Músicas
Músico simples
Gilberto Gil
Tinha sido tocado num tom muito alto
Desafinei sete vezes na noite
Saí da boate chorando
Sonhos desse tipo são comuns
Para um músico simples dos bares da vida
Sonhos do eco
Do medo
Da culpa
Do erro
Da noite perdida
E tantos outros ecos
Pode um sonho representar
Ressonância
Ânsia
Reverberação
Coração despedaçado
Dobrado
Choro
Fado
Tango
Triste acordeom
Gravações
Johny Alf – Nós, 1974 – EMI
Gilberto Gil – O Sol de Oslo, 1998 – Pau Brasil
Gilberto Gil – O Viramundo, Vol. 2 (Ao Vivo), 1999 – Gege
Gilberto Gil – Satisfação (Raras e Inéditas), 1999 – Universal Music
Comentário*
Johnny Alf me pediu uma canção, e aí eu acabei aproveitando um fragmento de visão delirante sobre o músico, porque o assunto associava tanto ele quanto tantos outros músicos ao mundo dos que têm uma relação profunda, lírica mesmo, com a música. Fiz então uma canção impressionista, tanto musical quanto poeticamente, sobre um sonho hipotético — para um músico, um pesadelo: ele vai cantar e, de repente, alguém lhe dá uma tonalidade muito alta… Música construída impressionisticamente, com paisagens nitidamente impressionistas — pois Johnny Alf é um impressionista popular, um impressionista do samba, da canção, da música brasileira — e de uma suavidade e delicadeza que são típicas dele; que estão traduzidas em tantas e tantas letras de músicas dele.
A canção dá conta do que é “viver na noite”; do que está associado à ideia de transgressão, de pecado, de excesso, de desvios de conduta, característicos dos lugares do confinamento dos artistas, onde eles são ao mesmo tempo livres e presos; as prisões iluminadas deles. A música se parece muito com Johnny Alf e com tudo que ele foi, aparentando ter uma vida minimamente atormentada, todo retraído e recluso. Um músico do silêncio, como João Gilberto. Ambos de uma mesma época; ambos reservados, tímidos. Quando penso nele, penso no João; penso no João, penso nele. João gosta muito dele também, assim como uma espécie de cúmplice, de companheiro de mundos diferentes, estranhos, daqueles anjos tortos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Músicas incidentais
Gilberto Gil
Música moderna
Gilberto Gil
Feita descaradamente por amor
Como outra qualquer canção
Feita descaradamente por amor
Como uma modinha antiga feita por amor
De uma vulgaridade total
Eu queria tanto essa canção e no entanto
O que eu canto agora é
Simplesmente música moderna
Feita pra consumo como fumo é
Como tudo que se vê no mundo agora é
Produto da era industrial
Como Coca-Cola ou a marca Pelá
De uma realidade brutal
Musa cabocla
Gilberto Gil
Waly Salomão
Papagaio nenhum solta um pio
Sereia canta sentada na pedra
Marinheiro tonto medra pelo mar
Sou pau de resposta, jiboia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela
Coração pipoca na chapa do braseiro
Sou baunilha, sou lenha que queima
Que queima na porta do formigueiro
E ouriça o pelo do tamanduá
Mãe matriz da fogosa palavra cantada
Geratriz da canção popular desvairada
Nota mágica no tom mais alto, afinada
Sou pau de resposta, jiboia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela
Mulher de coronel
Gilberto Gil
Tome o que eu tenho pra dar
Se não servir pra você
Atire tudo no mar
Diga o que você disser
Sei que não vou me importar
Faça o que você fizer
Não deixarei de te amar
Onde você mora
Mora o meu coração
Quando você chora
Chora tudo que é olho
Da minha solidão
Se você namora
Ora, meu Deus
Que feliz deve ser
O mortal que provar
Desse mel que escorrer
Dos teus lábios, então
Gravações
Gilberto Gil – O Eterno Deus Mu Dança, 1989 – Warner Music
Enok Virgulino – Mulher de Coronel (single), 2022 – Enok Virgulino
Comentário*
[Uma canção antimachista em que a “mulher de coronel” é na verdade homem: é o “coronel” — só que, nas palavras de Gil:] redimido do seu machismo na condição de amante endoidecido e extasiado diante da mulher que lhe inspira um amor tão grande que ele se regozija com a possibilidade de ela distribuí-lo generosamente para outros mortais.
Como era uma música nordestina, um xote, eu quis usar a imagem comum dos velhos coronéis do mundo rural — com suas amantes e uma mulher sempre submissa — para extrapolá-la. A verdade é que eu me lembrava também de casos similares (ao da canção) de que se tinha notícia no meu tempo de garoto onde eu morava: histórias de velhos apaixonados amantes de prostitutas; de senhores bem estabelecidos, comerciantes ou fazendeiros, que sustentavam e amavam uma determinada mulher com uma benevolência e uma transpossessividade que transbordava, acabando por incluir a abnegação.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Mr. Sganzela
Gilberto Gil
Mr. Sganzerla
Keep going, keep going
Foi a descoberta do brasil
Foi a paralisia infantil
Foi a delinquencia juvenil
He could say life is a joke
Loughing at you, he could
Early in the morning he could
Wake you up just to talk about
He would discuss it over and over
The way filmakers usually do
He would discuss it so long
Until mistreating you
Until mis cheafing you
Until mis leading you
Until the afternoon
Move along with me
Gilberto Gil
Seems to be what the river says
Move along with me
Sings the water spring as it sprays
Move along with me
Plays the sea
Its roaring symphony always
Move along with me
From the tree, the free bird commands
Move along with me
Says the day, as the sun descends
Move along with me
Calls the bell
Spreading gospel in the winds
Here I am, in my groove
Simply following natural streams
On the trends of true love
To the lands of those impossible dreams
Here I am, on the move
There is always beyond to be
Since all the stars above
Move along with me
Gravação
Gilberto Gil – Nightingale, 1978 – Elektra
Comentário*
“Move Along with Me” foi composta para um disco americano, feito e lançado nos Estados Unidos. É do Nightingale. — É boa; eu gosto muito dessa canção. Com aliterações (como entre “trends” e “true”) e várias rimas internas, “Move Along with Me” tem uma letra muito bem armada em seu sistema rítmico, em que prevalecem rimas perfeitas, consoantes, mas com algumas quase consoantes, quase toantes (como a de “commands” com “descends” e “winds”, entre os finais “ands”/“ends”/“inds”), lembrando de certo modo as rimas toantes da poesia inglesa moderna, do século XX, que influencia João Cabral de Melo Neto, que as introduz no contexto da poesia brasileira. — Essa mesmo, uma quase rima, com um som tonalmente próximo de uma rima perfeita. Bem inglesa. A letra é bem inglesa, denota já uma proximidade maior e mais efetiva com a língua; tem uma riqueza, uma exigência, um bom manejo da linguagem.
A carga poética é maior. — O patamar é mais alto. Dá pra gente lê-la na página. — É autossustentável.
A canção é meio williamblackiana, falando da natureza. — De fenômenos naturais. “Mova-se comigo”, diz o mar na sua eterna, na sua permanente sinfonia. É bonito. “Mova-se comigo”, diz o sino, espalhando evangelho nos ventos… Depois, aqui estou eu no movimento, na movida. Simplesmente seguindo fluxos naturais, a correnteza. No final, sempre há o além do além, desde que as estrelas no alto se movam junto comigo. É interessante essa sujeição astronômica, astrológica. E volta-se ao “move along with me”.
O verso-título é o primeiro e o último da letra. Circularidade.
— De construção poética clássica.
Ao tempo da canção estamos vivendo ainda o florescimento da contracultura, com sua valorização dos elementos que compõem a natureza e inspiram poesia. — O senso da solidariedade, do ser solidário: eu me mexo desde que tudo (a árvore, o pássaro, o Sol, a luz, o som, a água — todo esse campo) se mexa comigo. A exigência do movimento. O movimento como captação da imagem mesmo da natureza. O natural é aquilo. “Amor é tudo que move”, de novo. Essa é a ideia. Eu gosto muito dessa canção.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Morte de Drime
Gilberto Gil
Gravação
Gilberto Gil – Um trem para as estrelas (filme de Cacá Diegues, 1987) – Globo/Som Livre
Morena
Gilberto Gil
Cassiano
Morena
Mundo menino pequenino
Não tem cabeça pra pensar
Leva qualquer proposta a perder
Ah, morena, se o mundo cresce, tudo ok, morena
Cresce a esperança, sobe a maré
Mon Tiers Monde
Gilberto Gil
Plus que la mort
La mort des hommes dans la merde
Mon Tiers Monde s’engage dans la vie
Du fond même de mon coeur
Du fond même de mon coeur
C’est la chaleur, c’est chaleur
Le bonheur de la pluie
Pour le momment ça marche
Ça en fait rien
Rien la réalité sauvage
Mon Tiers Monde s’engage dans la vie
Du fond même d’un sommeil
Du fond même d’un sommeil
J’ai le soleil, j’ai le soleil
Comme mon meilleur ami
Notre jours est consacré
A un Pan universel
Soient les étoiles de mer
Soient les oiseaux du ciel
Soient les choses inanimées
Comme la pierre et l’océan
Soient les nombreaux nommes de Dieu
Comme Oxalá, comme Tupan
Gravação
Gilberto Gil – O Eterno Deus Mu Dança, 1989 – Warner Music
Comentário*
Embora eu conheça mais e domine melhor a fala da língua inglesa, minhas canções em francês não deixam a desejar num cotejo com as que compus originalmente em inglês (e com as versões que criei para esta língua): a profundidade com que desejo tratar os seus temas, elas assumem na forma. Isso tem se dado também porque, por serem complexos, seus conteúdos acabam exigindo um tratamento sofisticado e uma performance inevitavelmente boa. A rigor eu não me sentia capaz de fazê-las, e fazê-las representou uma aventura que, pelos resultados, razoáveis, me gratificou.
Compor em francês, “a língua dos escritores”: isso também dava ao desafio um sabor especial, e eu comecei a enfrentá-lo como um preito de gratidão a um público com o qual eu desenvolvia uma intensa relação afetiva. Até agora fiz “Touche pas à mon pote”, “Mardi dix mars” (assim chamada porque foi numa terça-feira, 10 de março, que eu a compus, depois de me deparar com a data na folhinha e me sentir estimulado pelo espelhamento das palavras) e “Mon Tiers Monde” (que é como se fôssemos nós mesmos falando um francês créole, mas correto), além de uma quarta, “La lune de Gorée”, escrita mais recentemente, com Capinan.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Miserere Nobis
Gilberto Gil
Capinan
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
Já não somos como na chegada
Calados e magros, esperando o jantar
Na borda do prato se limita a janta
As espinhas do peixe de volta pro mar
Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
Tomara que um dia de um dia seja
Para todos e sempre a mesma cerveja
Tomara que um dia de um dia não
Para todos e sempre metade do pão
Tomara que um dia de um dia seja
Que seja de linho a toalha da mesa
Tomara que um dia de um dia não
Na mesa da gente tem banana e feijão
Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
Já não somos como na chegada
O sol já é claro nas águas quietas do mangue
Derramemos vinho no linho da mesa
Molhada de vinho e manchada de sangue
Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
Bê, rê, a – Bra
Zê, i, lê – zil
Fê, u – fu
Zê, i, lê – zil
Cê, a – ca
Nê, agá, a, o, til – ão
Ora pro nobis
Minimistério
Gilberto Gil
Vire e mexa
Talvez no embrulho
Você ache o que precisa
Compre, olhe
Vire e mexa
Não custa nada
Só lhe custa a vida
Só lhe custa a vida
Só lhe custa a vida
Ande por onde andam
Aquelas minas
Aquela velha gama
E aquela nova
Aquela nova minimina, flor do ministério
Quero dizer, do mistério
(Que mistério tem Clarice?)
Procure conhecer melhor
Seu minimistério interior
Procure conhecer melhor
O cemitério do Caju
Procure conhecer melhor
Sobre a Santíssima Trindade
Procure conhecer melhor
Becos da tristíssima cidade
Procure compreender melhor
Filmes de suspense e de terror
Ande, olhe
Vire e mexa
Não se incomode
Com esta falta de assunto
Ande muito
Veja tudo
Não diga nada
Além de dois minutos
Além de dois minutos
Gravação
Gal Costa – Legal, 1970 – Philips
Comentário*
As explorações do mundo esotérico costumam ser objeto de desprezo. O que prevalece na grande linguagem social é o mundo das ciências, o mundo matemático, das formas reconhecíveis, palpáveis. O mundo esotérico não é assunto para ambientes corriqueiros. Daí eu, ao final da letra, me desculpar por “essa falta de assunto”, ou seja, por essa lista de fragmentos indecifráveis, de coisas que não querem dizer nada, a que aludo na letra… Quando digo: “Não se incomode/ Com esta falta de assunto”, é porque esoterismo é falta de assunto para as rodas prosaicas, as rodas científicas. Quer dizer: “Desculpe não estar tratando aqui de coisas do interesse das pessoas, mas dessa arrumação atabalhoada de fragmentos: a Santíssima Trindade, os minimistérios…”.
“Não custa nada/ Só lhe custa a vida”, quer dizer, um mergulho profundo no mundo do mistério custa a vida; quem quer descobrir a pedra filosofal, o Santo Graal ou qualquer uma dessas coisas que simbolizam o grande mistério, tem que abdicar da vida. A mensagem aqui é uma mensagem esotérica em si.
“Aquela velha gama”, gama, de gamação, de gamar. E “flor do ministério”, porque no nosso círculo — especialmente entre nós, ou entre pessoas muito próximas de nós, baianos —, “ministério” era um eufemismo de lesbianismo, de Lesbos, de ilha de Lesbos, paraíso dos sapatões, das homossexuais. Nós nos referíamos às meninas que tinham prática homossexual como pertencentes ao “ministério”: “Aquela ali é do ministério…”.
“Caju” faz alusão ao mundo dos mortos, da inexistência; o cemitério como símbolo da impermanência da matéria, ou do sentido transicional, da passagem pelos corpos; a visão da vida para além dos corpos, a vida nas mônadas do campo espiritual, do campo mental, do campo existencial para além do corpo. A canção é sobre o mistério mesmo; é autorreferente ao campo de exploração esotérico. Poucas pessoas, na verdade, poderiam ter ideia do que eu estava falando: Caetano; Rogério, que compartilhava muito comigo essas discussões; Smetak — a turma de pessoas aproximadas dessa temática na época.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Minha senhora
Gilberto Gil
Torquato Neto
Onde é que você mora?
Em que parte desse mundo?
Em que cidade escondida?
Dizei-me, que sem demora
Lá também quero morar
Onde fica essa morada?
Em que reino, qual parada?
Dizei-me por qual estrada
É que eu devo caminhar
Minha senhora
Onde é que você mora?
Venho da beira da praia
Tantas prendas que eu lhe trago
Pulseira, sandália e saia
Sem saber como entregar
Quero chegar sem demora
Nesta cidade encantada
Dizei-me logo, senhora
Que essa chegança me agrada
Quero chegar sem demora
Nesta cidade encantada
Dizei-me logo, senhora
Que essa chegança me agrada
Gravações
Gilberto Gil – Retirante, Vol. 2, 1962 – Discobertas
Caetano Veloso e Gal Costa – Domingo, 1967 – Universal Music
Gilberto Gil – Louvação, 1967 – Philips
Francis Hime – Songbook Gilberto Gil 3, 1992 – Lumiar Discos
Orquestra de Sopros da Pro Arte e Flautistas da Pro Arte – Ituaçú – Gilberto Gil, 2012 – Geringonça Filmes 2012
Minha princesa cordel
Gilberto Gil
Quanta beleza coube a ti
Minha princesa
Quanta tristeza coube a mim
Na profundeza
Que o amor cavou
Que o amor furou
Fundo no chão
No coração do meu sertão
No meu torrão natal
Meu berço natural
Meu ponto cardeal
Meu açúcar, meu sal
Oh, meu guerreiro
O teu braseiro me queimou
Oh, meu guerreiro
Meu travesseiro é teu amor
Meu cangaceiro
Que me pegou
Me carregou
Que me plantou no seu quintal
Me devolveu
Minha casa real
Minh’alma original
Meu vaso de cristal
E o meu ponto final
Nossos destinos
Desde meninos dão-se as mãos
Nossos destinos
Já pequeninos eram irmãos
E os desatinos
Também tivemos que vivê-los
Bem juntinhos,
E os caminhos
Nos trouxeram para este lugar
Aqui vamos ficar
Amar, viver, lutar
Até tudo acabar
Gravação
Gilberto Gil e Roberta Sá – Cordel Encantado (tema de abertura da novela da Rede Globo), 2011 – Som Livre
Comentário*
Essa foi a canção que ensejou minha aproximação com a Roberta Sá. Eu a chamei pra gravá-la comigo e foi aí que a conheci. Eu não a conhecia pessoalmente, nessa gravação foi que nós nos conhecemos. A canção era pra uma novela da qual foi tema de abertura, que fez muito sucesso. A canção impressionava muito as pessoas e funcionou muito bem na novela. É uma toada lamentosa. A temática era nordestina, com uma história — de realismo mágico, daí a canção ter esse tom — localizada no Nordeste.
