Músicas
Guerra santa
Gilberto Gil
Ele promete a salvação
Ele chuta a imagem da santa, fica louco, pinel
Mas não rasga dinheiro, não
Ele diz que faz que faz tudo isso em nome de Deus
Como um papa da Inquisição
Nem se lembra do horror da Noite de São Bartolomeu
Não, não lembra de nada, não
Não lembra de nada, é louco, mas não rasga dinheiro
Promete a mansão no paraíso, contanto que você pague primeiro
Que você primeiro pague o dinheiro, dê sua doação
E entre no céu levado pelo bom ladrão
Ele pensa que faz do amor sua profissão de fé
Só que faz da fé profissão
Aliás, em matéria de vender paz, amor e axé
Ele não está sozinho, não
Eu até compreendo os salvadores profissionais
Sua feira de ilusões
Só que o bom barraqueiro que quer vender seu peixe em paz
Deixa o outro vender limões
Um vende limões, o outro vende o peixe que quer
O nome de Deus pode ser Oxalá, Jeová, Tupã, Jesus, Maomé
Maomé, Jesus, Tupã, Jeová, Oxalá e tantos mais
Sons diferentes, sim, para sonhos iguais
Gravações
Gilberto Gil – Festival Hollywood Rock, 1995 – Promoter
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – Eletracústico (Ao Vivo), 2004 – Warner Music
Comentário*
‘Guerra Santa’ foi uma canção que eu fiz em resposta mesmo à provocação contida no episódio do pastor evangélico que chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida na televisão. Eu achei aquilo uma falta de respeito, de um utilitarismo reles; um gesto de proselitismo funcional, de puxar a brasa para a sua sardinha religiosa; um gesto de um viés materialista muito claro, no meio da linguagem religiosa. Achei aquilo de uma ignorância que eu senti quase uma necessidade de denunciá-la; de denunciar o fato de que aquele gesto ignorava uma série de coisas, de que era um gesto ignorante mesmo. Se ele não pode respeitar o atributo religioso de uma outra religião, de um outro credo, de uma outra profissão de fé, ele não tem direito de professar uma fé; se ele não respeita a profissão do outro, ele não tem direito de ser profissional. Daí a própria letra falar do mercado, das barracas, dos vendedores…
Se não houver uma substância comum às religiões, de que universalidade estaremos falando? Se os universais não são compostos dos particulares, das partes… ‘Guerra santa’ é uma canção sobre isso, que eu fiz durante um retiro, num spa em São Paulo. Eu achei que havia no gesto uma exigência, que o que ele estava dizendo quando fez aquilo era: ‘Digam alguma coisa; expliquem isso, me expliquem isso aqui’. Era um pedido de explicação que eu me senti na obrigação de atender. Essa música foi das poucas músicas na minha vida que surgiram de uma exigência filosófica. Música de resposta mesmo – a uma intolerância religiosa que não é compatível com a complexidade do nosso tempo.
A volta da história – Como o candomblé tinha sido perseguido pelos católicos, agora estes eram atacados pelos evangélicos, e nós [do candomblé] vínhamos – quer dizer, eu achei que tinha de vir – em defesa dos católicos; quer dizer, o antigo algoz virava vítima e a vítima vinha em socorro do algoz…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Gueixa no tatame
Gilberto Gil
Mas a gueixa me iludiu
Logo de cara, umeboshi
Uma ameixa salgada
Quieto, seu mano engoliu
Um forte impacto no ilíaco
Mas se era afrodizíaco, tudo bem
Gueixa não é sempre que se tem assim
Depois ela serviu, sake, sushi, nato, tofu
Como encontrar apetite pra tanto palpite no menu
Não sei se vinha da ameixa mas a deixa era
Luzes, câmera, ação !
Não aguentava mais meu coração
Minha gueixa no tatame
Parecia um camafeu
Uma gueixa no tatame
E eu ali perto do céu
Olhei pra ela e disse
Sonho, sonho meu
Nesse mesmo instante
Incontinente ela adormeceu
Não foi possível libertá-la do morfeu
Gravação
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Warner Music
Comentário*
De como Gil, não podendo mais cantar “Minha nega na janela”, cria e canta “Gueixa no tatame”. — É engraçada essa história, porque eu cantava “Minha nega na janela” por ser das canções que tinham me chegado através do Germano Mathias, com aquela sestrosidade toda, aquela malícia toda do sambista urbano, de uma urbanidade mais estranha, mais complexa, de São Paulo, do que, por exemplo, a urbanidade mais simplista, mais necessariamente negroide dos morros cariocas: ali era um malandro do asfalto, paulista, paulistano, com aquele repertório também muito sestroso, jocoso, com as grandes ironias dos sambas simples. E esse samba “Minha nega na janela” [de Germano Mathias e Firmo Jordão, gravado por Gil no álbum Antologia do samba-choro, dividido em interpretações de Gil e de Mathias] chegou pra mim por aí, exatamente por causa daquela violência simbólica toda, toda ela em busca de sublimação, uma violência com aspirações sublimantes. Eu cantava porque era uma música do grande repertório do Germano, do início do trabalho dele, de logo quando ele surge. E aí vem, muito depois, a questão toda do politicamente correto, a confusão toda do racismo. A consciência negra cobrando seus ázimos naturais. E aí eu não pude mais cantar essa canção. Não tinha mais como. Se eu cantasse, ninguém ia me perdoar, ninguém ia preservar a minha inocência juvenil, a minha infância “germânica”. Não ia ter mais como. “Não pode! Como é que vai tratar sua nega desse jeito?”
Parece que seus familiares mesmo, sua mulher, Flora… — Minha família, todo mundo. “Como? Não pode cantar uma música dessa!” Eu disse: “Tá, não posso; então vou cantar ‘Gueixa’”.
E é uma paráfrase que você faz, da mesma forma que fez entre “Pela internet” e “Pelo telefone”. Você parte de uma música de um repertório tradicional pra fazer algo que dialoga com aquilo. — Exatamente. A construção é toda praticamente a mesma. A estrutura de “Gueixa no tatame” é a mesma de “Minha nega na janela”, toda ela. Número de versos, as sílabas de cada verso: é um encaixe direto. Dá pra cantar uma e cantar outra. Foi uma maneira de salvar essa canção pra mim, que eu tinha muito gosto de tocá-la, muito gosto de ter encontrado um jeito, um violão especial pra ela e tudo mais. E a lembrança extraordinária do Germano. Então eu dizia: “Eu não posso jogar isso fora”. Não quis, e aí eu fiz a “gueixa no tatame”, em vez da “nega na janela”. Ao fazer, me lembrava do [Tomio] Kikuchi [o introdutor da macrobiótica no Brasil, que manteve um restaurante dessa dieta, o Satori, em São Paulo], lembrava do restaurante lá na Liberdade [o bairro oriental da capital paulista], do tofu, do saquê, do natô, daquilo tudo. Aí é essa pescaria que você vai fazendo nas fontes da vida; os lugares que a vida lhe oferece. A canção é engraçada, jocosa.
É você dialogando com a tradição, seja da música nordestina, seja do samba paulista. — Exatamente.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Graça divina
Gilberto Gil
De reter a dor
Graça divina no dom que a aspirina tem
De aspirar a dor
A eficácia da graça divina tem
Um pé na farmácia, outro no amor
Graça divina no som da buzina diz:
“Cuidado, atenção!”
Graça divina no olhar da menina diz:
“Paz no coração”
A voz humana da graça divina diz:
“Dou graças pelas coisas que são”
São Matheus, Mata de São João
Madredeus, Vitória de Santo Antão
Mata a saudade, quem há de me dar o prazer
Me levar pro sertão!?
Graça divina na vina, no violão
Toda música
Graça divina no tato, na sensação
Toda física
A proteína da graça divina não
Não está na doutrina mas na meditação
Graça divina que a raça bovina dê
Leite e muito mais
Graça divina que a moça da esquina crê
Que seja um rapaz
Se apaixonando e casando com ela lá
No altar da capela de São Brás
Gravação
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Comentário*
Essas aliterações do mundo da física, da química. “Graça divina” é bem quântica. Eu me lembro que, quando eu fiz essa música, eu me apaziguei com a ideia do Quanta. Achei que ela dava um desfecho a toda a ideia conceitual do álbum.
A imbricação profunda entre dimensões individuais, as possessões dos indivíduos que formam o povo, e o mundo do imagético, do poético, com suas ondas. O mundo físico, químico, e as manifestações divinas. A ciência, o conhecimento, a aplicação do conhecimento para o desenvolvimento da saúde. A dimensão sanitária da divindade. A graça divina se manifestando no humano.
É uma das canções mais fidedignas do meu grande interesse pela existência em todas as suas formas; tudo, evidentemente, passando necessariamente pelo filtro humano, a humanidade. Deus — a religião humanidade, esse sentido. Deus é culmen absoluto, está em tudo.
Dos topônimos do refrão. — São lugares. São Matheus, no Espírito Santo. Madredeus, na Bahia de Todos os Santos — em Portugal também tem, mas no caso aqui é na Bahia mesmo, porque essa música se passa no Recôncavo. Vitória de Santo Antão é em Pernambuco: aí há esse deslocamento a partir do Recôncavo. Um refrão bem telúrico, bem terreno. Terras, lugares.
[No refrão também aparece, significativamente, “saudade”, outra palavra que volta e meia reponta em canção de Gil. E não à toa seguida de “sertão”.]
“Graça divina” vai buscar personagens em lugares importantes da nossa territorialidade brasileira que são referidos; personagens anônimos de encontros que a vida me deu junto do Recôncavo. São vários os elementos de aproximação com a dimensão cultural, afetiva, a variedade geográfica, e os elementos do início da canção, ligados a uma poesia de jogos de interconexão entre ciência e tecnologia e música e poesia.
Interessante a aliteração em “vi” e em “n” em “Graça divina na vina, no violão”. E interessante também vir o Oriente: de repente a gente é remetido pra Índia. — Sim, esses instrumentos tão seminais. E a Índia, claro. É outra tradução de Bahia.
Uma das dez mais. — “Graça divina” é um batuque-baião, um baião meio batuque. Muito própria. É uma canção que eu adoro. Se eu fosse escolher as dez mais, as dez melhores minhas, essa estaria entre elas. E o que há de muito emocionante nela, o que pra mim reforça o caráter mágico dela, é para além da letra: é a música.
Concorre demais. Aí ela nos adentra no terreno do mistério mesmo. Aí entra o que “diz” o som. — Som, ritmo, suingue, balé. É esse jogo de música, dança; tudo isso.
E o sentimento que a música em si, e combinada com a letra, transmite, sendo isso inclusive aludido num trecho, é o sentimento da gratidão. — É a graça divina. Está no título. Está em “graças pelas coisas que são”. A gratidão pelo existir, pela encarnação, pela consciência, pela condição humana de poder exercer a percepção do mundo, da existência das coisas. Eu diria que a canção é uma ode ao grande tesouro, a grande dádiva que é a consciência humana — e tudo isso contido no verbo, na capacidade de pronunciar a palavra “eu”, como diz Caetano, que é substrato básico da consciência humana. O “em si” que propicia — o eu é de onde sai a catapulta que lança o ser para o si. Do ser para o eu, para o si; nisso consiste a força da consciência. Tudo isso, na canção, é verbalizado como jogo poético, brincalhão.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Gosto do prazer
Gilberto Gil
Jorge Gomes
A cara alegre, o gosto do prazer
Guanabara, Guanabara
(Que quarup pop)
Paulicéia, Paulicéia
(Que platéia dadá)
Amazônia, Amazônia
(Tão idônea cor)
Mantiqueira, Mantiqueira
Me queira sempre amor
Isso é que é
Utopia
Sonhos de axé
Na Bahia
Toque de bola
Nossa escola tropical
Toca a viola
Carnaval
Bate o pandeiro
Nosso cheiro de dendê
Vale um bocado
De dinheiro
Tomara que a cidade possa ter
A cara alegre, o gosto do prazer
Saber o som da cor da Cor do Som
Isso é alegria, isso é que é bom
Goodbye my girl
Gilberto Gil
I’ll be leaving soon
When you wake up in the morning
I won’t be with you
Good-bye
Please, don’t cry
We should try
To get together one more time
So catch a train and you can make the next town
To see the show
I will be singing one more time
And yours will be the only face in the front row
Good-bye, my girl
[ No Norte da Saudade, de Gilberto Gil, Moacir Albuquerque e Perinho Santana ]
Goma de mascar
Gilberto Gil
Mascar e mascar e buscar o sabor
Onde já não há sabor
Onde já não há sabor
Como ferro de engomar
Passar e passar até fazer do amor
Lenço sem dobras de dor
Lenço sem dobras de dor
Como sempre admirar
O que quer que faça rima
Como irmã com Maria e mar
O que quer que esteja acima
Do nível do medo de amar
O que quer que faça feliz
Como pôr os pingos nos is
Pingos nos is das ilusões
O que quer que mereça um bis
Como goma de mascar
Glasses
Gilberto Gil
I have my glasses on
Suddenly I’m going crazy ways I haven’t gone before
I have my glasses on
If I am wearing glasses, I am happy, I can feel all right
If I am sad, I take the glasses off
It’s the darkest night
Oh, baby, why don’t you look at me?
What’s wrong, baby, you never tell me
Oh, baby, why don’t you look at me?
Behind these lenses, I’m a very good boy
Needless to say, I’ve never been the best
An intellectual charm should help me pass the test
One thing is true, and it seems that you won’t believe me thou
I was born with no glasses on
With no glasses, wow
Oh, baby, why don’t you look at me – oh, oh
What’s wrong, baby, you always say no – oh, oh
Oh, baby, why don’t you look at me – oh, oh
Behind these lenses, I’m trying to say hello
[ inédita – Óculos, de Herbert Vianna ]
Giro
Gilberto Gil
Giro, giro, giro, giro, giro, giro
Acho que só vou parar quando o dia
Quando o dia de manhã
Também quem mandou chegar na bahia
Ter que receber nanã
Quem mandou comer mais uma fatia
De bolo de carimã
Acho que era neste axé que eu queria
Me tornar menina irmã
Giro, giro, giro, giro, giro, giro
Giro, giro, giro, giro, giro, giro
Giro, giro, giro, giro, giro, girou
Tudo girou
Mundo girou
Me segura rapaz
Viro, viro, viro, viro, viro, viro
Viro, viro, viro, viro, viro, viro
Hoje tá virando amor de verdade
Desse que vem pra ficar
Hoje tá brilhando o sol na cidade
No sonho do orixá
Hoje tou matando aquela saudade
Que me trouxe até aqui
Hoje não tem nada pela metade
Bolo inteiro só pra mim
Viro, viro, viro, viro, viro, viro
Viro, viro, viro, viro, viro, viro
Viro, viro, viro, viro, viro, virou
Tudo virou,
Mundo virou,
Me segura rapaz
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
“Giro” é a primeira música que fiz para o disco da Roberta Sá. Não era ainda nem pro disco, eu fiz pra ela e pensando nela como personagem, como cantora, como agente cultural, como fator de interligação entre as culturas nordestinas várias e a Bahia; como uma das mais significativas desse conjunto. É sobre ela chegando à Bahia e se encantando com o candomblé. É a conversão dela: ela se torna adepta da religião, do conjunto de crenças e dos orixás. Uma conversão cultural ensejada pelo deslumbramento, encantamento, compartilhamento, que essa conversão propicia — com tantas outras cantoras, cantores, autores, de todo o cancioneiro amplo, vasto, que tem a Bahia como tema. “Dá licença, dá licença, meu senhor”, Denis Brean.
Denis Brean, de Campinas, um dos paulistas que se encantaram. — Como mineiros como Ari Barroso, e por aí vai. É a Roberta aderindo a esse campo da dimensão profundamente cultural da religiosidade afro. Ela, que descobriu o orixá dela, Xangô, na santeria. Com um pai de santo cubano; não foi no candomblé.
“Giro” acabou dando nome ao disco dela, um trabalho que consistiu numa parceria de vocês. E o termo resulta, coincidentemente, da junção das duas primeiras letras dos seus nomes. — Sim: Gi-Ro. Foi ela quem sacou. Gil e Roberta.
Ela canta muito bem, tem um jeito muito interessante, uma capacidade muito grande de apreensão dos modos brasileiros. É uma grande cantora. E além disso tem o lado de compositora, que ela cultiva também — com parcimônia, com modéstia, mas cultiva.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Gimme your love
Gilberto Gil
Liminha
Make me move, baby
Gimme your love
Cause your love is paradise
Just as sweet as my reggae
Gimme your love
Make me move, baby
Gimme your love
Cause your love is like a prize
Just as rich as my reggae
So, baby, get up
Hurry up, hurry up
Don’t be too late, I’m gonna wait
Until you catch me up
Hurry up, hurry up
I guess when fate is great
We bite the bate, I won’t give up
Hurry up, hurry up
Today I’m gonna be your date
You better hurry up
Hurry up, hurry up
The reggae beat will beat
Until we meet and celebrate
Gimme your love
Make me move, baby
Gimme your love
Love has taken by surprise
Just as much your heart as mine
Gimme your love
Make me move, baby
Gimme your love
Now we gotta sincronize
Just your love and my reggae
Gimme your love
Make me move, baby
Gimme your love
We shall follow destiny
Just as true as truth can be
Gilbertos
Gilberto Gil
E a cada vinte e cinco um aprendiz
Aparece a cada cem anos um mestre da canção no país
Aparece a cada cem anos um
E a cada vinte e cinco um aprendiz
Foi Dorival Caymmi quem nos deu
A noção da canção como um liceu
A cada cem anos um verdadeiro mestre aparece entre nós
E entre nós alguns que o seguirão
Ampliando-lhe a voz e o violão
É assim que aparece mestre João
E aprendizes professando-lhe a fé
Um Francisco, um Caetano algum Roberto e a canção foi mais feliz
Gravação
Gilberto Gil – Gilbertos Samba, 2014 – Gege
Gilberto Gil – Gilbertos Samba (Ao Vivo), 2014 – Gege
Comentário*
A canção foi feita pra dar conta do profundo afeto e reconhecimento da maestria de João — nesse caso, como discípulo de Caymmi; ele próprio deixando vários discípulos, uma sucessão.
“A cada 25 anos aparece um mestre” é uma frase de Caymmi, num comentário sobre mim para um livro do fotógrafo Mario Luiz Thompson, que fez vários retratos de artistas e publicou um livro com as fotos. E a frase acabou sendo um pretexto para eu atribuir essa periodicidade de 25 anos aos discípulos e um centenário aos mestres. Já que ele tinha dito que alguém como eu aparecia de 25 em 25 anos, então alguém como ele — mestre maior — só apareceria de cem em cem.
A propósito de falar do João, você acaba falando do Caymmi, o que é natural. — Natural, tem tudo a ver, levando-se em conta o fato de que é considerável a noção de João como discípulo de Dorival e de nós todos, outros — Chico, Caetano, Roberto —, como discípulos de João. É essa ideia de sucessão, a ideia do liceu. Liceu de artes e ofícios.
Você tinha em mente fazer uma canção para o álbum em homenagem ao João, com o repertório dele? — Sim: fazer uma canção que desse conta do sentido do título do álbum, dos Gilbertos juntos. A ideia, a princípio, era a de botar o nome João Gilberto Gil; depois eu resumi pra Gilbertos. E ainda dei um toque de língua inglesa com Gilbertos Samba. O que dava uma chave mais próxima para eles entenderem o conceito do disco.
Sobre João. — Eu não tocava violão. Tocava acordeom. Só tive coragem de pegar no violão quando eu ouvi João. O violão me afastava. Eu tinha as questões da decifração das chaves, dos signos do violão. Tinha uma dificuldade enorme de aproximação. Não entendia o instrumento. Eu pegava num violão e não entendia nada. Nenhuma afinidade. Quando eu ouvi “Chega de saudade”, aí eu disse: “Minha mãe, me dê um violão!”. Ela me deu dinheiro, e eu fui comprar o violão. Aí, pronto, foi com ele que eu vim a compor: “Se você disser que ainda me quer, amor,/ Eu vou correndo lhe abraçar./ Seus beijos, seus carinhos vivo a procurar” [“Felicidade vem depois”, de 1962]. Minha primeira música, primeira canção. Bem bossa nova, bem João.
Ele é o terceiro mestre: Gonzaga, Caymmi, João. Aí depois vêm os outros todos. Que vão fazendo esse papel duplo de colegas, discípulos e mestres.
Do título da canção. — Eu fui me tornando cada vez mais devoto dele, cada vez mais atento, cada vez mais cioso de uma relação indissociável com ele. E ainda havia o fetiche do nome. Lá nos cantinhos da emoção artística, musical, tinha essa parceria no nome Gilberto em comum. Isso estava dentro de mim havia muito tempo. Até que, por causa do longo trabalho feito, por causa das consequências do longo ensinamento obtido através dele, eu tomei coragem de associar o meu nome ao dele artisticamente numa canção, acrescendo o s ao Gilberto, no título.
Na abertura de “Aquele abraço”, você dedica o samba a “Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano Veloso”. Você tem o Caetano como mestre também? — Sim, claro. Ele tem a dupla função, no meu caso, de ser um dos mestres e um dos colegas discípulos. Sem ele não haveria despertado em mim a possibilidade de escrever, de fazer canções num sentido mais amplo. Através dele eu cheguei a uma ideia mais ampla de canção popular, a uma ideia mais ampla de poesia, a uma ideia mais ampla de cinema como arte reveladora da dimensão moderna do mundo. Sem ele isso não teria sido possível. Eu até tenho dúvidas se eu teria mesmo me profissionalizado como músico. Com as digressões que eu já fazia com a universidade, a empresa, a indústria, o mundo empresarial, talvez eu tivesse derivado definitivamente pra uma coisa qualquer desse campo. Mas com Caetano — com tudo o que ele significou no encontro na Bahia, com a aglutinação que ele propiciou com todos os outros, o “Nós, por exemplo” — se desencadeou a possibilidade de eu ter uma alternativa de caminho meu [na música, na arte], que acabei adotando e seguindo.
Na letra de “Gilbertos”, entre os aprendizes emblemáticos colegas seus, você cita Chico, Caetano e também Roberto; o cantor que ele é, de fato, é muito tributário do João. — Sem dúvida. Como eu comecei a tocar violão por causa do João, Roberto começou a cantar por causa do João. Ele ia pra boate do Plaza, em Copacabana, cantar João Gilberto. Aí eu achei de bom propósito, de bom alvitre, colocar o nome dele nessa canção. Claro que cabem ali muitos outros, mas aí eu peguei logo dois que são gilbertianos confessos em todos os sentidos no exercício da música, que são Caetano e Chico, e Roberto, cuja relação profunda com João é menos conhecida. E, no meu caso, já estou ali no próprio nome da canção.
Por fim o último verso, carregado de significado: “E a canção foi mais feliz”. Porque com João e a bossa, a canção brasileira felicitou-se. — Exatamente. Alçou-se a uma dimensão mais ampla, mais etérea. Propiciou as possibilidades de chamar o mundo da felicidade para compartilhar do cotidiano, sofisticou a poética do mundo da felicidade. Foi através de João que isso foi possível. Uma revelação pra nós e pro mundo.
As canções de amor não eram positivas como as bossa-novistas, um estilo em que não prevalecem canções de amor tristes, de amor frustrado; abre-se uma porta diferente que dá para um campo iluminado. — É claro. Que vai além da Dolores Duran…
Do Antônio Maria… — Antônio Maria… A chamada “canção de fossa”. — Fossa.
Mautner não gosta desse nome, não. — Mas é compreensível que se tenha adotado esse nome.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Gema clara
Gilberto Gil
Fui dura
Virei fera
Pantera
Tigreza
Raça pura
Tomara
Que agora
Cê me queira
Formiga
Frutinha
Formosura
Primeiro, foi necessário lhe convencer
Da força da mulher, da paixão
Agora, pelo contrário, vim lhe trazer
Paz e sossego pro coração
Primeiro
Fiz você
Ficar louco
Agora
Vou lhe dar
Muita calma
Loucura
Fui amor
Para o corpo
Agora
Serei luz
Para a alma
O corpo-gema, o sol me deu pra mim lhe dar
Um diadema de ouro de Oxum
A alma clara, a mansa luz vem do luar
Na noite odara sem medo algum
Geléia geral
Gilberto Gil
Torquato Neto
E a manhã tropical se inicia
Resplandente, cadente, fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira
Que o “Jornal do Brasil” anuncia
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
A alegria é a prova dos nove
E a tristeza é teu porto seguro
Minha terra é onde o sol é mais limpo
E Mangueira é onde o samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem
Pindorama, país do futuro
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
É a mesma dança na sala
No Canecão, na TV
E quem não dança não fala
Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala
As relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada
Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano
Superpoder de paisano
Formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela
Carne-seca na janela
Alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade
Hospitaleira amizade
Brutalidade jardim
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
Plurialva, contente e brejeira
Miss linda Brasil diz “bom dia”
E outra moça também Carolina
Da janela examina a folia
Salve o lindo pendão dos seus olhos
E a saúde que o olhar irradia
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
Um poeta desfolha a bandeira
E eu me sinto melhor colorido
Pego um jato, viajo, arrebento
Com o roteiro do sexto sentido
Voz do morro, pilão de concreto
Tropicália, bananas ao vento
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
Gravações
Gilberto Gil – Tropicália Ou Panis Et Circensis, 1968 – Philips
Gilberto Gil – Quilombo, 1984 – Warner Music
Daniela Mercury – Daniela Mercury, 1991 – Daniela Mercury
Assucena, Liniker, Letrux e Josyara – Biscoito Fino, 2023 – Biscoito Fino
Patrícia Ahmaral – Patrícia Ahmaral canta Torquato Neto, 2023 – Patrícia Ahmaral [dist. Tratore]
Ganga Zumba (O poder da bugiganga)
Gilberto Gil
Waly Salomão
Repica, repica, repica agogô
Tumba Lelê, beber aluá
Se lambuzar na tigela daquele amalá
Toda Palmares recorda da primeira vez
Ganga Zumba dançou alujá
Toda cantiga trovoa, seu eco ecoa
Na voz da Serra da Barriga
Vem, Acotirene, dona do segredo
Ialorixá que chama Ganga Zumba
Lhe oferece o trono da fartura
Toda a formosura e o poder da bugiganga
Fontes e mais fontes
Potes e mais potes
O céu na terra é Aruanda
É assim Palmares
Palmas pelos ares
Cante e dance e abra a roda
Acaiúba, Namba, Canindé
Ana de Ferro, mulher-dama linda da Holanda
Ganga Zumba reina, nunca teve medo
Seu segredo está no raio da justiça
Nunca é permitido mentir
Sempre abençoado o amor
Desejo doido, beber otim
Festejo d’Oxum, d’Obá, d’Oiá
Todo vaso quebra
Toda bugiganga se espedaça
Toda graça lhe abandona
Ganga Zumba desce da montanha
Com veneno na entranha
Acaba a sua zanga
Ganga Zumba morre
E a lenda corre
Pelo reino de Aruanda
Nunca é permitido esquecer
Sempre dá no jogo de Ifá
Qual o rei que vai suceder
Salve o reino d’Aruanda