Músicas
Homem de Neanderthal
Gilberto Gil
Capinan
Walter Lima Jr.
Terciário
Secundário e até primário
Sou o tal
Que foi chamado “homem de Neandertal”
Que foi chamado “homem de Neandertal”
Que foi chamado “homem de Neandertal”
O tal que foi chamado “homem de Neandertal”
Mas sou amável
Sou saudável
E mesmo sendo
Tão selvagem
Tenho direito de não ser
Abominável
Antigamente não havia uma voz
Uma voz que se levantasse
Que se engraçasse em duvidar da autoridade
Da autoridade paternal
Este século está perdido
Corroído, corrompido
Sem humildade, sem moral
Pobre de quem perdeu
O respeito pelos pais
A memória dos avós
E pensam que nasceriam sem nós
A culpa dos avós
Quem faz são eles
Mas quem paga somos nós
Não, senhor
Por favor
Pague o filho pelo filho
Pague o avô pelo avô
Quem me dá um trem que me leve
Da Bahia a Nova Iorque?
Que me deixe ao meio-dia
Em qualquer ponto de Berlim?
Uma astronave?
Um manequim que desfile só pra mim?
E quem me dá um tesouro mais rico
Que o de Aladim?
Quem me dá:
Um vestido como aquele de Paris?
Um galã de Hollywood?
Feriado no Hawaí?
Um domingo todo livre?
Um verão longe daqui?
Quem me dá
Quem me dá
Quem me dá uma roupa nova?
Quem me dá
Quem me dá
O respeito do que sou?
Quem me dá
Quem me dá
Quem me dá um tempo de existir?
Quem se revolta
Quem se revolta por mim?
Quem me dá
Quem me dá
Quem me dá meu próprio dia?
Quem sente melhor por mim
A alegria que me dá o sol
A chuva, o caminho?
Quem me dá a semelhança de astronauta?
Quem me dá a liberdade de escolher
De pensar, de sair?
É você?
Olha aqui:
Quem me dá sou eu!
Hoje o dia nasceu diferente
Gilberto Gil
Porque ontem de repente a gente se encontrou
E o mar disse: “Oba”
E o céu disse: “Ora”
E a lua quedou-se
Clara até agora
E o sol preparou-se
Pra fazer da aurora
Um prazer tão doce, musse
Um gosto de viver que nunca fosse embora
E nós
Fazendo o possível para fazer jus
Os dois
Achando impossível que haja tanta luz
Se a voz
Da felicidade fosse audível, enfim
Jamais
Diria outra coisa que não fosse: “Sim”
Hoje o dia nasceu diferente pra gente
Pra você e pra mim
Hino da figa
Gilberto Gil
Este é meu gesto, meu gesto de amor
Ele não faz parte de uma doutrina
Ele não pertence a nenhum senhor
É como o gesto de um fidalgo branco
Que acolhe em seu leito uma negra escrava
E nela crava o seu cravo de afeto
E então se trava a batalha de amor
Sem nenhum outro motivo que o sonho
De ao próprio sonho fazer vencedor
Sem nenhum outro querer que não seja
Ver a beleza distinta da cor
O meu gesto é o fogo sagrado
Que não destrói mas é abrasador
Que faz a dor transmutar-se em alegria
Pelo seu mais agradável calor
O meu gesto político, figa!
Nenhuma mágoa, desprezo ou temor
Gravação
Jorge Mautner e Gilberto Gil – O poeta e o esfomeado, 2014 – Discobertas
[ inédita ]
Comentário*
Feita especialmente para “O poeta e o esfomeado”, o show que eu e o Jorge Mautner resolvemos nos juntar para fazer em torno da Figa Brasil, um movimento que nós dois criamos, justaposto ao movimento Kaos, inventado por ele nos anos 60, e no qual incorporávamos elementos da negritude, das pulsões políticas mais atuais, num momento já posterior à redemocratização do Brasil e à valorização da temática negra como fonte de inspiração político-ideológica — por isso a figa como símbolo.
Fiz então esse hino sobre o que eu cunhei como sendo o “mesticismo”: o movimento da e pela mestiçagem, em defesa dela; sobre a dimensão “mesticista” do jogo político-ideológico da construção dos pequenos e múltiplos aparatos ideológicos, dos quais nós temos nos servido para ir encaminhando a questão da inserção brasileira no socialismo, no liberalismo, nos jogos da harmonização dos vários sistemas, na construção da sociedade brasileira, em todos os movimentos libertários brasileiros em todos os tempos.
E ao mesmo tempo reivindicando o caráter transideológico e transpolítico que nós temos desejado sempre para as nossas coisas, o não enquadramento nas categorias clássicas, expressão do desejo de não nos prendermos aos campos mais restritos e restritivos, mas nos abrirmos ao grande campo onde entram as dimensões da visão holística, pan-óptica, da interação múltipla dos campos da política, da energia, da ciência, da poesia etc., o grande campo que o Kaos já tentava abranger, sendo a Figa apenas um outro deslocamento da sua mesma estrutura básica.
“Hino da figa” é uma canção sobre o senhor e a escrava, o amor da raça mestiça que nasce das imbricações contraditórias provocadas pela ascendência natural ou naturalmente imposta do senhor sobre o escravo, por força do estatuto da escravidão, mas ao mesmo tempo da sedução, da paixão, do amor, da coisa indomável do sexo, na construção do híbrido brasileiro onde os dois, tanto o senhor como o escravo — entre outros, especialmente esses dois —, tiveram um papel fundamental.
Eu o mostrei a Florestan Fernandes, em Brasília, num seminário sobre a abolição (era o ano de 1988), o papel do negro na vida brasileira, a questão abolicionista e os resíduos da escravidão, a não abolição, todas essas questões. Eu fiz uma palestra sobre o mesticismo para os políticos, ele era deputado, estava lá também o Ulysses Guimarães — era um seminário promovido pelo PMDB. No final eu cantei o “Hino da figa”. Ele achou estranho, interessante; se referiu àquilo dizendo: “Esse papel extraordinário do amor, da transmutação dos antagonismos, das subordinações, das hegemonias, enfim, interessante essa visão que o Gil teve”. Falou assim.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Here and now
Gilberto Gil
Here and now
Here and now, I still can sing out a song
Here and now
Here and now, I guess I know how
To feel as good with or without
Either high up, either low down
It’s all to forget and get out
Here and now, I guess I do fine
Surviving the floods of despair
Where it’s wet, and yet is sunshine
Where it’s at, and yet is nowhere
Here and now, I still can find I belong
Here and now
Here and now, I still can sing out a song
Here and now
Here and now, to rest in my nest
Here and now, the taste is so good
Here and now, to give up my past
Here and now, as fast as I could
Here and now, I guess I know how
Remote and secret that could be
The time when a man can lay down
And the place where he can run free
Here and now, I still can find I belong
Here and now
Here and now, I still can sing out a song
Here and now
Haiti
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque com a pureza de meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
E na TV se você vir um deputado em pânico
Mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo
Qualquer qualquer
Plano de educação
Que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização do ensino de primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina
111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
Gravações
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Tropicália 2, 1993 – Philips
Caetano Veloso – Fina Estampa (Ao Vivo), 1995 – Universal Music
Caetano Veloso – Noites do Norte (Ao Vivo), 2001 – Universal Musica
Elza Soares – Do cóccix até o pescoço, 2002 – Maianga/ Dubas
Emicida (feat. Caetano Veloso) – 10 Anos de Triunfo (Ao Vivo) – Laboratório Fantasma Produções Eireli sob licença exclusiva da Sony Music Entertainment Brasil ltda.