Músicas
Jurubeba
Gilberto Gil
Beba beba beba beba beba beba juru
Jurubeba
Licor licor licor licor licor de jurubeba
Beba chá de juru, beba chá de jurubeba
Oba, bicharada viva, pé de jurubeba
Jurubeba
Canta, passarada linda, flor de jurubeba
Quem procura acha cura, flor de jurubeba
Quem procura acha na raiz de jurubeba
Tudo que é de bom pro figueredo e que se beba
Feito vinho, feito chá
De licor, de infusão
Jurubeba, jurubeba, planta nobre do sertão
Gravações
Mariana Aydar – Brasil, Sons e Sabores, 2005 – YB Music
Comentário*
Meu trabalho é frequentemente permeado por uma tendência a se aproximar das ideias do slogan e do jingle, que foi por onde eu comecei basicamente a fazer música: depois de compor algumas canções em casa, eu fui logo trabalhar para uma agência de publicidade de Salvador, fazendo jingles.
Criei vários: de lojas de tecidos, de sapatos, de bateria de carro. Um deles, o dos calçados Calba, dizia: ‘Parece incrível, mas é flexível/ É o calçado que você sonhou/ É bossa nova exclusiva da Calba/ É bossa nova que a Calba criou.’ Era um sapato tipo Vulcabrás, versão baiana. O das lojas O Cruzeiro finalizava: ‘Nas lojas O Cruzeiro seu dinheiro tem ainda o cartaz/ Nas lojas O Cruzeiro seu cruzeiro vale mais!’
Um outro, das lojas Milisam: ‘Milisam tem roupa feita para você comprar/ Sem sentir/ Compre de tudo pra vestir/ No crediário popular/ No plano espetacular/ Na sua Milisam’.
Mais tarde, cheguei a fazer alguns no Rio. Um ano depois do meu primeiro disco, um deles ganhou um concurso aberto pelo Jornal dos Sports, que na época remodelava tipografia, cor, diagramação etc. Fiz também um jingle para os cigarros Hollywood; a canção falava sobre a fumaça como um veículo para os sentimentos e as ideias; como um puxador de emoções.
A lógica do convencimento, do apelo à sedução, através do ressaltar de traços e elementos constituintes de alguma coisa, típica da linguagem de jingles, é uma característica que de vez em quando aparece nas minhas canções – a tentativa de ir diretamente ao interlocutor, sem intermediações, com ‘um produto’ a oferecer: um pensamento, um sentimento, um valor, uma avaliação, um modo de ver.
Jurubeba, além de se utilizar da forma, teve mesmo a intenção de ser jingle: foi composta para fazer propaganda da bebida – um composto com vinho que contém boldo e apresenta propriedades medicinais, boa para o aparelho digestivo, e que lembra alguns amaros do Mediterrâneo. Eu gosto muito. Um amigo meu, o Synval da Costa Lima, irmão de Vivaldo da Costa Lima, antropólogo, tinha uma fábrica e costumava me mandar umas caixas de Jurubeba Leão do Norte. É a melhor.
P.S. — [Gil já havia esgotado seu estoque de jingles na memória, quando, muito tempo depois de editar o comentário acima, eu recebi de Belina, sua primeira mulher (que manteve a letra manuscrita desde a época da composição, início da década de 60, quando ainda namorava Gil), a transcrição de mais este, que, pela forma e extensão, me sugeriu a denominação de um gênero musical, o jingle-canção — ao contrário de “Jurubeba”, que seria, digamos assim, uma canção-jingle — mas, seja como for, trazendo também em seu conteúdo a publicidade de uma bebida: “Morango, pera e limão/ Gasosinhas três delícias, que prazer/ Fratelli Vitta, qualidade e tradição/ Gasosinhas gostosinhas pra você beber// Eu já sei e todos sabem/Até hoje ainda não há/Igual a Fratelli Vitta/ Saboroso guaraná/ Não há outro e acredito/ Que outro não pode haver/Guaraná Fratelli Vitta/É guaraná pra valer”.]
