Músicas
Quilombo, o eldorado negro
Gilberto Gil
Waly Salomão
Um eldorado negro no Brasil
Existiu
Como o clarão que o sol da liberdade produziu
Refletiu
A luz da divindade, o fogo santo de Olorum
Reviveu
A utopia um por todos e todos por um
Quilombo
Que todos fizeram com todos os santos zelando
Quilombo
Que todos regaram com todas as águas do pranto
Quilombo
Que todos tiveram de tombar amando e lutando
Quilombo
Que todos nós ainda hoje desejamos tanto
Existiu
Um eldorado negro no Brasil
Existiu
Viveu, lutou, tombou, morreu, de novo ressurgiu
Ressurgiu
Pavão de tantas cores, carnaval do sonho meu
Renasceu
Quilombo, agora, sim, você e eu
Quilombo
Quilombo
Quilombo
Quilombo
Questão de ordem
Gilberto Gil
Você fica, eu vou
Daqui por diante
Fica decidido
Quem ficar, vigia
Quem sair, demora
Quem sair, demora
Quanto for preciso
Em nome do amor
Você vai, eu fico
Você fica, eu vou
Se eu ficar em casa
Fico preparando
Palavras de ordem
Para os companheiros
Que esperam nas ruas
Pelo mundo inteiro
Em nome do amor
Você vai, eu fico
Você fica, eu vou
Por uma questão de ordem
Por uma questão de desordem
Se eu sair, demoro
Não mais que o bastante
Pra falar com todos
Pra deixar as ordens
Pra deixar as ordens
Que eu sou comandante
Em nome do amor
Você vai, eu fico
Você fica, eu vou
Os que estão comigo
Muitos são distantes
Se eu sair agora
Pode haver demora
Demora tão grande
Que eu nunca mais volte
Em nome do amor
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1968) – Universal Music
Comentário*
O teor é mais anarquista do que subversivo, porque a ideia geral da música, mesmo o aparelhamento cênico para a sua locação, se refere muito mais às ruas de Paris do que às de São Paulo da época. Os aparelhos subversivos, a guerrilha urbana, ainda estavam por vir para o Brasil, vindo a chegar aqui na década de 70. Então a referência direta são as ruas parisienses conflagradas: maio de 68.
Por que o estribilho: “Em nome do amor”. — Para dizer quais eram as nossas armas. Para dizer do nosso compromisso com as armas não violentas. A paz como arma, o pacifismo como elemento de luta: eram essas coisas já se insinuando. Nós acreditávamos no amor como arma, como força. Na crítica social que buscávamos fazer com nosso conjunto de atitudes e canções, o amor, como argamassa de toda a construção social, era exatamente o que teria faltado à burguesia, às elites, aos colonizadores no programa da civilização; daí os olhos grossos feitos às grandes injustiças, daí o “farinha pouca, meu pirão primeiro” do processo de acumulação capitalista. Com a introdução do amor, dizíamos: “Somos guerreiros de uma guerra não violenta, onde a grande arma é a solidariedade humana”. Essa metáfora afetiva entrou não só como atenuadora da carga agressiva, transgressora, violenta, da letra, mas também para dizer que nosso ideário incluía uma dimensão que teria sido rejeitada, descartada. “Questão de ordem” é tropicalista e já é contracultural. Da fase tardia do Tropicalismo. Ela e “Divino, maravilhoso” inauguram essa fase; ambas são o Tropicalismo já incorporando maio de 68 e o mundo hippie. O que é maio de 68 senão imbricamento de esquerda com hippismo, de militância clássica com militância contracultural? Maio de 68 é exatamente essa fronteira. E essas duas canções são maio de 68.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Queremos saber
Gilberto Gil
O que vão fazer
Com as novas invenções
Queremos notícia mais séria
Sobre a descoberta da antimatéria
E suas implicações
Na emancipação do homem
Das grandes populações
Homens pobres das cidades
Das estepes, dos sertões
Queremos saber
Quando vamos ter
Raio laser mais barato
Queremos de fato um relato
Retrato mais sério
Do mistério da luz
Luz do disco voador
Pra iluminação do homem
Tão carente e sofredor
Tão perdido na distância
Da morada do Senhor
Queremos saber
Queremos viver
Confiantes no futuro
Por isso se faz necessário
Prever qual o itinerário da ilusão
A ilusão do poder
Pois se foi permitido ao homem
Tantas coisas conhecer
É melhor que todos saibam
O que pode acontecer
Queremos saber
Queremos saber
Todos queremos saber
Gravações
Erasmo Carlos – Banda dos contentes, 1976 – Polydor
Gilberto Gil – O Viramundo (Ao Vivo), 1999 – Universal Music
Cássia Eller – Acústico (Ao Vivo), 2001 – Universal Music
Gilberto Gil – Em Casa Com os Gil, 2022 – Gege
Comentário
Da necessidade da popularização, da democratização da informação, do conhecimento, das conquistas da ciência: é disso que trata a canção. Uma reação ao esoterismo científico, tecnocientífico. A exigência da tradução dos mistérios da ciência em termos fáceis, absorvíveis, compreensíveis. A popularização no sentido da democratização também dos benefícios; do valor científico. Uma música, toda ela, sobre a distribuição de renda tecnológica e da riqueza existencial. Igualitarização: o sentido igualitário da interação entre as vidas humanas; entre as vidas humanas e as outras vidas. É uma das manias recorrentes em minha obra, onde você encontra um oroboro, um aprisionamento da minha poética.
