Músicas
Refloresta
Gilberto Gil
Manter em pé o que resta não basta
Que alguém virá derrubar o que resta
O jeito é convencer quem devasta
A respeitar a floresta
Manter em pé o que resta não basta
Que a moto-serra voraz faz a festa
O jeito é compreender que já basta
E replantar a floresta
Milhões de espécies, plantas e animais
Zumbidos, berros, latidos, tudo mais
Uivos, murmúrios, lamentos, ancestrais
Porque não deixamos nosso mundo em paz?
Além do morro deserto se alastra
Por toda terra da serra aos confins
Um todo oco um casco de canastra
Onde enterramos saguis
Manter em pé o que resta não basta
Já quase todo ouro verde se foi
Agora é hora de ser refloresta
Que o coração não destrói
Milhões de espécies, plantas e animais
Zumbidos, berros, latidos, tudo mais
Uivos, murmúrios, lamentos, ancestrais
Porque não deixamos nosso mundo em paz?
Manter em pé o que resta não basta
Que alguém virá derrubar o que resta
O jeito é convencer quem devasta
A respeitas a floresta
Manter em pé o que resta não basta
Já quase todo ouro verde se foi
Agora é hora de ser refloresta
Que o coração não destrói
Que o coração não destrói
E respeitar a floresta
E replantar a floresta
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica:
Participação especial:
Bem Gil
Gilsons
Produtor musical:
Bem Gil
Músicos:
Bem Gil: Guitarra e sintetizador
Francisco Gil: Guitarra e voz
João Gil: Baixo e cavaquinho
José Gil: Bateria, percussão e samples
Gravação
Gilberto Gil, Bem Gil e Gilsons – Single, 2021 – Gege
Comentário*
Feita a pedido do Sebastião Salgado. Ele tem um projeto de reflorestamento nas terras da família, que ele recuperou, reflorestando — que ele refloresta. Ele me perguntou se eu não queria fazer uma “Refloresta”, eu que tinha feito “Refazenda”, “Refavela”, “Realce”. Eu parti daí [de uma retomada de “Refazenda” nos dias de hoje].
Um programa para evitar um futuro prevalentemente desastroso deve prever justamente um reflorestamento. — Manter em pé as florestas é uma das campanhas: a Amazônia, por exemplo; os resíduos florestais da Europa, em países como a Alemanha e os países nórdicos. Mas isso já não basta, como diz o primeiro verso da canção, porque temos consciência hoje do caráter devastador, destrutivo, predatório dos interesses industriais, agrícolas etc.; de madeireiros de um modo geral. Além de mantê-la em pé, é preciso replantar a floresta: está lá na segunda estrofe.
“Um casco de Canastra/ Onde enterramos saguins”. — Os tatus, os roedores, os macaquinhos, os bichinhos das matas, que vão sendo sacrificados, que vão perdendo seu habitat, que vão tendo que fugir pra lugares cada vez mais distantes, cada vez mais inóspitos, e perecem. Além da caça predatória etc. Tudo isso. O trecho é pra ilustrar essa ação predatória diária com seus vários modos de ser.
Eu canto “saguins”, rimando com “confins”. O nome do animal tanto pode ser sagui quanto saguim. Em algumas regiões da Bahia, por exemplo, é saguim. No dicionário, você encontra ambas as formas.
Enfim: “Manter em pé o que resta não basta…/Agora é hora de ser refloresta”. — Como se fosse um mote propagandístico do que consiste no lema da própria instituição, o Instituto Terra, do Salgado. Dizendo respeito ao compromisso profundo de nossa dimensão humana solidária com o resto, com as outras todas dimensões dos seres existentes.
Gênero. — Eu gosto dela por ser um samba rasgado, talvez um gênero inusitado em relação à expectativa de uma canção que tem a função de hino, de representação heráldica. Um samba talvez não fosse muito esperado que se fizesse, que uma canção como essa acabasse sendo um samba, mas ela é. “Refloresta” tem uma disposição positiva, esse aspecto de animação mesmo. “Vamos nos animar com isso.”
O despertar da minha consciência socioambiental, de grande incidência em meu trabalho como letrista, está associado a influências que sofri nos anos 1970 por obras como o seu álbum Refazenda. E eu observo que o processo de destruição do meio ambiente não surpreende tanto pessoas como você, que começaram a percebê-lo já naquele período, quanto quem passou a percebê-lo mais recentemente. — Hoje boa parte da sociedade mundial, a brasileira incluída, está pautada em relação ao meio ambiente e às várias questões envolvendo o meio ambiente. E tem ainda todo um contingente novo de convertidos recentemente ou a se converter, com jovens tomando conhecimento dessas questões todas e, com mais facilidade que os mais velhos, aderindo a essas pautas.
Nos últimos dez, quinze, vinte anos, eu venho observando gente descobrindo o que está acontecendo de ruim com a natureza, num processo que eu fui estimulado a constatar e acompanhar por figuras como você. — Pra mim isso chegou um pouco antes do que pra você. E ainda tem velhos anteriores a nós, de geração anterior à minha e à sua, pra quem o conhecimento, a temática ambiental está chegando agora. E ao mesmo tempo os jovens, no fluxo natural da renovação social, da chegada de novas gentes, também estão tomando consciência disso. Então tem gente mais velha tomando consciência e gente mais nova tomando consciência. E, pra essa gente mais nova, essa consciência está chegando numa idade anterior à que chegou pra nós.
Mas num momento histórico muito posterior; após um período em que o processo de destruição ambiental se acelerou.
— Mas também se acelerou a notícia, o conhecimento disso, as formas de ação contra isso. O movimento político ambiental cresceu, o conhecimento técnico ambiental científico cresceu. Essa canção é um exemplo disso. Alguém da minha geração que já foi tomado por essa questão algum tempo atrás começou a agir em relação a isso, criou um programa de reflorestamento para as velhas terras da família mineira em áreas que foram devastadas completamente pela agricultura, pela mineração, por isso, por aquilo, por aquilo outro, e essa consciência fez com que agisse. Hoje pessoas assim têm projetos e programas similares e já sabem que parceiros encontrar, que segmentos estão disponíveis a aderir, quem são os outros militantes que podem se associar. E aí ele me liga dizendo: “Vamos fazer uma música pra um projeto assim e tal”. E ele se liga no Refazenda lá atrás… As conexões são variadas, mas todas em função de uma pauta, que hoje existe, que não existia cinquenta anos atrás.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Roque Santeiro, O Rock
Gilberto Gil
Agora, o menino é tudo de novo no front
Outrora, só rebeldia
Agora, soberania na noite neon
Outrora, mera fumaça
Agora, fogo da raça, fogoso rapaz
Outrora, mera ameaça
Agora, exige o direito ao respeito dos pais
E tem mais, e tem mais, e tem mais
E tem mais, e tem mais
Outrora, arraia miúda
Agora, lobão de boca bem grande a gritar
Outrora, pirado e louco
Agora, poucos insistem em negar-lhe o lugar
Outrora, frágil autorama
Agora, três paralamas de grande carreta de som
Outrora, simples bermuda
Agora, ultravestido de elegante ultraje a rigor
E o amor, e o amor, e o amor, e o amor
E o amor, e o amor, e o amor
Só quem não amar os filhos
Vai querer dinamitar os trilhos da estrada
Onde passou passarada
Passa agora a garotada, destino ao futuro
Deixa ele tocar o rock
Deixa o choque da guitarra tocar o santeiro
Do barro do motocross
Quem sabe ele molde um novo santo padroeiro
Outrora, o seio materno
Agora, o meio da rua, na lua, nas novas manhãs
Outrora, o céu e o inferno
Agora, o saber eterno do velho sonho dos titãs
Outrora, o reino do Pai
Agora, o tempo do Filho com seu novo canto
Outrora, o Monte Sinai
Agora, sinais da nave do Espírito Santo
E o encanto, e o encanto, e o encanto, e o encanto
E o encanto, e o encanto, e o encanto, e o encanto
Gravação
Gilberto Gil – Dia Dorim Noite Neon, 1985 – Warner Music
Comentário*
O título faz referência à novela Roque Santeiro [da Rede Globo], que fez grande sucesso na época, seguindo o procedimento que, no meu trabalho, tinha o antecedente de “Super-Homem — A canção”, em referência ao filme — para dar ingredientes de coerência que vão criando ligações e colocando a obra em perspectiva de prateleira, de acumulação de volumes, como se fosse uma coleção de livros.
A música presta uma homenagem à nova geração do rock brasileiro, num momento em que se cria entre nós o público para ele, o sucedâneo nacional do rock se instala no rádio, e o rock brasileiro — a partir de Lulu Santos, Marina — passa a existir através de uma produção ampla e diversa, cobrindo várias tribos e modos diferentes de rock, do mais doce, suave e romântico, como o do Kid Abelha, ao mais cáustico, como o do Ultraje a Rigor. Alguns deles citados nominalmente pela música.
“Roque Santeiro — O rock” sou eu mesmo, como representante da geração anterior, me colocando, solidariamente, como uma ponte entre eles e a tradição. Como se dissesse: “Venham, passem, cruzem, pisem nas nossas costas, façam de nós um chão”. É por isso também que eu falo em não “dinamitar os trilhos da estrada”. Eu me lembrava do expediente, usado nas guerras, de bombardear as pontes para evitar a comunicação. A canção tem esse sentido funcional de combater o isolamento de gerações e contribuir para a construção de pontes entre elas.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Roda
Gilberto Gil
João Augusto
Na roda que eu te fiz
Quero mostrar a quem vem
Aquilo que o povo diz
Posso falar, pois eu sei
Eu tiro os outros por mim
Quando almoço, não janto
E quando canto é assim
Agora vou divertir
Agora vou começar
Quero ver quem vai sair
Quero ver quem vai ficar
Não é obrigado a me ouvir
Quem não quiser escutar
Quem tem dinheiro no mundo
Quanto mais tem, quer ganhar
E a gente que não tem nada
Fica pior do que está
Seu moço, tenha vergonha
Acabe a descaração
Deixe o dinheiro do pobre
E roube outro ladrão
Agora vou divertir
Agora vou prosseguir
Quero ver quem vai ficar
Quero ver quem vai sair
Não é obrigado a escutar
Quem não quiser me ouvir
Se morre o rico e o pobre
Enterre o rico e eu
Quero ver quem que separa
O pó do rico do meu
Se lá embaixo há igualdade
Aqui em cima há de haver
Quem quer ser mais do que é
Um dia há de sofrer
Agora vou divertir
Agora vou prosseguir
Quero ver quem vai ficar
Quero ver quem vai sair
Não é obrigado a escutar
Quem não quiser me ouvir
Seu moço, tenha cuidado
Com sua exploração
Se não lhe dou de presente
A sua cova no chão
Quero ver quem vai dizer
Quero ver quem vai mentir
Quero ver quem vai negar
Aquilo que eu disse aqui
Agora vou divertir
Agora vou terminar
Quero ver quem vai sair
Quero ver quem vai ficar
Não é obrigado a me ouvir
Quem não quiser escutar
Agora vou terminar
Agora vou discorrer
Quem sabe tudo e diz logo
Fica sem nada a dizer
Quero ver quem vai voltar
Quero ver quem vai fugir
Quero ver quem vai ficar
Quero ver quem vai trair
Por isso eu fecho essa roda
A roda que eu te fiz
A roda que é do povo
Onde se diz o que diz
Rio eu te amo
Gilberto Gil
e associar a isto a minha dor
de onde quer que eu esteja, qual seja
longe ou perto o lugar
de pedra sobre a pedra ele luar
esta paisagem bela toda cor
da tela que tanto pintor pintou
basta avistar o Cristo e a isto
poder associar
amor e dor e amar e amar
Rio Rio Rio choro e rio rio e choro
Rio Rio Rio rio e choro choro e rio
Acompanhar-te os passos da paixão
tem sido em parte a arte da nação
tantos poetas tantos cantores traçando teus perfis
e olhos do mundo inteiro pro teu nariz
ontem nos deste um jeito de dançar
hoje eu trago no peito o teu penar
eta cidade imensa quem pensa poder te entender
x’que entenda e venha me dizer
Rio Rio Rio choro e rio rio e choro
Rio Rio Rio rio e choro choro e rio
Gravação
Gilberto Gil – Gilbertos samba (Ao Vivo), 2014 – Gege
Comentário*
Uma música que foi feita para um filme [homô- nimo] do Andrucha Waddington sobre o Rio de Janeiro. Daí a utilização do Cristo Redentor como símbolo da cidade, por sua presença, sua onipresença nela; sua capacidade de ser como um farol, que na verdade ele é, no topo de uma montanha irradiando a luz espiritual. Esse astral sobre toda a cidade. E aí, nessa luz simbólica se espalhando por ela, a própria ideia de redenção.
[Gil destaca o trecho da terceira estrofe, sobre a atração que a imagem do Cristo exerce no país e no mundo, bem como a influência da cidade na arte da nação inteira, como “um momento bem realizado da canção”, a que se refere como uma “oração”. E, desenvolvendo a ideia expressa no refrão, o jogo de sentidos complementares dos versos: “Ontem nos deste um jeito de dançar/ Hoje eu trago no peito o teu penar” — este, a exprimir “a ideia do Rio como um lugar dolorido, doloroso, em que veio se tornando cada vez mais”.]
O refrão salienta a contiguidade de rir e chorar, de felicidade e sofrimento. — Exatamente, fechando o sentido mais exigente da canção, que é esse. Rio, como substantivo e verbo no presente. O Rio em mim me faz rir e chorar, e eu traduzo o sentido de rir e chorar numa brincadeira com a palavra; muito comum, aliás, outros já a usaram com essa ambivalência. A canção é um lamento, é lamentosa. Uma prece com uma dor pungente.
Um samba interessante, meio bossa-novístico, mas também remetendo a modos mais antigos, tradicionais. Alguma coisa de Noel ali, uma fragrância. E o Rio [cantado desde “Aquele abraço”], uma vez mais entrando como tema inspirador.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Retrata
Gilberto Gil
“Brasil ano 2000”, vários, Universal
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
Retiros espirituais
Gilberto Gil
Descubro certas coisas tão normais
Como estar defronte de uma coisa e ficar
Horas a fio com ela
Bárbara, bela, tela de TV
Você há de achar gozado
Barbarela dita assim dessa maneira
Brincadeira sem nexo
Que gente maluca gosta de fazer
Eu diria mais, tudo não passa
Dos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo o que eu disse
Reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, ó
Luar tão cândido
Nos meus retiros espirituais
Descubro certas coisas anormais
Como alguns instantes vacilantes e só
Só com você e comigo
Pouco faltando, devendo chegar
Um momento novo
Vento devastando como um sonho
Sobre a destruição de tudo
Que gente maluca gosta de sonhar
Eu diria, sonhar com você jaz
Nos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo que eu disse
Reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, ó
Luar tão cândido
Nos meus retiros espirituais
Descubro certas coisas tão banais
Como ter problemas ser o mesmo que não
Resolver tê-los é ter
Resolver ignorá-los é ter
Você há de achar gozado
Ter que resolver de ambos os lados
De minha equação
Que gente maluca tem que resolver
Eu diria, o problema se reduz
Aos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo que eu disse
Reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, ó
Luar tão cândido
Gravações
Gilberto Gil – Refazenda, 1975 – Philips
Flavio Venturini – Songbook Gilberto Gil, Vol. 1, 1992 – Lumiar Discos sob licença da Sony Music
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases (Ao Vivo), 2018 – Gege
Comentário*
“Retiros espirituais” lança um olhar singelo, simplório, sobre a questão filosófica do ser e não ser; sobre o paradoxo do princípio da incerteza, do que é e não é. É uma das minhas músicas sobre o wu wei, a ação-não ação, a ideia de superação e alcance do ser, onde tudo é; sobre o fato de que o pensamento consciente, sob a égide da volição, ainda é o que se chamaria o estágio zen, o satori, o samadhi, o sat ananda indiano, onde arqueiro, arco e alvo se confundem e sujeito, ato e objeto são uma só coisa.
Talvez seja a minha obra-prima nesse sentido, porque a mais engenhosa do ponto de vista poemático; uma letra que transcende ao aspecto comum da letra de música, na verdade um poema musicado. No trato da sua criação, os versos não serviram apenas para preencher os vazios das caixas das frases sonoras. Quando eu sentei para escrever, já escrevi com o sentimento do poema, como se já houvesse algo sendo dito e o frasear fosse apenas uma explicação do que estava sendo dito. Como uma nuvem que fosse um poema cujos versos fossem a chuva: a chuva é depois da nuvem, dissolução em gotas, fragmentação do “denso-condenso” que é a nuvem: assim eram os versos em relação ao poema e vice-versa.
Eu estava sozinho na sala de jantar, uma hora da manhã, a família já recolhida, tendo ido dormir, após uma daquelas noites que eu tinha passado com todos sentado defronte da televisão vendo o jornal e a novela, e quis buscar e revelar através da escrita, numa espécie de poema-espírito, poema-situação, o que era estar ali diante do mistério da solidão, na meditação, no compartilhar do silêncio que substituía o ruído da vida, da casa, na madrugada, com a sua capacidade de assepsia, de filtragem do que tinha sido o dia. E a canção foi sendo feita, letra e música juntas.
É uma das músicas minhas que mais prezo, por ser das primeiras que dão uma radiografia da minha subjetividade e visceralidade interior, álmica. E é dividida em três partes para apresentar o movimento de tese-antítese-síntese de que gosto muito.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Retirante
Gilberto Gil
Eu tenho que voltar
Tenho que ver ainda o meu sertão
Que um dia eu deixei por lá
Eu tenho que voltar
Eu tenho que voltar
Pra ver se existe ainda
A esperança, ainda
Que eu deixei por lá
Eu tenho que voltar
Eu tenho que voltar
Tenho que ver se o tempo
Já mandou o mato verde
Que o sertão sempre esperou
Tanta esperança deram pro povo
Triste do meu sertão
Foi tanta oração, tanta procissão
Foi tanta gente pra dizer
Que dava de comer pro meu sertão
Mas eu não creio, não
Mas eu não creio, não
Do jeito que anda a vida
A esperança ainda de lutar se vê
Pro homem não morrer
Meu homem do sertão
[ inédita ]
Réquiem pra Mãe Menininha do Gantois
Gilberto Gil
Minha mãe se foi
Minha mãe se foi
Sem deixar de ser – ora, iêiê, ô
Dói
Minha alma ainda dói
Minha alma ainda dói
Sem deixar doer – ora, iêiê, ô
Foi
Tão boa pra nós
Tão boa pra nós
Não deixa de ser – ora, iêiê, ô
Mãe
Do orum, do céu
Do orum, do céu
Me ajuda a viver neste ilê aiê
Rara
Ouro
Guarda o tesouro pra nós
Riso
Puro
Porto Seguro pra nós
Vemos
Vivo
O brilho da tua luz
Iluminando nossos corações
Ouve nossa oração
Escuta a demanda de cada um
Manda teu doce axé
Recomenda ao santo o teu candomblé
Fala com cada um
Fala com cada um
Fala com cada filho fiel
Canta pra todos nós
Derrama sobre todos o teu mel
Foi
Minha mãe se foi
Minha mãe se foi
Sem deixar de ser a Rainha do Trono Dourado de Oxum
Sem deixar de ser
Mãe de cada um
Dos filhos pra quem eternamente sempre haverá
Mãe Menininha
Mãe Menininha
Mãe Menininha
Mãe Menininha
Mãe Menininha
Gravação
Gilberto Gil – O Eterno Deus Mu Dança, 1989 – Warner Music
Comentário*
A ideia de alguém que foi, tanto no sentido do verbo “ser” como do verbo “ir(-se)”; de alguém que foi, sem deixar de ser; alguém que foi, sem deixar de estar: a ideia da permanência, da herança, da memória, da sucessão, do eterno valor de alguém tão grande, tão significativo, tão importante para tanta gente; alguém que por força do próprio ofício teria que intuir, na dimensão da sua vida, a ideia do doar-se para o futuro; uma sacerdotisa que tinha que ser sucedida, depois do seu desaparecimento.
Ela havia morrido três anos antes da composição. Durante esse tempo eu não pensei em fazer-lhe uma canção. Foi de repente, em casa, de madrugada, no Rio, que isso aconteceu, e muito por causa da forma insinuada pelo violão que eu comecei a tocar; por causa do que musicalmente brotou. O arpejo, o riff insinuavam uma melancolia típica de um sentimento de ausência, de uma perda, lembrando formas musicais negras. Daí eu ter associado o que estava tocando à lembrança da Mãe Menininha. Além disso, a cadência, a sugestão de cantochão, alguma coisa acenava para uma identificação, uma aproximação com os réquiens clássicos, dos autores clássicos. Durante a composição, ia se engendrando a própria substancialização do tema, e eu fui achando que era um réquiem. E fui fazendo, letra e música juntamente, escrevendo e compondo.
É uma composição estranha, difícil, raríssima no modo de ocorrer, no meu caso: poucas vezes eu fiz composições como essa. É uma música à qual eu quero voltar para interpretar. Ela faz uma tal exigência quanto ao modo de tocar e cantar junto, que sua interpretação não é possível sem o violão, a não ser que alguém venha a propor uma outra versão orquestrada. Ela é orquestrada pelo arpejo, e eu não consigo vê-la com vida própria em outro contexto, respirando outra atmosfera de conceituação orquestral. É mesmo uma música muito própria.
Minha relação com Mãe Menininha era muito de amizade mesmo; visitei-a várias vezes, ela jogou [os búzios] para mim; eu estive com ela em particular e em muitas situações em grupo, com outras pessoas, nas festas em Gantois; durante anos eu tive aproximação com ela.
Na história do candomblé no Brasil ela é uma figura vultosa principalmente por dois fatores: por ela própria, por sua natureza, seu modo cativante, e pela projeção que o Gantois ganhou, não só por causa dela, mas também pela localização, pelo fato de ter se tornado um terreiro dos mais centrais da cidade de Salvador; um terreiro que acabou envolvido por toda uma população de classe média no entorno. A territorialidade teve uma função importante na emergência do Gantois — tudo isso, evidentemente, propiciado por uma personalidade extraordinária como a dela. As duas coisas andaram juntas.
Ela já tinha ganhado uma canção — de loa, de louvação — de Caymmi, em vida. Aí, teve de mim uma canção de réquiem.
“Foi/ minha mãe se foi/ […] Sem deixar de ser”: para exprimir a eternização dela, a permanência dela na memória afetiva e na própria memória institucional da casa do Gantois, ela entre tantas da linha de sucessão, da dinastia, digamos assim, do reino; ela como rainha — pelo traço dinástico da função e do papel que ela teve, e da estatura que ela adquiriu.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Réquiem
Gilberto Gil
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Rep
Gilberto Gil
Mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O que não sabe, o que não saberia
O que não saboreia porque é só visão
E tão somente cores, a cor do veludo
Ludo, luz, brinquedo, ledo engano, tele
Teletecido à prova de tesoura
Que não corta, não costura, que não veste
Que resiste ao teste da pele, não rasga
Nunca sai da tela, nunca chega à sala
Que é pura fala, que é beleza pura
É a pura privação de outros sentidos tais
Como o olfato, o tato e seus outros sabores
Não apenas cores, mas saliva e sal
Veludo em carne viva, nutritiva
Não apenas realidade virtual
Veludo humano, pano em carne viva
Menos realce, mais vida real
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O que não sabe, o que não saberia
Porque morreria sem poder provar
Como provar a pilha com a ponta da língua
Receber o choque elétrico e saber
Poder matar a fome é pra quem come, é claro
Não apenas pra quem vê comer
Assim feito a criança pobre esfarrapada
Come feijoada que vê na TV
Essa criança quer o que não come
Quer o que não sabe, quer poder viver
Assim como viveu um Galileu, um Newton
E outros tantos muitos pais do amanhã
Esses que provam que a Terra é redonda
E a gravidade é a simples queda da maçã
Que dão ao povo os frutos da ciência
Sabores sem os quais a vida é vã
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
Gravação
Gilberto Gil – O Sol de Oslo, 1998 – Pau Brasil
Comentário*
Compus essa música num quarto de hotel em Turim, na Itália, onde eu estava de passagem. Eu tinha aceitado fazer parte do projeto do Rodolfo Stroeter com a Marlui Miranda — o projeto especial de um disco com a visão de um conjunto de músicos que se reuniriam para trabalhar elementos especiais das suas formações artísticas, um disco em que iam aparecer coisas diferentes das que comumente aparecem nos nossos discos de carreira.
Então, o repertório foi pintando com essa tônica de excepcionalidade, de lateralidade, de marginalidade, à margem do nosso trabalho regular; sem a perspectiva do mercado, sem os hábitos de realização do trabalho serem particularmente informados pelas questões colocadas por um mercado — como lidar com ele, o que ele quer, o que ele absorve, o que ele rejeita: o metabolismo mercadológico; sem levar em conta os seus atributos. Consequentemente, as canções foram aparecendo muito livres, muito soltas, resultantes de pequenos delírios de cada um ou de dois ou três de nós, quando nos juntávamos para fazer o trabalho.
“Rep” é assim, a começar pelo título, uma brincadeira com “rap” e com “repente”, uma forma nordestina de traço ibérico, provavelmente de origem medieval, remontando aos cantadores medievais, um universo que teve uma acolhida muito especial no Nordeste do Brasil, no mundo armonial de Ariano Suassuna e de Antonio Nóbrega, e no trabalho extraordinário dos cantadores nordestinos, criados em escolas e escolas e escolas que foram se desdobrando ao longo da história, nesses duzentos anos em que essa tradição existe no país.
“Rep” tem um refrão que é um dos dísticos mais bem construídos da minha história de compositor, e que na verdade foi uma frase do meu discurso de posse na presidência da Fundação Gregório de Matos, em Salvador, em 1987. O meu discurso começava justamente assim: “O povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”. Eu não tinha me esquecido dele, e finalmente o usei numa letra.
A canção vai tecendo e desatando uma série de pensamentos poéticos sobre a predominância do olhar como sentido pós-moderno; sobre uma hegemonia, uma tirania mesmo, exercida pelo olhar sobre os outros sentidos, sobre os subsentidos interiores; sobre o quase bloqueio que o olhar determina na manifestação dos hipos- sentidos, dos subsentidos, dos sentidos mais sutis, interiores; enfim, sobre a dominação do olhar, da qual o audiovisual moderno é um dos maiores símbolos, e a televisão, talvez o maior dentre eles todos. “Rep” é sobre isso.
Trata-se de uma peça interessante, difícil de cantar. Poética. E do ponto de vista do próprio rap, a composição apresenta interesse particular, por ter uma cadência ternária, algo raro no gênero, já que os raps são em geral basicamente binários e quaternários, múltiplos de dois, no mundo inteiro. Isso lhe dá um caráter estranho como forma rítmica.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Relógio do tempo
Gilberto Gil
“Brasil ano 2000”, vários, Universal
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
Rei do maracatu
Gilberto Gil
Jorge Ben Jor
Pulou pra qui pulou pra lá
Mas não pediu licença pra sambar
Coitado do nego, o nego vai apanhar
Mas nego não precisa de licença
Pois nego é nego tu
O nego não vai apanhar
Pois nego é rei, rei, rei
É rei do maracatu
Toda vida trabalhando, se virando
E o capitão da mata procurando
Um jeito de evitar que o nego
Bote pra quebrar
Pois ele é nego tu
Pois ele é rei, rei, rei
É rei do maracatu
Gravação
Cyro Aguiar – Anticonvencional, 1970 – Continental
Regina de janeiro, fevereiro e março
Gilberto Gil
Arlindo Cruz
É tão gente fina que sabe chegar
Em qualquer esquina
Lá na cobertura, na laje ela está
É quem domina.
Porque tem a sina de ser popular… alô
Alôôôô rainha
Se vai ter churrasco, feijão, vatapá
Vai pra cozinha.
Tem coisa gostosa de todo lugar
Traz a farinha!
O camarão seco, o jambu eo fubá
E faaaaaaz verão
E hoje é domingo
Dia que o povão… agita!
Se liga, se encontra, faz conexão, twita
Ou pra se dar bem,
Ou pra botar alguém na fita.
Bateria arrebenta, todo mundo comenta,
Que feito pimenta, o programa domingo esquenta.
Regina de janeiro, fevereiro e março…
Alô, alô…
Gravação
Gilberto Gil e Arlindo Cruz – tema de abertura do programa Esquenta, apresentado por Regina Casé, da Rede Globo (2011)
Comentário*
[A canção foi uma homenagem à atriz e apresentadora Regina Casé, fazendo referência ao seu programa dominical na Globo, na época. O título, “Regina de janeiro, fevereiro e março”, uma paráfrase de um verso de “Aquele abraço”, de Gil, chegou a ser cogitado para nome do programa, que acabou se chamando Esquenta. Embora conste como sendo uma parceria com Arlindo Cruz, Gil não se lembra de ter participado efetivamente da composição, nem sabia que figurava como coautor.]
“É tudo dele, do Arlindo. Eles só usaram ‘Aquele abraço’.”
Aí lhe deram parceria. — Foi. Acho que sim.
Pode ter sido por isso então: “Regina de janeiro, fevereiro e março! Alô, alô!” “Vamos dar parceria ao Gil”. — Eu me lembro que me chamaram pra fazer, mas aí veio tudo feito; então, eu não tive o que fazer.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Refestança
Gilberto Gil
Rita Lee
Quem pode dançar
Refestança, canta, canta, canta, canta
Quem pode cantar
Na hora, aqui agora, quando a banda tocar
Senhoras e senhores, crianças, vamos voar
Voar, voar, podem desatar os cintos de segurança
Que a esperança é vontade
Que a bonança é verdade
Que a verdade é amar
Refestança, dança, dança, dança, dança
Quem pode dançar
Refestança, canta, canta, canta, canta
Quem pode cantar
Só não pode quem não quiser
Ver que o céu da terra é azul
Ver que o verde é verde
Que a vida viaja
E com a vida a gente vai, vai, vai, vai
Refestança, dança, dança, dança, dança
Quem pode dançar
Refestança, canta, canta, canta, canta
Quem pode cantar
Gravação
Gilberto Gil e Rita Lee – Refestança (Ao Vivo), 1977 – Som Livre
Comentário*
Essa é consequência da ideia que surgiu de um trabalho conjunto com a Rita Lee. Ela adora “Refazenda”, que ela reputa como uma das músicas mais interessantes minhas e de todas que ela conheceu; é completamente fã da Refazenda; então eu fiz homenageá-la com “Refestança”. Nós estávamos nos juntando pra fazer uma festa, uma celebração rock ‘n’ rollesca.
O termo, o sentido da “festa” estava no ar, na onda, na moda.
— E era bem o significado mesmo do nosso encontro. Fazer uma festa com as nossas tribos, que estavam então associadas, ligadas. Ela era mutante, tinha sido mutante, era egressa de um contexto próximo ao Tropicalismo. Era companheira de estrada. Estava co meçando a carreira solo. Aí, pronto, nos juntamos pra fazer “Refestança”. “Refestança dança, dança…” Eu me lembro de ter feito sozinho a letra, mas pode ter tido sim, aqui, ali, a participação dela. E o sentido era mesmo de fazer o trabalho conjunto. Bem natural que tenha sido uma parceria.
A canção tem algum ponto de contato, em termos de atmosfera, com “Ê, povo, ê”, porque fala: “Senhoras e senhores, crianças, vamos voar/Voar, voar” etc. — É que ela versa sobre bem viver, bem-estar. Pertence a esse conjunto sígnico.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Refazenda
Gilberto Gil
Acataremos teu ato
Nós também somos do mato
Como o pato e o leão
Aguardaremos
Brincaremos no regato
Até que nos tragam frutos
Teu amor, teu coração
Abacateiro
Teu recolhimento é justamente
O significado
Da palavra temporão
Enquanto o tempo
Não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate
E anoitecerá mamão
Abacateiro
Sabes ao que estou me referindo
Porque todo tamarindo tem
O seu agosto azedo
Cedo, antes que o janeiro
Doce manga venha ser também
Abacateiro
Serás meu parceiro solitário
Nesse itinerário
Da leveza pelo ar
Abacateiro
Saiba que na refazenda
Tu me ensina a fazer renda
Que eu te ensino a namorar
Refazendo tudo
Refazenda
Refazenda toda
Guariroba
Gravações
Gilberto Gil – Refazenda, 1975 – Philips
Os Paralamas do Sucesso – Songbook Gilberto Gil, Vol. 2, 1992 – Lumiar Discos
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Gilberto Gil – São João (Ao vivo), 2001 – Warner Music
Nação Zumbi – Radiola NZ, Vol. 1, 2017 – Babel Produções Artísticas Ltda.
Gilberto Gil e Flor Gil – Gil & Flor – de Avô para Neta, 2020 – Gege
Flor Gil – Refazenda (single), 2020 – Gege
Trio Nordestino – Canta Gilberto Gil, 2020 – Biscoito Fino
Comentário*
“Refazenda” resultou de uma justaposição de nonsenses. Começou com um brainstorm com sons: fui aleatoriamente escolhendo palavras que rimassem e cheguei a um embrião interessante — um desses troncos de árvores tronchas sobre os quais o cinzel dos artistas populares vai trabalhar para fazer esculturas loucas, à la Antônio Conselheiro, do Mário Cravo, nascida de um tronco com dois galhos de braços abertos. O esboço era maior e muito mais absurdo: não tinha sentido nenhum! Aos poucos fui criando sentidos parciais a certas frases, até desejar um sentido geral para todas.
Os versos foram feitos antes da música, obedecendo a um ritmo que eu tinha na cabeça. Para o primeiro, escolhi o alexandrino, um dos preferenciais do cantador nordestino, pois queria a priori uma canção com esse direcionamento country. [Na transcrição, acabamos optando por dividir o alexandrino, a que Gil se refere, em dois versos, sendo o segundo uma redondilha maior, também de largo uso nos gêneros de canção do Nordeste e na poesia popular da região.]
“Abacateiro, acataremos teu ato”. — Na época pensaram que eu me referia à ditadura militar (o verde da farda) e ao ato institucional, o que nem me passou pela cabeça. O que me veio mesmo foi a natureza em seu contexto doméstico, amansada, a serviço da fruição — daí a ideia de pomar e das estações. “Refazenda” é rememoração do interior, do convívio com a natureza; reiteração do diálogo com ela e do aprendizado do seu ritmo.
Linguagem transgressiva. — O período em que compus a canção é permeado pelo nonsense ou o que o tangenciasse; por um despudor audacioso de brincar com as palavras e as coisas; por um grau de permissibilidade, de descontração, de gosto pela transgressão do gosto. É uma fase muito ligada aos estados transformados de consciência, pelas drogas, e a consequente multiplicidade de sentidos e não sentidos.
Guariroba. — Nome de uma palmeira do Planalto Central, a palavra dava nome também a uma fazenda que um grupo de amigos (Roberto Pinho, Pontual e outros) tinha a uns cem quilômetros de Brasília. Chegou-se a pensar em criar lá uma comunidade alternativa, onde nos juntássemos todos com nossas famílias. Não deu certo, e a fazenda foi vendida.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Refavela
Gilberto Gil
A refavela
Revela aquela
Que desce o morro e vem transar
O ambiente
Efervescente
De uma cidade a cintilar
A refavela
Revela o salto
Que o preto pobre tenta dar
Quando se arranca
Do seu barraco
Prum bloco do BNH
A refavela, a refavela, ó
Como é tão bela, como é tão bela, ó
A refavela
Revela a escola
De samba paradoxal
Brasileirinho
Pelo sotaque
Mas de língua internacional
A refavela
Revela o passo
Com que caminha a geração
Do black jovem
Do black-Rio
Da nova dança no salão
Iaiá, kiriê, kiriê, iáiá
A refavela
Revela o choque
Entre a favela-inferno e o céu
Baby-blue-rock
Sobre a cabeça
De um povo-chocolate-e-mel
A refavela
Revela o sonho
De minha alma, meu coração
De minha gente
Minha semente
Preta Maria, Zé, João
A refavela, a refavela, ó
Como é tão bela, como é tão bela, ó
A refavela
Alegoria
Elegia, alegria e dor
Rico brinquedo
De samba-enredo
Sobre medo, segredo e amor
A refavela
Batuque puro
De samba duro de marfim
Marfim da costa
De uma Nigéria
Miséria, roupa de cetim
Iaiá, kiriê, kiriê, iáiá
Gravações
Gilberto Gil – Refavela, 1977 – Philips
Gilberto Gil – Quanta Gente Veio Ver (Ao Vivo), 1998 – Warner Music
Gilberto Gil – Bandadois (Ao Vivo), 2009 – Gege
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases (Ao Vivo), 2018 – Gege
Comentário*
Em 77, eu fui participar do Festac, festival de arte e cultura negra, em Lagos, na Nigéria, onde reencontrei uma paisagem suburbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas.
Para abrigar os 50 mil negros do mundo inteiro que para lá acorreram, tinha sido construída uma espécie de vila olímpica com pequenas casas feitas com material barato e um precário abastecimento de água e luz, que reavivou em mim a imagem física do grande conjunto habitacional pobre. “Refavela” foi estimulada por esse reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já houvesse o compromisso conceitual com o re para prefixar o título do novo trabalho, de motivação urbana, em contraposição a Refazenda, o anterior, de inspiração rural.
A esses fatores se somaram outros, locais: a mobilidade, por vezes difícil, outras vezes facilitada, dos negros cariocas na relação morro- -asfalto e o movimento da juventude black Rio, que se instalava propondo novos estilos de participação na questão da negritude no Brasil e no mundo, com mais atividade cultural e absorção de elementos do discurso e da luta negra da América e da África.
A dificuldade com que a história tem se defrontado para proporcionar o verdadeiro resgate da cultura e da natureza dos negros, exatamente pela manutenção reiterada da sua condição paupérrima; a coisa da “miséria roupa de cetim”, da “Belíndia” (Bélgica + Índia), esse binômio de disparidades — “Refavela” é sobre isso. A informação forte da música está nas duas primeiras estrofes; perto delas, o resto é ornamento.
“Preta Maria, Zé, João”. — “Preta Maria”: Preta Maria e Maria, as minhas filhas e da Sandra (Preta é de 74, Maria, de 76; era pequenininha na época). A música “antevê” José, meu filho, que nasceria em 91, e João, meu neto, em 90; “Zé, João”: brasileiros.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Refarm
Gilberto Gil
The Eternal Life is sending me
On the task of speaking to you
Words of paciency
I bring the lion
And the duck as country fellows
May they tell you many fairy tales
Avocato tree
Oh, avocato tree
The Eternal Life is knowing
How misleading technology
Has been to us, so far
We can see
Devastation in the forest
Desolation in the city
We can feel destruction in the air
Oh, avocato tree
Although the picture is so dark
And the blue sky is no longer blue
Oh, don’t be sad, and never
Let the dead leaves of Automn time
Be the only choice for you
Spring is coming
Somewhere in the future
In the Universal Vegetal Union
Avocato tree
Let our free wings
Fly together over lands
Of Rebirth in a Refarm
In a world of Fantasy
Refarm is a dream land
In Tennessee
Where they grow a dream
Avocato tree
[ inédita – Refazenda, de Gilberto Gil ]
Rebento
Gilberto Gil
O ato, a criação, o seu momento
Como uma estrela nova e o seu barato
Que só Deus sabe lá no firmamento
Rebento, tudo que nasce é rebento
Tudo que brota, que vinga, que medra
Rebento raro como flor na pedra
Rebento farto como trigo ao vento
Outras vezes rebento simplesmente
No presente do indicativo
Como a corrente de um cão furioso
Como as mãos de um lavrador ativo
Às vezes mesmo perigosamente
Como acidente em forno radioativo
Às vezes, só porque fico nervoso
Às vezes, somente porque eu estou vivo
Rebento, a reação imediata
A cada sensação de abatimento
Rebento, o coração dizendo: “Bata”
A cada bofetão do sofrimento
Rebento, esse trovão dentro da mata
E a imensidão do som
E a imensidão do som
E a imensidão do som desse momento
Gravações
Gilberto Gil – Realce, 1979 – Warner Music
Elis Regina – Elis, 1980 – EMI
Comentário*
Eu queria tratar da contemporaneidade, da sociedade pós-moderna. “Realce” era mais adequadamente sociológica para o título que eu buscava, como as canções-título de Refazenda e Refavela; eu queria uma canção-título que desse um dos perfis possíveis da sociedade em que vivemos. “Rebento” não dava conta disso. Era muito abstrata; sua reflexão era muito pessoal, sobre um tema muito poético.
Mas a letra apresenta alguns momentos em que eu penso que a aragem poética bate para mim com uma certa generosidade; fico mais poeta do que eu normalmente sou, ou mesmo do que gostaria de ser. Nesses momentos eu fico mais poeta, por força do próprio exercício; de tanto se estudar, aprende-se a poesia… Essa música me dá uma sensação de que o mundo poético me é acessível às vezes, de que eu posso alcançá-lo.
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999. “Já tinha feito Refazenda e Refavela e queria um terceiro ‘Re’. E a primeira opção que meio veio foi ‘Rebento’. Cheguei a pensar em chamar o disco assim, porque a ideia do rebento está muito bem descrita ali. Pelo menos, a que quis passar: a flor que medra da pedra; a força do cão enfurecido que arrebenta a corrente; o ser novo que nasce no vagido da nova criança; tudo que arrebenta e, mais ainda, que está contido na parte que mais me identifico: ‘Rebento, o coração dizendo: ‘Bata’/ A cada bofetão do sofrimento’. Quer dizer, a resignação: o ‘Let it Bleed’ dos Rolling Stones, no ‘deixa o coração sangrar’ do Caetano. O corte está ali e, mais do que tudo, está a realidade. A vida lhe cortou, lhe feriu e lhe esbofeteou, o sofrimento lhe trouxe a dor, seu coração e seu corpo doem ou seja lá o que for. ‘Mas espere resignado, espere e espere pela transmutação; pois toda dor se transmuta em prazer. Mas olhe, todo prazer se transmuta também em dor. Saiba que é dentro e é no eixo dessa polaridade que você balança, não tem jeito, está na condição do dual. Está na condição do humano, do seu corpo físico, e na condição dos sentidos e sentimentos e em todas as suas exigências existenciais’. ‘Rebento’ era para falar disso, desse ímpeto furioso do ser e da força irrecusável e irresistível da Luz. E para dizer de todo o nascimento e de tudo que está em todo nascimento e também no nascer da tragédia. Era por isso que eu queria que ‘Rebento’ fosse, no primeiro momento, o nome de um disco. Mas achei demasiadamente exigente pro movimento que queria dar, no sentido de ‘rua’, no sentido da mensagem que se dá ali na praça. E Realce acabou sendo um título mais adequado, pela qualidade do ‘ferir da luz’. ‘Realce’ podia substituir, com vantagens, a mensagem que ‘Rebento’ trazia. Mas, na verdade, elas são pares, gêmeas.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Realce
Gilberto Gil
O que a gente pode, pode
O que a gente não pode, explodirá
A força é bruta
E a fonte da força é neutra
E de repente a gente poderá
Realce, realce
Quanto mais purpurina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo
De real teor de beleza
Não se impaciente
O que a gente sente, sente
Ainda que não se tente, afetará
O afeto é fogo
E o modo do fogo é quente
E de repente a gente queimará
Realce, realce
Quanto mais parafina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo
De real teor de beleza
Não desespere
Quando a vida fere, fere
E nenhum mágico interferirá
Se a vida fere
Como a sensação do brilho
De repente a gente brilhará
Realce, realce
Quanto mais serpentina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo
De real teor de beleza
Gravações
Gilberto Gil – Realce, 1979 – Warner Music
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Gilberto Gil – Em Casa Com os Gil, 2022 – Gege
Gilberto Gil – Mundo Bita, 2023 – Mr. Plot – Mundo Bita
Comentário*
Por causa dos questionamentos com relação ao seu significado — a imputação de uma minoridade que ela teria dentro de minha obra, já que representaria uma escorregadela na facilidade do efeito pop —, a necessidade, que eu sinto, de fazer a defesa de uma canção que tem para mim um sentido profundo no meu trabalho e no processo de aprendizado que eu coloco como dado essencial da minha relação com o fato de fazer canções — de dizer coisas através de canções populares —, e que diz muito sobre quem eu sou como compositor e sobre o grau de exigência que me imponho para que minhas canções exprimam alguma coisa importante na minha vida.
“Realce” é de uma época em que eu me introduzira no campo da meditação, entendida como uma arte mais formal e rigorosa de pensar-se e refletir-se, e estava interessado em possíveis traduções da filosofia oriental para o idioma da canção, tendo resultado num dos concentrados das meditações que eu então fazia e sido resultado de um processo profundo e ruminante, um longo trabalho de elaboração e meditação, sendo ela mesma uma canção sobre o wu wei, termo chinês que significa “ação da não ação”, ou a impotência que se torna potência, ou o esgotamento dos contrários nas suas polaridades (um polo se esgota e inicia o que está contido no seu oposto) etc.
É nesse sentido uma canção ambiciosa e carregada de significados embutidos que vão sendo descobertos, como, na cebola, as camadas por debaixo das camadas.
A letra parte de um escopo geral que é falar do que, à época, eu chamava de “salário mínimo de cintilância a que têm direito todos os anônimos” nos terminais de metrô, nas arquibancadas dos estádios, nas discotecas. Esse lado Saturday Night Fever está propositalmente explicitado nos três pseudorrefrões, que funcionam para reiterar a macdonaldização da vida cotidiana nas grandes cidades, mas também para dar-lhe uma qualificação de profundidade que necessariamente também existe nessas coisas tão associadas à superficialidade. Por outro lado, cada uma das estrofes que antecedem os “refrões” remonta ao sentido de potência contido no wu wei.
Estrofe I; versos 1, 2 e 3. — Há uma ideia da força que remete às mudanças geológicas; a um revolver da natureza que se dá por si só. As grandes catástrofes das idades do universo passam como um trator por sobre a condição humana. Ao mesmo tempo, a fonte da força também está à disposição do que chamamos consciência, inteligência, vontade: Homo sapiens. Versos 4, 5 e 6. — O homem como combustível e energia do motor da natureza, parte e partí- cipe do moto-contínuo, cíclico-recorrente (o eterno retorno), de criação e destruição, anulação e afirmação, operado pela natureza na história e pela história na natureza. A relação dinâmica entre ambas e o homem como o corte.
II; 1, 2 e 3. — O interstício sutil entre a vontade e o resultado, o fazer e o não fazer. O fato de que tudo está “afeto”; de que, do ponto de vista quântico, digamos, a mínima partícula de emanação pensátil está “afeta”; de que o afeto pertence à totalidade do pulsar existencial das coisas, à dança de Shiva; e mesmo o sentir quieto ali naquele canto pode estar afetando uma estrutura qualquer de uma parte qualquer do universo. 4, 5 e 6. — O afeto, portanto, é fogo; portanto, se cuide — mas se descuide, também, do seu sentir; pois de todo modo ele é pleno, dono de si; ele trabalha no campo onde as bactérias se criam, os átomos se criam e os eventos se dão; e, mesmo entre as partículas, o que não é visível nem palpável ainda assim é e pertence ao intercâmbio das afeições amplas, universais.
III; 1, 2 e 3. — A autonomia plena da vida sobre nós e o imperativo da fatalidade de ter nascido e ter que morrer; ter que viver esse “alfômega” nascimento-morte, a grande questão colocada para nós. 4, 5 e 6. — De como a vida entra pelos olhos e é o ferir incondicional do brilho neles. Sob o Sol ou sob a Lua, a esteira de luz estendida sobre a superfície do mar será irremediavelmente captada pelos olhos abertos. A irredutibilidade do fenomenológico. O ser sendo ferido pelos estímulos externos aos quais os seus sentidos, todos, dão sentido; a natureza se fazendo linguagem através do homem.
A simples exposição dos versos pode não remeter de imediato a significados tão vastos, múltiplos e profundos, que, no entanto, estão engastados na intenção processual da canção; no porquê de ela ter sido feita. Eu não posso exigir de todo mundo a apreensão de todos esses sentidos, mas não posso aceitar a negação deles. Minha impressão é a de que, no âmbito das pessoas cultas e inteligentes, afeitas ao dimensionamento cultural encarregador das leituras, “Realce” não é tão hermética; lida sua letra com o mínimo de atenção, muitos dos seus significados logo se insinuam, e as portas para outras digressões possíveis se abrem.
Era o momento auge da música disco — aquela linfa, aquela liquefação pop depois da época rock, da época hippie, conceitualmente mais densa. Iniciando o processo de expansão geográfica das minhas atividades e vivenciando o cotidiano das pessoas comuns de vários lugares do mundo, eu desejava conciliar os lugares-comuns das pessoas desses lugares e trazer os elementos da cultura de massa contemporânea internacional em sua complexidade.
Por ter em mim os traços nítidos do criador marcado pelo compromisso com a banalidade, egresso de uma tradição cultural média brasileira, a da canção popular, eu me sentia parte integrante daquele fenômeno, a que vim a me referir como a “superfície do profundo” — onde o profundo não é captado como tal e só pode ser captado como superficial porque só está na superficialidade.
E é disso que falam “Realce” e outras canções minhas da época. Utilizando-se de elementos fáceis e flácidos, mas remetendo também aos sentimentos de elevação que cada simples ser pode e deve ter, elas trabalhavam para uma conciliação do conceito de sofisticado com o conceito de banal, contra o reducionismo cataloguista dos cânones clássico e popular e contra a ideia do estanque prevalecendo sobre a do osmótico e interpenetrante.
Diziam: “Ah, o brilho! Está se referindo à cocaína!”. Nunca me passou cocaína pela cabeça, mas é evidente que, no campo da abrangência da canção, você tinha coisas como Saturday Night Fever como elementos, e que a cocaína também estava ali; tudo estava: sexo, drogas e rock ‘n’ roll, o prazer do hedonismo — assim como o prazer do ascetismo. Cortes muito claros entre os dois lados; Ocidente-Oriente.
“Realce” custou muito tempo e aflição para ser feita pelas muitas funções sobrepostas com as quais ela se comprometeu de antemão, a começar pela de fecho da trilogia dos re — que tinha em Refazenda o primeiro e em Refavela o segundo ponto —, em substituição a “Rebento”, samba que fiz antes e que acabou estando no mesmo álbum, mas que não dava conta do conceito do álbum, que incluía a maré rasa da efervescência disco e o poço fundo da contemplação espiritual. (Minhas músicas têm quase sempre um estímulo conceitual, que é também quase sempre o do disco de que fazem parte.)
Eram muito apriorísticas as proposições e o alcance de “Realce”. Sentidos novos iam sendo exigidos e agregados ao longo do tempo da sua realização, e a cada dia a música ficava mais difícil. Começada aqui, onde anotei as primeiras ideias, soltas, ela tomou umas dez páginas de esboços, e eu só a terminei após dois meses de excursão pelos Estados Unidos, quando já estava gravando o disco, lá.
A expressão título surgiu por causa da Lita Cerqueira, fotógrafa, negra, baiana, vinda de Santo Antônio, meu bairro, frequentadora da minha casa e da casa de Caetano, pessoa das nossas relações íntimas e com muitos interesses comuns a nós na época. Ela falava muito em “realce”, “realçar”…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Rancho da Rosa Encarnada
Gilberto Gil
Torquato Neto
Geraldo Vandré
Nas cantigas mais antigas
Que o meu Rancho da Rosa Encarnada escolheu pra cantar
Pelas calçadas enfeitadas se vê
Tanta gente pra nos receber
Somos cantores
Cantamos as flores
Cantamos amores
Trazemos também
A notícia da grande alegria que vem
Pra durar mais que um dia
E ficar como antigas cantigas
Que não morrem
Que não passam jamais
Como passam sempre os carnavais
Rancho da Boa Vinda
Gilberto Gil
Torquato Neto
De dizer por que é que vem
Se é de paz e se é de amor
Pode entrar, que eu sou também
Se a tristeza já deixou
Bem pra lá do meu portão
Pode entrar, pode dispor
Faça o rancho do meu coração
Tanto amor tenho pra dar
Só que não achei pra quem
Se você vem pra passar
E traz tristezas também
Melhor então nem entrar
Melhor seguir seu caminho
Que de triste neste mundo
Já me basto a mim sozinho