Eu gosto de “Nossos destinos/Desde meninos dão-se as mãos”. Meio confuso pra decifrar a que corresponde. A ideia de se eu estou falando dos destinos ou dos meninos que dão-se as mãos — o sentido duplo de destinos e meninos. “Nossos destinos/ De pequeninos, eram irmãos”.
No final — “Aqui vamos ficar/ Amar viver lutar/ Até tudo acabar” —, a ideia do fim, do partir. Alfa, ômega. Tudo que tem começo tem um fim. Princípio único. Unificação de destinos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Minha ideologia, minha religião
Gilberto Gil
E minha religião é a luz na escuridão
Gravação
Gilberto Gil – Dia Dorim Noite Neon, 1985 – Warner Music
Comentário*
Uma canção-dístico para dar conta da minha inserção no campo transideológico e transreligioso; além e para além, mas só através das configurações ideológicas atuais, e também além, mas só através das religiões. Pós-ideológica e pós-religiosa, mas trans: através do mito; através de formas e ideias-força que possam dar conta dessa condensação para além da ideologia e para além da religião. Eu acho o nascer de cada dia um bom substituto ideológico, um bom generalizador para além da segmentação ideológica, e a luz de cada dia também uma boa substituição para Deus ou deuses. São ambas imagens vitais, naturais, ligadas à vida, à natureza.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Milho verde
Gilberto Gil
Ah, milho verde, milho verde
Ah, milho verde, maçaroca
À sombra do milho verde
Ah, à sombra do milho verde
Ah, namorei uma cachopa
Milho verde, milho verde
Ah, milho verde, milho verde
Ah, milho verde miudinho
À sombra do milho verde
Ah, à sombra do milho verde
Ah, namorei um rapazinho
Milho verde, milho verde
Ah, milho verde, milho verde
Ah, milho verde, folha larga
Milho verde, milho verde
Ah, milho verde, milho verde
Ah, namorei uma casada
Mondadeiras do meu filho
Ah, mondadeiras do meu filho
Ah, mondai o meu milho
Não olhai para o caminho
Ah, não olhai para o caminho
Ah, que a merenda já vem vindo
Meu luar, minhas canções
Gilberto Gil
Doces canções de amor e paz
Lembro a ventura de um viver
A candura de um ser
Lembro tudo em minha voz
Dores, rancores e mágoas
Não turvaram as águas
Do meu rio de recordações
Esqueço o triste
Sei que ainda existe
Meu luar, minhas doces canções
Madrugadas tão bonitas trazem inspiração
Lembram toda a maravilha de amar
E apesar de ter comigo a saudade
A saudade não me faz chorar
Gravações
Gilberto Gil – Retirante, Vol. 1, 1962 – Discobertas
Gilberto Gil – Salvador, 1962 – 1963, 2002 – Warner Music
Plantão Musical – Canta Gil Doce Bárbaro (ao vivo), 2023 – PMP Audio Estúdio
Comentário*
Minhas composições iniciais absorviam a substância do cancioneiro, mimetizando várias canções. As quatro canções (três toadas, um samba) reunidas no compacto duplo Meu luar, minhas canções refletem isso. Eu não tinha nenhuma veleidade de querer dizer coisas pessoais em canções. Não me tornei compositor para falar de coisas minhas, mas para expressar como a música rebatia na minha pessoa. Eu como filtro, vitrais. A luz da música se irradiava, atravessava esses vitrais, e eu absorvia suas cores. Eu era esses próprios vitrais, esse próprio filtro. Não queria ser autoral. Na verdade eu nunca quis, até hoje… A partir de um momento, a complexidade da vida, as paixões, as grandes dúvidas, os grandes questionamentos existenciais passaram a ser temas das canções, surgindo em mim a exigência de me explicar diante das interrogações da vida. Mas também nisso minhas canções refletem parte substancial do cancioneiro geral, anterior, pois são muitas as canções que falam dessas coisas — dos desamores, das dores de cotovelo, das grandes dúvidas da existência, do medo da morte. Em “Saudade da Bahia”, de Dorival Caymmi, por exemplo, tem-se essa dimensão temática maior. Assim, eu acabei tendo também o que dizer, mas muito pouco intencionalmente. E, no início, minhas canções eram colchas de retalhos, feitas de frases recorrentes das canções em geral, ligadas à diluição típica do romantismo do cancioneiro popular.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Meu coração
Gilberto Gil
Pepeu Gomes
Nada no futuro
Ele só quer pra já
Já que está maduro
No que o momento dá
Meu coração pega
No que você mandar
Meu amor navega
Vai chegar
Antes
Melhor que antes
Junto
Vai chegar junto
Meu choro pra você
Gilberto Gil
Torquato Neto
Ninguém pra mim, pra me dar tanto amor
Como o amor que perdi
Tanto tempo perdi
Procurando encontrar outro alguém por aí
Por onde andei, cansei de procurar
Vê, não encontrei você, não encontrei
Mais ninguém
Quem amou demais nunca mais vai poder amar
O amor que a gente perde um dia
Nunca mais na vida
De novo se tem
Ah, escute bem e saiba logo de uma vez
Que nunca ninguém neste mundo me fará feliz
Como você me fez
Ah, meu amor
Meu amigo, meu herói
Gilberto Gil
Ó, como dói
Saber que a ti também corrói
A dor da solidão
Ó, meu amado, minha luz
Descansa a tua mão cansada sobre a minha
Sobre a minha mão
A força do universo não te deixará
O lume das estrelas te alumiará
Na casa do meu coração pequeno
No quarto do meu coração menino
No canto do meu coração espero
Agasalhar-te a ilusão
Ó, meu amigo, meu herói
Ó, como dói
Ó, como dói
Ó, como dói
Gravações
Zizi Possi – Zizi Possi, 1980 – Philips
Arthur Moreira Lima – MPB Piano Collection, 1999 – Sony Music
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases, 2018 – Gege
Oswaldo Montenegro – Canto uma canção bonita, 2019 – Albatroz Brasil
Comentário*
Essa foi uma música feita de encomenda para uma peça infantil, se não me engano chamada ‘Ferrabrás’ [e que acabou não sendo montada na época]. Me foi pedido que eu escrevesse uma canção sobre um dos personagens, e eu o fiz. A fita com a música foi parar nas mãos do José Possi Neto [diretor teatral – irmão da cantora Zizi Possi –, a quem a fita foi mostrada por um dos atores da peça, Marquinhos Rebu]. Depois de ouvi-la, ele disse para a Zizi: ‘Tem uma música aqui que Gil fez para uma peça que eu achei bonita; eu acho que você devia ouvir’. Ela gravou, e foi um grande sucesso. É sobre amizade.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Meteorum
Gilberto Gil
oio
oio cum
oio cuma
oio cuma eí
oio cuma eio auma
oio cuma eio auma auma oio
)
oio cuma eio
auma auma
oio cuma eio
auma auma
(
meteorum
)
meteorum aieô
meteô
meteorum aieô
meteô
eô eô eô ê
(
eô eô eô eô
)
Gravação
Gilberto Gil – Ballet Z, 2002 – Warner Music
Metáfora
Gilberto Gil
Mas quando o poeta diz: “Lata”
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: “Meta”
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora
Gravações
Gilberto Gil – Um Banda Um, 1982 – Warner Music
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Comentário*
“Metáfora” é metalinguística: o poeta falando sobre a poesia: sobre a própria linguagem poética a se desvelar, se dizer o que é, se revelar.
Uma canção que transcende ao propósito genérico da minha obra que é ser uma obra de compositor, como se houvesse um ligeiro deslocamento do ser poético para cima do ser musical, ou talvez para o lado; de todo modo, um deslocamento qualquer que lhe dá distinção.
Metáfora: uma palavra com contundência sonora, traduzida diretamente do grego.
Inspiração durante a elaboração. — Só um ano, ou mais, depois de escrever o primeiro terceto num caderno e deixá-lo de lado, eu retornei à letra. Desde o início eu queria falar do significado da poesia — poetar o poetar —, mas até ali a palavra “metáfora” ainda não tinha me ocorrido. Foi somente quando, ao começar o segundo terceto, surgiu a ideia de “meta”, que o termo me veio, e com ele a consciência de que, dali em diante, eu passaria a construir a letra para chegar à palavra “metáfora” no fim — para culminar com ela e com ela titular a canção.
Dúvidas de percurso. — Enquanto escrevia, eu relutei em usar “tudo-nada” [aqui, tal como o composto foi grafado no encarte do disco com a música] como uma palavra só, mas resolvi mantê-la assim para marcar a ideia da condensação dos sentidos, por mais opostos, num mesmo e único termo; só faltou radicalizar tirando o hífen e deixando “tudonada”, grafia [sugerida pelo organizador deste livro] que passo a adotar. Outra relutância foi em admitir a brincadeira contida no verso “deixe a sua meta fora da disputa” — o desmembramento da palavra antes de ela aparecer. Pareceu-me de início gratuito, mas acabei achando engenhoso.
À patrulha ideológica. — Eu queria responder às cobranças, que nos eram feitas na época, de conteúdos mais dirigidamente político- -sociais, e falar da independência do poeta; do fato de a poesia e a arte em geral pertencerem ao mundo da indeterminação, da incerteza, da imprevisibilidade, da liberdade, do paradoxo. O poeta Haroldo de Campos se identificou com a canção, que de fato é sobre — e para — todos nós: eles, os concretistas, que foram atacados pelos conteudistas, e nós, os baianos, que abraçamos a causa deles.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Menina goiaba
Gilberto Gil
Conquistei o seu amor
Meninada
Menina goiaba, goiabada Cascão
Andei também muito goiaba
E o disco que eu prometi
Não foi gravado, não
Não foi gravado, não
Que eu não soube lembrar
Seu nome que era o nome da canção
Não foi gravado, não
Que eu não pude cantar
Saudade de você cortou meu coração
Vamos ao show, que tá na hora
E o disco que eu prometi
Fica pro São João
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao Vivo, 1974 – Philips
Comentário*
Meninas goiabas eram as meninas do interior de São Paulo. A motivação da música veio nos circuitos universitários, naqueles anos de 72, 73, quando eu voltei do exílio e comecei a fazer excursões pelas cidades do interior, especialmente por São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, estados mais organizados, com maior número de universidades minimamente estruturadas, com centros acadêmicos que promoviam atividades culturais permanentes, regulares, principalmente música. Havia naquela época um interesse muito grande por música popular, então os artistas estavam sempre circulando por cidades daqueles estados mais progressistas. Muitas vezes, as meninas apareciam nos shows com aquele encantamento, havia aquela troca, aqueles jogos de sedução entre os artistas e o público, e eu fiz essa música sobre isso e para elas, aproveitando a expressão “goiabada cascão”, que era um símbolo muito forte da vida do interior, para cunhar a expressão da música, “menina goiaba”, quer dizer menina maluca, menina gostosa, menina doce.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Menina do sonho
Gilberto Gil
Quem sabe até tenha vindo e eu não soube sonhar
Quem sabe até tenha tentado me descobrir
Em meio ao sono pesado a dormir, a dormir
Quem sabe até tenha vindo visitar meu sono
E quem sabe era só o abandono da alma dormida na vida
O que havia no fundo de mim pra se ver
Que ela, menina do sonho, ficou comovida
E não fez nada mais que sorrir
Partindo logo em seguida a buscar por aí
Outra morada pro sonho, por ser ela fada
Fadada a viver, com seu corpo no nada
O instante, o espaço, o abraço real da ilusão de existir
Quem terá tido essa noite
O sonhar visitado por ela ou por um querubim
Já que a menina do sonho não veio pra mim?
Gravação
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Comentário*
Como “Toda menina baiana” eu fiz do lado da Nara, “Menina do sonho” eu fiz do lado da Preta [Nara e Preta, filhas de Gil], eu e ela sozinhos em casa, os dois brincando na cama, eu com o violão e ela em torno. A ideia da canção veio de vê-la, ali na hora, molecota. “Menina do sonho” versa sobre o mundo onírico mesmo, sobre os personagens confinados a ele.
Em momentos de criação, às vezes você está impregnado de uma situação, de uma paisagem, de um fato, de uma ideia comum, coletiva, e fala precisamente disso, do que você precisa falar. Nesses momentos, você quer objetividade pura. Outras vezes, o que você quer é o passeio despropositado pela subjetividade; o mundo livre, solto, absurdo, da poesia. Nesse caso se inclui “Menina do sonho”, que é exatamente uma canção falando do sonhar como se se estivesse acordado, como se fosse possível a consciência desperta no estado onírico.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Meio-de-campo
Gilberto Gil
Eu continuo aqui mesmo
Aperfeiçoando o imperfeito
Dando um tempo, dando um jeito
Desprezando a perfeição
Que a perfeição é uma meta
Defendida pelo goleiro
Que joga na seleção
E eu não sou Pelé nem nada
Se muito for, eu sou um Tostão
Fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão
Gravações
Gilberto Gil – Cidade do Salvador, Vol. 1, 1973 – Gege
Elis Regina – Elis, 1973 – Universal Music
Pedro Lima – Futebol Musical Brasileiro Social Clube, 2009 – Saladesom Records
Gilberto Gil – Gilbertos Samba (Ao vivo), 2014 – Gege
Fi Maróstica e Vanessa Moreno – Cores Vivas: Canções de Gilberto Gil, 2016 – Vanessa Moreno & Fi Maróstica [dist. Tratore]
Gilberto Gil – Umeboshi – ao vivo, 1973, 2017 – Discobertas
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao Vivo na USP (1973), 2017 – Discobertas
Comentário*
Eu tinha conhecido Afonsinho [jogador de futebol que se destacou no Botafogo, do Rio, num time formado, entre outros, pelos tricampeões mundiais pela seleção Jairzinho, Paulo César e Roberto] na época. Ele tinha se tornado amigo meu, por força de amizades comuns.
Era um jogador de comportamento diferente, tido como rebelde, meio hippie, que frequentava os locais – as praias – que a gente frequentava no Rio e que fazia uma reivindicação de autonomia, de auto-gestão, até então inédita: ele antecipou, no plano individual, pessoal, aquilo que veio a ser coletivamente a democracia corintiana, no início dos anos oitenta.
Fiz a música em sua homenagem para dizer um pouco dessa dimensão que eu via nele: do homem fiel, generoso; o que abdica do trono; o que não brilha como os reis, mas é um sábio de cajado na mão; o sábio que vem visitar o palácio a convite do soberano: vem trazer novidades, impressões, vem para dizer coisas importantes, interessantes; para trazer luz, sabedoria. Isso tudo associado à imagem do hippie, do drop-out, do cara que jogou para cima as convenções.
‘Aperfeiçoando o imperfeito e desprezando a perfeição’: as ideias do despojamento e do cultivo permanente da autoeducação como uma coisa importante, personificadas por ele, pelo significado da vida dele como jogador, como ícone de massa diferente dos outros, com toda a vocação para ser príncipe e nunca rei.
Eu continuo sendo, sempre, o Gilberto Gil autodefinido em ‘Meio-de-campo’: sou receptivo, feminino, o número dois; Tostão, não Pelé: o que faz as assistências ao número um. Afonsinho ficou meu amigo – um grande amigo – até hoje. Paulista de Jaú – a família dele vive lá –, ele mora no Rio, onde é médico.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Medo de avião nº 2
Gilberto Gil
Belchior
Que eu segurei pela primeira vez a tua mão
Um gole de conhaque, um toque em teu cetim
(Que coisa adolescente – James Dean!)
Foi emoção comum
Daquela que arrepia a pele
E leva as mãos, há pouco indiferentes
A correr pelas sedas, pelos cílios
Pelos belos pelos virgens
De lâminas e pentes
(Brilham teus grandes lábios e teus dentes!)
Foi por medo de avião
Que eu segurei pela primeira vez a tua mão
Não fico mais nervoso e você já não grita
(E a aeromoça sexifica mais bonita)
Não foi a força bruta da beleza
Nem o vigor cruel da mocidade
E, sim, dois animais em paz com a natureza
E, sim, dois corpos, objetos sensuais
Contra a lei da gravidade
(Nós nem pensamos na felicidade)
Foi por medo de avião
Que eu segurei pela primeira vez a tua mão
Agora ficou fácil, todo mundo entende
Aquele toque Beatle:
“I wanna hold your hand”
Meditação
Gilberto Gil
Mesmo que lá fora
Fora de si mesmo
Mesmo que distante
E assim por diante
De si mesmo, ad infinitum
Tudo de si mesmo
Mesmo que pra nada
Nada pra si mesmo
Mesmo porque tudo
Sempre acaba sendo
O que era de se esperar
Gravações
Gilberto Gil – Cidade do Salvador, Vol. 2, 1973 – Gege
Gilberto Gil – Refazenda, 1975 – Philips
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Comentário*
Uma canção sobre meditação que é uma canção que é uma meditação (uma canção-meditação), fruto de um processo de meditação e realizada em estado de meditação.
“Dentro de mim mesmo.” — “Meditação” é uma busca dos extratos rarefeitos do pensar e do sentir, do olhar sobre o sujeito e o objeto, sobre o si e o em si, e sobre o ser. A letra resultou de horas e horas de dias e dias de meditação sobre a música. Eu estava terminando o repertório de Refazenda e queria usá-la como um fecho minimal que emblematizasse a ideia reflexiva, introspectiva, do disco. Havia um compromisso com os espaços das frases sonoras: eu não podia escrever o que quisesse (para construir a letra de uma música que já está feita, a gente já parte com esse dado limitador — não no sentido qualitativo, de expressão, mas no quantitativo). Por isso eu precisava de instrumentos muito precisos que me levassem aos lugares onde as palavras estivessem; de anzóis muitos afiados e linhas de comprimento muito bem medido para poder fazer a pescaria das palavras que expressariam numa suma o que eu sentia. E precisava da confirmação temporal do significado da meditação — de que ela trouxesse para o sujeito, que era eu, a sensação que a palavra “meditação” traz, de escorrer no tempo…
Em momentos bem prosaicos, de manhã, de tarde, de noite, eu andava pela casa pensando naquela melodia — com ela dentro de mim mesmo —, mas sem escrever nada, nem tentar, apenas me deixando tomar pelo sentimento oceânico da envolvência. Numa madrugada eu me recolhi, tomei um chá, sentei na posição de ló- tus, e saiu! — uma parte inteira. Dormi aquele sono pleno, apaziguado, e no dia seguinte fui tocá-la no violão. Frustração absoluta: me deparei com uma segunda parte que, embora do ponto de vista métrico seja basicamente a mesma coisa, tem um finalzinho que é um apêndice (a última frase melódica). “Meu Deus do céu! Pensei que estivesse pronta”, eu disse. “Quantos dias mais vou ter eu que ficar rodando pela casa para fazer esse resto de música?” Mas não é que, já estimulado pelas ideias da primeira estrofe, na noite seguinte fui para a mesma situação, me recolhi etc., e veio a segunda?!
Do início… — Durante aqueles dias de viagens meditativas (acompanhadas de muita maconha, evidentemente; na época eu fumava bastante e fazia mergulhos abissais…), eu havia regado tanto a planta autorreferencial que, quando me ocorreu algo, me ocorreu o óbvio: “Dentro de si mesmo” — como se para reiterar o silêncio, ou seja, para dizer: “Disso não se diz nada, porque isso é indizível; não adianta, você vai ficar dias e dias aí e não vai dizer nada!”. E em seguida, num movimento da interioridade para a exterioridade, veio: “Mesmo que lá fora” — os dois versos em mútuo espelhamento projetando suas imagens significantes para adiante, nos versos subsequentes. A letra é muito visual mesmo, hologrâmica: um fracionamento lisérgico da imagem oculta, com partes essenciais ao todo e com o todo presente nas partes.
… ao fim… — O futuro como desdobramento de uma perspectiva colocada por um ser no presente (projeção); como o que era de se esperar: não só no sentido de vir a corresponder a uma expectativa ou a realizar um desejo que se tenha em relação a ele; mas também no sentido de que deve haver uma espera, uma passividade, uma ação da não ação em relação ao que se espera dele; uma desarticulação do desejo, o não desejo; o princípio da incerteza, em termos de que, mesmo que seja o inesperado, é na espera disso que o futuro ocorre — e aí, a inclusão da perspectiva do abismo, da tempestade, do desconhecido, da morte.
… um parto. — “Meditação” levou uns dez dias em estado de gestação. Muitas outras canções minhas tiveram processos parcialmente similares, mas é dessa que eu tenho a sensação mais nítida de uma fecundação por um corpúsculo invisível que, apesar disso, você sabe que está ali e que um dia nasce. A canção parece ter sido projetada para ter uma gravidez, um crescimento de embrião e seu momento de nascimento. E eu me lembro da comoção profunda que eu tive quando a terminei — no exato momento em que senti o casamento do verso “o que era de se esperar” com a frase musical correspondente.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Me diga, moço
Gilberto Gil
Como é que eu faço pra não chorar
Se a vida é comprida
E eu não tenho nem comida pra travessar
Seu moço, venha me dizer
Como é que eu faço pra sustentar
Família tão grande
Mesmo quem pode não pode mais criar
Seu moço, venha me dizer
Como é que eu faço pra não morrer
Se eu morro de fome
Deixo com fome meus filhos pra morrer
Seu moço, venha me dizer
Como é que eu faço pra terminar
Com esse castigo
Diga, que eu brigo, diga, que eu vou lutar
Marmundo
Gilberto Gil
Manda o mundo se limpar
O mar do mundo secou
Manda o mundo se molhar
O mar do mundo entornou
Manda o mundo se fechar
O mar do mundo acabou
Manda o mundo se acabar
O mar do mundo ficou
Um mar imundo demais
Se a barra mundo pesou
O mundo sabe o que faz
Sabe que o mar leva e traz
Sabe quem mata o rapaz
Sabe do filme em cartaz
Sabe da soja em Goiás
Sabe que o amor é fugaz
Sabe amar os animais
Sabe que a gula é voraz
Sabe que paga o que faz
Gravação
Gilberto Gil – Fé na festa, 2010 – Gege
Comentário*
Quando eu estava fazendo essa música, não sei se por um estímulo imediato daquele momento, daquele tempo, ou apenas por um sentimento difuso, distante, eu pensava muito na Marina Silva. É uma canção pra ela, por ela. É como se ela estivesse elencando uma série de questões sobre o meio ambiente, sobre o mar do mundo. A mentalidade, o espírito ecológico, a solidariedade, a ideia de limpar o mundo, guardá-lo sempre o mais limpo possível.
O gosto que você tem pela composição de palavras, como em “Batmakumba”, em “Parabolicamará”, em “Banda larga cordel”, comparece aqui em “Marmundo”, dando conta da grandeza do mundo e da grandeza do que o homem está fazendo de ruim no mundo. — Exatamente. A imensidão da dívida a ser paga; a cobrança, imensa. Haja conta no banco. O jogo [da feitura da canção] era esse, com o desafio da concentração da frase curta. As palavras amontoadas e as palavras-valises, de sentidos sintetizados. Aqui, “marmundo”. “Mundo” já estava em “Viramundo” [parceria de Gil com Capinan, de 1965]. É uma palavra muito fortemente associada à poética popular, especialmente na música popular. Mundo, mundão, mundaréu. A ideia de coisa imensa.
Uma palavra bastante presente na obra do Drummond. — É, dos poetas em geral. O mundo é uma coisa irrecusável, inevitável.
Os pares de versos da primeira parte da canção (“O mar do mundo sujou/ Manda o mundo se limpar”) me remetem a “Água de Meninos” (outra parceria com Capinan, de 1966): “Moinho da Bahia queimou/Queimou, deixa queimar”. Um tipo de expressão que puxa a outra, similar, e que tem origem no linguajar popular. — Nos gêneros musicais ligados à canção de roda, às rodas de dança, às rodas de samba, ao samba de roda. É um dos aspectos muito presentes também na obra do Caymmi.
Às vezes as canções se realizam mais bem sucedidamente ou não. Sempre podemos achar que elas podem ser melhores. Eu sempre acho que essa canção poderia ser melhor se tivesse tido uma finalização mais auspiciosa. A ideia de engavetar ideias e palavras em fusões muito apertadas talvez dê a sensação de não atingimento, de que a canção poderia ser melhor, um pouco como em “Banda larga cordel”. Mas é isto: a canção sempre pode ser melhor.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Maria tristeza
Gilberto Gil
Não tem mais o riso das flores da serra
Não tem mais os olhos mais lindos da terra
Não tem mais o céu de ilusões pra sonhar
Maria Tristeza
Não vê mais beleza nas coisas da vida
Seu mundo de agora é um lar sem comida
Que o João coitado, tão pobre, coitado
Não pode aguentar
João Pobreza
Não tem mais vontade de ter alegria
Sentindo a miséria matar todo dia
Seu corpo cansado de não descansar
João Pobreza
Não tem mais coragem de ter esperança
Quem vive ao seu lado é a triste lembrança
Da mesa vazia da pobre Maria
Querendo chorar, querendo chorar, querendo chorar
Maria (Me perdoe, Maria)
Gilberto Gil
Me perdoe, Maria
Por não ver em seu riso
O sorriso das flores
E um céu todo azul
Maria
Me perdoe, Maria
Por só ver em seus olhos
A tristeza cinzenta
Das tardes sem sol
Maria
Não se zangue, Maria
E aprenda uma coisa
Uma coisa tão simples
Que vou lhe dizer
Nem todas as flores são flores
Nem toda beleza são cores
Você não sorri como a flor
Mas nem sei se na flor
Há o amor
Que existe em você
Maria
Gravação
Gilberto Gil – Louvação, 1967 – Philips
Maria Bethânia – Maria Bethânia Ao Vivo, 1970 – EMI Music
Emilio Santiago – Feito pra ouvir, 1977 – Universal Music
Gilberto Gil – Retirante Vol. 2, 2010- Discobertas
Comentário*
É um samba-canção. Tem aquele ar meio Dick Farney, dos cantores dos anos 50, como o Dick e o Lúcio Alves; de todo aquele campo dos intérpretes pré-João, da pré-Bossa Nova, com vozes suficientemente impostadas mas suficientemente suaves também. O texto é um elogio ao modo romântico de percepção do amor, das relações amorosas. É o pedido de perdão por uma certa cegueira, uma certa miopia, certa obstrução da visão por não ter capacidade de ver na pessoa celebrada ali todas as características adequadas ao gesto da inclinação. É um samba pedindo desculpas. Eu o acho encaixado no universo do samba-canção. Ele poderia ser um samba que tivesse sido cantado em épocas anteriores por um dos intérpretes que eu citei; o pessoal que circulava por Copacabana, nas noites de Copacabana, e os que vieram depois, com Tito Madi.
O nome Maria já aparece em “Maria Tristeza”, de dois anos antes, 1963. — “Maria Tristeza”, feita ainda na Bahia, da mesma É um samba-canção. Tem aquele ar meio Dick Farney, dos cantores dos anos 50, como o Dick e o Lúcio Alves; de todo aquele campo dos intérpretes pré-João, da pré-Bossa Nova, com vozes suficientemente impostadas mas suficientemente suaves também. O texto é um elogio ao modo romântico de percepção do amor, das relações amorosas. É o pedido de perdão por uma certa cegueira, uma certa miopia, certa obstrução da visão por não ter capacidade de ver na pessoa celebrada ali todas as características adequadas ao gesto da inclinação. É um samba pedindo desculpas. Eu o acho encaixado no universo do samba-canção. Ele poderia ser um samba que tivesse sido cantado em épocas anteriores por um dos intérpretes que eu citei; o pessoal que circulava por Copacabana, nas noites de Copacabana, e os que vieram depois, com Tito Madi.
O nome Maria já aparece em “Maria Tristeza”, de dois anos antes, 1963. — “Maria Tristeza”, feita ainda na Bahia, da mesma.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Marginália II
Gilberto Gil
Torquato Neto
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição
Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui, o Terceiro Mundo
Pede a bênção e vai dormir
Entre cascatas, palmeiras
Araçás e bananeiras
Ao canto da juriti
Aqui, meu pânico e glória
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na lua cheia
E termina antes do fim
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte
Olelê, lalá
A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender
Olelê, lalá
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1968), 1968 – Universal Music
Maria Bethânia – Recital na Boite Barroco, 1968 – EMI Music
Maria Bethânia – Diamante Verdadeiro, 1999 – BMG Brasil
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois amigos, um século de música (Ao vivo), 2015 – Sony Music
Maria Bethânia e Zeca Pagodinho – De Santo Amaro a Xerém (Ao Vivo), 2018 – Biscoito Fino
Mardi dix mars
Gilberto Gil
Et se la voudra ma poésie
Mardi dix mars
Et se la voudra ma poésie d’amour
Noire qui est toujour été à la recherche
De la passion
La plus profonde à vivre
Je vous dirai malgré
Que je sois bien, bien, bien, bien proche
Il manquera toujours
Un rêve à poursuivre
Et se la voudra
Toujours, toujours il manquera l’amour
À mettre dans l’esclavage un coeur libre
…………………………………
Mardi dix mars
Et se la voudra la vie qui viendra
Marcha da tietagem
Gilberto Gil
Tiete é uma espécie de admirador
Atrás de um bocadinho só do seu amor
Afins de estar pertinho, afins do seu calor
Hoje eu sou o seu tiete
Às suas ordens, ao seu inteiro dispor
De imediato aonde você for eu vou
No ato, no ato
Pro mato, pro motel, de moto ou de metrô
Tititititi
Como é bom tietar
Seu amor inatingível
Tititititi
E se você deixar
Eu farei todo o possível
Pra alcançar o nível do seu paladar
Gravações
Trio Elétrico Dodô e Osmar – Vassourinha Elétrica, 1980 – Elektra
Gilberto Gil – Luar (feat. Trio Elétrico Dodô & Osmar, As Frenéticas), 1981 – Warner Music
Gilberto Gil – Duetos 2 (feat. Trio Elétrico Dodô & Osmar, As Frenéticas), 2008 – Warner Music
Armandinho Macêdo, Marco Lobo e Yacoce Simões – Retocando Gil e Caetano, 2021 – Biscoito Fino
Comentário*
‘Tiete’ era uma gíria muito usada pelo pessoal que frequentava as praias, as dunas da Gal, pelo círculo do Ney Matogrosso, Cazuza inclusive. Na verdade, depois de fazer a música é que eu fiquei sabendo que Tiete era o apelido de uma senhora, frequentadora assídua dos shows do Ney. E que, por isso, o Luisinho – uma espécie de secretário do Ney, desaparecido há alguns anos atrás, tendo trabalhado com ele até morrer – passou a usar para se referir a todos os fãs e a todas as pessoas que assediavam o Ney ou outros artistas. Ele começou a chamar todas essas pessoas de tiete, como referência a essa mulher: senhora Tiete, dona Tiete. A expressão pegou entre nós. E como se tornou muito comum no nosso meio, eu resolvi fazer a canção. O Luisinho mesmo me contou toda a história relacionada com o surgimento do termo já depois do lançamento da marcha. ‘Tiete’ estourou e ‘tiete’ acabou virando uma expressão nacional. Hoje, tiete – todo mundo sabe – é sinônimo de fã, de macaca de auditório; não sei se já se tornou palavra do dicionário [sim, já], mas já adquiriu esse nível: o nível de verbete.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Marcha
Gilberto Gil
Este teu jeito de sapeca
Esta carinha de boneca
Estão fazendo um verdadeiro carnaval
Dentro de mim
Menina do coração de gelo
Estou caído
Fui flechado, estou perdido
Mas pode crer que isto não vai
Permanecer assim
Maracujá
Gilberto Gil
Maracu
Maracujá
Maracujá agora
Maracujá a qualquer hora
Maracujá em qualquer lugar
Mar de Copacabana
Gilberto Gil
Que você viu
Que você pediu pra eu dar
Outro dia em Copacabana
Talvez leve uma semana pra chegar
Talvez entreguem amanhã de manhã
Manhã bem seda tecida de sol
Lençol de seda dourada
Envolvendo a madrugada toda azul
Quando eu fui encomendar o mar
O anjo riu
E me pediu pra aguardar
Muita gente quer Copacabana
Talvez leve uma semana pra chegar
Assim que der, ele traz pra você
O mar azul com que você sonhou
No seu caminhão que desce
Do infinito e que abastece o nosso amor
Se o anjo não trouxer o mar
Há mais de mil
Coisas que ele pode achar
Tão lindas quanto Copacabana
Talvez tão bacanas que vão lhe agradar
São tantas bijuterias de Deus
Os sonhos, todos os desejos seus
Um mar azul mais distante
E a estrela mais brilhante lá do céu
Gravações
Gilberto Gil – Extra, 1983 – Warner Music
Gilberto Gil – Soy loco por ti América, 1987 – Warner Music
Gilberto Gil – Em Concerto, 1987 – Gege
Leny Andrade – Songbook Gilberto Gil, Vol. 1, 1992 – Lumiar Discos
Nicolas Krassik – Estrela, 2021 – Gege
Comentário*
Uma vez, quando nós passávamos pela praia de Copacabana, chegando ou saindo do Rio, a Flora me disse assim: ‘Você devia fazer uma música sobre o mar de Copacabana’. Fiquei com aquilo na cabeça e, um dia, tempos depois, eu decidi fazer uma canção abordando o assunto, dizendo exatamente o que dizem os primeiros versos, já que ela também havia, de brincadeira, me pedido o mar de Copacabana de presente – ‘Dê esse mar para mim…’ –, numa cena carinhosa, terna, romântica, entre nós. Aí, me inspirando na coisa da classe média, que faz compras à prestação que são levadas por caminhões de entrega, eu digo que a ‘encomenda’ está seguindo num deles – o caminhão ‘que abastece o nosso amor’, citado literalmente no samba, e que é uma espécie de epifania, sendo o mar de Copacabana a bijuteria que eu dou de presente para ela.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Máquina de ritmo
Gilberto Gil
Tão prática, tão fácil de ligar
Nada além de um bom botão
Sob a leve pressão do polegar
Poderei legar um dicionário
De compassos pra você
No futuro você vai tocar
Meu samba duro sem querer
Máquina de ritmo
Quem dança nessa dança digital
Será, por exemplo, que meu surdo
Ficará mudo afinal
Pendurado como o dinossauro
No museu do carnaval?
Se você aposta que a resposta é sim
Por Deus, mande um sinal
Máquina de ritmo
Programação de sons sequenciais
Mais de cem milhões de bandas
De escolas de samba virtuais
Virtuais virtuosas vertentes
De variações sem fim
Daí por diante, samba avante
Já sem precisar de mim
Máquina de ritmo
Quem sabe um bom pó de pirlimpimpim
Possa deletar a dor de quem
Deixou de lado o tamborim
Apesar do seu computador
Ter samba bom, samba ruim
Se aperto o botão meu coração
Há de dizer que é samba, sim
Máquina de ritmo
Processo de algo-ritmos padões
Múltiplos binários e ternários
Quaternários sem paixões
Colcheias, semicolcheias
Fusas, semifusas sensações
Nos salões das noites cariocas
Novas tecnoilusões
Máquina de ritmo
Que os pós eternos vão silenciar
Novos anjos do inferno vão pôr
Qualquer coisa em seu lugar
Quem sabe irão lhe trocar
Por um tal surdo-mudo do museu
E os bandos da lua virão se encontrar
Numa praia toda lua cheia
Pra lembrar você e eu
Moreno, Domenico, Kassin
Assim meus filhos, filhos seus
E bandos da lua virão se encontrar
Numa praia toda a lua cheia
Pra lembrar
Só pra lembrar
Só pra cantar
Só pra tocar
Só pra lembrar você e eu
Gravações
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa – Outros (doces) bárbaros, 2004 – Biscoito Fino
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Warner Music
Gilberto Gil – Concerto de cordas e máquinas de ritmo, 2012 – Biscoito Fino
Gilberto Gil – Gilbertos Samba (Ao vivo), 2014 – Sony Music
Comentário*
O samba foi feito no Algarve, em Portugal, durante uma semana que eu passei naquela ponta do Algarve, de onde teriam saído e onde teriam sido construídas as embarcações das grandes navegações, de dom Henrique; todo o projeto navegador de Portugal naquela época teria nascido ali. Eu estava naquele lugarzinho e ali me ocorreu “Máquina de ritmo”. Era um momento em que nós nos aproximávamos naturalmente das máquinas novas, das baterias eletrônicas e dos sintetizadores, a coisa toda da música eletrônica que estava pintando como referência nova estimulante; então a canção nasce disso. Vai se desenvolvendo um diálogo entre o artista da música e a máquina, e, engraçado, quando chega a última estrofe, esse artista se personaliza. É João Gilberto. Eu imagino esse diálogo entre homem e máquina, entre artista de uma origem artesanal com esse mundo tecnomusical. E é ele então, tocando violão, que vai ser lembrado na praia, onde [novos] Bandos da Lua se reúnem “pra lembrar você e eu”: quer dizer, a máquina e ele. João e a máquina de ritmo. A música é pra ele.
“Programação de sons sequenciais/ Mais de cem milhões de bambas de escolas de samba virtuais/Virtuais, virtuosas vertentes de variações sem fim/ Daí por diante samba avante já sem precisar de mim”. — A autoprogramação, a inteligência artificial, o automatismo. Não é substituição da própria inteligência humana pela inteligência artificial.
“Se aperto o botão…”. — “… Meu coração há de dizer que é samba, sim”: o artista, generosamente, resolvendo entrar em diá- logo profundo com a máquina e a adotando. É ele, João, assinando o documento de adesão.
“Moreno, Domenico, Kassin,/Assim meus filhos, filhos teus”.
— Eles como filhos dessa união entre artista e máquina. Os três [Moreno Veloso, Domenico Lancellotti e Alexandre Kassin] tinham começado a trabalhar juntos [A canção data de quatro anos após a formação do trio, adepto da incorporação de elementos sonoros eletrônicos: Moreno+2, depois Kassin+2, e ainda depois Domenico+2], e logo depois eu faço a canção e essa referência.
De a canção ser mais um exemplo do antipurismo, do antifundamentalismo estético-musical de Gil; de sua disposição para a transformação dos gêneros e dos estilos. — “Máquina de ritmo” é mais uma das canções que comprovam meu compromisso permanente com a diversidade, com o jogo das polaridades, o jogo das contradições.
No DVD dos Doces Bárbaros aparece você tocando e cantando a canção, e o Caetano chega, não resiste e começa a dançar. Depois se refere a ela como um antigo estilo de samba que você retomava ao fazer “Máquina de ritmo”. — Ele não conhecia a canção. E começa a dançar à la Rodrigo Veloso [irmão de Caetano, no filme O cinema falado, dirigido por Caetano, Rodrigo dança ao som de “Águas de março”, de Tom Jobim, como se fosse um samba de roda]. Ele ficou fascinado com “Máquina de ritmo”, que associa a uma constelação de sambas meus como “Amor até o fim” e outros. Eu adoro essa música; o samba que ela é, todo malemolente, todo caymmiano. É muito interessante; um dos itens permanentes do meu repertório; sempre canto, sempre toco.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Mancada
Gilberto Gil
Pro tamborim
Não vá gastar
Depois jogar a culpa em mim
O dinheiro que eu lhe dei
Não é meu, não
É da escola
Por favor, não mete a mão
Você lembra muito bem
No outro carnaval
Você chorou porque não pôde desfilar
A fantasia que eu mandei você comprar
Não ficou pronta porque o dinheiro que eu lhe dei
Pra costurar
Você (hum, hum)…
Eu nem vou dizer
Pra não lhe envergonhar
Gravações
Gilberto Gil – Louvação, 1967 – Universal Music
Claudete Soares – Gil, Chico e Veloso por Claudette, 1968 – Universal Music
Elza Soares e Miltinho – Elza, Miltinho e samba (Vol. 2), 1968 – EMI Records Brasil
Zimbo Trio – Decisão, 1969 – Som Livre
Elis Regina – 13th Montreux Jazz Festival, 1979
Beth Carvalho e Geraldo Vespar – Songbook Gilberto Gil, Vol. 1, 1992 – Lumiar Discos
Adyel Silva – Chic da Silva, 2003 – Atração
Gilberto Gil e Beth Carvalho – Duetos 2, 2008 – Warner Music
Orquestra de Sopros da Pro Arte e Flautistas da Pro Arte – Ituaçú – Gilberto Gil, 2012 – Geringonça Filmes
Rosa Passos – Azul, 2013 – Veleiro
Gilberto Gil – Gilbertos Samba (ao vivo), 2014 – Gege
Mauro Senise – Amor Até o Fim, 2016 – Fina Flor
Comentário*
Essa foi feita por uma encomenda curiosa. Era época de preparação para o carnaval no Rio, e havia um programa semanal de televisão na Globo, animado pelo Jair Rodrigues, que tinha sido criado especialmente para o carnaval e do qual participavam os artistas que estavam surgindo naquele momento. Num deles foi instituído uma espécie de concurso que lançou aos compositores presentes o desafio de apresentar na semana seguinte uma nova música de carnaval. Eu fui para a casa com essa tarefa e, um dia depois, de noite, inventei a história carnavalesca de uma cara que tinha embolsado o dinheiro da fantasia que tinha sido dado a ele pela escola, daí a expressão-título da canção, por causa da mancada que ele deu – a palavra nem aparece na música mas lhe dá nome.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Mamma
Gilberto Gil
Am gonna go my way, mamma
Tomorrow am gonna catch a train
Don’t try to hold me down
I wanna put my chest against the wind
From east and west once again
Mamma
Give me your blessing right now
Am gonna get ahead again
Am gonna go my way, mamma
Before you tie me to a chain
Before you close me down
So wide you should stretch your breast
And hold my life inside yourself again
Mamma
Give me your blessing right now
I wanna kiss your face again
Am gonna go my way, mamma
Don’t worry, don’t cry, don’t complain
Don’t try to hold me down
How much you want your darling, baby
Clinging to your long skirt again
Oh, mamma
Give me your blessing right now
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1971), 1971 – Warner Music
Gilberto Gil – Soy loco por ti América, 1987 – Warner Music
Gilberto Gil – Em Concerto, 1987 – Gege
Arnaldo Antunes – Arnaldo Antunes Disco, 2013 – Radar Records
Jorge Mautner e Gilberto Gil – O poeta e o esfomeado, 2014 – Discobertas
Comentário*
Essas músicas em inglês da minha fase londrina – ‘Nega’ e ‘Mamma’ – se ressentem muito do nível do meu inglês na época; elas expõem muito claramente as minhas deficiências no manuseio da língua, embora contenham passagens interessantes: no caso de ‘Nega’, o passear, downtown, em Londres, o descobrir-se na paisagem da cidade; o ato de tomar chá Mu (o hábito da macrobiótica, que eu cultivava rigidamente na época); e, no final, a revelação das fotografias do passeio.
Mas ‘Mamma’ é bem mais razoável, mais bem feita; ‘Mamma’ é relativamente bem feita. É mais concisa, mais precisa e mais densa. O tema também é mais exigente. Era para a minha mãe mesmo, para lhe dizer que eu tinha ido embora e por que tinha, por que estava tão longe naquele momento, tão saudoso dela e ela provavelmente tão saudosa de mim. Feita numa estrutura de blues, a canção reiterava o modo de cantar dos negros e a saga dos homens que vão embora – há muitos blues que falam disso: do homem saudoso, distante de casa, dizendo: ‘Vou pegar o trem etc.’
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Mamão papaia
Gilberto Gil
Papaia mamão da saia calça do Brown
Do lenço da Bel
Mamão papaia do céu
Que vela a feiticeira, ah
Mamão papaia do céu
Papaia mamão na mão do Gil ou da Gil
Quem dança é Durval
Mamão papaia do mel
Que mela a Daniela, Ah
Se a Margareth Menê, ou se a Ivete Sangá
Tatau e minha vão que vão
Caetano, Armando e Moraes
É que a galera quer mais
O axé do Xandi sensação
Mamão papaia do céu
Papaia mamão mão de pilão do Popó
Derruba no chão
Melhor é mesmo sambar
Sambar, sambar, sambar, sambar
gingar, gingar, gingar. gingar
pular, pular, pular, pular
E esquivar do campeão
Mamão papaia Olodum
Papaia mamão, Ilê,Mmalê, coisa e tal
O meu carnaval
É no papaia mamão
É Tchan, tchan, tchan no coração
Tudo com Cheiro de Amor
Papai mamão com gosto de acarajé
O lindo é que é
Tudo Muzenza em função
Da paz do Gandi, da emoção
Se a Sarajane ficar, se o Luiz Caldas ficar
Até o dia amanhecer
Geronimo se animar, o Lazo manda chamar
Dodo e Osmar no céu pra ver
Mãe da manhã
Gilberto Gil
Minha voz, meu amparo
Aro de luz nascente do dia
Brota na gruta da dor
Mãe da manhã, de tudo eu faria
Pra conservar vosso amor
A cada ano, uma romaria
Uma oferenda, uma prenda, uma flor
A cada instante, um grão de alegria
Lembranças do vosso amor
Santa Virgem Maria
Vós que sois Mãe do Filho do Pai do Nascer do Dia
Abençoai minha voz, meu cantar
Na escuridão dessa nostalgia
Dai-nos a luz do luar
Gravações
Gal Costa – O Sorriso do Gato de Alice, 1994 – Sony Music
Olivia Byington – Perto, 2008 – Biscoito Fino
Comentário*
Fiz essa canção em memória da Mariah, a mãe da Gal, de quem eu gostava muito. Ela própria era uma poetisa, a Gal chegou a publicar um livro de poesias dela. Uma mulher engraçada, filha da aristocracia decadente da Bahia, a aristocracia do fumo, de Cachoeira, da Bahia, da família Costa Penna. Tinha sido cultivada nos bancos de escola, era uma mulher minimamente cultivada e trazia resíduos do orgulho de sua classe: projetava para a filha um sonho aristocrático ligado às suas origens.
Eu gostava de conversar com ela, e quando ela morreu, eu escrevi essa canção, que fala em reverenciar os mortos, ritualizar a lembrança, as visitas aos cemitérios. O final é diretamente para Gal mesmo. Uma canção para as duas, para a mãe e para a filha vivendo a saudade da mãe.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Madalena (Entra em Beco, Sai em Beco)
Gilberto Gil
Isidoro
Encontrei Madalena
Sentada numa pedra
Comendo farinha seca
Olhando a produção agrícola
E a pecuária
Sua mãe consolava
Dizendo assim
Pobre não tem valor
Pobre é sofredor
E quem ajuda é Senhor do Bonfim
Há um recurso Madalena
Entra em beco sai em beco
Há uma santa com seu nome
Vai na próxima capela
E acende uma vela
Prá não passar fome
Gravações
Gilberto Gil – Parabolicamará, 1991 – Warner Music
Sérgio Mendes – Oceano, 1996 – Universal Music
Trio Nordestino – Xodó do Brasil, 1997 – Movieplay Digital
Quinteto Violado – As 20 preferidas, 1997 – RGE
Gilberto Gil – São João (Ao vivo), 2001 – Warner Music
Quinteto Violado – Os 30 anos do quinteto violado, 2002 – Matulão
Gilberto Gil – São João Vivo! (Deluxe), 2005 – Warner Music
Carla Visi – Carla Visita Gilberto Gil, 2008 – MZA Music
Akundum – O Melhor do Akundum, 2009 – MZA Music
Gilberto Gil – Back in Bahia – ao vivo (1972), 2017 – Discobertas
Ari Neves – Gilberto Gil Hoje, 2019 – Tratore [dist. Tratore]