Sobre a “luz do disco voador”. — Uma luz associada diretamente, essencialmente, ao mistério. Não se sabe o que é a luz do disco voador até hoje. Especula-se de tantas maneiras. A evanescência da luminosidade que aparece aqui e desaparece logo em seguida e reaparece acolá. O disco voador é o objeto mais essencialmente associado ao sentido quântico, evanescente, pulsante, da luz. A luz do disco voador é a mais misteriosa que continua existindo pra nós todos.
“Tão perdido na distância/ Da morada do senhor”. — O pensamento de que, por alguma razão, o ser humano se afastou da divindade; a ideia da queda, do pecado original. Isso está embutido na noção da distância da morada do Senhor, como se a materialidade, a encarnação fosse compulsoriamente uma queda — o espírito caindo com a matéria, a matéria caindo na matéria —, em contrapartida à ideia religiosa do religare, a retomada, o reencontro, a religação com a essência original da divindade.
De como a canção condensa esses aspectos que permeiam a poesia de Gil, convergindo o esotérico e o científico, a tecnologia e o homem, este pensado como um ser a evoluir. — Um ser a reencontrar-se consigo mesmo, esse “si mesmo” sendo Deus ou a ideia que se faça de Deus, da divindade. A ideia do “de onde viemos, para onde vamos”, com a esperança de que “de onde viemos” seja também “para onde vamos”. Do alfa-ômega: o cumprimento do percurso entre o nascimento e a morte; a morte como reintrodução de um mundo do qual o nascimento nos sequestrou e que ela há de nos restituir.
Sobre saber “o que pode acontecer”. — “Pois se foi permitido ao homem tanta coisa conhecer, é melhor que todos saibam o que pode acontecer”: a ideia da mínima pré-visibilidade das consequências do ato humano; da responsabilidade; do “princípio da precaução”, como dizem os ecologistas. Enfim: sabermos o que será, para nos precavermos. Vem uma tempestade: como podemos nos proteger dela? O que fazer pra mitigar seus efeitos? Uma questão de mitigação, exatamente.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Quero ser teu funk
Gilberto Gil
Liminha
Dé
Já sou teu fã número um
Agora quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Agora quero ser teu funk
Já – já que sou teu fã número um
Funk do teu samba
Funk do teu choro
Funk do teu primeiro amor
Rio de Janeiro
Bela Guanabara
Quem te viu primeiro, pirou
Chefe Araribóia, que andava
De Araruama a Itaipava
Não cansava de te adorar
Depois te fizeram cidade
Te fizeram tanta maldade
E um Cristo pra te guardar
Quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Agora quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Agora quero ser teu funk
Já – já que sou teu fã número um
Funk do teu morro
Funk do socorro
Que o pivete espera de alguém
Rio de Janeiro
Sou teu companheiro
Mesmo que não fique ninguém
Mesmo que São Paulo te xingue
Porque te cobiça o suingue
O mar, a preguiça, o calor
Lembra da Bahia, que um dia
Já mandou Ciata, a tia
Te ensinar kizomba nagô
Quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Agora quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Agora quero ser teu funk
Já – já que sou teu fã número um
Funk da madruga
Funk qualquer hora
Funk do teu eterno fã
Funk do portuga
Que te amava outrora – e agora
Funk da turista alemã
Rio de Janeiro, Rocinha
Sempre a te zelar, Pixinguinha
Jamelão, Vadico e Noel
Funk são teus arcos da Lapa
Funk é tua foto na capa
Da revista Amiga do céu
Gravação
Gilberto Gil – Parabolicamará, 1991 – Warner Music
Comentário*
Há anos alguém pichou isto num muro em Salvador: “Gil, quero ser teu funk”. Tempos depois, o Dé, baixista, comentando comigo sobre a frase — “é maravilhosa” —, disse que eu devia fazer uma música com ela. “Está bem, eu vou fazer.” Mas eu não queria fazer uma canção autoatribuída e por isso pensei no Rio: numa canção de amor e solidariedade à cidade e aos bailes funk, à nova geração voltada para o funkismo nos subúrbios cariocas, espécie de reciclagem da juventude black-Rio.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Quem puder ser bom que seja
Gilberto Gil
Que seja sempre cada vez melhor
Pra que todo mundo veja
A luz bailando alegre ao seu redor
Luz ferina, luz entrante
Luzente no fundo da escuridão
Iluminando num instante
O espírito da gente, o coração
Quem puder ser bom que seja feliz
A vida lhe quis assim
Deu-lhe uma, duas, três vezes mais
Paz pra espalhar por aí
Quem puder ser bom que seja
Que a inveja não lhe faça desistir
Quem é bom já está na igreja
Já está no céu, já tem porque sorrir
Quem é bom, é bom
Faz o bem, é bom
Faz o amor, é bom
Quanto mais, tanto melhor
Quem é bom, é bom
Faz o bem, é bom
Faz o amor, é bom
Sua paz é um tiro só
Gravação
Daniela Mercury – Sou De Qualquer Lugar, 2001 – Sony Music
Comentário*
Um xote um pouco sobre a minha definição de mim mesmo; sobre almejar que eu seja um bondoso radical [em “Quem puder ser bom que seja”, outro tema tipicamente gilbertogiliano, o da bondade]. “Que a inveja não lhe faça desistir”, quer dizer: não abrir mão de ser bom. Que o mal é sedutor, então você pode invejá-lo.
A luz da bondade na pessoa iluminando o espírito de quem observa a luminosidade dela. — A bondade como contágio. Como virose. Com capacidade de infectar. Porque é preciso acreditar nisso porque essa crença, essa ideia de força contagiosa, está muito associada ao mal. É como se o mal tivesse esse poder, e o bem não tivesse tanto. O bem como virose, sim, pois a gente tem dificuldade de associar o bem ao mal. Mas é só nesse plano, nessa altura, que se pode ter a compreensão do mal e do perdão. Só quem é bom pode entender o mal: é isso. O que faz o mal alienadamente, quer dizer, apartado da dimensão, do sentimento profundo da bondade, não sabe o que está fazendo, se perde, se despe dos vértices da integralidade em si, não se integra, não se entrega. Exclui. É nesse sentido que às vezes me refiro a mim mesmo como um bondoso radical. Estou sempre puxando a brasa pra sardinha do bem.
“Sua paz é um tiro só”. — É fulminante a qualidade da integralidade do ser; o ser fulmina tudo. É a ideia por trás de uma canção como essa.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Que bom prato é vatapá
Gilberto Gil
Paulinho Boca de Cantor
Galvão
Se falar mal de baiano
Que bom prato
É vatapá
Mas cuidado
Que eu já vi
Muito nego se dar mal
Com siri
E acarajé
Que bom prato
É vatapá
Tá na onda
Se falar mal de baiano
Mas cuidado
Que eu já vi
Muito nego se dar mal
Com siri
E acarajé
Onde é
Onde é que se viu
Que se viu
Se cuspir
No prato que se ouviu
Que se ouviu
O baiano anda olhando pra cima
Feitiço é saber
Ter no corpo dendê
Que besteira
Gilberto Gil
João Donato
Amou
Depois
Não quis
O rapaz não se refez
Chorou
Pediu
Quis mais
Os mistérios da paixão
Senão
Da cruz
Os dois
Que besteira você fez
Não quis
Depois
Cedeu
O rapaz mais uma vez
Sorriu
Ficou
Feliz
O nascimento da luz
A pomba
A paz
O três
Quatro, cinco, seis
Que besteira
A primavera, a quimera
A flor-de-lis
A cruz de malta
A dor que causa
A falta de clareza
A incerteza quando a gente diz:
Que besteira você fez
Pois eu
Também
Já fiz
Que besteira você fez
Já faz
Um mês
Ou mais
Que besteira você fez
Pois foi
Você
E a beleza de um rapaz
Gravação
João Donato – Lugar Comum, 1975 – Philips
Gilberto Gil – Ensaio geral, 1999 – Universal Music
Quatro Pedacinhos
Gilberto Gil
Depois mandou examinar os quatro pedacinhos
Um para saber se eu sinto medo
Um para saber se eu sinto dor
Um para saber os meus segredos
Um para saber se eu sinto amor
Ela é médica e tem todo direito de arrancar o que quiser
de mim
Eu que estou, como qualquer sujeito,
Sujeito a dar defeito ou coisa assim
Doença, mal, moléstia, enfermidade
Até saudade, até saudade pode ser meu fim
Ela mandou arrancar quatro pedacinhos do meu coração
Depois mandou examinar os quatro pedacinhos
Um para saber se há um depósito de proteínas esquisitas lá
Um para saber se as pequeninas são assassinas e podem
mata
Um para saber se estou curado com os remédios que ela
me deu
Um para saber se estou errado por ter juntado o meu
destino ao seu
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
Uma das canções relacionadas com a crise de saúde experimentada no ano de 2016. A personagem é a médica cardiologista, a dra. Roberta Saretta, que tratou de Gil. — A canção é sobre a relação de afeição que se desenvolveu entre nós. A intenção, basicamente, foi brincar com a importância da dimensão do paciente, da submissão do paciente ao médico, ao encarregado do tratamento. O que a oportunizou foi o fato pitoresco de ela determinar uma extração de pequenos pedaços do meu coração para fazer uma biópsia, um exame. Aí eu faço a associação do coração material, físico, com o coração espiritual, onde reside o campo do afeto, do amor, com a apropriação do campo físico, fisiológico, pelo psicológico, o coração como residência da afetividade. A canção constitui também uma espécie de agradecimento a ela, por ela ter cuidado de mim, e tê-lo feito em ambos os sentidos, tanto o físico como o espiritual, porque foi uma pessoa muito importante no sentido da manutenção do vigor espiritual. Tem essas duas dimensões.
[Segundo Gil, ao contrário do que se pode interpretar, o último verso se refere à mesma terceira pessoa de quem a canção trata desde o princípio, não se dirigindo o cantor a um interlocutor que seria em tese a pessoa amada por ele. “É porque nos tornamos amigos mesmo, e eu interrogo qual o sentido de que os eventos relativos à nossa relação técnica tenham levado a um desenlace afetivo profundo. Sou eu falando com ela — dela — mesmo.”]
Sobre tanto “Quatro pedacinhos” quanto “Kalil” (dedicada ao doutor que também tratou dele), com o qual faz par, se relacionarem com o fato de Gil ter convivido de perto com a medicina desde cedo. — O impulso de tratar com especificidade os relacionamentos com os dois médicos naquele momento tem a ver com um respeito e uma admiração profunda pelo profissional que é o médico por causa do cultivo desse respeito e dessa admiração desde a minha infância, a minha própria criação, na minha casa. Ao lado de me criar em todos os outros sentidos da expressão “criar- -me”, meu pai foi também o meu médico, o primeiro zelador da minha saúde. Era clínico geral. Uma vez, ele disse pro Caetano: “Tropicalista sou eu”. Porque depois de ser clínico geral por muitos anos, ele se especializou em doenças tropicais. E durante o último quadrante da vida dele exerceu a profissão de sanitarista especializado em doenças tropicais. Por isso, ele fazia essa brincadeira: “Eu que sou tropicalista. Sou um médico tropicalista”. Foi político também; vereador. Chegou a ser presidente da Câmara de Vereadores em Vitória da Conquista e prefeito interino, substituindo o prefeito eleito.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Quatro Modos
Gilberto Gil
São diferentes modos de atribuir
Poder à divindade
O mito da verdade superior
Ô-ô-ô
São diferentes modos de buscar
São diferentes modos de atribuir
A vida com a lenda
Na busca da verdade superior
Ô-ô-ô
Ver o céu condensado
Nos Olhos de uma deusa
Chamá-la de Iansã, Santa Bárbara
O que olha e não pensa
E ganha a recompensa
Ao ver Nossa Senhora de Fátima
Nossa Senhora de Fátima!
São diferentes modos de exigir
São diferentes modos de atribuir
Poder à divindade
O mito da verdade superior
Ô-ô-ô
São diferentes modos de buscar
São diferentes modos de equilibrar
A vida com a lenda
Na busca de verdade superior
Ô-ô-ô
O que fica curado na pia de água benta
Em Juazeiro do padre Cícero
O que tem uma filha
E faz no batizado
Chamar a filha de Guadalupe
La Virgen de Guadalupe!
Quatro coisas
Gilberto Gil
Quatro coisas essenciais
A primeira é que o nosso amor
Não irá terminar jamais
A outra é
Que a memória de amor igual
É possível que esteja até
Na história de outro casal
Número três
Mesmo que exista por aí
Outra história de amor assim
Não será como foi pra nós
A quarta então
Tranquilize seu coração
Nosso amor virou pedra e não
Temos força pra quebrar não
Quarto mundo
Gilberto Gil
Escassa ambição e excessiva euforia mescladas na dose fatal
Transporte da vida pra morte, da morte pro esquecimento total
A lágrima de encontro ao riso já sem paraíso ou juízo final
Quisera entender meu som tropical
Saber decifrar meu som tropical
Mistério de amor, meu som tropical
Viver e morrer meu som tropical
A carne verde da luxúria estendida ao sol
Assada à brasa dessa vida debaixo do sol
Curtida a pele percutida transmutada em som
Cadência e decadência na batida do tantã
Meu som tropical lembra imagens da aprendizagem da desilusão
Paisagem da cana depois da colheita, da fome após a refeição
O luxo transformado em lixo depois do capricho da satisfação
A calma da alma penada, da ânsia ancorada na resignação
Um Primeiro Mundo, depois um Segundo, um Segundo
depois um Terceiro
Investe-se, vestem-se os índios, invertem-se os vértices, mundo ligeiro
E o meu poliedro vai se lapidando, arredondando-se por inteiro
E o som tropical tributando o mistério profundo do ser verdadeiro
Quisera entender meu som tropical
Saber decifrar meu som tropical
Mistério de amor, meu som tropical
Viver e morrer meu som tropical
Quisera entender meu som tropical
Meu quarto mundo
Quanta
Gilberto Gil
Plural de quantum
Quando quase não há
Quantidade que se medir
Qualidade que se expressar
Fragmento infinitésimo
Quase que apenas mental
Quantum granulado no mel
Quantum ondulado no sal
Mel de urânio, sal de rádio
Qualquer coisa quase ideal
Cântico dos cânticos
Quântico dos quânticos
Canto de louvor
De amor ao vento
Vento, arte do ar
Balançando o corpo da flor
Levando o veleiro pro mar
Vento de calor
De pensamento em chamas
Inspiração
Arte de criar o saber
Arte, descoberta, invenção
Theoría em grego quer dizer
O ser em contemplação
Cântico dos cânticos
Quântico dos quânticos
Sei que a arte é irmã da ciência
Ambas filhas de um deus fugaz
Que faz num momento e no mesmo momento desfaz
Esse vago deus por trás do mundo
Por detrás do detrás
Cântico dos cânticos
Quântico dos quânticos
Gravação
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Comentário*
Quanto mais eu leio sobre o quantum da matéria, sobre essa abolição da escravatura da física do mecanicismo, do paradigma cartesiano, mais eu fico pensando por que eu resolvi passar quase cinco anos dedicando uma especulação sobre isso a um trabalho artístico, acabando por fazer um disco duplo, enorme, exaustivo, até confuso para muita gente. Mas é bacana que eu tenha feito. E a confusão se parece muito comigo mesmo, com o modo como a minha mentalidade se insinua por aí, pelo mundo, pelos fazeres, pelo meio das coisas.
É um trabalho que vem do meu enorme fascínio pelo universo max-planckiano, schrodingeriano, heisenberguiano, niels-bohriano; um fascínio de anos. Me lembro que exatamente no dia que eu mostrei Parabolicamará ao Caetano, eu disse: “Esse disco me excitou; me deu vontade de fazer um trabalho sobre os quanta!”. Isso foi em 92, e eu só vim a fazer o Quanta em 96. Foi, portanto, um disco amadurecido ao longo de, pelo menos, quatro anos, com muitas canções, de vários paradigmas.
“Quanta”, a canção, fala da noção científica dos quanta; da coisa quase do mundo virtual que é a ideia do subatômico, do subdimensionamento da matéria a partir do átomo: um mundo fascinante porque vedado à própria consciência, no sentido dos mecanismos com os quais a consciência trabalha; do sentido incorpóreo, transdimensional, para além da dimensão palpável das coisas, pelos sentidos; para além dos sentidos; da visão da existência no mundo, nos lugares onde os sentidos não podem percebê-la, e aí, ainda assim, elas existem; ainda assim elas podem ser ampliadas por microscópios de vários tipos, sendo trazidas ao campo dos sentidos, da percepção sensorial.
Esse domínio subatômico é a própria fronteira do meu mundo especulativo; é o próprio encantamento para mim, como as grutas da minha infância, que eu visitava em Ituaçu — lá, eram os mistérios subterrâneos; aqui, são os mistérios subatômicos, os subterrâneos da matéria, esses lugares onde a matéria está enterrada, as particulinhas invisíveis onde ela está enterrada. Eu tenho um fascínio pelo mistério; eu sou fascinado por ele. Adoro a ideação do mistério em ação, eu passo a agir a partir de um estímulo intelectual desse.
São as esferas mentais que introduzem a não dimensão no campo da nossa materialidade. É a mente — incapturável, nesse sentido — que introduz o mistério da rarefação material, do campo do sutil, do indeterminismo na matéria, da imaterialidade da matéria. Essas especulações já fazem fronteira com a religiosidade, com os mistérios. Aí, só a arte dá conta; a arte ou as ciências que se querem “artistizadas”, ou “artistizantes”, niels-bohrianas (foi o ying e o yang que deram a Niels Bohr a ideia da complementaridade, da imbricação). A aproximação brutal que de repente a ciência fez da sua substância com a do mundo místico, mítico, é de um fascínio enorme para mim — a coisa do deus dos fragmentos.
Cântico/quântico. — Um trabalho como Quanta só foi possível por ter o mundo do milagre sido finalmente explicado (entre aspas) pela ciência; por ele ter se tornado acessível à racionalidade pela ciência subatômica, que dimensionou, através da palavra, do conceito, do discurso, alguma coisa que já está no campo da não dimensão, restituindo materialidade àquilo que não é mais matéria, que já está além, transdimensionado. Eis o milagre quântico. A expressão “cântico dos cânticos”, relacionada com o campo quântico, já tinha sido usada — o Moreno me mostrou depois — num artigo por um cientista francês.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Quando amanhecer
Gilberto Gil
Vanessa da Mata
Para iluminar você
Vai anoitecer o dia
Se não vier
Mas se for presente
Tudo iluminará
Meu humor, meu coração
Como deve ser se
Ser como Deus quer for
Milagre, resignação
Roupa colorida
Alegria às vistas, indecência, indiscrição
Seu cheiro me achando
Minh’alma perdida
Direi que é céu no chão
Quando anoitecer será
Para te fazer dormir
Estrelas que nem brilhantes
Pra te vestir
Vai saber que Deus fez
As damas da noite
Preparando o seu buquê
Como vai dizer não
Se tudo o que eu vejo
Está aqui pra te servir
A mais bela roupa
Roupa de ir a festa
Coloquei pra te esperar
Disco na vitrola
Uma vela acesa
E a lua mais cheia
Quando o sol nascer será
Para desenhar você
Ou será você que virá
Pro sol nascer
Gravação
Vanessa da Mata – Bicicleta, Bolos e Outras Alegrias, 2010 – VDM
Quando
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Gal Costa
Rita Lee, i-i
Com todo prazer
Quando a governanta der o bode
Pode crer que eu quero estar com você
Superstar com você
Há muito tempo uma mulher sentou-se e leu na bola de cristal
Que uma menina loira ia vir de uma cidade industrial
De bicicleta, de bermuda, mutante, bonita
Solta, decidida, cheia de vida etc. e tal
Cantando yê-yê-yê-yê-yê-yê-yê
Ho ho
Gravações
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa – Doces Bárbaros, 1976 – Philips
Comentário*
Eu iniciei a canção e fiz a letra toda praticamente; Caetano e Gal deram algumas sugestões de melodia. ‘Quando’ é uma brincadeira com o superestrelato, com o superstar como signo da celebridade artística. Nós íamos, de uma certa forma, resenhar um período de experiência, e Rita Lee era muito emblemática de uma coisa que tinha sido importantantíssima para nós: ela era a nossa musa do desvio, do transvio… A música tem elementos de composição que vêm do rock and roll filtrado por ela. Uma garota de bicicleta etc.: a figura descrita parece com ela. A canção talvez tenha sido a segunda em sua homenagem. Eu nunca tive nenhuma afirmação conclusiva, mas eu tenho a impressão de que ‘Rita jeep’, do Jorge Ben Jor, se refere a ela; à época em que ele tinha um jipe.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil