Músicas
Duplo sentido
Gilberto Gil
Vim de casa porque estava insuportável pensar
Dessa esquina pelo menos posso perceber o duplo sentido
O duplo sentido do tráfego e não me incomodar
Dessa esquina pelo menos posso ver o movimento dos carros
Vim de casa porque estava insuportável falar
Por telefone (tão distante) com pessoas que eu não posso ver
Por telefone com pessoas que eu não posso pegar
Dessa esquina pelo menos posso perceber
O duplo sentido de tudo
Em todos que vão a diversos lugares
Primeiros, terceiros, oitavos andares
Vigésimos modos de andar
Dessa esquina pelo menos posso perceber
O duplo sentido de tudo
Na falta de unanimidade
Uns vêm pra cidade como eu
Outros voltam correndo pro lar
Vim de casa porque estava insuportável pensar
Na saudade, na saúde, na fé
Dessa esquina pelo menos posso ver como é
E não me incomodar
O duplo sentido na rua é tão claro
Não há que duvidar
O duplo sentido na rua é tão claro
O apito do guarda é que dá
Gravações
Tetê da Bahia – Tetê da Bahia, 1973 – Continental
Gilberto Gil – Cidade do Salvador Vol. 2, 1973 – Universal Music
Gilberto Gil – Ao Vivo na USP, 1973 – Gege
Gilberto Gil – Umeboshi – ao vivo, 1973 – Gege
Comentário*
Roberto Carlos tinha me pedido uma música naquele ano, e eu cheguei a pensar nele quando comecei a fazer ‘Duplo sentido’. Mas não a mandei para ele (as outras duas que fiz para ele, ‘Se eu quiser falar com Deus’ e ‘Nova era’, eu mandei): deve ter sido por falta de oportunidade; nessa época, eu não cuidava tanto assim do atendimento ao trabalho.
A canção faz uso da expressão que lhe dá título por causa das circunstâncias da época, dos interesses em desacordo, dos desencontros entre os sonhos de partes da sociedade brasileira, da contrariedade entre um projeto social sonhado, a constituição de uma república de perfil socialista, e o golpe, a ditadura.
Ao mesmo tempo, também por causa da situação física do tráfego, das duas mãos; o trânsito que vai, o trânsito que vem – essa ideia de destinos contrários conciliados o tempo todo, na cidade inteira; todos os trânsitos que vêm e que vão estão servindo à mesma causa de levar e trazer as pessoas aos lugares: todo mundo precisa da duplicidade do sentido das coisas, senão não funciona: uma mão única não funciona, ninguém vai a lugar nenhum, ou pelo menos todo mundo só pode ir a um lugar só, não pode voltar; somente o duplo sentido dá conta da complexidade mínima exigida pela vida. Então a música tem essa intenção, esse sentido de dar sentido ao duplo sentido das coisas como algo essencial.
De novo há a presença do yin-yang. De novo uma música minha é composta por causa do princípio único, da macrobiótica, do taoísmo; dessas coisas que eram objeto de interesse do meu trabalho. ‘Duplo sentido’ é mais uma canção minha sobre isso. É claro que cada uma tem suas características próprias; essa leva a ‘coisa’ para a cidade, para o trânsito, e eu estou postado numa esquina.
A canção passa a ideia de que a trama da cidade é auto explanatória e que explica a complexidade psicológica da vida humana nela; os ires e vires, o se perder por aí, a solidão.
‘Primeiros, terceiros, oitavos andares/ Vigésimos modos de andar’: ‘andares’ e ‘andar’: há jogos interessantes com palavras, bem no meu estilo, a poesia do jogo dos reflexos de espelhos, das palavras se espelhando. ‘Vim de casa porque estava insuportável pensar/ Na saudade, na saúde, na fé’: eu me lembro que um ou dois dias antes eu tinha tido um principiozinho de disenteria, e estava num estrito regime de arroz e umeboshi.
‘Duplo sentido’ foi composta em São Paulo. Eu estava num hotel, em que ficávamos muito, na avenida Ipiranga depois da avenida São João, na direção da Major Sertório.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Duelo do garfo e da faca
Gilberto Gil
Outras gravações:
“Brasil ano 2000”, vários, Universal
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr.
Duas sanfonas
Gilberto Gil
Milton Nascimento
É tanta volta que dá
Que sem esforço, nem nada
Vou descobrindo o que há
Velhas notas, canções novas
Vão renascendo meninas,
Vão renascendo meninos
pra garotada cantar
Quebram barreiras de idade
Juntam as vozes do povo
Trazem a felicidade
Haja alegria ou saudade
Dançam bem juntos, sozinhos
Vão espalhando carinho
Os sons são todos tão seus
Como um presente de Deus
Salve o sol dessas sanfonas
Que pra essa vida empurrou
A mim e a meu companheiro
Que o destino juntou
Drão
Gilberto Gil
O amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar nalgum lugar
Ressuscitar no chão
Nossa semeadura
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer!
Nossa caminhadura
Dura caminhada
Pela estrada escura
Drão
Não pense na separação
Não despedace o coração
O verdadeiro amor é vão
Estende-se, infinito
Imenso monolito
Nossa arquitetura
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer!
Nossa caminha dura
Cama de tatame
Pela vida afora
Drão
Os meninos são todos sãos
Os pecados são todos meus
Deus sabe a minha confissão
Não há o que perdoar
Por isso mesmo é que há
De haver mais compaixão
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Se o amor é como um grão!
Morrenasce, trigo
Vivemorre, pão
Drão
Gravações
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Djavan – Songbook Gilberto Gil, Vol. 3, 1992 – Lumiar Discos
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Caetano Veloso – Prenda Minha Ao Vivo, 1998 – Universal Music
Gilberto Gil e Arthur Moreira Lima – MPB Piano Collection, 1999 – Sony Music
Armandinho – A voz do bandolim: Caetano & Gil, 2001 – Visom Digital
Jura Figueiredo – Sucessos de barzinho, vol. 1, 2003 – Somax
Djavan – Perfil, 2006 – Som Livre
Glaucia Nasser – Bem demais, 2007 – Tratore
Rafael Greyck – Luau 3, 2009 – JVR Produções
Preta Gil, Gilberto Gil e Fran – Noite Preta Ao Vivo, 2010 – Blacktape
Gilberto Gil, Ivete Sangalo e Caetano Veloso – Especial Ivete, Gil e Caetano, 2012 – TV Globo
The Voice Brasil/ Lui Medeiros – Drão (single), 2014 – TV Globo
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Dois Amigos, um Século de Música (Ao Vivo), 2015 – Gege e Uns Produções Artísticas
Chico Costa – Melody Sax, 2017 – Seven Music
Guinga, Lucila Manzoli, Vitoria Manzoli – Gilberto Gil Hoje, 2019 – Tratore
Orquestra Albatroz – Música Ambiente, Vol. 2, 2019 – Albatroz Brasil
Milton Nascimento – Drão (single), 2020 – Nascimento Música
Hamilton de Holanda e Mestrinho – Canto da Praya (Ao vivo), 2020 – Deck
Elza Soares e João de Aquino – Elza Soares & João de Aquino, 2021 – Deck
Gilberto Gil – Em casa com os Gil, 2022 – Gege
Comentário*
Há canções de maturação, que começam por uma pílula de criação – por uma gota que colore a água no jarro e vai decantando; um dia você pega aquele precipitado lá no fundo e trabalha nele. É um modo; Expresso 2222, por exemplo, foi feita assim. Mas há canções que demandam esforço concentrado por considerável período de tempo de realização intensiva. Drão está entre essas.
Sua criação apresentou altos graus de dificuldade porque ela lidava com um assunto denso – o amor e o desamor, o rompimento, o final de um casamento; porque era uma canção para Sandra [apelidada Drão – daí o título da música] – e para mim. ‘Como é que eu vou passar tanta coisa numa canção só?’, eu me perguntava. Além disso, havia a exigência de excelência, de que o versar tivesse capricho. Então demorou dias e dias de trabalho.
Eu me lembro de estar sentado no chão, anotando frases no caderno, com o violão do lado, e de repente sentir o sufoco do coágulo da criação, e ao mesmo tempo a iminência da explosão da via criativa, e não aguentar, saindo dali e indo para o quarto me deitar e deixar, então, aquele coágulo se dissolver, criando filetes que se encaminhavam pra aqui e pra ali… Aí o cérebro e o coração entumeciam, algumas ideias fluíam, e dois, três ou quatro versos saíam. Satisfeito, eu fechava o caderno e ia embora cuidar da vida. Saía, passava o dia fazendo outras coisas, chegava de noite eu retomava; ficava a madrugada toda de novo.
Outra exigência que eu me colocava era de não me precipitar. Eu queria que o fazer, a prática, o empirismo da realização fossem observados pelo meu ser ali à distância: eu tinha que contemplar o feitio da canção. Ao lado do esforço, da tensão concentrada, tinha que haver a descontração, o relaxamento concentrado – as duas coisas, e todas essas exigências sobrepostas determinando o modo de compor a canção.
Fazer música é uma loucura quando você se coloca tantos problemas.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Dos pés à cabeça
Gilberto Gil
Meu corpo, onde estão os meus pés
Meus pés, onde está o chão
Ou então
Onde a cabeça
Com seu pensar em vão
Eu estou onde tudo esteja
Ou seja
Onde quer que esteja em mim
O céu, o chão, o não, o sim
A vontade de Deus
O meu corpo todo, eu acho
Vale quanto pesa e sente
Como pensa e é imenso
Como deve ser o vôo
Da terra pra lua
E a noite da lua
E a imensa viagem do dia do sol
E a continuação da imensidão
Pelo corredor da enfermaria
Daquele lugar aonde eu ia
Visitar meu namorado internado
Dado por louco
Por pouco, pouco, muito pouco
Pouco mesmo
Gravações
Maria Bethânia – A cena muda, 1974 – Philips
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao Vivo), 1974 – Gege
Comentário*
Interessante, na primeira estrofe, a ideia do corpo como habitat do eu, locus da pessoa – ‘corpo’ nessa acepção mais moderna, contemporânea, da palavra: o corpo como grande ente político –, e a inversão inesperada de sentido, dos pés para a cabeça, do físico para o mental.
E, no final, a súbita erupção de um personagem que surge para humanizar a canção, fazendo-a sair da referência auto subjetiva, mudando, assim, novamente, a direção da poesia: do abstracionismo cósmico para a concretude física, real, de um corredor, de um lugar da vida, do cotidiano, um corredor de uma enfermaria, um lugar de tratamento, de confinamento, de exclusão, de solidão: um hospício [internamentos, sobretudo por uso de droga, eram muito comuns na época].
No fecho, eu aludo a uma daquelas expressões marcantes do [locutor esportivo] Fiori Giglioti, que ficavam nos ouvidos dos aficionados do futebol: ‘Por pouco pouco, muito pouco, pouco, muito pouco, pouco mesmo’ (ele dava ainda mais uma voltinha, girava mais uma vez a expressão). Eu a usei. A música foi feita para Maria Bethânia.
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Dono do pedaço
Gilberto Gil
Waly Salomão
Antonio Cicero
Não sou tatu, não
Não sou nem do mato
Quando eu ganho a rua
Eu ganho corpo
Nada eu acho chato
Gingo, tiro chinfra
Dono do pedaço
Escrevo e driblo amor e dor
Soberano, traço
Quem eu quero, eu sei ser
Quadro, giz e apagador
Eu e meus amigos
Temos nesta vida
Poderosos aliados
Cor, calor, sabor da rua
E de repente
Um coração que eu já fiz
Que eu já fiz
Tão feliz
Dona desta canção
Gilberto Gil
Dona desta canção
Dona do meu coração
Só você pode me dar
Asas
Asas da imensidão
Asas da imaginação
Pro meu coração voar
Pássaro vou
Fim de cada ilusão
Buscar o meu ninho em ti
Toda manhã
Novamente voar
Nova ilusão
Domingou
Gilberto Gil
Torquato Neto
Como nunca jamais se iluminou
São três horas da tarde, é domingo
Na cidade, no Cristo Redentor – ê, ê
É domingo no trolley que passa – ê, ê
É domingo na moça e na praça – ê, ê
É domingo, ê, ê, domingou, meu amor
Hoje é dia de feira, é domingo
Quanto custa hoje em dia o feijão
São três horas da tarde, é domingo
Em Ipanema e no meu coração – ê, ê
É domingo no Vietnã – ê, ê
Na Austrália, em Itapuã – ê, ê
É domingo, ê, ê, domingou, meu amor
Quem tiver coração mais aflito
Quem quiser encontrar seu amor
Dê uma volta na praça do Lido
O-skindô, o-skindô, o-skindô-lelê
Quem quiser procurar residência
Quem está noivo e já pensa em casar
Pode olhar o jornal paciência
Tra-lá-lá, tra-lá-lá, ê, ê
O jornal de manhã chega cedo
Mas não traz o que eu quero saber
As notícias que leio conheço
Já sabia antes mesmo de ler – ê, ê
Qual o filme que você quer ver – ê, ê
Que saudade, preciso esquecer – ê, ê
É domingo, ê, ê, domingou, meu amor
Olha a rua, meu bem, meu benzinho
Tanta gente que vai e que vem
São três horas da tarde, é domingo
Vamos dar um passeio também – ê, ê
O bondinho viaja tão lento – ê, ê
Olha o tempo passando, olha o tempo – ê, ê
É domingo, outra vez domingou, meu amor
Outras gravações:
“Gil, Chico e Veloso por Claudette Soares”, Claudette Soares, Universal Music
“Personalidade – Gilberto Gil”, Gilberto Gil, Novodisc Mídia Digital 2013
“Gilberto Gil”, Gilberto Gil, Polygram 1998
“20 grandes sucessos da tropicalia”, Gilberto Gil, Polygram 1999
“1968”, Gilberto Gil, Universal Music 1982
“Gilberto Gil e Claudete Soares”, Polygram 1968
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Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1968), 1968 – Philips
Gilberto Gil e Rita Lee – Refestança (Ao Vivo), 1977 – EMI Records
Gilberto Gil – Em Concerto, 1987 – Gege
Hermeto Pascoal e Margareth Menezes – Songbook Gilberto Gil, 1992 – Lumiar Music
Gilberto Gil – Concerto de cordas e Máquinas de ritmo (Ao Vivo), 2012 – Biscoito Fino
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois Amigos, um Século de Música (Ao Vivo), 2015 – Uns Produções Artísticas e Gege
Comentário*
Montar algo diferente, partindo de elementos regionais, baianos, para o festival da TV Record: esse era o projeto de Gil ao começar a pensar a canção. “Daí a ideia”, conta ele, “de usar um toque de berimbau, de roda de capoeira, como numa cantiga folclórica. O início da melodia e da letra da música já é tirado desses modos. Com a caracterização do capoeirista e do feirante como personagens, eu já tinha os elementos nítidos para começar a criação da história.”
“Algumas pessoas pensam que rima é só ornamento, mas a rima descortina paisagens e universos incríveis; de repente, você se depara no lugar mais absurdo. Eu, que a procuro primeiro na cabeça, no alfabeto interno – mas também vou ao dicionário -, vejo três fatores simultâneos determinantes para a escolha da rima: além do som, o sentido e o necessário deslocamento.
“Em Domingo no Parque, pra rimar com ‘sumiu’, eu cheguei à Boca do Rio (bairro de Salvador). E quando eu pensei na Boca do Rio, me veio um parque de diversões que eu tinha visto, não sei quantos anos antes, instalado lá, e que, desde então, identificava a Boca do Rio pra mim: desde aquele dia, a lembrança do lugar vinha sempre junto com a roda gigante que eu tinha visto lá. Aí eu quis usar o termo e anotei, lateralmente, no papel: ‘roda gigante’. Ela ia ter que vir pra história de alguma maneira, em instantes.
“Era preciso também fazer o João e o José se encontrarem. O João não tinha ido ‘pra lá’, pra Ribeira; tinha ido ‘namorar’ (pra rimar com ‘lá’). Onde? Na Boca do Rio, pra onde o José, de outra parte da cidade, também foi. No parque vem a conformação dos caracteres psicológicos dos dois. Um, audacioso, aberto, expansivo. O outro, tímido, recuado. Esse, louco por Juliana mas sem coragem de se declarar, vivia há tempos um amor platônico, idealizando uma oportunidade pra falar com ela. Naquele dia ele chega ao parque e a encontra com João, que estava ali pela primeira vez e não a conhecia, mas já tinha cantado Juliana e se divertia com ela na roda gigante. É a decepção total pro José, que não resiste.
“Era só concluir. A roda gigante gira, e o sorvete, até então sorvete só, já é sorvete de morango pra poder ser vermelho, e a rosa, antes rosa só, é vermelha também, e o vermelho vai dando a sugestão de sangue – bem filme americano -, e, no corte, a faca e o corte mesmo. O súbito ímpeto, a súbita manifestação de uma potência no José: ele se revela forte, audaz, suficiente. A coragem que ele não teve para abordar Juliana, ele tem para matar.”
“A canção nasceu, portanto, da vontade de mimetizar o canto folk e de representar os arquétipos da música de capoeira com dados exclusivos, específicos: com um romance desse, essa história mexicana. Está tudo casado.”
“Domingo no Parque, como Luzia Luluza e outras do mesmo período, foi feita no Hotel Danúbio, onde eu morei durante um ano, em São Paulo. Nana [a cantora Nana Caymmi, segunda mulher de Gil] dormia ao meu lado. Nós tínhamos vindo da casa do pintor Clovis Graciano – amigo de Caymmi -, onde eu tinha rememorado muito a Bahia e Caymmi. Eu estava impregnado disso, e por isso saiu Domingo no Parque: por causa de Caymmi, da filha dele, dos quadros na parede. A umas duas da manhã fomos para o hotel e eu fiquei com aquilo na cabeça: ‘Vou fazer uma música à la Caymmi, fazer de novo um Caymmi, Caymmi hoje!’ Peguei papel e violão e trabalhei a noite toda. Já era dia, quando eu terminei. De manhã, gravei.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Doida por uma folia
Gilberto Gil
Mania de festa
Quando me falta alegria
O dia não presta
A noite protesta
E a vida se afasta de toda magia
Toda magia, ô
Toda magia
Dona do meu nariz chato
Do meu prato cheio
Quando desato o sapato
Descalço o receio
Começa o recreio
No meio da roda de samba, mulato
Samba, mulato, ô
Samba, mulato
Gandaia, gandaia, gandaiaiá
Recreio, recreio, recreioiô
Folia, folia, foliaiá
Só creio, só creio no meu tambor
No meu batuque, no meu fuzuê
No meu amor por você
No meu amor por você
No meu amor
Gravação
Marinês – Tô chegando, 1986 – RCA
Comentário*
Feita pra Marinês, na persona dela.
A letra apresenta um labor e um jogo de palavras e de ideias interessantes. Como nas rimas entre “receio” e “recreio”, com um termo diferindo do outro apenas pela interposição de um “r” no meio do segundo; e entre “presta” e “protesta”, com a diferença apenas de um “o” e um “t” que se interpõem também no segundo. — Sim, isso é criativo do ponto de vista linguístico. Esse era um tempo em que eu gostava de jogar com as palavras, mas trazendo tudo isso pro contexto de compreensão mediana da música popular, tendo essa dimensão e explorando o lado semiótico da poesia popular, da canção popular. Eu fazia muito isso. Ou seja, tinha uma ousadia, um gosto pela ousadia do garimpo no léxico e ao mesmo tempo um cuidado no sentido de que esse garimpo fosse mais de pedregulhos de que de pedras preciosas.
Mas esses pedregulhos brilham. — Sim. Mas tudo isso era pra ser usado na obra simples, popular. Não era um material a ser lapidado, não era carente de lapidação. Era pra ser usado na forma bruta da extração inicial. A memória que eu tenho do ímpeto poético é essa. Era uma época em que eu gostava de encontrar palavras e modos de concatenação, de rimas etc., interessantes, mas visando a uma compreensão que fosse imediata. Pra que as pessoas entendessem um linguajar; mais um linguajar que uma linguagem.
Isso me lembra uma citação que o poeta e letrista Antonio Cicero fez de uma afirmação do poeta inglês W. H. Auden, de que o que define o poeta é justamente esse gosto, essa paixão por lidar com as palavras, e não — ou mais do que — um sentimento de que tem coisas importantes a dizer. Eu vejo isso transposto para o linguajar poético de grande comunicabilidade da canção popular numa letra como essa (a exemplo de muitas outras suas). — Exatamente isso. A ambição era essa.
Do culto a Marinês. — Ela era aquela cabocla, mulata, mestiça, nordestina. Pernambucana. Casada com Abdias, zabumbeiro, e mãe do Marcos, um belo músico, acordeonista, formando uma família de músicos locais. Maravilhosa. Uma predecessora das grandes cantoras posteriores de música nordestina. Grande intérprete de João do Vale, das coisas picarescas dele. Fez uma carreira extraordinária. Eu comecei a curti-la na Bahia, quando ela começou, logo depois dos grandes: primeiro veio Gonzaga, depois Jackson e aí todos os que orbitavam naquele universo, como ela, cantando coisas como “Seu Malaquia” [“Peba na pimenta”], de João do Vale, inaugurando esse filão hiperjocoso, picaresco, de duplo sentido, que prosperou muito na música nordestina. Ela apresenta esse dado inaugural. Cantava bonito, tinha aquela voz típica, forte, nordestina. Marinês e Sua Gente era o nome do conjunto dela com o marido; já no último quadrante da vida dela, o filho Marcos foi tocar com ela. Figura fundamental.
Você cultuando, sempre que pode, as figuras importantes do cancioneiro do Nordeste. — Ah, sem dúvida. Paixão absoluta.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Doente, morena
Gilberto Gil
Duda Machado
Leva a chave
Me deixa trancado
O dia inteiro
Não ligo
Deito sobre os trilhos
E vejo o trem passar
Entre brinquedos, cigarros
O Tesouro da Juventude
Em não sei quantos volumes
E quando canto
Deixo a imaginação voar
Mas ontem à noite
A mão sobre meus cabelos
Ela me disse:
“Meu bem, não tenha medo
No verão que vem
Nós vamos à praia”
Dó-ré-mi
Gilberto Gil
Ré ré recoste o rostinho
Mi mi minhalma te embala
Fá fá falando baixinho
Sol sol de minha vida
Lá lá lá vem o luar
Si si se você não adormecer
Belas coisas não irá sonhar
Dó – dormir
Ré – relembrar
Mi – milhões de beijos, muitos anjos a cantar
Fá – farão você cair do céu
Sol – soltando os braços para me encontrar
Si – se você não adormecer
Coisas tão belas não irá sonhar
Doce de carnaval (Candy all)
Gilberto Gil
Pra que eu fosse batizado
Na religião pagã do carnaval
Eu pedi que mãe me desse um doce
Pra que o batizado fosse
Mais gostoso do que o batizado com sal
Eu tive uma febre aquele dia
De alegria, de euforia, de prazer de viver
E coisa e tal
Pai me trouxe, mãe me deu um doce
Fosse lá qual fosse o doce
Nunca, nunca, nunca mais fiquei normal
Nunca, nunca, nunca, nunca, nunca
Nunca mais perdi o gosto do doce de carnaval
Nunca, nunca, nunca, nunca, nunca
Nunca mais perdi o bloco que desce do Candeal
Fui batizado com doce
Doce no lugar do sal
Papapai cedo me trouxe
Pra brincar o carnaval
Mamamãe me deu um doce
Doce com mel e etcetera
Com mel etcetera e tal
Ô ô ô
Ô ô ô
Ô ô ô
Do Candeal eu sou
Pro carnaval eu vou
Gravação
Gilberto Gil – Quanta gente veio ver, 1998 – Warner Music
Do Japão
Gilberto Gil
Quero uma máquina de filmar sonhos
Pra registrar nas noites de verão
Meu corpo astral leve, feliz, risonho
Voando alto como um gavião
Que filme dentro de minha cabeça
Todo pensamento raro que eu mereça
Toda ilusão a cores que apareça
Toda beleza de sonhar em vão
Do Japão
Quero também um trem-bala-de-coco
Pra atravessar túneis do dissabor
Quero um microcomputador barroco
Que seja louco e desprograme a dor
Visitar um templo zen-desbundista
Conversar com um samurai futurista
Que me dê pistas sobre o sol-nascente
Que me oriente sobre o novo amor
Do Japão
Quero uma gueixa que em poucos minutos
Da minha queixa faça uma paixão
Descubra novos sentimentos brutos
E, enfeitiçada, tome um avião
E a gente vá viver num outro mundo
Pra lá do Terceiro ou Quarto ou Quinto Mundo
Onde a rainha seja uma açucena
E a divindade, a pena do pavão
Gravação
Gilberto Gil – O eterno Deus mu dança, 1989 – Warner Music
Comentário*
“Fui ao Japão em 86 e me impressionei com aqueles bairros com quarteirões inteiros de lojas de componentes eletrônicos, como se fossem grandes feiras com barracas de gravadores, televisores e outros aparelhos. Foi quando me veio a ideia de fazer essa música, estimulada pela miuçalha eletrônica japonesa e pelo significado do país como potência tecnológica, mas querendo um avanço mais para dentro da demanda profunda, existencial.
Há algum tempo atrás, eu li uma notícia de que daqui a vinte anos pretende-se ligar o cérebro ao computador, para levar o cérebro a estimular diretamente o computador e vice-versa. ‘Do Japão’ começou com a pergunta: até onde irá o avanço tecnológico? Numa linha visionarista, a canção é um delírio sobre a possibilidade de contribuição da tecnologia para o próprio fundamento da visão existencial, a visão de dentro.
Daí a ‘invenção’ da câmera de filmar sonhos. Dela, a letra vai para o ‘trem-bala-de-coco’ (eu tinha viajado em um trem-bala durante a minha estada lá), passa pelo ‘microcomputador barroco’ e chega ao samurai e à gueixa, saindo do campo das contribuições do mundo da tecnologia industrial para o das tecnologias do espírito japonês, para a alma japonesa. Uma fantasia zen-desbundista.
No final, a letra faz um súbito deslocamento, indo da referência a coisas e mundos palpáveis e concretos para a ideia da pena de pavão como divindade e da açucena como rainha. Aqui, a sugestão é já de uma sociedade trans-humana e de um estágio posterior ao do grande avanço técnico, no qual instala-se um mundo regido por signos do mundo vegetal e animal, mas mantendo-se as conquistas tecnológicas.
A canção tenta condensar tudo isso no seu caroço poético. É bem realizada e, musicalmente, interessante. Uma vez um menino, saindo de um show, disse assim: ‘ ‘Do Japão’ é uma música muito engenhosa!’ Tinha que ser.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Divino, maravilhoso
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Ao dobrar uma esquina
Uma alegria
Atenção, menina
Você vem?
Quantos anos você tem?
Atenção
Precisa ter olhos firmes
Pra este sol
Para esta escuridão
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino, maravilhoso
Atenção para o refrão:
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção
Para a estrofe, pro refrão
Pro palavrão
Para a palavra de ordem
Atenção
Para o samba-exaltação
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino, maravilhoso
Atenção para o refrão:
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção
Para as janelas no alto
Atenção
Ao pisar o asfalto, o mangue
Atenção
Para o sangue sobre o chão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Outras gravações:
“Páginas do mar”, Daniela Mercury, BMG
“Gal Costa”, Gal Costa, Philips
“Ensaio”, Gal Costa, Trama
“Graganta Profunda”, Graganta Profunda, CID
“Songbook Gilberto Gil”, Leila Pinheiro e Victor Biglioni, Lumiar
“Vange Leonel”, Vange Leonel, Sony Music
“DVD clipes Caetano Veloso”, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, Universal Music 2012
“50 anos da música brasileira”, Chicas, Biscoito Fino 2011
“Em tempo de crise nasceu a canção”, Chicas, Biscoito Fino 2009
Daniela Mercury, BMG 2004
“Nua voz Credicard”, Daniela Mercury, Paginas Do Mar 2004
“Classica”, Daniela Mercury, Paginas Do Mar 2005
“Acústico – Daniela Mercury”, Daniela Mercury, Paginas Do Mar 2005
“A música de Gilberto Gil”, Gal Costa, Fontana/Polygram 1977
“T.s. Os Dias Eram Assim”, Gal Costa, Som Livre 2017
“O cordão da liberdade”, Gal Costa, Philips 1981
“Best of tropicalia”, Gal Costa, Polygram Music 1981
“20 grandes sucessos da tropicalia”, Gal Costa, Polygram Music 1999
“A arte de Gal Costa”, Gal Costa, Polygram Music 1988
“Gal costa”, Gal Costa, Polysom Comércio 2014
“O melhor dos festivais – cd 1”, Gal Costa, Sigla 2004
“Do tropicalismo aos dias de hoje”, Gal Costa, Trama 2007
“Ensaio”, Gal Costa, Trama 2006
“Festivais – millennium 2004”, Gal Costa, Universal Music 2004
“Serie gold II / tropicalia”, Gal Costa, Universal Music 2002
“Gal cantando Caetano”, Gal Costa, Universal Music 2005
“Tropicália – millennium”, Gal Costa, Universal Music 2004
“A era dos festivais – cd 1”, Gal Costa, Universal Music 2003
“Prepare seu coração (geração editorial) – solano ribeiro”, Gal Costa, Universal Music 2002
“Divino maravilhoso – {cd 1}”, Gal Costa, Universal Music 2005
“Recanto ao vivo”, Gal Costa, Universal Music 2012
“Gilberto Gil – 2 lados”, Gal Costa, Universal Music 2010
“Lugar comum”, Gal Costa, Universal Music 2008
“Trilha sonora do filme Tropicália”, Gal Costa, Universal Music 2011
“Caetano Veloso e Gal Costa – domingo – jewel case”, Gal Costa, Universal Music 2010
“Ensaio”, Gal Costa – citação na faixa Tropicália, Trama 2005
“Georgeana bonow 2013”, Georgeana Bonow, Bossa 58 Produções Artisticas/ABM 2013
“Tropicalidades”, Georgeana Bonow, ROB Digital 2015
“Songbook Gilberto Gil vol. 2”, Leila Pinheiro e Victor Biglioni 1992
“Inclassificaveis, Ney Matogrosso, EMI 2008
Dinamarca
Gilberto Gil
Milton Nascimento
Homem tão do mar
Do mar amar, como a um irmão
Capitão do mar
Homem tão do mar
Lembres que o mar também tem coração
Saudades, sim
O mar tem de ti
O mar triste e só
Depois do dia em que tu partistes, ó
Saudades, sim
o nórdico mar
Mar dinamarquês
Pede que venhas navegá-lo outra vez
Capitão do mar
Terás que voltar
Terás que vir uma vez mais
Nova embarcação,
Nova encarnação,
Nova canção, novo amor, novo cais
O mar e nós
Amigos fiéis
Amigos leais
Aqui a esperar teus novos sinais
O mar e nós
O norte, os confins
A barca, os canais
A Dinamarca e os seus carmins boreais
Gravação
Gilberto Gil e Milton Nascimento – Gil & Milton, 2000 – Warner Music
Comentário*
“Dinamarca” foi uma das músicas que eu pedi ao Milton que compusesse [para o disco e show Gil & Milton, que fizeram juntos], para que eu fizesse a letra. Um dia ele chegou no piano elétrico que eu tenho lá em casa e tocou aquela música bem miltoniana, pesada, plúmbea, chumbada. E disse: “Tá aí, faça a letra”. Eu disse: “Tá bom”. Aí, em meio ao trabalho, eu me lembrei do capitão dinamarquês amigo nosso, que era dono de uma casa noturna, Mont Martre, importante em Copenhague, onde se apresentavam grandes jazzistas, Chet Baker, Miles Davis, Herbie Hancock e quem você imaginar, além de muitos brasileiros, Hermeto Paschoal, Egberto Gismonti, Milton Nascimento, Gilberto Gil, esses que fazem concertos pela Europa nos verões.
Esse homem era um daqueles nórdicos típicos, fortes. Ele tinha um barco e levava a gente para passear nele. Milton gostava muito dele, eu também. Ele tinha morrido havia alguns anos, e eu me lembrei de homenageá-lo, fazendo uma canção rememorando a vitalidade dele e relacionando Minas a Dinamarca.
O nome dele era Kay, e o apelido, Capitão — Captain, a gente o chamava. Ele veio ao Brasil uma vez, foi a Belo Horizonte, ficou muitos dias em Minas, Milton o ciceroneou por lá. Todas as vezes que estive com ele foram em Copenhague.
“Dinamarca” fala da saudade dele; da constante ressurreição dele em nós através da lembrança, do amor, do afeto, da saudade no sentido profundo do “[…] capuz/ Transparente/ Que veda/ E ao mesmo tempo/ Traz a visão/ Do que não se pode ver/ Porque se deixou para trás/ Mas que se guardou no coração” [versos de “Toda saudade”, do próprio Gil]. Daí essas palavras finais da música, falando em esperar novos sinais dele; daí, a relação que se estabelece entre o Norte e os confins mineiros, para dar uma geografização da poesia. “Dinamarca” é uma canção de saudade; de saudação e saudade.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Despedida de solteira
Gilberto Gil
Perguntei-lhe se haveria despedida de solteira
Ela me disse que a principio não
Pelo visto não
Certamente não
Porque não, eu insisti em perguntar
Ela disse que eu devia já estar pensando em besteira
Eu disse a ela que a princípio não
Pelo visto não
Certamente não
E assim nossa prosa prosseguiria
O assunto era instigante, o horizonte promissor
Excitante para um cabra tão galante
Intrigante para uma cabrita em flor
Tanta coisa que ali se discutia
Fidelidade, virgindade, orientação sexual
No final ela admitiria que faria
A despedida de solteira e coisa e tal
Festa na qual eu por sinal
Não entraria não
Nem eu nem qualquer um outro varão
Nossa cabrita, tão catita, tão bonita
Depois de tanta desdita havia feito uma opção
Se casaria com outra linda cabrita, hah!
Que até bem pouco namorara o meu irmão
O pau de arara do meu pai o que diria disso
Que ela me disse, disso que ela me disse…
Gravações
Gilberto Gil – Banda larga cordel, 2008 – Warner Music
Targino Gondim – Sou o forró!, 2021 – ONErpm
Comentário*
Sobre se tratar de uma canção na tradição do xote malicioso, mas com uma novidade temática, a da homossexualidade feminina, do casamento entre mulheres, e o tema ser tratado não num tom de militância, e sim com uma leveza de graça engraçada, por meio de uma pequena história. — À feição dos xotes apimentados, de “Cheiro da Carolina” a tantos outros, como “Peba na pimenta”, dos quais “Xote das meninas” é o primeiro, o mais antigo, o mais querido, talvez o mais genial de todos. Sim: a ideia era essa, tratar o tema com jocosidade, ao mesmo tempo chamando atenção pra um assunto muito associado a preconceitos, intolerâncias, incompreensões, violências, rejeições familiares. Era pra dizer: “Olha aí as meninas jogando seu futebol feminino”.
Sobre um procedimento estilístico que tem sua ocorrência em muitas canções suas, mas que em algumas se acentua: a fluência das sonoridades das palavras que rimam internamente, proporcionando um efeito particularmente agradável (como, no final, a sucessão de termos terminados em “ita” e em “ara”, além do jogo entre “disso” e “disse”). — É a brincadeira toda com o versejar, com a literatura de cordel, a dos grandes trovadores, o modo como eles, nordestinos, brincavam com as palavras. “Despedida de solteira” é uma música bem da minha verve nordestina, tanto como músico quanto como poeta.
A ligação com a literatura de cordel e o repente nordestino; com a “música” dos trovadores medievais, cujos poemas eram cantados e não à toa chamados de canções. A literatura de cordel, o repente nordestino, são desdobramentos no tempo das canções trovadorescas. — Eu sou naturalmente ligado a tudo isso, desde a minha origem interiorana, nordestina, baiana. O fato de eu ter sido despertado assim para o gosto estético mais geral por gente como Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, por grandes intérpretes, como Gordurinha, da vida nordestina. Eu sou muito desse campo. Minha formação tem muitos elementos que vêm disso, e eu sempre procurei encontrar espaço pra manifestar a aderência, a adesão minha a isso.
E tem o viés libertário da canção, outra característica de sua obra; a abertura para o que diga respeito à liberdade do ser humano. — Sem dúvida, com um tema muito forte, de grande apelo: a questão do feminismo, a manifestação mais recente da dimensão feminina como algo próprio, com sua própria densidade, seus próprios compromissos políticos e existenciais; a libertação da mulher. Então é bom uma musiquinha desse tipo, jocosa, brincalhona, falando de uma coisa séria, seríssima nos tempos modernos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Desafio do lixo
Gilberto Gil
as caixas de isopor
onde diabos vamos pôr
as nossas caixas de isopor
como nos livrar
das plásticas palavras
ditas á mesa do bar
palavras que vão dar no mar
poluir é ir juntando o que resta de nós
após as refeições
nossos retos mortais
venenosas ilusões
milhões de garrafas vazias
cheias de alergias e aflições
onde vamos pôr
as caixas de isopor
a vida de mentira
a ira, do desamor
temos que encontrar o lugar
no deserto aberto
em nossos corações
Deixei recado
Gilberto Gil
João Donato
Falei do fogo
Falei da dor
Agora calo
Calço o chinelo
Reparo a flor
Batuqueiro, ê
Bate o couro, ê
Bate, bate com paixão
Com paixão por sim
Com paixão por não
Bate, bate, coração
Andei correndo
Andei sofrendo
Andei demais
Agora deito
Olho pro teto
Penso na paz
Batuqueiro, ê
Bate o couro, ê
Bate, bate com paixão
Com paixão por sim
Com paixão por não
Bate, bate, coração
Passei da conta
Passei da porta
Passei por lá
Deixei recado
Voltei cansado
Vou descansar
Gravação
João Donato – Lugar comum, 1975 – Universal Music
Deixar você
Gilberto Gil
Deixar você
Ir
Não vai ser bom
Não vai ser
Bom pra você
Nem melhor pra mim
Pensar que é
Só
Deixar de ver
E acabou
Vai acabar muito pior
Pra que mentir
E
Fingir que o horizonte
Termina ali defronte
E a ponte acaba aqui?
Vamos seguir
Reinventar o espaço
Juntos manter o passo
Não ter cansaço
Não crer no fim
O fim do amor
Oh, não
Alguma dor
Talvez sim
Que a luz nasce na escuridão
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Ney Matogrosso – Brazil Night Ao Vivo Montreux, 1983 – Universal Music
Angela Ro Ro – Songbook Gilberto Gil, 1992 – Lumiar
Cesar Camargo Mariano e Pedro Mariano – Piano & voz, 2003
Margareth Menezes – Para Gil & Caetano, 2015 – Estrela do Mar
Alexandre Pires – DNA Musical, 2017 – Som Livre
Comentário*
‘Deixar você’ é da mesma época de ‘Drão’, mas não teve nenhum personagem no qual eu tivesse me baseado. O personagem da letra é inventado e surge de uma decisão assim: ‘Vou fazer uma canção’. Na verdade, ‘Deixar você’ foi feita para imitar o Djavan; eu quis compor uma canção que se assemelhasse com o que eu achava que era o modo do Djavan fazer música. Eu fiquei fazendo umas sequências melodico-harmônicas para mim parecidas com as dele, com alguns traços do estilo dele, e aí, música feita, pensei: ‘Bom, o que é que eu vou fazer com isso?’ Aí escrevi os versos, nos quais eu não tratava de uma situação real sobre a qual eu quisesse elaborar um pensamento.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
De ouro e marfim
Gilberto Gil
Aqui estamos reunidos
À beira-mar
Nesta noite de ano-novo
Nesta festa de Iemanjá
Pra prestar nossa homenagem
De coração
Ao grão-mestre dessa ordem
Venerável da canção
Brasileiro de Almeida
De ouro e marfim
Curumim da mata virgem
Antonio Carlos Jobim
Ê, babá, ê, babá, ê
Antonio Carlos Jobim
Ê, babá, ê, babá, ê
Antonio Carlos Jobim
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – Quanta Gente Veio Ver (Ao Vivo), 1998 – Gege
Comentário*
Era o dia em que iríamos cantar todos as músicas de Tom Jobim, homenageá-lo no show de ano novo: eu, Caetano, Gal, Chico, Milton, Paulinho. Aí, naquela manhã de 31 de dezembro de 1995, eu acordei me perguntando: ‘Mas será que você não tem que cantar uma canção especialmente surgida para a ocasião, relativa ao tema?’ O tema era Tom, claro. Aí me veio, ainda na cama mesmo, no travesseiro, a canção toda, verso após verso. Só na cabeça, mas já aprontando a música também, as duas coisas juntas.
E a letra veio muito na forma heráldica, digamos assim, de uma confraria, de uma escola com mestres e alunos, de uma ordem. Essas coisas também influenciaram o modo de fazer a canção: o fato de meu pai ter sido maçom – a maçonaria; e de a Ordem Terceira do Carmo e a Ordem Terceira de São Francisco terem sido entidades religiosas do mundo católico presentes na minha infância e adolescência.
‘De ouro e marfim’ foi ensaiada e apresentada no mesmo dia. E é interessantíssimo que, na gravação do show, se escuta claramente a multidão de Copacabana cantando: ‘Ê, babá, ê, babá, ê’. Na primeira vez em que foi cantada, o público já a recebeu cantando-a, instigado por essa forma clássica do canto popular, dos cantos de raiz, que estão enraizados na tradição, no caso a do candomblé, dos cantos que vêm dos terreiros. Porque parece um daqueles cantos de Filhos de Gandhi pelas ruas de Salvador: a resposta do público é pronta, como se aquela fosse uma velha poesia. Na verdade, um arquétipo estava sendo reiterado ali.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
De leve (Get Back)
Gilberto Gil
Mas sabia que era não
Saiu de Pelotas, foi atrás da hera
Trepadeira de verão
De leve
De leve
De leve, que é na contramão
De leve
De leve
De leve, que é na contramão
Sweet Loreta Martinica da cuíca
Muito garotão curtiu
Juram que viram Loreta de cueca
Dizem minas lá no Rio
De leve
De leve
De leve, que é na contramão
De leve
De leve
De leve, que é na contramão
[ Get Back, de John Lennon e Paul McCartney ]
De Bob Dylan a Bob Marley – um samba-provocação
Gilberto Gil
Fez um disco de reggae por compensação
Abandonava o povo de Israel
E a ele retornava pela contramão
Quando os povos d’África chegaram aqui
Não tinham liberdade de religião
Adotaram Senhor do Bonfim:
Tanto resistência, quanto rendição
Quando, hoje, alguns preferem condenar
O sincretismo e a miscigenação
Parece que o fazem por ignorar
Os modos caprichosos da paixão
Paixão, que habita o coração da natureza-mãe
E que desloca a história em suas mutações
Que explica o fato da Branca de Neve amar
Não a um, mas a todos os sete anões
Eu cá me ponho a meditar
Pela mania da compreensão
Ainda hoje andei tentando decifrar
Algo que li que estava escrito numa pichação
Que agora eu resolvi cantar
Neste samba em forma de refrão:
“Bob Marley morreu
Porque além de negro era judeu
Michael Jackson ainda resiste
Porque além de branco ficou triste”
Gravação
Gilberto Gil – O eterno Deus mu dança, 1989 – Warner Music
Comentário*
[A tal pichação a que alude a letra muito provavelmente nunca existiu. Gil, pelo menos, nunca a viu, de fato.] Isso eu inventei para não colocar a ideia como minha; para deslocá-la. Mas era uma ideia possível de existir àquela altura; embora não houvesse sido pichada, ela já estava na manifestação do discurso de muita gente. Então, para não fazer essa afirmação — para não fazer dessa afirmação uma coisa minha —, eu a coloquei como se ela tivesse sido anonimamente fixada numa inscrição de parede, numa provocação de muro: “Bob Marley morreu porque além de negro era judeu”. Houve até um artigo, que eu li publicado numa revista americana, que discutiu a questão da intolerância contra Marley na sociedade jamaicana, apontando como tendo sido uma das razões das perseguições (os atentados) que ele sofreu o fato de ele, além de ser negro, defender seu rastafarianismo, como uma espécie de judaísmo transfigurado. [Quanto ao outro nome citado na “pichação”, Michael Jackson:] Já se começava a especular sobre as tais injeções de branqueamento que pretensamente ele estaria tomando. Era esse momento. [“Provocação” em substituição a “exaltação”:] porque o samba trabalha com uma série de ideias polêmicas.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Das duas, uma
Gilberto Gil
Das duas, uma
Ou será pluma
Ou será pedra e pesará
Se forem hábeis e sábios e sãos
Serão amáveis e tempo terão
Pra fazer da vida a dois
Dois chumaços de algodão
E os frágeis cristais
Das aventuras
Encontrarão proteção e, quem sabe, quebrarão jamais.
Se porventura
A vida dura
Lhes for madrasta e voraz
Sejam capazes, audazes e bons
Façam das pazes noturnos bombons
E os percalços naturais
Farão parte da canção
Serão tropeços
E recomeços
Um a cada vez, cada mês
E vocês se acostumarão
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Bandadois (Ao Vivo), 2019 – Gege
Comentário*
“Das duas, uma” foi feita pra duas pessoas muito próximas, ligadas ao meu círculo de afetos, de convívios — uma filha e um colega de banda. Fiz a canção pra Maria e pro Alex Fonseca, nosso querido músico gaúcho, que haviam resolvido se casar. Maria me disse: “Queria que você cantasse uma coisa qualquer no meu casamento, pai”. E eu resolvi fazer uma canção pra cantar e pra tratar da questão espinhosa do casamento: o lado espinho dessa rosa. A canção é sobre as dificuldades da conciliação do encontro, da criação, da formação e da manutenção da unidade conjugal.
“Das duas, uma”: são as duas pessoas; os dois destinos dessas pessoas, os dois aspectos do encontro a partir das individualidades de cada um. São cristais, são frágeis. Daí o trabalho permanente de encontrar a suavidade do algodão nas suas disposições diárias, no sentido de construir a relação da forma mais harmônica possível.
A função educadora do pai. — Ali tem um discurso de instrução; uma forma de instruir um pouco os meninos ainda não tão experientes, a partir de experiências vividas por mim: três casamentos, três momentos de dois desdobrados em outros dois e outros dois: eu e três, três eus que se uniram a três outras, três outros eus. A sustentação da ideia do casamento: de como é que se sustenta sem exigências fundamentalistas, sem votos, sem a dimensão votiva da obrigatoriedade religiosa do “para sempre até que a morte nos separe”. Prevenindo que casamento não é questão de vida ou morte — não é só a morte que separa: é a vida que separa também.
E é gozado, porque hoje eles são amigos, já separados como marido e mulher. Entraram e saíram do casamento como amigos.
Quem adora essa música é o Arnaldo Antunes. Ele me disse uma vez. Eu gosto muito também. Ela é mesmo bem construída.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Darlene Triste
Gilberto Gil
Outras gravações:
“CD you”, Heraldo Do Monte – viola nordestina, Eletrônica Digital 2001
“Viola nordestina”, Heraldo Do Monte, Kuarup
[ trilha do filme “Eu, Tu, Eles” ]
Dandara, a flor do gravatá
Gilberto Gil
Waly Salomão
Dandara, Dandara, Dandara
Dando carinho, dor e flor, é dando
Dandara, Dandara, Dandara
É flor que brota em grota
Em greta, em grota, em gruta
Ingrata, o dedo espeta
E grita, berra, braba, forte, mata
Dandara
Bonita, bárbara, felina, flor do gravatá
Vibra o punhal de prata!
Vibra o punhal de prata!
Vibra o punhal de prata!
E ainda assim tão terna
Tão ternamente rara
A flor do gravatá
Medra na pedra
Na pedra se escancara
Dandara, Dandara, Dandara
Gravação
Gilberto Gil – Quilombo, 1984 – Warner Music
Comentário*
[Ao contrário de “Quilombo, o eldorado negro” (e das demais canções de Gil e Waly Salomão feitas para o filme Quilombo), “Dandara, a flor do gravatá” apresenta uma letra que resultou da participação de ambos na criação.]
Nessa letra eu sinto tanto você quanto o Waly Salomão. Diferentemente de “Quilombo, o eldorado negro”, aqui eu já sinto o Waly. — Mas foi ele quem propôs; a letra já veio com as iniciais dele.
“É dando espinho, é dando amor, é dando/Dandara, Dandara, Dandara// Dando carinho, dor e flor, é dando/ Dandara, Dandara, Dandara”: tem a cara dele. — “É flor que brota em grota/ Em greta, em grota, em gruta/ Ingrata, o dedo espeta/ E grita, berra, braba, forte, mata/Dandara/ Bonita, bárbara, felina, flor do gravatá”. Essa flor do gravatá é claramente de Waly.
“Vibra o punhal de prata!”: eu já vejo Waly bradando isso, erguendo o braço. — Claro!
Mas em seguida vem: “E ainda assim tão terna/ Tão ternamente rara/ A flor do gravatá/ Medra na pedra/ Na pedra se escancara”. Ternura depois da bravura. Parece você. — Aí fui eu, esse final fui eu. Minha cara, totalmente minha cara.
Sinto o Waly também na sequência carregadamente aliterativa com os termos “brota”, “grota”, “greta”, “gruta”, “ingrata”, “grita”, “braba”; e também na insinuação maliciosa da expressão “é dando” e do verso com “grota, greta e gruta”. — A insinuação ao sexo feminino.
Um lance evidente e eminentemente poético por envolver som e sentido: as três palavras muito próximas por só se diferenciarem por uma vogal, terem cinco letras e remeterem a uma mesma coisa, que é sexo. — Todas elas; exatamente.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Dança dos homens
Gilberto Gil
Carlinhos Brown
Outras gravações:
“Z”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
Dança de Shiva
Gilberto Gil
Dança de Shiva
Repare a dança de Shiva
Enquanto a reta se curva
Cai chuva da nuvem de pó
Fraude do Thomas
Repare a fraude do Thomas
Os deuses todos em coma
Enquanto Exu não dá o nó
Nó se dá um só
Se dói de dó
Se mói na mó
Pulverizar
Se foi na avó
No neto irá
Não, não irá
Quiçá morrerão
Deuses em coma
Homens em vão
Pela ciência
Pela canção
Deuses do sim
Deuses do não
Quem me vir dançar
Verá que quem dança é Shiva
Quem dança, quem dança é Shiva
Quem me vir já não me verá
Verá no Thomas
Por trás da fraude do Thomas
Alguns verazes sintomas
De um passageiro mal-estar
© Gege Edições Musicais
Outras gravações:
“Quanta”, Gilberto Gil, Warner Music 1997
“Projeto especial IBM”, Gilberto Gil, IBM 1997
Comentários*:
“O Thomas Green Morton é um mago a quem se atribuem muitos milagres, mas ao mesmo tempo se atribuem muitas fraudes; fica um dilaceramento entre autenticá-lo e desautorizá-lo, um jogo que na verdade reflete apenas a nossa própria instabilidade com relação aos campos da fé. Nessa música eu falo: ‘Repare a fraude do Thomas/ Os deuses todos em coma/ Enquanto Exu não dá o nó’, quer dizer: enquanto nós não temos capacidade de percepção completa da fenomenologia do sutil, do mistério que se dá de uma forma muito equívoca para a nossa percepção da fenomenologia do dia-a-dia, do campo material, dominado pelos sentidos; enquanto não temos a percepção da fenomenologia para além dos sentidos, a percepção que não é a corriqueira, a prosaica, a cotidiana, do campo do macromundo, mas a do campo do micromundo – que, no entanto, a ciência já aborda, exatamente a partir da relatividade, a partir dos quanta.
Então eu não vejo nenhum problema com o milagre. Mas, assim como ocorre com o milagre, a fenomenologia sub-atômica é questionada; as academias pintaram horrores com os homens da ciência sub-atômica, da mesma forma que os mágicos sofreram muito também. Eu gosto da associação possível, probabilística, entre os dois campos. ‘Dança de Shiva’ versa sobre isso; na verdade, ela é uma música em defesa do Thomas, apesar de muita gente perceber como uma reles acusação nquisitorial a referência a ele na letra. Ao contrário, a música está defendendo aquilo naquilo que aquilo é defensável; naquilo que aquilo é um mistério, uma manifestação de mistério – mistério para ele mesmo! Imagina alguém supor que aquilo é um campo dominado pelo Thomas; não é! Aquilo não é de domínio dele, aquilo é de domínio do domínio.
‘Dança de Shiva’ é hermética, sim, como os próprios campos que ela aborda. O campo da ciência sub-atômica é esoterismo puro; a prosa cotidiana da superfície dos fenômenos palpáveis de nosso dia-a-dia não dá conta desse mundo, como não dá conta do mundo dos mágicos. Há, nesse sentido, uma aproximação muito grande entre o mundo mágico e o mundo da hiper ou da hipo-ciência, dessas ciências modernas. São campos que se encontram, por serem, ambos, campos que aparentam dar
– e dão – a dimensão do milagre. Uma célula foto elétrica que abre uma porta à distância é um milagre!
Por que o controle remoto é admissível e as transmutações do ‘rá’ ficam como coisas que não devem ser trazidas para o terreno da compreensão, quer dizer, não devem ser incluídas, não devem ter o benefício da compreensão? Por que a ciência pode e a magia não pode? Eu não quero saber de anteparos muito rígidos nas fronteiras desses campos. Prefiro que eles se interpenetrem mais e que nós possamos entrar.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Dança das mulheres
Gilberto Gil
Rodolfo Stroeter
Outras gravações:
“Z”, Gilberto gil, Warner Music 2002
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Dança da água e da paz
Gilberto Gil
Lelo Nazário
Outras gravações:
“Z”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Dada
Gilberto Gil
Caetano Veloso
A
DEUS
DEUS
A
A
FRO
DI
TE
DE
TI
TI
VE
VI
DA
DA
DA
A
DEUS
© Gege Edições / Preta Music (EUA & Canada) / © Uns (Warner/Chappell)
Gravação
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Tropicália 2, 1993 – Philips
Comentário*
“Dada” é uma canção de inspiração de traço numinoso, aparecida meio por milagre. É como se as palavras e o seu encadeamento tivessem me acontecido malgré uma psique ou uma inteligência; como se o poema já estivesse num outro plano e descesse para entrar ali, naquela música. Essa a minha sensação.
Notas-gotas. — A música foi a primeira que Caetano compôs para o disco Tropicália 2. “Faça uma letra”, ele me disse. Fomos então fazendo as outras, ele as dele, eu as minhas, e aquela música foi ficando ali, e eu adiando, adiando. O repertório estava já quase todo constituído, quando um dia, em casa, eu comecei a meditar nela, no significado de conta-gotas que pode representar a sua sucessão de notas, de diferentes alturas e sonoridades. Fui então deixando aquelas gotas sonoras caírem no meu pensamento e se espalharem; pouco a pouco, como sem querer, elas foram se tornando palavras e, de repente, pronto, já tinham sentido. Mas uma gota não tinha caído no lugar certo.
[Gil conta que levou a letra para Caetano sem uma palavra para o trecho melódico que, na configuração espacial em que definiu a sua escrita, corresponde à penúltima linha, e que foi o parceiro quem completou a canção, introduzindo ali a palavra “dada”.]
Ele disse: “De vida dada”, e deu sentido a tudo; aquilo foi a dádiva do poeta que sabe como trazer nas mãos a poesia por inteiro.
A introdução de um tema novo: a velhice. — [Para Gil, a canção tem uma importância especial pelo que significa para ele, assim como para Caetano; justamente por causa desse significado, ele não sabia direito qual seria a reação do amigo diante da letra, quando foi apresentá-la.] Eu fui até meio reticente, temeroso de que ele… Mas ele falou: “Está certo; é hora mesmo de falarmos disso: somos nós dois envelhecendo. Está legal. Assinamos isso tranquilamente”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil