Músicas
Luzia Luluza
Gilberto Gil
Essa vontade de ser ator acaba me matando
São quase oito horas da noite, e eu nesse táxi
Que trânsito horrível, meu Deus
E Luzia, e Luzia, e Luzia
Estou tão cansado, mas disse que ia
Luzia Luluza está lá me esperando
Mais duas entradas, uma inteira, uma meia
São quase oito horas, a sala está cheia
Essa sessão das oito vai ficar lotada
Terceira semana em cartaz James Bond
Melhor pra Luzia não fica parada
Quando não vem gente, ela fica abandonada
Naquela cabine do Cine Avenida
Revistas, bordados, um rádio de pilha
Na cela da morte do Cine Avenida, a me esperar
No próximo ano nós vamos casar
No próximo filme nós vamos casar
Luzia, Luluza, eu vou ficar famoso
Vou fazer um filme de ator principal
No filme eu me caso com você, Luluza, no carnaval
Eu desço do táxi, feliz, mascarado
Você me esperando na bilheteria
Sua fantasia é de papel crepom
Eu pego você pelas mãos como um raio
E saio com você descendo a avenida
A avenida é comprida, é comprida, é comprida…
E termina na areia, na beira do mar
E a gente se casa na areia, Luluza
Na beira do mar
Na beira do mar
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1968), 1968 – Philips
Maria Bethânia – A Cena Muda, 1974 – Philips
Comentário*
Essa é uma viagem linda, um delírio, uma fantasia sobre um casal de jovens, ambos pobres, gente comum trazida para o estrelato do romance. Ela tem que trabalhar na bilheteria de um cinema, ele está num curso de teatro. O cinema idealizado por mim fica na avenida São João (em São Paulo); é o Comodoro ou um daqueles. Ela está na cabine. Ele sai de táxi, da Nestor Pestana, onde ensaiava, pra ir vê-la, e pega um engarrafamento brabo. Essa a visão que eu tinha.
Naquela cabine, a rotina, o tédio, a falta de sentido de um trabalho escravo num cubículo com um vidrão parecendo uma sala da morte mesmo. Ali ela morria um pouco a cada dia, morriam suas forças, sentada horas e horas dentro de um espaço exíguo, sem movimentos e quase sem ar para respirar. Ali, ela, já meio agoniada porque ele não chega; e no carro ele, preso no trânsito, agoniado pra chegar porque ela está à espera.
E ele vem como o libertador para tirá-la daquela prisão; para libertar Luluza, como ele a chamava carinhosamente; e como eu a nomeei para dar sonoridade musical e o sentido de ternura juvenil entre eles. E ele sonha, e chega, e os dois saem correndo pela avenida (e a São João é comprida mesmo, vai lá pra Lapa, por aquele corredor ela vaaaai…).
E os pensamentos, os discursos pela metade de cada um, as frases soltas que hipoteticamente seriam ditas, “Essa sessão das oito vai ficar lotada” (ela), “Que trânsito horrível, meu Deus” (ele): a narrativa se dá por fora e por dentro, misturadamente; tanto o narrador como os personagens se manifestam. Um conto.
O curioso nessas canções minhas com histórias e personagens é que eu não as imagino antes; elas são inventadas na hora. Elas não são construídas como os romances, onde as tramas vão sendo elaboradas antes do ato de escrever. Eu sento para fazê-las e elas vão se engendrando. Elas revelam um traço de escritor que eu poderia ser, se quisesse. Mas sou preguiçoso; prefiro fazer uma canção numa tarde a ficar um tempão num romance.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lunik 9
Gilberto Gil
É chegada a hora de escrever e cantar
Talvez as derradeiras noites de luar
Momento histórico
Simples resultado
Do desenvolvimento da ciência viva
Afirmação do homem
Normal, gradativa
Sobre o universo natural
Sei lá que mais
Ah, sim!
Os místicos também
Profetizando em tudo o fim do mundo
E em tudo o início dos tempos do além
Em cada consciência
Em todos os confins
Da nova guerra ouvem-se os clarins
Guerra diferente das tradicionais
Guerra de astronautas nos espaços siderais
E tudo isso em meio às discussões
Muitos palpites, mil opiniões
Um fato só já existe
Que ninguém pode negar
7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, já!
Lá se foi o homem
Conquistar os mundos
Lá se foi
Lá se foi buscando
A esperança que aqui já se foi
Nos jornais, manchetes, sensação
Reportagens, fotos, conclusão:
A lua foi alcançada afinal
Muito bem
Confesso que estou contente também
A mim me resta disso tudo uma tristeza só
Talvez não tenha mais luar
Pra clarear minha canção
O que será do verso sem luar?
O que será do mar
Da flor, do violão?
Tenho pensado tanto, mas nem sei
Poetas, seresteiros, namorados, correi
É chegada a hora de escrever e cantar
Talvez as derradeiras noites de luar
Gravações
Elis Regina – Elis, 1966 – Universal Music
Os Cariocas – Passaporte, 1966 – Universal Music
Gilberto Gil – Louvação, 1967 – Philips
Comentário*
Recebi o impacto da notícia do pouso (suave, segundo as avaliações) do Lunik 9 na Lua com orgulho e ponderação: estávamos conquistando o espaço, mas onde isso ia dar? Não era só o cidadão que especulava, mas também o artista, com o senso da responsabilidade de ser locutor da sociedade junto à história. Eu tinha que falar no assunto por isso — e também pelo sentido de competição. Havia uma disputa olímpica entre nós. “Provavelmente alguém vai fazer música sobre isso; deixa eu fazer logo a minha”, pensei.
“Lunik 9”. — Uma suíte com vários andamentos e atmosferas, entremeada de narração, reflexões e advertências, é uma canção pretensiosa para o grau de informação que eu tinha a respeito, mas bacana também por isso: por vulgarizar, no sentido de divulgar, traduzir, em linguagem simples, um tema em princípio complexo. Nesse aspecto, é também apócrifa, em relação aos cânones da época, embora a Bossa Nova já tivesse dado a abertura para temas e termos (a Rolleyflex e outras coisas); e iniciática, em relação ao meu trabalho, do qual a questão do mistério do cosmos acabou se tornando uma linha mestra.
Mas frente ao significado do que a motivou, “Lunik 9” apresentava um contraponto conservador, uma atitude ecológico-reativa, um temor exagerado da tecnologia e de que se inaugurava a possibilidade de extinção do próprio luar, da luz interior da Lua. À época eu gostei de tê-la feito, mas no período tropicalista eu já achava a música boba, ingênua. Hoje em dia acho relevante aquilo ter me ocorrido: a inspiração nasceu de uma profunda assunção de um sentido trágico de meu tempo.
Engraçado. No momento em que escrevi “A mim me resta disso tudo uma tristeza só”, era em Orlando Silva que eu pensava. Era a defesa parcial de um mundo — romântico — que eu identificava como o do Orlando Silva, símbolo e canto de outro tempo ainda, anterior ao meu, à própria Bossa Nova.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lugar comum
Gilberto Gil
João Donato
Lugar comum
Começo do caminhar
Pra beira de outro lugar
Beira do mar
Todo mar é um
Começo do caminhar
Pra dentro do fundo azul
A água bateu
O vento soprou
O fogo do sol
O sal do senhor
Tudo isso vem
Tudo isso vai
Pro mesmo lugar
De onde tudo sai
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao Vivo), 1974 – Philips
João Donato – Lugar Comum, 1975 – Universal Music
Emílio Santiago – Brasileiríssimas, 1976 – Universal Music
Leny Andrade – Songbook João Donato – vol 3, 1999 – Lumiar Discos
Carla Visi – Carla Visita Gilberto Gil, 2008 – MZA Music
Comentário*
A música de João Donato possui uma molecularidade própria imediatamente identificável, como se fosse composta de um número regular de átomos de uma substância simples, fundamental e conhecida; como o h2o. São muito dele um desprezo pela complexidade e uma essencialidade infantil no modo de compor. Isso já está no modo de ele falar, de utilizar a linguagem: João Donato é econômico, minimalista.
Como o som musical, por mais qualificado que seja em relação à palavra, ainda não é o silêncio, a palavra acaba também não sendo um corpo absolutamente estranho na sua música. É como se, no fundo, as suas moléculas melódicas quisessem dizer coisas — mas as palavras é que dizem; as palavras é que querem dizer; dizer — é da palavra! Por isso ela cabe na sua música. A exigência, colocada de antemão pela forma como ele melodiza, é a de só dizer o que não pode deixar de ser dito; em reduzir o que se quer dizer à expressão mais essencial para compatibilizá-la com a intenção primordial da celularidade musical dele. Isso é que é difícil.
A letra de “Lugar comum” foi escrita em Itapuã, no verão, estimulada pela sensação boa de estar ali e de ali ser um lugar comum a tanta gente comum — pela ideia de comunidade. Os versos finais reafirmam minha obsessão com o eterno retorno, com o sentido yin-yang da realimentação, do imbricamento vida e morte e da polaridade dos contrários: a coisa de o um dar o dois, o dois dar o três, e o três dar tudo.
A música, sem palavras, eu já conhecia e cantava; tinha uma admiração profunda pela beleza condensada dela. À época, o João Donato tinha voltado dos Estados Unidos e feito sua reintrodução à cena brasileira. Naquele momento fazíamos tudo informalmente: saíamos pelas noites, ele cantarolava as músicas e eu imaginava palavras para elas. Assim fizemos também “Bananeira”, “A bruxa de mentira”, “Emoriô”, “Que besteira”…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Luar (A gente precisa ver o luar)
Gilberto Gil
Do luar não há mais nada a dizer
A não ser
Que a gente precisa ver o luar
Que a gente precisa ver para crer
Diz o dito popular
Uma vez que é feito só para ser visto
Se a gente não vê, não há
Se a noite inventa a escuridão
A luz inventa o luar
O olho da vida inventa a visão
Doce clarão sobre o mar
Já que existe lua
Vai-se para rua ver
Crer e testemunhar
O luar
Do luar só interessa saber
Onde está
Que a gente precisa ver o luar
Gravações
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases (Ao Vivo), 2018 – Gege
Comentário*
Eu tinha feito a música do que eu planejava ser uma peça disco do álbum que estava gravando; uma peça ao gosto daquele momento em que a disco music era muito popular: eu queria fazer uma versão para single de uma disco, como o Djavan veio depois a fazer ‘Azul’, também, muito claramente, uma disco. Eu tinha feito a música e precisava fazer a letra. Já estava terminando o disco e, um dia, no estúdio mesmo, enquanto Liminha [produtor do disco] mexia com canções que a gente já havia gravado, eu peguei o violão e fiquei batucando ali, procurando alguma coisa, quando a letra foi chegando com a ideia do luar (eu tenho uma fixação com o tema).
‘O que eu vou dizer numa canção sobre o luar agora?’, eu me perguntei, vindo em seguida a fazer dessa própria interrogação, desse próprio impasse, o tema da canção, que nasceu, assim, do esgotamento da abordagem de um tema, o luar, um elemento do universo romântico. Me ocorreu então dizer que não havia mais nada a dizer do luar, a não ser que a gente precisa vê-lo, reiterando o fato de que uma coisa existe para outra e de que o luar só existe porque os olhos precisam vê-lo: ele é uma criação do olhar.
E, enquanto escrevia a canção, eu me recordava de um lugar especial onde eu via o luar, o Jardim de Alá, em Salvador, onde há uns coqueiros e onde a lua nasce sempre, na fase dos dias de lua cheia, no início da noite, logo que escurece; ela nasce e deixa um lençol imenso projetado no mar escuro, um clarão prateado. Nesse sentido, a canção é inclusive uma crítica às grandes cidades, às cidades modernas, nas quais a eletricidade, o excesso de iluminação elétrica, já impede um pouco a fruição do luar com a particularidade, a propriedade, o atrativo sedutor criado pelos raios, da fruição do luar de antigamente, o luar de Cely Campello.
Há um pouco de várias coisas nessa canção. Mas em especial esse realismo, essa ideia de que os fenômenos da natureza são parte da nossa vida, parte inalienável do nosso ser físico, do nosso viver no mundo físico – são a própria explicação, a própria razão de ser da nossa vida física; de novo essa ideia da essencialidade dos sentidos do corpo, da apreensão da natureza pelos sentidos: ou seja, a natureza faz sentido quando ela é introjetada, quando alguma coisa possibilita – no caso, os sentidos – a capturação dela para dentro de nós, e daí o reforço da nossa identidade com ela.
Quer dizer: nós podemos ser a consciência, a psiquê, a cultura, o escambau; podemos ser o que quer que seja, mas nós somos natureza! A natureza sempre retorna, sempre retoma o seu lugar, sempre cobra, sempre exige que sejamos aderentes, adeptos, parte fundamental dela. Ou seja: esse retorno, esse reverso da consciência, projetada para dentro de si mesma, para dentro da sua própria origem que é a natureza, embora ela tenha esse outro papel de expansor da natureza para além dela, através das projeções mentais, do conhecimento, da cultura, da consciência, da psiquê.
Daí a exigência de ‘Luar’: de que a gente precisa ver – para crer – o luar, porque hoje em dia a gente já não o vê: há esse apartamento, esse estar apartado da natureza que as segundas, terceiras, quartas naturezas tecnológicas possibilitam: esse confinamento dentro das naturezas-mortas.
‘Se a gente não vê, não há’: uma ideia que vem também das minhas reflexões filosóficas da infância, quando de noite o bonde passava na frente da minha casa, e eu pensava se ele deixava de existir depois de passar e desaparecer o som da passagem dele. O que os meus sentidos não podem apreender agora, existe, é real? Ou só é real o que a natureza propicia ser revelado através de mim? O observador influindo no objeto observado: sim, também aqui incide o princípio quântico, o princípio da incerteza, da complementariedade, Schrodinger e Heisenberg, a física moderna.
O compositor é um ser muito misterioso. É um ser humano, não apenas uma máquina de fazer versos. Cada canção reflete o pasmo dele diante da grandeza do mistério.
Aparentemente, ‘Luar’ é uma mera canção disco. De fato ela é bem simples, mas muito condensada; as ideias nela estão muito condensadas, até porque havia o compromisso com a música que já existia: eu tinha que apertar a poesia para esta se encaixar na métrica determinada pela música. E está tudo ali, encapsulado, atomizado, miniaturizado, para caber na lata do poeta. Eu tenho verdadeira paixão por essa canção por ter conseguido espremer e feito caber, na latinha que a música me dava, esse leite condensado, do leitoso clarão do luar…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Louvação
Gilberto Gil
Torquato Neto
Do que deve ser louvado – ser louvado, ser louvado
Meu povo, preste atenção – atenção, atenção
Repare se estou errado
Louvando o que bem merece
Deixo o que é ruim de lado
E louvo, pra começar
Da vida o que é bem maior
Louvo a esperança da gente
Na vida, pra ser melhor
Quem espera sempre alcança
Três vezes salve a esperança!
Louvo quem espera sabendo
Que pra melhor esperar
Procede bem quem não pára
De sempre mais trabalhar
Que só espera sentado
Quem se acha conformado
Vou fazendo a louvação – louvação, louvação
Do que deve ser louvado – ser louvado, ser louvado
Quem ‘tiver me escutando – atenção, atenção
Que me escute com cuidado
Louvando o que bem merece
Deixo o que é ruim de lado
Louvo agora e louvo sempre
O que grande sempre é
Louvo a força do homem
E a beleza da mulher
Louvo a paz pra haver na terra
Louvo o amor que espanta a guerra
Louvo a amizade do amigo
Que comigo há de morrer
Louvo a vida merecida
De quem morre pra viver
Louvo a luta repetida
Da vida pra não morrer
Vou fazendo a louvação – louvação, louvação
Do que deve ser louvado – ser louvado, ser louvado
De todos peço atenção – atenção, atenção
Falo de peito lavado
Louvando o que bem merece
Deixo o que é ruim de lado
Louvo a casa onde se mora
De junto da companheira
Louvo o jardim que se planta
Pra ver crescer a roseira
Louvo a canção que se canta
Pra chamar a primavera
Louvo quem canta e não canta
Porque não sabe cantar
Mas que cantará na certa
Quando enfim se apresentar
O dia certo e preciso
De toda a gente cantar
E assim fiz a louvação – louvação, louvação
Do que vi pra ser louvado – ser louvado, ser louvado
Se me ouviram com atenção – atenção, atenção
Saberão se estive errado
Louvando o que bem merece
Deixando o ruim de lado
Louco coração
Gilberto Gil
Falou
Que era seu
Todo, todo, todinho seu
O meu amor
Meu coração, meu louco coração
Que diz
Que só você, com você
Poderia algum dia
Ainda ser feliz
Se o meu olhar
Encontra o seu olhar
Meu coração então
Põe-se a falar
Falar de amor
De amor
E em meu peito ansioso
Bate chorando
Bate, bate o louquinho
Bate falando
Bate, bate, zangado
Cansado de esperar
Logos versus logo
Gilberto Gil
Pelo logo da prosperidade
Celebra-se, poeta que se é
Durante um tempo a ideia radical
De tudo importar, se para o supremo ser
De nada importar, se para o homem mortal
Abarrotam-se os cofres do saber
Um saber que se torne capital
Um capital que faça o futuro render
Os juros da condição de imortal
(Mas a morte é certa!)
Trocar o logos da posteridade
Pelo logo da prosperidade
E assim por muito tempo busca-se
O cuidadoso esculpir da estátua
Que possa atravessar os séculos intacta
Tornar perpétua a lembrança do poeta
Mas chega-se ao cruzamento da vida
O ser pra um lado, pra outro lado o mundo
Sujeita-se o poeta à servidão da lida
Quando a voz da razão fala mais fundo
E essa voz comanda:
Trocar o logos da posteridade
Pelo logo da prosperidade
E o bom poeta, sólido afinal
Apossa-se da foice ou do martelo
Para investir do aqui e agora o capital
No produzir real de um mundo justo e belo
Celebra assim, mortal que já se crê
O afazer como bem ritual
Cessar da obsessão pelo supremo ser
Nascer do prazer pelo social
E o poeta grita:
Trocar o logos da posteridade
Pelo logo da prosperidade
Eis o papel da grande cidade
Eis a função da modernidade
Gravações
Gilberto Gil – Dia Dorim Noite Neon, 1985 – Warner Music
Moisés Navarro – Aquele Abraço, Gilberto Gil, 2022 – Alves Madeira
Comentário*
O mistério e a imprecisão semântica são minhas matérias. Eu lido muito com isso, é estimulante para mim e, na verdade, enriquece em muitos aspectos o meu trabalho, porque enfatiza um viés poético que gosta de operar com esses desvãos. É uma característica minha, de todo o meu falar, um certo dar voltas em torno de uma coisa, sem deslocar para uma sensação perceptiva de ampliação e de abrangência. Mas lá no fundo, no fundo, eu sei que o mistério está insinuante, e sei o que uma canção minha quer dizer. Essa imprecisão de que falo se aplica a “Logos versus logo”, mas ela diz o que se propõe a dizer.
Na primeira estrofe, ela coloca, como objetivo, a ideia da aproximação com Deus ou com o ser superior, com a excelência: aí estaria a força do poeta, ele seria grande por isso. Em tese, ele é superior ao cientista, porque busca e obtém essa abrangência. A segunda estrofe já traz um sentido diminuidor, depreciativo, dessa auto atribuição exorbitante, exuberante, que o poeta faz, ao associar a poesia ao plano da economia, ao plano da acumulação.
“Trocar o logos da posteridade/Pelo logo da prosperidade”, diz o refrão, no sentido de que nós todos, poetas ou não, estamos inseridos no utilitarismo, e no momento em que fazemos da poesia profissão, na música, caímos na vala comum. Assim, o poeta de uma certa maneira é obrigado a aceitar a operação que o dístico do estribilho propõe.
Nas estrofes subsequentes, é abordada a questão do engajamento: como você tem que viver o viés da economia, da produção; como você está encaixado, tem uma profissão — então você tem, de uma certa forma, de resgatar a excelência poética através de um serviço que você presta à humanidade, vindo daí o engajamento político. O poeta se engaja, daí a imagem da foice e/Ou do martelo.
Nas duas estrofes finais, desenvolve-se a ideia de que, já que ele deixou de ser etéreo (“sólido afinal”), o poeta entra na esteira da produção, se dobrando à contingência de ser um ser produtivo entre outros.
“Logos versus logo” pode parecer confusa — talvez mais até por usar o verbo [“trocar”] no infinitivo, quando na verdade ele está querendo ter funções temporais —, mas o querer dizer da canção é claro. É complexo. E apresenta interesse poético esse jogo de logos com “logo”, para exprimir a urgência, a emergência de uma visão utilitarista, produtivista, em contraposição ao mundo puro da poesia.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Logunedé
Gilberto Gil
Filho de Oxum, Logunedé
Mimo de Oxum, Logunedé – edé, edé
Tanta ternura
É de Logunedé a riqueza
Filho de Oxum, Logunedé
Mimo de Oxum, Logunedé – edé, edé
Tanta beleza
Logunedé é demais
Sabido, puxou aos pais
Astúcia de caçador
Paciência de pescador
Logunedé é demais
Logunedé é depois
Que Oxossi encontra a mulher
Que a mulher decide ser
A mãe de todo prazer
Logunedé é depois
É pra Logunedé a carícia
Filho de Oxum, Logunedé
Mimo de Oxum, Logunedé – edé, edé
É delícia
Gravação
Gilberto Gil – Realce, 1979 – Warner Music
Comentário*
Uma homenagem a meu orixá, à sua natureza brincalhona, jovial, matreira, sestrosa e dengosa; ao seu caráter bissexual também, na referência a Oxum e Oxóssi, seus pais, igualmente homenageados. Uma composição minimalista, musicalmente única, construída só sobre uma tríade de notas que atravessam toda a harmonia, e uma letra igualmente econômica, modernista na capacidade descritiva de, com dois, três traços, compor uma paisagem.
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999. “Me referindo no caso pessoal a Logunedé, tinha primeiro aquela presença: Ele, um dos donos da minha cabeça. Queria tributar isso, fazer uma canção para Ele e pensava: ‘Tenho que dizer que é charmoso, que é jovem; ele é esperto e é um rapaz vivaz. Ao mesmo tempo, ele é filho de Oxum e Oxóssi’. Fui organizando essas ideias todas e imaginando por onde é que devia começar, escolhendo um jeito de falar tudo isso por um caminho qualquer. Fui juntando a beleza com a riqueza, imaginei que essas duas coisas rimam… Ele é bonito e, ao mesmo tempo, é rico, é todo ouro de Oxum. Ele gosta dessas coisas; então, já tem…
… o mimo. — Porque isso era uma coisa em que Mãe Menininha insistia muito. Ela usava essa palavra o tempo todo: ‘Ele é o mimo d’Oxum! Ele é o mimo d’Oxum!’. E eu perguntava: ‘Mas o que é mimo d’Oxum, Mãe?’. Ela dizia: ‘É o mimo, é mimado, é a figura mimada, é o filho predileto dela’. Eu achava que tinha de ter essa frase, tinha que ter ‘mimo d’Oxum’. E aí me lembrava de Moreno, pois estava passando uns dias na casa do Caetano, quando comecei a pensar na música. Sabia que Moreno era de Logunedé também e me lembrava muito dele. Ele era muito presente para mim como imagem, quase como se ele fosse o símbolo da entidade. Ele era ainda menino, travessozinho e, ao mesmo tempo, muito calmo e muito suave. Então, a música é muito feita pra ele. E ele veio trazendo as ideias, porque Moreno também é filho de Logunedé. Caetano é de Oxóssi. Tudo isso vinha na minha cabeça. E Caetano é muito meu irmão. A Dedé, que era mulher de Caetano e mãe de Moreno, também está presente na música.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Língua do pê
Gilberto Gil
Garanto que você
Nãpão vapai não vai
Nãpão vapai não vai
Compomprepeenpendeper
Bulhufas
Bulhufas
Dopo quepe tempentapamopos lhepe dipizeper
Não tem problema
Não tem problema
Espetapamopos pelaí
Não tem problema
Não tem problema
Espetapamopos espepeperanpandopo coisas pela aí
Smetak tak tak tak (tak tak tak tak tak)
Mariá bababa baba baba
Catuaba
Cachoeira
Vão me procurar na Lapa
Na gruta da Mangabeira
Quarta-feira de manhã
Quarta-feira de manhã
Gravações
Gal Costa – Legal, 1970 – Philips
Gilberto Gil – O Sol de Oslo, 1998 – Pau Brasil
Gilberto Gil – It’s Good To Be Alive (Anos 90), 2002 – Gege
Cris Aflalo – Quase Tudo Dá, 2009 – Tratore
Comentário*
Essa música recupera uma linguagem cifrada, uma língua de ocultação, criada para ser falada sem que os outros entendam; uma brincadeira. Como as cartas enigmáticas. Minha atração por isso advinha de isso ser uma coisa fantástica da infância. Mas aqui, além do aspecto lúdico, há também o relacionado com o mundo esotérico, referido na última estrofe.
Smetak [o músico, de temperamento místico, Walter Smetak], de Salvador, um bruxo; Catuaba: Paulo Catuaba, de Cachoeira, na Bahia, outro bruxo; Maria babá, babá de Roberto Pinho [antropólogo baiano], também de Cachoeira. São todos personagens reais, ligados a questões de fragmentos de mundos esotéricos com os quais lidávamos naquele momento – eu, Rogério Duarte, Roberto Pinho.
A gruta da Mangabeira aparece como um símbolo da concretização do mundo misterioso, do mundo subterrâneo, por ser uma gruta subterrânea do distrito da Mangabeira, município de Ituaçu [cidade da infância de Gil], um lugar cheio de mistérios que eu visitei muitas vezes, quando criança.
Cachoeira tem muita relação com Ituaçu porque era aonde eu chegava de trem, vindo de Ituaçu, para pegar o navio para a Bahia.
‘Língua do Pê’ foi, portanto, mais uma das canções exploratórias do campo esotérico, um campo importante de interesses nossos na época. E uma das primeiras que fiz já em Londres, com as reminiscências dos momentos imediatamente anteriores à saída, passados na Bahia – os momentos da Casa Redonda, dos encontros com Smetak, das tertúlias com Rogério, das idas a Cachoeira, do conhecimento do Catuaba.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Loba romana
Gilberto Gil
Romana mulher
Tu sabes que és
Mãe dessa cidade que tens aos teus pés
A te adorar
E eu serei talvez
Um daqueles teus amantes mais fiéis
Que sabe amar
Mais que aos teus encantos
Amar o que é teu destino
Mais que amar-te (a arte)
Amar o amor, o verso de Roma
Mais que às tetas
Amar-te a Eterna Ideia
Mais que ao teu sabor
Amar ao teu aroma
Tu sabes que eu tenho a alma apaixonada
E o meu amor por ti não vale nada
Tu sabes que eu serei, serei
Um dos teus tantos amantes mais fiéis
A te adorar
[ inédita ]
Lindonéia
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Sem que ninguém a visse
Miss
Linda, feia
Lindonéia desaparecida
Despedaçados, atropelados
Cachorros mortos nas ruas
Policiais vigiando
O sol batendo nas frutas
Sangrando
Ai, meu amor
A solidão vai me matar de dor
Lindonéia, cor parda
Fruta na feira
Lindonéia solteira
Lindonéia, domingo, segunda-feira
Lindonéia desaparecida
Na igreja, no andor
Lindonéia desaparecida
Na preguiça, no progresso
Lindonéia desaparecida
Nas paradas de sucesso
Ai, meu amor
A solidão vai me matar de dor
No avesso do espelho
Mas desaparecida
Ela aparece na fotografia
Do outro lado da vida
Lindinalva
Gilberto Gil
Apontava pra ladeira
Por onde viria o grande amor
Numa tarde colorida
Descendo daquele morro
Junto com o batuque do tambor
Como um príncipe encantado
Bem preto como o carvão
Anjo negro iluminado
Um cântico de ressurreição
Aparecer na cozinha
E ir brincar no quintal
Um sol negro iluminado
Um raio prum pobre coração
A seta indicando vida
Passava por um destino
Sem que ninguém percebesse bem
A seta indicando vida
– O Cupido – era cuspida
Repelida e atirada além
E o príncipe encantado
Bem preto como o carvão
Iria embora pra sempre
Pra sempre deixando solidão
Lia e Deia
Gilberto Gil
Que as duas são, as duas, uns amores
Uns amores, dois amores, mil amores
Meus e de tantos outros admiradores
Como fazer para dizer a elas
Quão belas são aquelas suas mãos
Cheias numa, mais magras na outra
E as outras partes, os vãos e desvãos
Uma, tamanho, tamanho, tamanho pé de laranja
A outra, tamanho, tamanho, tamanho pé de mamão
Uma mais assim broto de soja
A outra assim mais broto de feijão
Ambas o melhor dos alimentos
Ambas a melhor das refeições
Ambas trovoadas, fortes ventos
Para o meu e tantos outros corações
Lia e Deia, Deia e Lia, Lia e Deia
Duas cotovias e uma ideia:
Que os pássaros passarão todos os dias
Voando ao léu, no céu da poesia!
Que as noites sempre nos trarão a lua
Os sonhos de verão e as fantasias
Nos corações, nas mãos de Lia e Deia
Nas mãos, nos corações de Deia e Lia
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
Essa é uma canção de amor pra duas queridas amigas recém adotadas por mim. Pessoas que eu conheci na época, por quem desenvolvi um afeto muito grande. Uma de São Paulo, morando no Rio; a outra, do Rio. A causa da canção propriamente foi o pedido de uma delas. Na verdade, das duas. Eu fui a um jantar na casa de um amigo comum, que era amigo delas já antes de eu ser amigo dele e amigo delas. Elas já frequentavam a casa dele. Uma chamada Maria e a outra chamada Andreia. Nós estávamos no jantar na casa dele, uma noite, e uma delas pediu: “Faça uma música pra mim!”. Porque eu havia feito “Afogamento”. O meu amigo — o Jorge Bastos Moreno — me pediu pra cantar “Afogamento”, uma parceria minha com ele, pra elas ouvirem, eu cantei, e aí Maria disse: “Faça uma canção pra mim também!”. Porque “Afogamento” era pra um suposto boto que era um dos amigos nossos, da turma do Moreno. Aí a outra, Andreia, disse assim: “Ah, então eu quero uma música pra mim também”. Aí eu disse: como eu vou fazer? Vou fazer logo uma pra vocês duas. Pode, tá bom? Pode ser assim? Aí, pronto, eu fiz.
E eu comecei por me interrogar a respeito de como dar conta dessa tarefa. Porque eram dois tipos físicos bem diversos, diferentes. Andreia é patolinha, e Maria é toda mais esguia. As mãos de uma bem diferentes das mãos da outra. E daí às outras partes, os vãos, os desvãos, à beleza física completa delas, dos corpos delas, e à associação, em tom de brincadeira, com o pé de mamão e o de laranja; à diferença entre o broto de soja, que é mais cheio, e o broto de feijão, que tem as hastezinhas mais suaves. E à comparação: “Ambas o melhor dos alimentos/ Ambas a melhor das refeições”: a sugestão de um eventual romance com ambas. Por fim, a parte mais poético-romântica, a final, dos “sonhos de verão e as fantasias”. A canção é cheia de fantasias afetivas, amorosas. Uma toada canção toda pungente, bonita, bem construída.
Rapidez na fatura. — Fiz a canção de uma vez. “Lia e Deia” saiu de fluxo único. Foi bem fluente. Eu a compus logo depois [da solicitação] porque, como era encomenda das duas, eu quis entregar a encomenda sem demora; me livrar da tarefa. Foi um desafio interessante também do ponto de vista criativo: “Como fazer para dizer às duas?”.
Do interesse representado por começar uma letra com uma interrogação e do interesse representado por ter começado a canção com a interrogação em questão. — A pergunta suscita logo uma necessidade de espraiar, de dar vazão ao fluxo. Aí, pronto, os caminhos vão aparecendo. Você de uma certa forma se torna parceiro da inspiração. Você inspira, você atiça a inspiração. Não fica totalmente submisso a ela; ao contrário. Você já a provoca, você a desafia: “Como fazer? Diga logo”. A inspiração é obrigada a responder. Você remexe nesse campo anterior onde residem os substratos da inspiração.
Uma fase de canções para e sobre pessoas (como “Na real”, “Quatro pedacinhos”, “Uma coisa bonitinha”, “Tartaruguê”), algumas das quais com nomes de pessoas (casos de “Lia e Deia”, “Sereno”, “Jacintho”, “Yamandu”, “Kalil” e “Sol de Maria”). — Exatamente. Muito a ver com um momento em que foi necessário, foi imperativo pra mim a busca, a aproximação com gente e com gente nova dentro do ciclo mais próximo da família, como os netos, a bisneta: gente nova em termos de novidade no campo afetivo. E numa extensão até o mais velho de todos, o Jacintho, de cem anos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lia
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Ouvindo as pancadas
Das águas do mar
Essa ciranda quem me deu foi Lia
Que mora na Ilha
De Itamaracá
Eu estava sem saber da vida
A manhã perdida
Na beira do mar
Eu estava na beira e não via
Que o mar prometia
Morrer, deslindar
Depois veio aquela menina
E meu corpo queria
Crescer, navegar
Essa manhã de dor, essa alegria
Essa vontade nova em frente ao mar
Essa primeira esperança comovida
De ter de, de ter de atravessar
Essa janela aberta, essa varanda
Essa manhã desesperada e branda
Essa ciranda quem me deu foi Lia
Que mora na ilha
De Itamaracá
Gravação
Claudete Soares – Gil, Chico e Veloso por Claudete, 1968 – Philips
Lente do amor
Gilberto Gil
Uma grande angular
Vejo ao lado, acima e atrás
Pela lente do amor
Sou capaz de enxergar
Toda moça em todo rapaz
Pela lente do amor
Vejo tudo crescer
Vejo a vida mil vezes melhor
Pela lente do amor
Até vejo você
Numa estrela da Ursa Maior
Abrir o ângulo, fechar o foco sobre a vida
Transcender, pela lente do amor
Sair do cético, encontrar um beco sem saída
Transcender, pela lente do amor
Do amor
Pela lente do amor
Pela lente do amor
Pela lente do amor
Sou capaz de entender
Os detalhes da alma de alguém
Pela lente do amor
Vejo a flor me dizer
Que ainda posso enxergar mais além
Pela lente do amor
Vejo a cor do prazer
Vejo a dor com a cara que tem
Pela lente do amor
Vejo o barco correr
Pelas águas do mal e do bem
Mostrar ao médico, encarar, curar sua ferida
Transcender, pela lente do amor
Cantar o mântrico, pagar o cármico na lida
Transcender, pela lente do amor
Do amor
Pela lente do amor
Pela lente do amor
Gravações
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
Moisés Navarro – Aquele Abraço, Gilberto Gil, 2022 – Alves Madeira
Comentário*
Uma canção sobre a capacidade de apreensão e de ampliação da visão da alma, sobre as visões do amor, o amor como uma grande lente de aumento, um grande microscópio que pode tornar visíveis pequenos detalhes imperceptíveis a olho nu.
Uma canção sobre as visões míticas do amor, sobre os mitos do amor; o amor como doação irrestrita, incondicional e absoluta, sem a necessariedade da contrapartida; o amor que não pede nada em troca; que prescinde diretamente da reciprocidade; um amor, portanto, despersonalizado, que não precisa de outra pessoa; que não é carnal; que transcende o plano do afeto, que não é afetado por nada disso: o amor ideal, uma idealização do amor; o amor maior pregado pelos profetas, pelos santos, pelos religiosos. Daí a transcendência do plano trágico das diferenças; a ideia da superação do bem e do mal pela conformação, pela aceitação, pela resignação.
Amor transcendental por estar, basicamente, em princípio, além do alcance da humanidade, daquilo que é humano em nós – embora só o fato de falarmos disso [desse amor] e o buscarmos seja sinal de que isso se insinua em nós. Amor que, pela característica absoluta que ele tem, só fosse possível na rarefação completa de todos os corpos que nos compõem, desde o mais físico ao mais etéreo, mental – e aí é quando a dimensão humana não está em jogo; quando os desejos, as expectativas, as necessidades, as carências estão fora de cogitação. Nós ainda precisamos dos estágios anteriores do amor.
Amor que é tudo (‘love’s all’), identificado com Deus; com a infinitude; com a incondicionalidade; com a plenitude – e com o nada também, necessariamente. Ainda assim, é nossa ambição trazer essa dimensão plena de amor para dentro da vivência não plena da nossa condição humana. O discurso dos santos, dos profetas, dos religiosos, fala disso.
Tratar do amor talvez seja mesmo minha missão, pela frequência com que eu tento abordar a questão e pela maneira como eu tento chegar a essa qualidade irrestrita, essa abrangência, essa universalidade religiosa do amor, em ‘Lente do amor’.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lavagem do Bonfim
Gilberto Gil
Sai da Conceição da Praia a primeira
Talagada de batida na Praça Cairu
Levanta a pista ao alto o Lacerda
Mais parece um corredor que envereda
Uma pista de corrida a correr pro céu azul
Olha a vertigem, Virgem Maria!
Te segura, criatura, que o dia
Inda tá menino moço, o almoço inda tá cru
Segura bem na mão da menina
Poupa o coração, que é só na colina
Que o santo serve o caruru
Timbau, pandeiro, som de guitarra
Tanta roupa branca, tanta algazarra
Zona franca de folia, de fé, de devoção
Foto de lambe-lambe, alegria
Vai passar pelo moinho da Bahia
Mais de trinta graus de calor, amor e emoção
Lembra bem dos degraus da igreja
Guarda um pouco de suor pra que seja
Misturado às águas e às mágoas de lavar o chão
Faz tempo que passou da calçada
Segura os joelhos nessa chegada
Que o peito arde de paixão
Gravação
Gal Costa – O sorriso do gato de Alice, 1993 – BMG
Comentário*
Um dia eu estava em Salvador na Lavagem do Bonfim, vi aquelas cenas todas, aí peguei o violão e fiz essa música. É uma descrição daquela alegria, daqueles nove quilômetros que são percorridos entre a Conceição da Praia e a Ladeira do Bonfim. Vai passando pelos lugares, dá uma visão delirante, já bêbada, do Elevador Lacerda, segue, passa pelo Moinho da Bahia, vai indo, entra na avenida que vai passar pela Água de Meninos, pelo Bonfim, e aí chega aos degraus da igreja. É um samba de batuque.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lar hospitalar
Gilberto Gil
Milton Nascimento
Eu que testemunho dramas da canção fugaz
Eu que experimento o quanto a fantasia é bom
Alimento para a paz
E eu mesmo agora, tenho que lhe ouvir dizer
Aos berros que a vida é pura maldição
Que o mundo é feito só para os eleitos
Que houve sempre fraude na tal da eleição
Portanto, só queimando tudo
Só matando meio mundo
Só pondo a outra metade no poder
Você no comando, sempre vigiando
Pra ninguém se corromper
Finda a banda podre, linda a banda nobre
Sobe a velha rampa e altiva vem reinar
Com imunidades contra o vírus da maldade,
Com certeza, com pureza, com limpeza
Hospitalar, hospitalar, no seu lar hospitalar
Lar, hospitalar
Eu que moro onde o pecado mora ao lado
E me visita sempre no verão
Eu que já fui preso por porte de baseado
É baseado nisso que eu lhe digo não, não, não
Não vou fazer seu coro, seu sermão
A não ser que você possa instalar
O chip da ignorância em minha cuca
A não ser que você consiga me reprogramar
Reprogramar, me reprogramar, reprogramar.
Gravação
Gilberto Gil e Milton Nascimento – Gil & Milton, 2000 – Warner Music
Comentário*
Fizemos cinco composições; para duas delas, eu fiz as músicas primeiro, e Milton fez letras depois; para outras duas, ele fez as músicas primeiro, e eu fiz as letras depois; e numa, partilhamos tudo: numa parte, música e letra eu, outra parte, música e letra ele. Armamos assim uma piramidezinha, que acomodasse a parceria nos seus vários planos. No caso de “Lar hospitalar”, ele fez um daqueles rocks mineiros típicos dele, bem melódicos, bem harmônicos, e eu escrevi a letra.
Era a época em que se falava muito da “banda podre” em relação à polícia do Rio. Eu aí quis brincar um pouco com isso, como se todos nós não tivéssemos uma banda podre (aquela coisa d’“A raça humana” como “Uma beleza, uma podridão”)… A canção coloca as elites palacianas como partícipes desse dualismo necessariamente humano, demasiadamente humano, todos nós habitados pelo bem e pelo mal…
Há uma ironia em relação ao que seria uma campanha obsessiva contra a corrupção. — Sim, “Lar hospitalar” é uma música para ridicularizar os patrulhamentos de qualquer ordem, morais, políticos, econômicos, todos eles. Uma revisitação ao antipatrulhamento.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lamento sertanejo
Gilberto Gil
Dominguinhos
Lá do cerrado
Lá do interior, do mato
Da caatinga, do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigo
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado
Por ser de lá
Na certa, por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada
Caminhando a esmo
Gravações
Gilberto Gil – Refazenda, 1977 – Warner Music
Dominguinhos – Apôs Tá Certo, 1979 – Universal Music
Djavan – Songbook Gilberto Gil, Vol. 3, 1992 – Lumiar Discos
Gilberto Gil – As Canções de Eu, Tu, Eles, 2000 – Warner Music
Alcione – Nos Bares da Vida, 2000 – Universal Music
Zé Ramalho – Nação Nordestina, 2000 – Sony Music
Gilberto Gil – São João (Ao Vivo), 2001 – Warner Music
Maria Bethânia – Noite Luzidia (Ao Vivo), 2012 – Biscoito Fino
Mariene de Castro e Almério – Acaso Casa Ao Vivo, 2019 – Biscoito Fino
Mariana Aydar e Mestrinho – Ao Vivo no Coala. VRTL, 2021 – Coala.LAB
Marisa Monte – Portas (Ao Vivo), 2023 – Phonomotor
Comentário*
A música já existia em formato instrumental e até havia sido gravada pelo Dominguinhos num andamento rápido; era um xote rápido. Mas quando ele a mostrou para mim, na época em que estava tocando com a Gal, no show Índia, e começou a colaborar comigo para o disco Refazenda (nós tínhamos nos aproximado antes, no Midem, em 73, quando eu passei a cantar o seu “Xodó”), ele já a tocou como um lamento, como uma toada lenta, num andamento arrastado que lhe deu um certo tom de entristecimento. Aí, ele me pediu que fizesse uma letra e eu fiz o “Lamento sertanejo”, um título que ele mesmo propôs e com o qual ele a apresentou para mim, no andamento acelerado que dava a ela um caráter de peça dançante nordestina.
Essa canção possui o traço da minha identificação pessoal com o retirante, eu mesmo tendo sido um pouco retirante, um semirretirante. Quando, a cada verão, eu vinha de lá do sertão para Salvador, eu vivenciava o que os retirantes vivenciavam e que passaram a vivenciar mais intensamente nos primeiros anos da década de 50, quando se intensificam as suas caravanas: aquela coisa de vir da cidadezinha pequena do interior para a capital e tomar o susto com a cidade grande; de passar pela estrada empoeirada, pela paisagem das caatingas, dos lajedos, das pedras, dos arbustos e dos cactos, esse mundo que eu vivenciei durante a infância e que seria uma ponte de identificação minha com os retirantes. Quando ouvia as narra tivas do drama das viagens, eu sabia do que é que se tratava aquilo, eu tinha vivido aquilo em pequenas doses, sabia do seu significado, da saudade que batia da terra natal já durante a viagem, dos sofrimentos; via muitos tropeiros que iam buscar mercadoria nos lugares distantes; os viajantes que se empoleiravam nos caminhões, dormindo nas camas de redes armadas embaixo das carrocerias. Tudo isso eram paisagens próximas e cenários de vivências minhas e de pessoas muito próximas. No sertão, pobres e ricos, todos nós andávamos em caminhões e caminhonetes, ninguém tinha carro; todos viajavam naqueles coletivos típicos dos paus de arara.
“Lamento sertanejo” é sobre o retirante e sobre a saudade que ele tem da sua terra — e um pouco sobre as várias regiões do sertão, do serrado, da caatinga, que formam o panorama das diversidades regionais dos vários sertões brasileiros.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lamento de carnaval
Gilberto Gil
Que do imposto que pagamos ao estado
E do lucro que damos ao mercado
Um pedaço seja destinado ao carnaval
Para outros no entanto, ô, ô, ô
Da magia do tambor, da cor do canto
É que vem o calor que seca o pranto
Em seus olhos já cansados de ver tanto mal
Hoje é dia de folia
Hoje eu canto pra esquecer
Que a escola do bairro está sem professor
Amanhã depois da festa
A cidade que protesta
Entrará pela fresta da porta do corredor
Não adianta fugir
Não adianta fugir, seu doutor
Não adianta trancar a porta
Não adianta fugir, seu doutor
Para alguém neste momento, ô, ô, ô
Sua condição de dor e sofrimento
Deve ser cimentada com o cimento
Do rancor, do desespero, da exasperação
Para um outro, o lamento, ô, ô, ô
Da triste canção levada pelo vento
Pode ser uma luz no firmamento
Uma noite estrelada em seu coração!
Gravações
Gilberto Gil – Quanta Gente Veio Ver (Ao Vivo), 1998 – Warner Music
Marcelo Quintanilha e Vânia Abreu – Pierrot & Colombina, 2006 – YB Music
Comentário*
Eu tive duas motivações para compor o par de canções que ‘Lamento de carnaval’ e ‘Doce de carnaval’ formaram. Uma foi o próprio carnaval; a outra, o Lulu Santos. Lulu era meu convidado para participar do carnaval na Bahia naquele ano, o Carnaval da Tropicália, o primeiro que eu fiz tal qual venho fazendo nos últimos anos, com trio elétrico e vários colegas convidados.
Eu tinha feito ‘Doce de carnaval’, uma marcha em homenagem ao Candeal falando sobre a alteração na vida de uma pessoa provocada pela festa: o carnaval como elemento transformador. Aí eu disse: ‘Mas o carnaval é a marcha e o samba; onde é que está o samba?’ Então não teve jeito: tive que fazer um samba. A primeira motivação para eu fazer o ‘Lamento’ foi portanto essa: a provocação carnavalesca em função de a marcha ter que ser complementada pelo samba.
O Lulu já ia gravar a marcha, mas eu sabia que ele, ultimamente, estava interessado em samba; ele estava com o Carneirinho – o Nelson Jacobina – aprendendo sambas. Por isso eu disse: ‘Ah, vou fazer um samba, para ele também gravar comigo’. No fim, ele gravou a marcha e o samba. As duas motivações foram essas, a do arquétipo carnavalesco dos dois gêneros, o samba de carnaval e a marcha de carnaval, e a do Lulu, que me ajudou a formatar as duas músicas.
A ideia do ‘Lamento’ é recuperar a dimensão necessária da festa como um investimento. O texto tem por tema os gastos com o carnaval, em que a sociedade investe e em que são empregados recursos para que ela seja bonita, grande, e o lado reacionário que critica isso e se coloca contra o lúdico, contra a festa na vida, como se toda a vida tivesse que ser trabalho, tivesse que ser coisa séria, como não se devesse investir nem dinheiro nem energia na produção do lúdico, como se o lúdico fosse uma coisa desprezível.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lamento africano
Gilberto Gil
Mama, mama, ê
Mama, mama, ê
Mama, mama, ê
Kioso unguando fuá
Nanhanga delê
Kioso unguando fuá
Nanhanga delê
Mama, mama, ê
Mama, mama, ê
Mama, mama, ê
Mama, mama, ê
Tataku matadi
Mamaku mujinhê, mujinhê
Tataku matadi
Mamaku mujinhê
Lady Neyde
Gilberto Gil
Antonio Risério
Pivete dengosa
Candeia de azeite
Escurinha gostosa
Pandeiro de pele de gata
É chinfra de malê, iaô
Persona muitíssimo grata
Convido-te para um melô
Chispa da Rua do Fogo
E vai me ver no meu barracão
Lá na Ladeira do Caminho Novo
Bate o tambor do meu coração
Ladeira da preguiça
Gilberto Gil
Que ladeira é essa?
Essa é a Ladeira da Preguiça
Preguiça que eu tive sempre
De escrever para a família
E de mandar contar pra casa
Que esse mundo é uma maravilha
E pra saber se a menina já conta as estrelas
E sabe a segunda cartilha
E pra saber se o menino já canta cantigas
E já não bota mais a mão na barguilha
E pra falar do mundo, falar uma besteira
Formenteira é uma ilha
Onde se chega de barco, mãe
Que nem lá
Na Ilha do Medo
Que nem lá
Na Ilha do Frade
Que nem lá
Na Ilha de Maré
Que nem lá
Salina das Margaridas
Essa ladeira
Que ladeira é essa?
Essa é a Ladeira da Preguiça
Ela não é de hoje
Ela é desde quando
Se amarrava cachorro com linguiça
Gravações
Elis Regina – Elis, 1973 – Philips
Elis Regina e Gilberto Gil – Phono 73, 1973 – Philips
Gilberto Gil – Ao Vivo na USP, 1973 – Discobertas
Gilberto Gil – Umeboshi (Ao Vivo), 1973 – Discobertas
Gilberto Gil – Cidade do Salvador, 1973 – Universal Music
Pedro Mariano – Pedro Mariano, 2005 – Universal Music
Shirle de Moraes – Nada Será Como Antes, 2005 – BMG
Maria Rita – Redescobrir (Ao vivo), 2012 – Universal Music
Rosa Passos – Azul, 2013 – Galeão
Gilberto Gil – Gilbertos Samba (Ao Vivo), 2014 – Gege
Illy – Te Adorando Pelo Avesso, 2020 – Alá Comunicação e Cultura
Comentário*
Outra canção do período londrino de reminiscências de tempos e lugares da Bahia e da mesma fase de ‘Fechado pra balanço’, além de ser, também como esta, um samba.
Formentera, o primeiro local citado pela letra, é uma ilha da Espanha, na época famosa, como Ibiza, pelas grandes migrações hippies. As duas ficam juntinhas. Eu estava hospedado em Formentera e ia a Ibiza, quando escrevi ‘Oriente’. Na sequência dos versos, eu aproveito para fazer uma enumeração de acidentes geográficos importantes da Bahia de Todos os Santos que foram trazidos à memória pela passagem por Formentera, naquele verão – daí a associação; são a Ilha do Medo, a Ilha do Frade, a Ilha de Maré e a Salina das Margaridas.
A Ladeira da Preguiça fica, em Salvador, entre o Unhão e o Campo Grande. A música nasceu do mistério que a Ladeira tinha para mim na infância, do lugar mitológico que ela ocupava na minha vida infantil. Era um local aonde a gente não ia; em que todo mundo falava, mas que era inacessível, por ser beira-mar mas não praia (porque a parte em que ela se situa corresponde a uma região de arrecifes, muros e muradas; você tem as praias da Ribeira, depois vêm a parte do porto, o Mercado Modelo, o Unhão, e só vai ter praia de novo no Porto da Barra). Por isso, a Ladeira não era um lugar que os banhistas frequentassem. Só iam lá, eventualmente, os malandros, os capoeiristas, as pessoas que tinham negócio por lá, além das que habitavam por perto. A Ladeira era na verdade um enclave de classe pobre numa área de classe média alta, na beira da Bahia de Todos os Santos; a ladeira que dava acesso à beira-mar. Um lugar mítico.
Música e letra manhosamente juntas – A sinuosidade do samba, do fraseado, foi propondo a sinuosidade dos versos, que são todos irregulares, não havendo estrofes propriamente. A canção é toda insinuante e sinuosa, ‘insinuosa’.
Do refrão – O caráter reiterativo e afirmativo do refrão parece lembrar um visitante, um turista, que anda pela cidade e pergunta: ‘Essa ladeira, que ladeira é essa?’ Ao que alguém responde: ‘Essa é a ladeira da preguiça!’
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ladainha
Gilberto Gil
Capinan
Medo de vivo é solidão
Luto por amor e morro
De facas no coração
Em campos sem travesseiro
Estou cercado de inimigo
Cada qual mais preparado
Intriguento e arruaceiro
Chove chuva e aguaceiro
Chove chuva e aguaceiro
Só sinto frio na alma
Estou vazio de sentimento
Não sinto água no corpo
Nem amor, nem ferimento
Chove chuva e aguaceiro
Chove chuva e aguaceiro
O vivo morreu cercado
De muita luta e alegria
Seu sorriso agora é nuvem
Sua festa, ladainha
Seu amor, cama vazia
Numa varanda do céu
Seu amor, cama vazia
Numa varanda do céu
Lá vem ela
Gilberto Gil
Vanessa da Mata
Fico cor de Deus, a cor sem cor
Nessas horas todos coram e a menina
Nessas horas ela é de maior
Passa pela casa de Jurema e Mario
Ancas de mulher são âncoras
Ai, se Deus me desse cor, coragem e fibra
Para eu poder me ancorar
Olha, lá vem ela, fértil, riso aceso
Semeando a rua
Espalhando mudas de sol, de esperança
Futuro e danuras
Quando ela corre ocorre uma corrente
De ar quente, ar de arrasta-pé
Ela corre à frente e o rastro arrasta a gente
E resta somente o que não é
O que ainda não é amor, ardor, paixão
Que o feitiço dela ainda não faz
Tudo mais, na luz da noite de São João
O ventinho dela leva e traz
La renaissance africaine
Gilberto Gil
Sa nature, ses dieux,
Son histoire et l’au delà
L’homme et son paysage aimé
Tout est là devant ses yeux
Tout ça dans le baouba
La renaissance africaine
La renaissance africaine
Et sa puissance
La renaissance africaine
La renaissance africaine
Avec sa dance
C’est l’afrique libertée
C’est l’afrique et ses idées
De sagesse et de vigueur
C’est l’afrique et sa mission
Clé pour la vrai construction
Du monde civilizé
Son peuple, son territoire
Qui s’étendent en diaspora
Jusqu’à la fin de la terre
En Europe, en Amerique
C’est toujour l’esprit d’Afrique
La nouveauté qui prospère
Ses enfants, ses gens musclés
Ses femmes d’outre beauté
Une beauté noir-nuit
Continent le plus agé
Les vieux temps nous ont laissé
Sa mythologie, sa vie
Gravações
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Gege
Gilberto Gil – Bandadois (Ao Vivo), 2009 – Gege
Gilberto Gil – Concerto de cordas e Máquinas de ritmo (Ao Vivo), 2012 – Biscoito Fino
Comentário*
Minha mania de abordar o francês em algumas canções. “La Renaissance africaine”: esse título é o título de um festival, que na verdade reeditava o grande festival proposto por Léopold Senghor [Festival Mundial de Artes Negras, criado em 1966]. Os agentes culturais senegaleses dessa época do Renaissance Africaine criaram o festival com esse nome e com o escopo de dar guarida às manifestações diaspóricas, africanas, no próprio continente e fora dele — à expansão da África para o mundo —, bem como a essa ideia de renascimento africano, que estava no Léopold Senghor e em todos os grandes temas poéticos da diáspora. Então, pra contemplar isso, eu fiz a canção, que chegou a ser sugerida. “Por que você não faz uma música com esse tema?”, perguntou Youssou N’Dour, conversando comigo. Ele também era um dos participantes, um dos curadores do festival. Ele disse: “A gente precisa ter uma música-tema desse Renaissance”. Eu nem prometi a ele que ia fazer, mas acabei fazendo.
Sobre trechos que apresentam um interesse particular por falar, por exemplo, na missão da África para a construção do mundo civilizado. — “O homem pleno de dignidade. Sua natureza, seus deuses. Sua história e seu além. O homem e sua paisagem amada. Tudo diante dos seus olhos. Tudo isso na árvore, nessa árvore símbolo extraordinário daquela região da África, que é o baobá. A África libertada, a África com suas ideias de sabedoria e de vigor. A África e sua missão pela verdadeira construção do mundo civilizado. Seu povo, seu território. Que se estende em diáspora até o fim da terra. Até os confins da terra, do mundo. Na Europa, na América, sempre o espírito da África. A novidade que prospera. Suas crianças, seus meninos, seus homens musculosos. Suas mulheres de especial beleza — ‘d’outre’, aí, no sentido de ‘especial’, de ‘diferente’: ‘outra beleza’ nesse sentido. Suas mulheres de outra beleza. Uma beleza noite negra. O mais velho dos continentes. Os velhos tempos nos deixaram, nos trouxeram, nos deram sua mitologia, sua vida.”
É uma canção feita a partir de estímulos muito efetivos: todo o mundo africano reunido, colegas artistas, poetas, músicos, em um festival; uma disposição da instituição cultural, de um país importante como Senegal, de promover isso, de fazer esse festival. Então a canção veio pronta nesse sentido: no sentido da sua urgência, da sua adequação, da sua propriedade. Eu só fiz versejar em cima disso, e musicar.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
La lune de Gorée
Gilberto Gil
Capinan
Sur l’île de Gorée
C’est la même lune qui
Sur tout le monde se lève
Mais la lune de Gorée
A une couleur profonde
Qui n’existe pas du tout
Dans d’autres parts du monde
C’est la lune des esclaves
La lune de la douleur
Mais la peau qui se trouve
Sur les corps de Gorée
C’est la même peau qui couvre
Tous les hommes du monde
Mais la peau des esclaves
A une douleur profonde
Qui n’existe pas du tout
Chez d’autres hommes du monde
C’est la peau des esclaves
Un drapeau de Liberté
Gravações
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – Eletracústico, 2004 – Warner Music
Comentário*
É basicamente uma letra de Capinan com retoques meus: pequenos ajustes de adequação métrica; eventualmente, uma reorganização das estrofes; uma coisinha aqui, ali, uma outra; alguma mexida em relação às questões tonais das frases. Um tipo de ação parecida com a que eu fiz na canção com o Ruy Guerra, “Sob pressão”.
A canção remete ao portal, o arco, um ancoradouro de navios em que os escravos eram embarcados e dali partiam para as travessias. O Capinan acabou indo a Gorée fazer uma visita, depois que eu já tinha ido, e se lembrava da minha ida. (Eu fui mais de uma vez. Uma, com o pessoal ligado ao Ministério da Cultura do Senegal, a entidade cultural senegalesa. Outra, com o presidente Lula.) O fato é que foi depois da visita que Capinan fez que ele resolveu escrever a letra, e me propôs fazer a música, e eu fiz.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil