batuque dela, o intricado rítmico, isso tudo é que era, é que dava, digamos, propriamente valor às palavras, ao texto.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Toda saudade
Gilberto Gil
Da ausência de alguém
De algum lugar
De algo enfim
Súbito o não
Toma forma de sim
Como se a escuridão
Se pusesse a luzir
Da própria ausência de luz
O clarão se produz
O sol na solidão
Toda saudade é um capuz
Transparente
Que veda
E ao mesmo tempo
Traz a visão
Do que não se pode ver
Porque se deixou pra trás
Mas que se guardou no coração
Gravação
Gilberto Gil – O eterno deus Mu dança, 1989 – Warner Music
Comentário*
Essa música é um mistério, começando pela definição que ela dá de saudade [remetendo a Guimarães Rosa, para quem a saudade é ‘a presença de quem não está’] como ‘a presença da ausência’. Eu gosto muito em particular nela da imagem da saudade como ‘um capuz transparente, que ao mesmo tempo veda e traz essa visão’. ‘Veda’, para materializar a faculdade da saudade de falar da distância; e ‘traz a visão’ porque ela reivindica para o instante presente o ‘que não se pode ver’: eis a função de duas faces da saudade, de admitir a ausência mas ao mesmo tempo instalar a presença. A propriedade especial da palavra está em substantivar o binômio, a dualidade entre ausência e presença; aí reside o que eu acho expressivo nela. Que a palavra ‘saudade’ tem uma força especial, não há dúvida, mas eu não acho que ela não tem correspondentes em outras línguas; há palavras com a mesma função de ‘saudade’; equivalentes, tentativas de aproximação pelo menos. ‘Saudade’ talvez seja mais bem realizada. O engraçado é que ela não tem etimologicamente nenhuma relação com outra que diga respeito exatamente ao seu significado.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Toda menina baiana
Gilberto Gil
Toda menina baiana tem encanto, que Deus dá
Toda menina baiana tem um jeito, que Deus dá
Toda menina baiana tem defeito também que Deus dá
Que Deus deu
Que Deus dá
Que Deus entendeu de dar a primazia
Pro bem, pro mal, primeira mão na Bahia
Primeira missa, primeiro índio abatido também
Que Deus deu
Que Deus entendeu de dar toda magia
Pro bem, pro mal, primeiro chão na Bahia
Primeiro carnaval, primeiro pelourinho também
Que Deus deu
Que Deus deu
Que Deus dá
Gravações
Gilberto Gil – Realce, 1979 – Warner Music
Gilberto Gil – Ao vivo em Tóquio, 1982 – Warner Music
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Daniela Mercury – Elétrica, 1998 – Sony Music
Gilberto Gil – São João (Ao vivo), 2001 – Warner Music
Gilberto Gil, Ivete Sangalo e Caetano Veloso – Especial Ivete, Gil e Caetano, 2012 – TV Globo
Margareth Menezes – Voz Talismã (Ao vivo), 2014 – Estrela do Mar
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois Amigos, um Século de Música (Ao vivo), 2015 – Uns Produções e Gege
Silva – Bloco do Silva (Ao vivo), 2019 – Som Livre
Comentário*
Feita em Salvador, ao lado da Nara, minha filha mais velha, que estava na pré-adolescência, a música é pra ela e por causa dela. Fala do caráter fundador da Bahia e das virtudes e defeitos do homem. Por força da busca de compreensão do divino no humano, eu me empenhava em me desvencilhar do maniqueísmo, abarcando as ideias ligadas tanto ao bem quanto ao mal. De lá pra cá esse ficou sendo um tema básico de minhas canções. Quase todas exprimem a necessidade de reiterar o sentido da tolerância, do perdão, da compreensão de que o homem é permeado pelo bem e pelo mal e de que a superação de um implica a superação do outro; você não se livra do mal sem se livrar do bem. A promessa das religiões reside nisso: na superação transcendental de ambos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Tocarte
Gilberto Gil
Nando Reis
Como se toca música
Tangendo as cordas
Dedilhando as teclas
Metendo as mãos na pele do tambor
Tocar-te assim
Como se toca samba
A perna bamba
O pulso no compasso
E aquele abraço pra trazer calor
Tocar-te
No rosto, no nariz, no lábio
Com algum ressábio
Tocar-te no ventre
Que aí, já terei ido mais a frente
Talvez seja forçado a recuar
Tocar-te na perna
No braço, no seio
Com algum receio
Tocar-te no meio
Que aí, já foi tão longe o devaneio
Que o melhor talvez seja parar
Tocarte
A arte de tocar-te a partitura
Na altura que o amor possa alcançar
Tocarte
A arte de tocar-te o instrumento
Juntar num só momento o nosso par
Meu sentimento
E o teu consentimento
Meu querer
E o que queres me dar
Gravação
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases (Ao vivo), 2018 – Gege
Comentário*
Na época de escolha e realização do repertório de Gil, Nando & Gal — trinca de ases, a gente falou alguma coisa como “aqui eu faço a música, faça você a letra”, ou vice-versa, além das canções que viemos a propor, cada um de nós, de per si. Então eu preparei essa letra e mandei pra ele. O único reparo que ele fez foi [acrescentar] “o nosso par”. Eu tinha proposto uma outra coisa qualquer depois de “A arte de tocar-te o instrumento/ Juntar num só momento…”, e não rimava. Ele aí propôs “o nosso par” porque rima com “alcançar” e com “dar” — e o sentido geral da canção [com a sugestão da conjunção carnal] ficou reforçado.
Uma canção de amor original não apenas por sua mescla de romantismo e erotismo (em que o erótico é tratado de modo poético) mas por ser, simultaneamente, uma canção engajada, por conter um elemento de engajamento; por tocar numa questão dos nossos tempos, cara à mulher e ao feminismo, a do assédio. O reconhecimento por parte do homem, o cantor da canção, dos limites que se impõem à abordagem da mulher. — O limite entre o cortejar e o assediar. Essa fronteira entre a corte e o assédio. Uma tentativa de estabelecimento de demarcação. Demarcação já!
Eu acho que o início da canção [associando o corpo da mulher e o instrumento musical] a legitima. Depois, “a perna bamba” transmite o aspecto inebriante do desejo sexual. E daí segue-se toda a questão dos limites, de como isso se dá no sentido prático, no sentido do ato, das ações. A ideia da progressividade, de como o cortejar vai se intensificando, vai se concretizando, vai reclamando a aceitação do parceiro, da parceira, num jogo de aceitação e permissão, isso tudo em nome do respeito e da delicadeza. Até que [na alusão a “seio” e a “meio”], chega-se ao sexo propriamente. “… já foi tão longe o devaneio/ Que o melhor talvez seja parar”: quer dizer, aí é a hora da definição. Estamos juntos definitivamente ou não; os dois ganharam o jogo ou não; é uma partida que está ganha ou ainda não. Volta a questão da música: “A arte de tocar-te a partitura/ Na altura em que amor possa alcançar”, exigindo a qualificação do ato sexual com a dimensão amorável. Com o amor propriamente. “Sexo é amor, amor é sexo” é a reivindicação dessa canção. Por fim, “a arte de tocar-te o instrumento/ juntar num só momento o nosso par”, uma tradução para o coito.
O fecho com chave de ouro: o achado do “sentimento com consentimento”, vocábulos diferenciados apenas pelo prefixo “con”, que sugere justamente conjunção, comum decisão dos dois. — A comunhão.
Do termo “partitura” como metáfora. — O corpo da mulher como aquilo que tem que ser lido, decifrado, além de tocado. A partitura é para ler para tocar.
Do emprego de “ressábio”; de o termo estabelecer uma rima rara com “lábio”, por serem poucas as palavras finalizadas em “ábio”, e sobre (eu) não ter lembrança do seu uso em outra canção. — Eu também não. “Com algum ressábio/ Tocar-te no ventre”: será que eu posso? Devo?
Do título, contendo o termo “arte” embutido. — Mais uma palavra-valise. Me lembro que quando eu propus a letra, eu já propus como título “Tocarte”, numa palavra inteira, sem hífen.
Observável nessa letra e em outras suas nos últimos anos, mais acentuadamente do que em períodos anteriores da sua obra, é a ocorrência de decassílabos. Em “Tocarte” quase 90% dos versos são decassilábicos. Eu fico me perguntando, no caso das outras, se você escreveu a letra antes ou foi compondo junto letra e música. — No caso dessa, eu mandei a letra inteira. Ele foi adivinhando a melodia e a acentuação musical pra toda a acentuação poética proposta antes, presente na letra. Ele fez a música sobre a letra, e a música é fiel à letra. Ele não mudou uma frase, uma acentuação rítmica, nada, ele manteve tudo. Tipo adivinhou mesmo. Pôr uma música sobre uma letra já dada, já feita, é um pouco uma adivinhação. A canção popular dá essa noção, propõe esse conjunto. Uma coisa já vem um pouco junto com a outra; mesmo que elas sejam feitas separadamente, é como se já estivessem juntas. A letra revela a música, a música revela a letra. A canção popular tem isso, tem essa intenção. Ela intenta isso, ela tenta isso, ela quer isso.
Eu gosto muito dessa canção. O Nando também. Ele fez a música muito interessante.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Tiu ru ru
Gilberto Gil
Cat Stevens
Menina, veja você
O trem só anda por cima da linha
O que eu vou fazer, eu não sei
O certo mesmo é que você é minha
Menina, veja você
O trem só anda por cima da linha
O que eu vou fazer, eu não sei
O certo mesmo é que você é minha
Tiu ru ru…
Titicaca
Gilberto Gil
Sobrevieram chuvas para acomodar
Formar as poças maiores
Flores ao redor desses lugares, há
Hoje em dia, muitas flores
No lago Titicaca
Arredores milenares
No lago Titicaca
A ti, te escuto quieto, até vejo a vegetação
Até sentir o frio da noite, sinto, senão
Não, não seria nada lembrar de Titicaca
Lembrar-te assim sem ter te avistado ainda, ai de mim
Titicaca
Um claro raio de lua
A passarada a cada nascer do sol
O lago, uma índia nua
Um peixe prateado, a prata do anzol
Ainda hoje, muitas flores
No lago Titicaca
Arredores milenares
No lago Titicaca
A ti, te compreendo, até prendo a respiração
Andes, por onde andes, andará meu coração
Gente pacata, tez colorida, vida tão sã
Respirar claro, enxergar puro, cobrir com lã
Titicaca
Gravação
Boca Livre – Boca Livre, 1983 – PolyGram
Gilberto Gil – To Be Alive Is Good (Anos 80), 2002 – Warner Music
Comentário*
Eu não tinha estado lá. A canção trata de como comentar sobre um lugar aonde não se chegou a ir, como apreender uma visão sem ter visto, como compreender uma sensação sem ter sentido. Eu tinha ‘uma coisa’ com esse lago desde menino. Num determinado momento, eu não sei nem por que razão imediata, eu resolvi escrever uma canção sobre o Titicaca, um lugar-mito, um símbolo geográfico de uma região; decidi usá-lo como mote de uma música. Me veio um jorro de emoção sobre ele, e eu a compus. A canção descreve uma fantasia sobre a formação geológica do lago, trazendo elementos locais como a prata, o metal próprio do lugar. ‘Titicaca’ nasceu originalmente de informações remotas, de resíduos, fragmentos de lembranças das aulas de geografia e das fantasias que eu tinha ao pensar no lago e na região.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
The United States of my life
Gilberto Gil
I have to be beyond any highway
Tonight
I’ll still be beyond any starlight
Tomorrow
I’ll still be free from any pain or sorrow
I’ll still be high to the highest I can grow
I’ll still be here, there, now, and then
Tomorrow
I’ll still be far behind where the dark lies
Behind the darkness when I close my eyes
Before the Lord in fullness of a man
Forever
I’ll be protected whenever I fall
I’ll be together united in all
The united states of my life
The three mushrooms
Gilberto Gil
Jorge Mautner
Makes room for my mind
To get inside the magic room
Of Dionisius’ house
Time is over
War is over
I am safe and sound
I live and love
I drink and eat
I can leap and bound
Now I am dying all my life away
As well as I am being reborn
Day after day
The second mushroom
Makes room for my body
To get inside the tragic room
Of Dionisius’ house
Time is on
War is all
I am busy and sad
From mists of pain
I rise and fall
Like an endless rain
Now I am doing what I have to do
Fulfilling all my will of conquest
Moon after moon
The last mushroom
Makes room for the unknown
I get inside the secret room
Of an unthinkable house
In which I feel the grace
In which I get to be the space
From which I see the earth
Exploding into a light
That the last mushroom aroused
The last mushroom
Atomic mushroom
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil, 1971 – Philips
Comentário*
Jorge estava morando nos Estados Unidos e foi passar um tempo em Londres. Foi quando nos conhecemos e fizemos essa canção, a quatro mãos mesmo, eu e ele juntos inventando a música, imaginando versos; cortando, montando, fazendo colagem; escrevendo e retocando. A idéia surgiu das conversas com ele, sobre as relações complexas e difíceis entre filosofia e ciência, ciência e arte, arte e mitologia; sobre os grandes filósofos, os alemães, os modernos, sobre a filosofia nietzschiana e a heideggeriana, a escola de Nietzsche desembocando em Heidegger; sobre Sartre, o existencialismo; sobre as correntes mais modernas, americanas, a new left; sobre os hippies, os black panthers, as viagens psicodélicas, o campo dos estados alterados de consciência e as ligações disso com as velhas tradições orientais da yoga, do tantra, do taoísmo – todo esse panfleto neo-mitológico a que eu me refiro, ao falar de ‘Objeto sim, objeto não’.
As conversas com Mautner incluíam as grandes questões ligadas à filosofia, à política, ao futuro, à tecnologia – as grandes ameaças e as grandes promessas da tecnologia –, tudo que hoje é re-tematizado pelas discussões no campo da ecologia das quais Mautner foi precursor, naquela época. E ‘The three mushrooms’ apresenta, um pouco, um resumo disso tudo, abrangendo os temas da droga, da nova cultura, da bomba atômica, da hecatombe, do império moderno, das estratégias de dominação, de governo mundial.
Ao final, há uma cena apocalíptica, de hecatombe final, e a gente está do espaço vendo, e ao mesmo tempo o espaço sou eu mesmo: é tudo autocontido, esse eu é um eu abrangente, que envolve micro e macrouniverso, o chamado eu superior.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
The green giant, part 1
Gilberto Gil
Robert Sadin
Ernie Watts
And the biggest Japanese country outside of Japan
In Brazil there are farms the size of Belgium
There are thirty million children in the streets of Brazil, more than the whole population of Canada
Brazil is my home
Gravação
Ernie Watts (feat Gilberto Gil) – Afoxé, 1991 – CTI
Testamento do Padre Cícero
Gilberto Gil
Augusto Boal
Mas sei que num digo à toa
Padre Cícero é uma pessoa
Da Santíssima Trindade
Perdido no Ceará
Lá no meio do sertão
Existia um bom padre
Chamado Cícero Romão
Doença, miséria havia
Doutor nem tinha por lá
Nem remédio em Juazeiro
Só as coisas que Deus dá
Tinha erva pelo mato
Muita fé no coração
Pois isso já lhe bastava
Ao bom padre Cícero Romão
Muito doente sarou
Só de ouvir a pregação
Pelos conselhos o padre
Não cobrava nem tostão
Sua fama correu mundo
E vinham todos ouvir
Também em questões de terra
Cabia ao padre decidir
Era o padre homem de bem
Que a paz muito prezava
E os camponês armado
O padre sempre acalmava
Esse homem medicante
Que de graça trabalhava
Vivia da caridade
Daquilo que o povo dava
Finou-se um dia o velhinho
Foi grande a consternação
Juntou-se o povo sofrido
Na mais comprida oração
Piedoso testamento
Ouviu com todo respeito
Querendo saber do padre
Um pouco do seu direito
Fez-se leitura bem alta
Começando por fazenda
E cinco foram contadas
Que tinha ganho de prenda
Lá na rua de São Pedro
Possuía um quarteirão
Fora mais quinze sobrados
Esse bom Padre Romão
Trinta sítios bem cuidados
Era sua propriedade
Mais alguma casa ou lote
Também tinha na cidade
Muita vaca, boi e ave
Cabra, cavalo e carneiro
Que se perdeu logo a conta
Depois dos vinte milheiro
Essa estória vem provar
E o testamento também
Como sempre sai lucrando
Quem na vida faz o bem…
Gravação
Ary Toledo – Ao vivo, 1969 – RGE Premier
Terra 90
Gilberto Gil
Não basta só pensar nela
Como uma bola no ar
A Terra é onde mora a vida
Onde os pés pisam o chão
Onde o ser toma medida
De entregar-se à encarnação
Apesar de linda
Não basta sonhá-la infinda
Ela pode se acabar
A Terra também respira
Pode faltar-lhe um pulmão
De repente o tempo vira
Partindo-lhe o coração
Apesar de tudo
O mar ainda não está mudo
Sempre há de haver salvação
O desafio da eterna salvação
Cheio, vazio, criação, descriação
Que fia o fio e desafia a razão
Que traz o cio que retorna à imensidão
Que traz o tio ter sido antes o irmão
Corre o rio, como vomita o vulcão
Há milhões, milhões de anos
Que ela sofre mas se agüenta
Só neste século XX vem de completar 90
Minha Terra 90, minha Terra 90
Apesar de tanta idade
Até que não aparenta
Terra firme, terra forte
Quem tanto te sustentou
Mais um tanto te sustenta
Terra firme, terra forte
Quem tanto te sustentou
Mais um tanto te sustenta
Gravação
Gilberto Gil – It’s Good To Be Alive (Anos 90), 2002 – Gege
Comentário*
Um samba que se nutre da tradição dos velhos mestres cariocas; do Batatinha e do Gordurinha, mestres baianos. Um samba blues. Em tom menor, que insinua melancolias, que insinua esse sentimento consternado, preocupado, com a Terra. No mais, os versos são muito explícitos.
Interessante a pertinência desses versos hoje (2022), quando são mais facilmente recebíveis, compreensíveis, do que há trinta anos. — A informação sobre os riscos e as ameaças é muito mais disseminada hoje, em que há muito mais consciência ecológica do que naquela época. Veja, por exemplo, a proliferação de ações, projetos, canções etc., no sentido da proteção aos povos originários, aos biomas originários. A Amazônia, por exemplo, é uma questão escancarada. Naquela época era bem menos. Foram exatamente as mobilizações que se sucederam, como a própria Eco 92, que desencadearam todo esse rosário de ações e de encontros; Paris, Estocolmo, Rio+20… Quando você canta uma canção dessa hoje, a apreensão, a capacidade de compreensão, está redobrada. Todo mundo vai saber imediatamente do que se trata.
Como mais uma canção de temática ambiental sua, essa contém ao mesmo tempo uma conotação espiritual, a Terra é “onde o ser toma medida/ De entregar-se à encarnação”. — Ah sim, claro!
“Pode faltar-lhe um pulmão/ De repente o tempo vira/ Partindo-lhe o coração”. — Essa ideia de movimento brusco, descuidado; da falta de cuidado com a Terra que vem provocando os eventos a que vimos assistindo.
“Terra 90”: a referência à idade do planeta, 90 milhões de anos, e ao fato de que haviam se completado 90 anos do século xx. — É; era o começo da década de 90; estávamos chegando ao final do século.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Tempo só (Time will tell)
Gilberto Gil
Robert Nesta Marley (Bob Marley)
JAH would never give power to a baldhead
Run come crucify the dread
Time alone, oh! Time will tell
You think you’re in heaven, but you’re living in hell (3x)
Time alone, oh! Time will tell
You think you’re in heaven, but you’re living in hell
Back them up, oh not the brothers
But the ones, who set them up
Time alone, oh! Time will tell
You think you’re in heaven, but you’re living in hell (3x)
Time alone, oh! Time will tell
You think you’re in heaven, but you’re living in hell
Oh children weep no more
Oh my sycamore tree, saw the freedom tree
Saw you settle the score
Oh children weep no more
Weep no more, children weep no more
JAH jamais permitirá que as mãos do terror
Venham sufocar o amor
Somente o tempo, o tempo só
Dirá se irei luz ou permanecerei pó
Se encontrarei Deus ou permanecerei só
Se ainda hei de abraçar minha vó
Somente o tempo, o tempo só
Time alone, oh! Time will tell
Somente o tempo, o tempo só
Time alone, oh! Time will tell
You think you’re in heaven, but you’re living in hell
Tempo rei
Gilberto Gil
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo
Transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos
Pães de Açúcar
Corcovados
Fustigados pela chuva e pelo eterno vento
Água mole
Pedra dura
Tanto bate que não restará nem pensamento
Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei
Pensamento
Mesmo o fundamento singular do ser humano
De um momento
Para o outro
Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos
Mães zelosas
Pais corujas
Vejam como as águas de repente ficam sujas
Não se iludam
Não me iludo
Tudo agora mesmo pode estar por um segundo
Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei
Gravação
Gilberto Gil – Raça Humana, 1984 – Warner Music
Lobão – Songbook Gilberto Gil, Vol. 2, 1992 – Lumiar Discos
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Comentário*
“Tempo rei” é a minha versão para uma questão colocada em “Oração ao tempo”, em que a frase-chave para mim é: “E quando eu tiver saído/ Para fora do teu círculo/[…] Não serei nem terás sido” — quer dizer: o tempo desaparecerá, eu desaparecerei; o tempo e aquele que o inventa, o ego, estarão ambos desinventados, portanto. Na música do Caetano parece haver um niilismo essencial, um mergulho no nada absoluto e uma resignação plena, orgulhosa e altiva com a extinção. Na minha tem uma coisa mais cristã; uma, quem sabe, quimera; um vago desejo de permanência e de transformação.
Em todo o meu filosofar popular sobre o existente e o eterno, há sempre uma possível porta aberta pra algo pós. Para mim é muito difícil não crer no pós sem não crer no pré. Como me é absolutamente impossível anular a existência do anterior a mim, também me é muito difícil aceitar a inexistência do posterior; para mim são coisas iguais. Assim como eu “Não posso me esquecer que um dia/ Houve em que eu não estava aqui” (“Cada tempo em seu lugar”), um dia haverá em que eu não estarei aqui: mas esse dia haverá; haverá o ser das coisas que serão independentes de mim então. Eu não imagino a extinção de tudo com a extinção do meu ego. A morte de todas as pessoas que nós conhecemos até aqui não extinguiu o mundo — nem o que foi anterior a elas, nem o que lhes foi posterior; por que esse milagre aconteceria justo comigo? Eu levaria tudo comigo?
Aí reside para mim um problema do existencialismo. Aí, e só aí, eu esbarro um pouco em Sartre, apesar do meu grande amor por ele, e ele não me convence. Sartre morreu e o mundo está aí! Por isso a sua filosofia eu chamaria mais de individualismo do que existencialismo. Um existencialismo individualista, não algo universalizável.
[O provérbio “água mole em pedra dura etc.” fala da eficácia que as coisas acabam tendo ao durarem no tempo. Na letra, a omissão do final do ditado, “até que fura” (cujo significado é o da ação de interferência no mundo, dentro do plano do tempo “real”, cronológico), e a sua substituição pela expressão “que não restará nem pensamento”, além de servirem para romper a expectativa de enunciação completa de um dito conhecido, servem, segundo Gil, sobretudo ao seu propósito de sugerir a ideia de corte da dimensão do tempo enquanto duração para a dimensão do tempo “enquanto eternidade sorvedora de todas as suas dimensões, para a sua transdimensionalização”; de saída “do tempo-existência para o tempo-essência (o eterno)”; do tempo para o “atempo” — onde, nas palavras do compositor, “já nem pensar é possível”.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Tartaruguê
Gilberto Gil
Anauê, tartaruga
Mera invenção
Hora de me iludir
Pura emoção
Afoxé, axé, axé, axé, axé
Sei que anauê
É uma saudação
Tartaruguê
Eu não sei, sei não, sei não,
sei não, sei não
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
Você pega um violão, começa a ensaiar um riff, uma levada, e aí vêm umas onomatopeias na cabeça; você começa a pronunciar frases, sílabas que vão se concatenando, criando uma sonoridade. Daí, “Anauê tartaruguê/ Anauê tartaruga”.
[Bem Gil, que participou da gravação da música, conta que, quando Gil lhe mostrou a canção — que acabou sendo dedicada a Dom, filho de Bem — no estúdio, ele imediatamente reagiu: “Que maneiro, Tartaruguê! O Dom vai gostar”. E ele falou: “É mesmo, o Dom!”. Segundo Bem, “não foi uma coisa consciente, de ele pensar na tartaruga porque o Dom curtia as Tartarugas Ninja. Deve ter sido algo inconsciente, porque quando eu falei aquilo, ele se surpreendeu, e decidiu: ‘Então essa música é pra ele’. Na hora, meio que deu um estalo nele, como se de fato a ideia da tartaruga tivesse vindo por algum motivo que ele só descobriu ali, quando eu lembrei a ele que o Dom curtia. E ele já sabia obviamente disso, porque o Dom vivia vestido de tartaruga e brincando com os bonecos”. Gil concorda:]
O Bem tem razão. “Anauê tartaruguê” foi um riff de violão que eu fiz com essa onomatopeia — tanto é que Caetano estranhou, inclusive, o anauê, que era uma saudação dos integralistas. Aí eu digo na letra que é uma saudação, já quando eu resolvo fazer desse mote uma cancioneta — e aí, sim, já para o Dom. Sou eu explicando a ele o que quer dizer tartaruguê e o que quer dizer anauê.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Table tennis table
Gilberto Gil
I and I
Play to show we are able
Not to die
Small and light white ball
Forth and forth
All is irie and irie is all
Love is worth
Don’t think I’m trying to make another I
One is enough
I’m just expanding to overstand a cry
As well as a laugh
Don’t think I’m lieing to fake another me
One is too much
I’m just extending the shores of my sea
Beyond any reach, beyond any touch
See, on the opposite side as if we look on a mirror
The other, the same
See, on the table tennis table I’m killing the killer
Is this me/we game
This me/we game
This me/we game
Oh! Me/we
Yes, me/we
The shortest poem in all poetry
Oh! Me/we
Yes, me/we
The poem Cassius Clay declamed
Like I and I
The same I and I
Identical to I and I
The pray that rastamen proclaimed
To say that we are never alone in this world
Me/we, I and I
To state that state of togetherness
The oness that means not to die
Table tennis table
Ping-pong, ping-pong, I and I
Play to show we are able
Not to die, not to die
Small and light white ball
Forth and forth and so forth
All is Irie, Irie is all
Love is worth, love is worth
Gravação
Gilberto Gil – Kaya N’ Gan Daya, 2002 – Warner Music
Comentário*
A respeito do pequeno poema, ‘me/we’ (de fatura oswaldiana, lembrando, de certo modo, o ‘amor/humor’, do poeta modernista Oswald de Andrade), incrustrado no meio da letra – É uma lembrança feita a mim pelo Jorge Mautner. Ele se referia ao episódio protagonizado pelo Cassius Clay, que, ao ser homenageado numa universidade americana, veio ao microfone para dar seu pronunciamento, no final da cerimônia, e disse apenas: ‘Me, we’. O Mautner é que destaca isso como sendo um poema, e como sendo o menor poema da história (expressão que eu aproveito na letra), atribuindo a isso um extraordinário valor. A música, na verdade, foi feita por causa dessa observação do Mautner; é para ele.
Quanto a ‘irie’ e ‘I and I’ – ‘Irie’ é uma expressão do dialeto rasta, que significa: ‘Tudo é bom, tudo é completo, tudo é limpo, tudo puro’, sendo também dos rastafari outra expressão próxima, ‘I tal”, que quer dizer ‘total’, integral’, ‘completo’. Esse i primeiro em ‘irie’ é o mesmo de I. E o ‘I and I’ é, exatamente, ‘nós’; é, na realidade, ‘eu e nós’ – daí eu tê-lo associado ao ‘me, we’ do Clay. E como se tratava de Cassius Clay, alguém com a mesma dimensão heróica e icônica do Bob Marley, ambos mais ou menos próximos em seus envolvimentos com religiosidade e com negritude, eu não hesitei em fazer a analogia.
Uma palavra e dois versos – O oness da letra deriva do one muito usado pelos rastas, estando presente inclusive numa canção, na forma de ‘one love’ (‘One love, one love…/ Let’s get together and feel all right’), e sendo uma saudação comum entre eles; por exemplo, no final de uma mensagem, de uma carta, eles dizem: ‘One love; one love Gil’.
‘The oness that means not to die’: unidade no sentido da integralidade, da totalidade, da unidade; no sentido mítico, místico, cósmico, maior; a unidade que implica um abraço, um congraçamento, uma unidade de vida/morte, quer dizer, o eterno maior que a vida, maior que a morte, o eterno transcendental.
‘I and I/ Play to show we are able/ Not to die’: embutida, a idéia mística, religiosa, da salvação, da vida eterna, do alcance da promessa de todas as religiões, isto é, ultrapassar a barreira da morte física: a unidade com o ser, o abraço, a idéia religiosa mesmo, profunda, de religação, o re-ligare religioso, presente em todas religiões, inclusive no neojudaísmo dos rastafari.
Dos estímulos à realização – Fiz essa música sentado no tatame, na sala da minha casa em Salvador. Tudo veio de uma vez, música e letra; eu fui fazendo, tocando, cantando, e em uma hora ela estava pronta. Foi impressionante. Mas tudo começou antes.
Eu estava saindo de Kingston, voltando para o Brasil após as gravações do Kaya n’gan daya previstas para a Jamaica, quando eu pensei que eu tinha que fazer uma música nova para o disco, e que de alguma maneira tinha de ser sobre Marley. Eu estava no avião, indo para Miami, e peguei uma revista de bordo, na qual, de repente, eu vi um anúncio de um resort – um desses hotéis fazenda – da Jamaica, com várias fotos ilustrando as dependências do lugar; uma delas trazia escrito ‘table tennis table, e eu achei essa expressão incrível, maravilhosa, pois ela própria é uma mesa de tênis de mesa!
Tinha piscina, um campo de futebol, um de golfe, e uma table tennis table. Eu disse: ‘Table tennis table!’ – e na mesma hora pensei em Marley, eu e ele, nós dois jogando ping-pong (e de fato a música, para mim, é isso) – e aí veio o ‘I and I’. Assim, já no avião comecei a pensar no tema geral da canção. Nesse ínterim, entre a minha chegada ao Rio, de volta da Jamaica, e o dia que eu fui para Salvador, eu estive com Mautner, e a gente falou muito do ‘me, we’ do Cassius Clay. Todos esses elementos foram se acumulando e, por isso, eu acho, quando eu sentei para fazer a música, ela saiu praticamente de uma vez.
A idéia da expressão-título repete a que eu tive, também vendo uma expressão numa revista, que veio dar a música ‘Mardi dix mars’, em francês, a partir de um mesmo jogo de palavras espelhadas. E table tennis table é a própria mesa e o próprio jogo de ping-pong: um lado e o outro; a rede de tênis no meio; a bolinha que vai e que vem. Por isso eu usei todos os elementos, obviamente propostos pela idéia. A idéia já veio com a sua decupagem toda.
Enfim, “Table tennis table’ não é poema de poeta; é poesia, ela própria, fazendo-se. Eu só fui um veículo, simples. Não há ‘eu’ nessa música, só ‘I and I’, mas eu mesmo não: o que há é o eu poético, o da poesia. É uma poesia de inspiração religiosa mesmo. Eu diria que é a minha melhor letra em inglês.”
*Extraído do livro Gilberto Gil – Todas as Letras