Outro P.S. (sobre outra canção-jingle). — [O resgate do jingle e minha apreciação sobre ele e sobre “Jurubeba” parecem ter reavivado a memória de Gil. A tempo, ele se lembrou de outra peça do gênero, composta em 1992. Ao contrário de “Jurubeba”, porém, “A turma do focinho” é mais propriamente uma canção- -jingle de caráter propagandístico que publicitário. Ou, para ser ainda mais exato, dado o seu tom crítico, uma canção-jingle de protesto contra a sujeira nas praias e de propaganda das ideias da Ondazul, movimento e, depois, fundação ambientalista que Gil presidiu.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Jubiabá
Gilberto Gil
Filho malcriado de uma velha tia
Via com seus olhos de menino esperto
Luzes onde luzes não havia
Cresce, vira um forte, evita a morte breve
Leve, gira o pé na capoeira, luta
Bruta como a pedra, sua vida inteira
Cheira a manga-espada e maresia
Tinha a guia que lhe deu Jubiabá
Que lhe deu Jubiabá
A guia
Trava com o destino uma batalha cega
Pega da navalha e retalha a barriga
Fofa, tão inchada e cheia de lombriga
Da monstra miséria da Bahia
Leva uma trombada do amor cigano
Entra pelo cano do esgoto e pula
Chula na quadrilha da festa junina
Todo santo de vida vadia
Tinha a guia que lhe deu Jubiabá
Que lhe deu Jubiabá
A guia
Alva como algodão e tão macia
Como algo bom pra lhe estancar o sangue
Como álcool pra desinfetar-lhe o corte
Como cura para a hemorragia
Moça Lindinalva, morta, vira fardo
Carga para os ombros, suor para o rosto
Luta no labor, novo sabor, labuta
Feito a mão e não mais por magia
Tinha a guia que lhe deu Jubiabá
Que lhe deu Jubiabá
A guia
Negro Balduíno, belo negro baldo
Saldo de uma conta da história crua
Rua, pé descalço, liberdade nua
Um rei para o reino da alegria
Tinha a guia que lhe deu Jubiabá
Que lhe deu Jubiabá
A guia
[ para o filme Jubiabá, de Nelson Pereira dos Santos ]
Gravação
Gilberto Gil – Soy loco por ti America, 1987 – Warner Music
Comentário*
[Canção da trilha do filme de Nelson Pereira dos Santos para o livro homônimo de Jorge Amado.]
Jubiabá foi o primeiro romance do Jorge Amado, que tinha 22 anos quando o escreveu e 23 quando o publicou. Uma estreia que foi um estouro, com direito a elogio de Albert Camus dizendo que o livro era um assombro. — É: com uma complexidade toda de relações humanas num plano transcendente já. Muito interessante, muito importante. O jorro poético dessa letra nasce de um caudal que já está no livro e que depois Nelson levou até às imagens.
Para fazer as canções da trilha, você leu o livro? Já tinha lido? — Já tinha lido, e li de novo.
A canção leva o nome de “Jubiabá”, que é o pai de santo, mas narra a história de Balduíno, o capoeirista. — Porque o personagem mais abrangente, digamos assim, é o pai de santo, mas os descendentes poéticos são os personagens que vêm fazendo o enredo todo.
O substantivo próprio faz um jogo com o adjetivo nele contido — “baldo”, desprovido, carente; um descendente da escravidão. As imagens são fortes: “Pega da navalha e retalha a barriga/Fofa, tão inchada e cheia de lombriga/ Da monstra miséria da Bahia”. — É isso que Jorge quis retratar no seu livro e é isso que proporciona o elogio do Camus.
A história toda, a complexidade da Bahia, da questão étnico racial brasileira, deve tê-lo assombrado. — Exatamente. As semelhanças com a questão dos imigrantes africanos para a Europa, para a França, essa similitude, os escravos todos, o tráfico negreiro. Tudo isso. A Diáspora negra, as escravidões todas das Américas. Jorge Amado, grande receptáculo dessa dimensão narrativa, um socialista, logo dedicou-se a isso.
Duas quadras da letra acabaram sendo omitidas na gravação (a primeira começando com “Alva como algodão e tão macia”) e aludem à moça branca que se apaixona por Balduíno, por quem ele se apaixona também, e que é filha do senhor que ele serve, embora o tempo não seja mais o da escravidão; mesmo assim o amor deles não se realiza (como Gil canta em “Lindinalva”, ver a letra seguinte). — Sim, não se realiza. O amor é submetido à dimensão trágica da impossibilidade. Era impossível em uma rede de relações tão complicadas que o amor desabrochasse. É trágico. Romeu e Julieta. O problema era de ordem racial e social. É o gênio de Jorge.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Joia rara
Gilberto Gil
Hoje vem o vento
A qualquer momento
O fogo virá
Coração vadio
Tem que estar atento
Pois cada elemento
Terá seu lugar
Água e ar e fogo
Terra pedregosa
Pedra preciosa
Tudo a merecer
Um canto na alma
Um tapa na cara
Uma joia rara
Um tanto sofrer
No meio do rio
A voz do barqueiro
Lança o desafio
Buda há de escutar
No meio da noite
No meio do frio
Ao fisgar do acoite
Buda há de encontrar
Justo justo meio
Entre o belo e o feio
Longe do receio
Perto do sonhar
Onde o amor se esconde
Onde o amor se ampara
Uma joia rara
Um certo penar
Gravação
Gilberto Gil – Joia Rara (trilha sonora da novela da Rede Globo), 2013 – Som Livre
Comentário*
A letra rememora a lenda sobre a iluminação do Buda. A lenda diz que ele se iluminou exatamente num determinado momento em que navegava por um rio. Foi quando o sentido do caminho do meio lhe ocorreu, o que lhe teria deflagrado a iluminação. A canção é sobre isso. Uma descrição dessa lenda da iluminação. Buda teria ouvido a voz de um barqueiro, e aí se iluminado. Evidentemente tudo isso, na canção [composta para a abertura de uma novela homônima], é dirigido a uma tentativa de explicação da dimensão da espiritualidade, a noção do sofrimento e gozo, a ideia dos contrários, algo que é recorrente no meu campo temático, no meu receituário de composições, de elementos pra compor.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
João Sabino
Gilberto Gil
Pra quem?
Pro santo
Pra quem?
Pro santo
Pra quem?
Pro santo espírito senhor
Pai do filho do Espírito Santo
Senhor pai do filho do Espírito Santo
Senhor pai de quem?
Pai do filho do Espírito Santo
Senhor pai de quem?
Pai do filho do Espírito Santo
Filho do Espírito Santo
Filho de uma localidade de lá
Nessa localidade de lá
Uma abertura de si
Uma embocadura pra dó
Sustenindo uma passagem pra ré
Mi bemol
Já traz o som, o eco
A claridade
Ainda um pouco abaixo do horizonte
Atrás do monte
De mi pra fá
Sustenindo, suspendendo
Sustentando, ajudando o sol
Nascer
Aqui na terra
Atrás da serra
Cachoeiro do Itapemirim
O sol nascer
João Sabino, eu imagino
Quando era menino, via assim
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao Vivo), 1974 – Gege
Comentário*
A música que eu fiz em homenagem a João Sabino, pai do filho do Espírito Santo… Nonsence, mas não tanto. Porque João Sabino era o pai de Rubão Sabino [músico que tocava com Gil naquele período], que nasceu no Espírito Santo. ‘Filho de uma localidade de lá’: Cachoeira do Itapemirim – de onde ambos eram. Essa composição é uma loucura. Estranha, inusitada. Toda ela construída com elementos da coisa do nonsence, mas na verdade nem tanto assim. João Sabino era sanfoneiro – tocava sanfona de oito baixos – e eu o conheci no Rio, onde ele morava. Uma figura extraordinária, um negro bonito. Eu gostava muito dele e o homenageei com essa música. O pai do filho do Espírito Santo. Uma maluquice. Quem é louco por ela é o Moreno.
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Jeca total
Gilberto Gil
Presente, passado
Representante da gente no senado
Em plena sessão
Defendendo um projeto
Que eleva o teto
Salarial no sertão
Jeca Total deve ser Jeca Tatu
Doente curado
Representante da gente na sala
Defronte da televisão
Assistindo Gabriela
Viver tantas cores
Dores da emancipação
Jeca Total deve ser Jeca Tatu
Um ente querido
Representante da gente no olimpo
Da imaginação
Imaginacionando o que seria a criação
De um ditado
Dito popular
Mito da mitologia brasileira
Jeca Total
Jeca Total deve ser Jeca Tatu
Um tempo perdido
Interessante a maneira do tempo
Ter perdição
Quer dizer, se perder no correr
Decorrer da história
Glória, decadência, memória
Era de Aquarius
Ou mera ilusão
Jeca Total deve ser Jeca Tatu
Jorge Salomão
Jeca Total Jeca Tatu Jeca Total Jeca Tatu
Jeca Tatu Jeca Total Jeca Tatu Jeca Total
Gravações
Gilberto Gil – Refazenda, 1975 – Warner Music
Emílio Santiago – Brasileiríssimas, 1976 – Universal Music
Comentário*
O fato de que a obra de Jorge Amado tinha antecedido ao período televisivo e agora estava na televisão (era a época da novela Gabriela) me fez pensar nas interseções entre os mundos rural e urbano — muito presentes em seus livros — e no encaminhamento evolutivo dos vários Brasis no sentido campo-cidade, vindo daí a ideia de traçar um risco do Jeca Tatu a um personagem ligado já a um tempo de mudanças técnicas e socioculturais recentes no país, que seria o Jeca Total.
A canção é uma metáfora da, ainda que penosa e minimamente processada, emancipação do homem do povo no Brasil, dentro do grande ciclo histórico da politização das massas [primeira estrofe], simbolizada num ente idealizado em lugar da imagem depreciativa do brasileiro inviável, paupérrimo, esfarrapado, descalço e cheio de verme [segunda e terceira estrofes], não sem um contraponto que põe em dúvida o desejo cumulativo contido na própria ideia progressista de avanço [última].
Jorge Salomão entra no final como uma síntese e um exemplo de Jeca Total. Menino do interior da Bahia, levado pelo impulso de uma geração, ele parte, como o irmão, Waly, de Jequié pra Salvador, de Salvador pro Rio, e daí pra Nova York, tornando-se como realizador um artista no plano do low-profile, não uma celebridade, mas de todo modo um modelo nítido de emancipação própria.
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Jards Anet da Vida
Gilberto Gil
Jards Macalé
Ou melhor, da selva
Ou pior, da Silva
Ou pior, da selva
Ou melhor, da Silva
Gravação
Jards Macalé – Aprender a nadar, 1974 – Philips
Jacintho
Gilberto Gil
Já sinto aqui na barriga
Mais preguiçosa a bexiga
Mais ociosos os rins
Jacintho
Já sinto aqui no meu peito
Alguns sinais de defeito
Coração, pulmões e afins
Velhice
Cálculos, calos, calvície
Hora de chamar o vice
Para assumir o poder
Seu caso
Vaso com mais de cem anos
Vaso sem quebras, sem danos
Meus parabéns pra você
Jacintho
Já sinto certa inveja de você
Cem anos não é para qualquer um viver
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
Um velhinho que eu conheci em São Paulo. Ele estava com 98 anos. Casado com uma mulher que a Flora conheceu no casamento de uma das amizades comuns delas em São Paulo, e de quem se tornou amiga. Acabamos um dia convidados pra um jantar na casa deles. E aí conhecemos Jacintho e nos tornamos relativamente amigos, passamos a frequentar esporadicamente a casa deles. Um ano e meio depois ele faria cem anos. Aí me deu a ideia de homenagear o centenário dele. De dar-lhe os parabéns pela longevidade.
Daí, a minha solidarização com a velhice dele a partir do meu próprio envelhecimento; daí, a boa inveja do mais jovem em relação ao mais velho, no sentido de como alcançar a idade mais avançada, e levando em consideração as questões de saúde que me afetavam naquele momento.
Também a ideia do envelhecimento como a cobrança natural que a natureza faz sobre a nossa parcela de natureza, sobre o nosso quinhão natural, que é o nosso corpo: “Velhice/ Cálculos, calos, calvície/Hora de chamar o vice”. Essa aproximação com a segunda vida possível. Na verdade — como eu diria? — um outro modo de nomear a morte. Chamando-a de vice, aproveitando a rima com calvície, brincando com isso.
“Vice” está dentro de “calvície”, assim como “calos” dentro de “cálculos”; e “vice” também está em “velhice”. É um jogo linguístico rico, interessante. Estabelece-se uma relação de som e de sentido entre essas palavras, como se materialmente, concretamente, no plano da linguagem poética, o “vice”, que no caso é metáfora pra morte, estivesse relacionada, como está, com a “velhice” e com a “calvície” também. — No caso dele, de alguém fazendo cem anos, quer dizer, numa aproximação compulsória com o momento de passagem, com a ideia da morte. Uma aproximação que ele não deveria ter nem aos vinte, nem aos trinta, nem aos quarenta, nem aos cinquenta anos, mas ao cem! Aí já é mais natural que essa aproximação seja sentida. E que venha com um sentimento mais benigno sobre a morte! Era eu falando isso tudo pra ele e já dizendo: eu também já estou a caminho, também já estou por aí, já estou ficando velho, já estou velhinho. A cobrança da natureza sobre o corpo já está se dando no meu caso; por isso, o relato da bexiga preguiçosa e da ociosidade renal.
Tem a brincadeira também do nome dele com o verbo “sentir”. Era irrecusável.
Ele faleceu com quantos anos? — Aos 102. Canô foi até 105. Minha mãe, Claudina, até 99.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil