Músicas
Cultura e civilização
Gilberto Gil
Elas que se danem
Ou não
Somente me interessam
Contanto que me deixem meu licor de genipapo
O papo
Das noites de São João
Somente me interessam
Contanto que me deixem meu cabelo belo
Meu cabelo belo
Como a juba de um leão
Contanto que me deixem
Ficar na minha
Contanto que me deixem
Ficar com minha vida na mão
Minha vida na mão
Minha vida
A cultura, a civilização
Elas que se danem
Ou não
Eu gosto mesmo
É de comer com coentro
Eu gosto mesmo
É de ficar por dentro
Como eu estive algum tempo
Na barriga de Claudina
Uma velha baiana
Cem por cento
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1969), 1969 – Philips
Gal Costa – Gal Costa, 1969 – Universal Music
Gilberto Gil – Back in Bahia – ao vivo (1972), 2017 – Discobertas
Comentário*
Depois dos rebeldes com causa, os rebeldes sem causa: derrubando os muros e as prateleiras. A cultura e a civilização que se danem ou não, pouco importa; sou inaugural, seminal; ponto zero: aqui começa outra história. Essa a expressão do dístico, slogan de época, placa, palavra de ordem. Em seguida, a afirmação do particular, do eu indivíduo, baiano. Quero estar no turbilhão das ruas, no olho do furacão do meu tempo, mas também quero paz; viver o tempo histórico, mas trazer até ele a história do meu passado, os elementos formadores do meu cerne. Como mostra o jogo desses contrastes, não se trata de um mergulho irracional na rebeldia. O dístico é niilista, mas os versos seguintes, ao contrário de justificá-lo, são preservadores.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Crazy pop rock
Gilberto Gil
Jorge Mautner
From the cars runs gasoline up in my veins
My blood intoxicated by twenty-seven trips
My eyes hallucinated by the Holy Ghost I met
When I talk
I cannot talk
I only gotta sing loud, loud
A crazy pop rock
From the city runs electricity in my brains
From the cars runs gasoline up in my veins
I’m part of the problem, I’ m not the solution
I’m really the product of city pollution
When I talk
I cannot talk
I only gotta sing loud, loud
A crazy pop rock
From the city runs electricity in my brains
From the cars runs gasoline up in my veins
Baby, baby, baby, I’m the electric man
Come and get a shock, I’m the electric man
When I talk
I cannot talk
I only gotta sing loud, loud
A crazy pop rock
Corisco
Gilberto Gil
Djavan
No mesmo instante um raio explode
Concomitante, um olho vê
Que a pedra do corisco pode
Pode se tornar o que for
E tudo o quanto é testemunha
Pode até mesmo ser a dor
Cravada à carne pela unha
Telefax, mandei
O mapa-múndi do meu penar
Ande, mande logo um telex
Me confirmando quando será
Que a necessidade de amor
Lhe trará num raio
A necessidade de amor
Num dia de chuva
E na tempestade você
Fará com que eu saia
No exato momento de ver
O céu se abrir ao comando de Iansã
Que seja o momento em que a luz
Registre meu desejo de ver
Você, meu amor, me traduz
No raio de Iansã, seu poder
Que seja pra mim, meu Xangô
Poder correr, correr meu risco
Quiçá ver nascer uma flor
Na lisa pedra do corisco
Telegrafite de Exu
Leia no muro do seu quintal
Pichada, fixada no azul
A frase diz o essencial
A necessidade de amor
Gritando na rua
A necessidade de amor
Uivando pra lua
Um lobo faminto de amor
A dor que acentua
A necessidade de ver
O céu se abrir ao comando de Iansã
Gravações
Djavan – Djavan, 1989 – CBS
Djavan – Puzzle of hearts, 1990 – CBS
Comentário*
O Djavan me mandou uma daquelas músicas complexas dele, e eu pensei: “O que eu faço com isso?”. Aí veio a imagem de um corisco mesmo, do raio que penetra a terra, funde a matéria terra e a transforma em pedra, uma pedra que surge do fogo, da ardência elétrica do raio; essa pedra é o corisco.
Sobre “O céu se abrir ao comando de Iansã”. — O fenômeno natural; a fenomenologia na natureza. A necessidade da associação entre os deuses e a natureza. As entidades religiosas associadas aos fenômenos naturais, à força elemental do raio, da tempestade. “O céu se abrir ao comando de Iansã” remete a, e decorre de, “Iansã comanda os ventos/ E a força dos elementos” [de “As ayabás”, de Caetano e Gil]. O mesmo sentido: num verso, o verbo; no outro, o substantivo.
Sobre “Quiçá ver nascer uma flor/ Na lisa pedra do corisco” (lembrando a flor que “rompe o asfalto” de “A flor e a náusea”, de Drummond). — A imagem é uma retomada de “Tudo que brota, que vinga, que medra/ Rebento raro como flor na pedra” [de “Rebento”, de Gil]. A ideia radical do momento inusitado do vegetal ter origem mineral, como a flor nascer na superfície lisa de uma pedra, sem a intumescência do terreno fofo, ali, na pedra dura; a imagem do broto de vegetal saindo da pedra bruta: relações de ênfase poética.
Da complexidade da música de Djavan levando Gil a escrever uma letra que não tem uma fatura semanticamente simples.
— É muito djavaniana nesse sentido, com sua fragmentação semântica, seus semantemas.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Corintiá
Gilberto Gil
Que todo ano a gente vai sofrer
Se enrolar no pano da bandeira
E reclamar se o time não vencer
Mas de repente o ano é santo, a gente tá no céu
O time é forte, a sorte é grande, o axé tá com a Fiel
O axé tá com a Fiel
Voa suave o gavião
O axé tá com a Fiel
Bate na trave o coração
Ser corintiano é mergulhar
No oceano da ilusão que afoga
Não importa o plano do destino
Cada jogo é o coração que joga
Bate na trave a ilusão da gente, vai que vai
Chuta de novo que o coração entra e o grito sai:
É gol!
Corintiá
É gol!
Corintimão
Gravação
Tete da Bahia – Tete da Bahia ao vivo, 1994
Comentário*
Foi o Sócrates que me sugeriu que fizesse — no dia em que me encontrei com ele num show em São Paulo, no antigo Palace: “Você não tem uma música pro Corinthians? Faz uma música pro Corinthians”. Eu estava brincando com ele sobre o sofrimento, sobre aquela característica de sofredor do torcedor corintiano: a coisa dos vinte e três anos de jejum em que o Corinthians tinha ficado, até ganhar da Ponte Preta o Campeonato Paulista de 1977. Aí eu fiz “Corintiá”.
Sobre a posterior mudança de característica do torcedor corintiano. — É quando começa a haver a nacionalização dos grandes clubes cariocas e paulistas, no sentido pop, e que dá nas conquistas de campeonatos no Brasil e de torneios sul-americanos e até do Mundial, que o Corinthians acaba ganhando do Chelsea.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Cores vivas
Gilberto Gil
Na maré desse verão
Esperar
Pelo entardecer
Mergulhar
Na profunda sensação
De gozar
Desse bom viver
Bom viver
Graças ao calor do sol
Benfeitor
Dessa região
Natural
Da jangada, do coqueiral
Do pescador
De cor azul
Bela visão
Cartão postal
Sabor do mel, vigor do sal
Cores da pena de pavão
Cenas de uma vibração total
Cores vivas
Eu penso em nós
Pobres mortais
Quantos verões
Verão nossos
Olhares fãs
Fãs desses céus
Tão azuis
Gravações
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
Gilberto Gil – Em concerto, 1987 – Gege
Gilberto Gil – Em casa com os Gil, 2022 – Gege
Comentário*
Outra canção composta de encomenda, para a trilha de uma novela [da Rede Globo]. Alguém me ligou e disse: “Olha, vai ter essa novela, vai se chamar Água Viva, o tema é assim, assim, e vai precisar de uma canção, enfim”.
Um dia eu estava em Salvador, no verão, as pessoas todas tinham saído, eu fiquei em casa e comecei a canção. Eu me lembro que a primeira pessoa que chegou, com a canção já encaminhada, praticamente feita, foi Maria Helena Guimarães; eu estava cantando, ela entrou, sentou, ouviu e disse: “Ô, que canção linda”. E eu disse: “Acabei de fazer”.
“Cores vivas” é sobre o encanto de viver e, de novo, como em “Luar”, sobre a sensorialidade; sobre os sentidos captando a beleza da manifestação da vida em todos os seus fenômenos. O Porto da Barra é a sua locação; é como se eu estivesse lá, naqueles fins de tarde em que a gente fica esperando a hora em que o sol se põe atrás da ilha de Itaparica.
O verso “Cenas de uma vibração total” relaciona a música com a noção de maia, de ilusão da matéria, ilusão da forma, a noção de que não há forma, só há vibração — com o sentido vibrátil da manifestação da vida. Daí eu dizer em seguida, nas linhas finais: “Cores vivas/ Eu penso em nós/ Pobres mortais/ Quantos verões/ Verão nossos/Olhares fãs”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Coragem pra suportar
Gilberto Gil
Coragem pra suportar
Tem que viver pra ter
Coragem pra suportar
E somente plantar
Coragem pra suportar
E somente colher
Coragem pra suportar
E mesmo quem não tem
Coragem pra suportar
Tem que arranjar também
Coragem pra suportar
Ou então
Vai embora
Vai pra longe
E deixa tudo
Tudo que é nada
Nada pra viver
Nada pra dar
Coragem pra suportar
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1968), 1968 – Philips
Comentário*
Uma coisa tosca, esculpida brutamente, bonita. É sobre o retirante; a decisão estoica, ou heroica, de viver e morrer com aquela carência, ou então se retirar, ir embora. “Coragem pra suportar” é uma cantoria militante. O desassistir do injustiçado homem do campo e, ao mesmo tempo, aquela coisa do Euclides da Cunha: “O sertanejo é antes de tudo um forte” — uma fraqueza transfigurada em força, a força do homem fraco.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Corações a mil
Gilberto Gil
Dez corações de uma vez
Pra eu poder me apaixonar
Dez vezes a cada dia
Setenta a cada semana
Trezentas a cada mês
Isso, sem considerar
A provável rebeldia
De um desses corações gamar
Muitas vezes num só dia
Ou todos eles de uma vez
Todos dez
Desatarem a registrar
Toda gente fina
Toda perna grossa
Todo gato, toda gata
Toda coisa linda que passar
Meus dez mil corações a mil
Nem todo o Brasil vai dar
Gravações
Marina Lima – Olhos felizes, 1980 – Universal Music
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
Gilberto Gil – To be alive is good (Anos 80), 2002 – Warner Music
Comentário*
“Uma canção para comentar as relações abertas e a dimensão que o amor livre tinha então; uma música sobre a volúpia de namorar, de ter dez paixões simultâneas, para dar números a uma hipertrofia fenomenológica – como eu via, como muitos viam – em determinado período; para dar medida à multiplicação dos pães amorosos, uma obsessão naquele tempo: aquela era uma época em que se desejava uma multiplicação mesmo do amor, que o amor fosse múltiplo o tempo todo. Era uma característica ideológica da época. Nesse sentido, ‘Corações a mil’ é uma música de ideologia; um jingle – como boa parte das minhas composições são – ideológico; um panfleto da nova era. Marina, que a gravou, era uma pessoa disponível aos experimentos sentimentais do período, uma cobaia: alguém que se dava muito a esse papel.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Copo vazio
Gilberto Gil
Que um copo vazio
Está cheio de ar
É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar
É sempre bom lembrar
Guardar de cor
Que o ar vazio de um rosto sombrio
Está cheio de dor
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho
Que o vinho busca ocupar o lugar da dor
Que a dor ocupa a metade da verdade
A verdadeira natureza interior
Uma metade cheia, uma metade vazia
Uma metade tristeza, uma metade alegria
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
Gravações
Chico Buarque – Sinal Fechado, 1974 – Philips
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao Vivo), 1974 – Gege
Zizi Possi e Helio Delmiro – Songbook Gilberto Gil, Vol. 3, 1992 – Lumiar Discos
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Biscoito Fino
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases (Ao Vivo), 2018 – Gege
MPB 4 – Barra Pesada (Ao Vivo), 2019 – Discobertas
Gilberto Gil e Chico Buarque – Single, 2020 – Gege
Comentário*
Chico Buarque estava sendo hipercensurado naquele momento, e quis responder a isso fazendo um disco só com músicas de colegas. Por isso pediu a Paulinho da Viola, a Caetano, a mim e a outros que compusessem para ele.
Eu estava em casa, sentado no sofá, já de madrugada. Tinha tomado um copo de vinho no jantar, e o copo tinha ficado na mesa.
Pensando no que é que eu ia fazer pro Chico, eu de repente vi o copo vazio e concentrei o olhar nele para dali extrair emanações de imagens e significados, a princípio como se para nada obter, mas logo constatando: “O copo está vazio, mas tem ar dentro”. Disso me vieram ideias acerca das camadas de solidificação e rarefação que vão se sucedendo nas coisas — e disso, a música.
A letra faz uma viagem ao mundo das coisas sutis, transcendentes, mas suas primeiras frases são muito significativas em termos do que estava acontecendo: regime de exceção, censura, o Chico privado de sua liberdade artística plena etc. Embora não fosse essa a intenção principal, as dificuldades da situação contingencial estavam necessariamente metaforizadas, e qualquer crítica à canção em termos de fuga da realidade esbarraria no fato de que, ao contrário, a letra parte da realidade e não foge dela; foge com ela, se for o caso…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Comunidária
Gilberto Gil
E você sabe
Ele, sim, sabe também
O que é sofrer
O que é chorar
O que é precisar de alguém
Eu sei
E você sabe
Se não sabe, há de saber
Quem nunca precisou de alguém
Ainda está pra nascer
E assim que nascer
Logo precisará
Da mãe, da mamadeira
Da enfermeira ou da babá
De braço em braço, berço em berço
E na hora de andar
De falar, de correr, de aprender a ler
De sonhar
Por todo esse caminho
De pequenino a doutor
Pra nunca precisar de alguém
Vai ter que já nascer robô
Sem alma, sem cabeça, sem amor, sem coração
E ainda assim precisará
De alguém pra lhe dar uma mão
Na hora de apertar o parafuso que soltou
Eu sei e você sabe
Quem não sabe não mamou
Eu sei e você sabe
Quem não sabe não mamou
Nem mamou
Gravação
Gilberto Gil, MEC, 2001
Comentário*
Foi feita para o Comunidade Solidária; pra uma festa de fim de ano, uma comemoração, uma entrega de prêmios do programa social, que era dirigido pela professora Ruth Cardoso [esposa do presidente Fernando Henrique Cardoso]. Eu era um dos membros do Comunidade Solidária. O Milton Seligman e o João Moreira Salles também faziam parte, além de várias outras figuras. Era um conselho. O disco vinha junto com os troféus da premiação.
[Gil concorda que o sentimento da compaixão, muito presente na sua personalidade, reflete-se consequentemente na sua obra, em canções como essa, a qual, falando de todos os seres que precisam de alguém, acaba por incluir até o robô:] É, mesmo ele, na hora de trocar o parafuso.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Comunidá
Gilberto Gil
Celso Fonseca
E quem traz a bebida
E quem prepara o salão
Um troco do sindicato é o ouro
Uns cem do candidato
Uns dez da associação
Luz, pede pra prefeitura, é o ouro
Pede uma viatura
Com Cosme e Damião
Vê se esse novo bicheiro é o ouro
Pode ser o patrono
E acabar dando uma mão
Comunidá
Camaradagem, todas cores
Comunidá
Lavagem pra lavar nossas dores
Comunidá
Na hora da dificuldade, eu sei
Comunidá também
Na festa, na titica de felicidade, amém
Gravações
Gal Costa – Gal, 1992 – RCA
Celso Fonseca – O som do sim, 1993 – Natasha
Comentário*
Essa, so to speak, promiscuidade entre tudo: o crime, o estado; o bicheiro, a viatura… Todo mundo da comunidade, a comunidade em plenitude. A comunidade do bem e do
mal, pra que tudo resulte “na festa, na titica de felicidade, amém” — expressão-chave na canção. É exorcizante, é cristã. “Perdoai as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores.”
Sobre “É o ouro!”. — Essa gíria estava muito em voga na época [começo dos anos 1990], na Bahia.
Sobre “Cosme e Damião”. — Uma expressão muito comum nos anos 1950. “Cosme e Damião” significava a dupla de policiais. É o título de um samba gravado por Jorge Veiga [e de autoria de
Wilson Batista com Jorge de Castro], que eu e Caetano cantamos no show que fizemos, Tropicália 2. “Conversei o Cosme/Dei um cigarro pro Damião/Expliquei aos bons soldados/Que mostrava o Pão de Açúcar à Conceição/Eles acharam graça/E um me respondeu, cheio de fé/‘Tureleques e bileques/Nem que o senhor fosse o Café!’/Dei marcha-ré no Chevrolet!…/Me dê o boné…” Samba de Breque. Café era o Café Filho, vice-presidente [e presidente por cerca de três meses]. Esse samba é talvez o que melhor ilustre essa parelha policial típica da época, o Cosme e o Damião.
Sobre o título. — “Comunidá” é uma alteração poética da palavra “comunidade”; a temática da música; o corte da última sílaba é um procedimento poético. Abreviação.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Com medo, com Pedro
Gilberto Gil
Tô com Pedro
Eu agora não tô mais com medo
Tô com Pedro
Eu agora já tô mais com Pedro
Do que com medo
Eu agora já tô mais com Pedro
Do que com medo
Deus me livre de ter medo agora
Depois que eu já me joguei no mundo
Deus me livre de ter medo agora
Depois que eu já pus os pés no fundo
Se você cair, não tenha medo
O mundo é fundo
Quem quiser no fundo encontra a porta
Do fim de tudo
Bem junto da porta está São Pedro
No fim do fundo
Findo
Fundo
Findo
Bem depois do fim de tudo o medo
Do fim do mundo
Bem depois do fim do mundo o medo
Do fim de tudo
Bem depois do fim do mundo o medo
Do fim do mundo
Bem depois do fim do mundo o medo
Do fim de tudo
Gravação
Gal Costa – Gal Costa, 1969 – Universal Music
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1969) – Bonus Track – Gege
Comentário*
Do mistério envolvendo os versos de uma canção falando sobre Pedro que foi composta em 69 e cuja data de edição é 7 de dezembro do mesmo ano, tendo Pedro, filho de Gil, nascido somente em 17 de maio do ano seguinte, mais de cinco meses após a edição da música, e cuja motivação o autor demonstra dificuldade em esclarecer, não podendo assegurar que, ao escrever o nome “Pedro” na letra, ele estava pensando em um filho que pensava vir a ter e ao qual planejava dar esse nome; será que o Pedro ali é porque ele tinha uma afeição tão especial pelo nome que acabou dando-o ao filho que veio a ter em seguida? Afinal, que Pedro é o dessa canção? — Eu não posso precisar. A lembrança afetiva, cordial que eu tenho é de que a canção foi feita para o Pedro; por alguma razão já era por ele, para ele, por causa dele. Eu não poderia ter naquele momento certeza de que ia ter um filho do sexo masculino; portanto não poderia ter com segurança dedicado a canção ao filho que eu sabia que já ia nascer, e que seria homem, e a quem, portanto, eu teria a possibilidade de dar o nome de Pedro: não era isso. Talvez fosse um conjunto dessas coisas todas. E talvez esse Pedro fosse uma das emanações significantes das viagens de ácido que eu fazia na ocasião, uma das emanações a que eu dei uma forma de pessoa, de filho, numa das catarses a que as viagens psicodélicas podem levar, uma das emanações que tivessem me livrado de algum medo ou de alguma fobia, de algum recalque freudiano. “Eu agora não tô mais com medo/ Tô com Pedro” — que talvez remontasse até mesmo à pedra fundamental da religião cristã, o Pedro fundador da Igreja do Cristo. Pode ter havido tudo isso, um conjunto holístico de vários signos em rotação. E aí, com o nascimento do Pedro, obviamente a canção ficou sendo para ele; o nascimento dele deu encarnação a todos aqueles fantasminhas. Hoje, essa é para mim a única explicação; a melhor que se pode dar. É a mais fiel; a mais verdadeira, portanto. Hoje, é mais verdadeiro se referir àquele momento de criação com essa complexidade. Então, relacionadas com a criação de “Com medo, com Pedro”, que aborda ainda a questão do fim do mundo e a da fundação do mundo, há todas essas coisas — que, de resto, são o quê? São terra revolvida do aluvião que a descoberta do cosmos veio provocar na minha vida; o aluvião da descoberta cósmica, física e metafísica, daquela época.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Clichê do clichê
Gilberto Gil
Vinícius Cantuária
Meu destino contra o seu
Num filme piegas sem sal
Não vou chorar
Nem fingir que o amor morreu
Chega de drama banal
Que seja a dor
Nosso amor, nossos ardis
Teatro nô japonês
Onde o ator
É ao mesmo tempo atriz
Vestes da mesma nudez
Eu, Belmondo
Como um Pierrot, le fou
Só no cinema francês
Você, Bardot
Belo anúncio de shampoo
Só fica bem nas TVs
Melhor viver
Nosso papel bem normal
Que a vida nos reservou
Interpretar
Nosso bem e nosso mal
Sem texto e sem diretor
Chega de representar
O que nós não queremos ser
Não vamos nos transformar
Num casal clichê do clichê
Gravações
Gilberto Gil – Dia dorim noite neon, 1985 – Warner Music
Vinicius Cantuária – Nú Brasil, 1986 – EMI Music
Margareth Menezes – Para Gil e Caetano, 2015 – Estrela do Mar
Comentário*
A letra – feita para uma música do Vinícius Cantuária, como um corpo para um vestido, ou um vestido para um corpo, como quiser; mas mais como um corpo para um vestido – foi desencadeada por uma daquelas indicações subliminares do ‘I ching’. Eu joguei para perguntar o que é que eu estava querendo falar, e, segundo o ‘I ching’, eu tinha que falar da questão da posse nas relações dos casais; de como se livrar do magnetismo de efeito colateral que as uniões dão: as pessoas se hipermagnetizam, o magnetismo mútuo cria uma hipertrofia da possessão, e elas não se concebem mais no exercício das suas liberdades para o mundo, as liberdades que transbordam a vida. A redução do casamento ao acasalamento: era isso que devia ser questionado, segundo a intuição que vinha no ‘I Ching’, e disso eu tratei na canção: do desacasalamento do casamento.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ciranda
Gilberto Gil
Moacir Santos
Esta ciranda
De tantas cores
Vem nos aliviar as dores
Os maus olhados
Os dissabores
Ó, cirandeiro, cirandeiro
Que faz ciranda o tempo inteiro
Só por folia
Só por amor
Vem de um lugar chamado Flores
Esta ciranda
De tantas cores
Vem nos falar dos trovadores
Dos bem-amados
Dos benfeitores
Ó, cirandeiro, cirandeiro
Que faz ciranda o tempo inteiro
E só por isso
Tem seu valor
Gravação
Gilberto Gil – O sol de Oslo, 1998 – Pau Brasil
Comentário*
Moacyr Santos… Uma ciranda mesmo que ele escreveu, me passou, eu escrevi a letra e fiz a referência direta à origem dele [Flores]. Eu o comparo ao cirandeiro “Que faz ciranda o tempo inteiro/E só por isso/Tem seu valor”; ele que era um músico complexo, aderente a uma visão sofisticada das misturas musicais. Nesse caso, volta-se para a sua fonte originária. A letra apresenta um jeito ingênuo de composições de cânticos religiosos, de cirandas, de cantigas de roda. Ciranda nada mais é que uma roda de cantiga; é tanto a música quanto o modo de aglomerar-se — tanto o samba quanto a roda de samba.
[Refletindo sobre “Ciranda”, Gil se lembra de João Donato:] Tem aquela mesma inocência das canções dele.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Cinema novo
Gilberto Gil
Caetano Veloso
A voz do morro rasgou a tela do cinema
E começaram a se configurar
Visões das coisas grandes e pequenas
Que nos formaram e estão a nos formar
Todas e muitas: Deus e o Diabo
Vidas Secas, Os Fuzis
Os Cafajestes, O Padre e a Moça, A Grande Feira,
O Desafio
Outras conversas, outras conversas
Sobre os jeitos do Brasil
Outras conversas sobre os jeitos do Brasil
A bossa-nova passou na prova
Nos salvou na dimensão da eternidade
Porém, aqui embaixo “a vida”
Mera “metade de nada”
Nem morria nem enfrentava o problema
Pedia soluções e explicações
E foi por isso que as imagens do país desse cinema
Entraram nas palavras das canções
Entraram nas palavras das canções
Primeiro, foram aquelas que explicavam
E a música parava pra pensar
Mas era tão bonito que parasse
Que a gente nem queria reclamar
Depois, foram as imagens que assombravam
E outras palavras já queriam se cantar
De ordem, de desordem, de loucura
De alma à meia-noite e de indústria
E a terra entrou em transe, ê
No sertão de Ipanema
Em transe, ê
No mar de Monte Santo
E a luz do nosso canto
E as vozes do poema
Necessitaram transformar-se tanto
Que o samba quis dizer
O samba quis dizer: “Eu sou cinema”
O samba quis dizer: “Eu sou cinema”
Aí o anjo nasceu
Veio o bandido meteorango
Hitler Terceiro Mundo
Sem Essa, Aranha, Fome de Amor
E o filme disse: “Eu quero ser poema”
Ou mais: “Quero ser filme, e filme-filme”
Acossado no limite da garganta do diabo
Voltar à Atlântida e ultrapassar o eclipse
Matar o ovo e ver a Vera Cruz
E o samba agora diz: “Eu sou a luz”
Da lira do delírio, da alforria de Xica
De toda a nudez de Índia
De flor de Macabéia, de Asa Branca
Meu nome é Stelinha, é Inocência
Meu nome é Orson Antônio Vieira Conselheiro de Pixote Super Outro
Quero ser velho, de novo eterno
Quero ser novo de novo
Quero ser Ganga Bruta e clara gema
Eu sou o samba, viva o cinema
Viva o Cinema Novo
Cidade do Salvador
Gilberto Gil
Tanta dor
A cruz
A dor
A dor
Adormeço
A dor mereço
Agora
A dor
A dor
A dormência
Do sono lunar
Sonho
Sonho
A terra
No sonho
A terra inteira
No sonho
Aterrador
Mar
O mar
O mar
O maremoto
remoto
remoto
motivo
Teria Deus
Pra nos salvar
Fé
A fé
A fé
Só a fé
A fé
A felicidade
Cidade do Salvador
dor
dor
Gravações
Gilberto Gil – Cidade do Salvador – cd 2, 1998 – Polygram
Gilberto Gil – Umeboshi – ao vivo (1973), 2017 – Discobertas
Gilberto Gil – Gilberto Gil ao vivo – USP (1973), 2017 – Discobertas
Comentário*
Uma música carregadíssima de reflexão poética, de uso da poiesis; a música indo ao encontro do mundo idealizado da poesia, e sendo o sonho de que fala somente busca de assunto para engendramento construtivista do muro poético que vai se erguendo com suas palavras-tijolos; música trazendo o sentido de condensar ideias inteiras em palavras-verbetes que contêm toda a sua significação — procedimento de poesia concreta.
No plano musical, é bem parecida com Milton Nascimento, com frases elásticas, prolongadas. Algo muito fora da minha tônica; em mim tudo é mais onomatopaico, rítmico, as divisões fracionadas, e as palavras funcionando como rolamentos, rolimãs. Aqui não, as palavras são escorridas, estendidas como trilhos, sugerindo a imagem contínua dos trilhos que vão além do horizonte.
Muito isso. Muito miltoniana, nesse sentido
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Cibernética
Gilberto Gil
Solino sempre estava lá
Escrevendo: “Dai a César o que é de César”
César costumava dar
Me falou de cibernética
Achando que eu ia me interessar
Que eu já estava interessado
Pelo jeito de falar
Que eu já estivera estado interessado nela
Cibernética
Eu não sei quando será
Cibernética
Eu não sei quando será
Mas será quando a ciência
Estiver livre do poder
A consciência, livre do saber
E a paciência, morta de esperar
Aí então tudo todo o tempo
Será dado e dedicado a Deus
E a César dar adeus às armas caberá
Que a luta pela acumulação de bens materiais
Já não será preciso continuar
A luta pela acumulação de bens materiais
Já não será preciso continuar
Onde lia-se alfândega leia-se pândega
Onde lia-se lei leia-se lá-lá-lá
Cibernética
Eu não sei quando será
Cibernética
Eu não sei quando será
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao vivo, 1974 – Gege
Comentário*
Celestino, Solino, César e eu éramos colegas na Alfândega, em 62, 63; éramos fiscais. César era um entusiasta da cibernética e foi quem me falou de cibernética pela primeira vez; quem me deu o primeiro livro sobre o assunto – a obra clássica, de Norbert Wiener, o pai da cibernética. Cibernética era um dos temas que ele mais gostava de debater comigo.
César não era o que a gente poderia chamar classicamente, para os padrões da época – padrões de gente que vinha da universidade –, um comunista ou mesmo um simpatizante comunista, como muitos eram, como eu mesmo era e como eram tantos outros que pertenciam às linhas auxiliares, como eram definidos os que não eram comunistas, não pertenciam a uma daquelas agremiações clássicas de esquerda da vida universitária, da vida operária, mas que simpatizavam com a causa, tinham uma compreensão profunda pelos ideais socialistas, destes participando de alguma forma. O César talvez não fosse nem isso; ele talvez fosse mais um liberal até; mais, classicamente falando, um liberal. Mas ele tinha uma dificuldade muito grande com a ideia da acumulação dos bens materiais. Ele não compreendia bem isso, ele achava que isso não dá certo, que isso emperrava o mecanismo de desenvolvimento de evolução da humanidade.
No fundo era um comunista, o César Orrico – este era o sobrenome dele. ‘Onde lia-se alfândega leia-se pândega/ Onde lia-se lei leia-se lá-lá-lá’: isso é anarquismo libertário. Eu diria isso: César era talvez um liberal anarquista. Eu gostava muito dele. Ele era habitado pelo sentimento de que o avanço da ciência e da tecnologia traria benefícios espirituais para o homem; por isso ele me falou: ‘E a cibernética, você nunca leu? Eu disse: ‘Não; eu já ouvi falar, mas nunca li nada’. – ‘Tome aqui um livro’. Pronto. Me aplicou na cibernética.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Chuva miúda
Gilberto Gil
Não lava a calçada, não limpa o chão
Tal como o seu olhar
Não lê meu coração
Ai, meu Deus, chuva miúda
Se não muda o tempo e não abre o sol
Não vai dar pra brincar
Não vai dar meu cordão
Esse tempo que molha e não chove
Esse tempo
Esse papo que chove e não molha
Esse papo
Esse samba que eu fiz pra você
E você que nem me olha
E você que nem me olha
E você que nem me olha
Chuck Berry fields forever
Gilberto Gil
A jungle drum was brought and got the white God to get in
A pagan dance until he had no other chance unless the sin
Of black-white day and night, soul and mind magic
The European Goddess fainted under jungle drum’s sound
She was fertilized by some afro God while on the ground
So the begotten sons as samba, mambo, rumba, rhythm’n’blues
Became the ancestrals of what today we call rock and roll
Rock and roll is magic
Rock and roll is mixture
Chuck Berry fields forever
The joyful English four knights of the post-calypso
In the post-calypso age
Rock and roll
The opening page
What is to come next
We don’t know the text
No one knows precisely
It’s on to progress
Into its funky fullness
Next century
Gravações
Doces Bárbaros – Doces Bárbaros, 1976 – Universal Music
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao Vivo em Montreux), 1978 – Warner Music
Celso Fonseca – O som do sim, 1993 – Polaróides Music
Gilberto Gil – Eletroacústico Ao Vivo, 2004 – Warner Music
Caetano Veloso – Pipoca moderna – Caetano raro e inédito 2, 2006 – Universal Music
Ana Cañas – Hein?, 2010 – Sony Music
Comentário*
De acordo com Gil, a versão para o inglês de Chuck Berry Fields Forever foi feita durante toda uma madrugada. “Trabalho de artesão mesmo”, conta. “Guardião dos significados da canção, eu senti a necessidade de ser fiel em todos os sentidos e de, ao mesmo tempo, ir adiante, acrescendo coisas não constantes na letra em português.
“Um exemplo: na transposição, a deusa europeia transa com o deus africano; Gil: “Ela é literalmente comida, num estupro cósmico; ‘while on the ground’ é para dar bem a ideia de que ele a derrubou no chão e… Isso tinha que acontecer, até para reafirmar um arquétipo popular, que identifica a África com o masculino, a força física, a virilidade, a natureza de instinto básico, e a Europa com a racionalidade, a mediação do pensamento, a característica mesmo acética – embora, vistas por outro ângulo, a Europa possa até ser identificada com um sentido mais masculino e a África com um sentido mais feminino”.
Outro: impossibilitado de verter para o inglês o jogo sonoro entre os termos ‘versículo’ e ‘século’, Gil aproveitou os últimos versos para lançar um dado poético novo em relação ao texto de partida: a sugestão do funk como o gênero que, “depois do samba, mambo, rumba e rhythm and blues, e do rock and roll como a primeira página da época pós-calipso, viesse para – mais do que ser o descendente dos ‘begotten suns’ do deus bárbaro com a deusa ‘branca de neve’, pálida e frágil – se tornar a própria alma desse casamento e da música negra moderna”.
“No final, original e versão acabam se espelhando e se complementando.”
História e propaganda – “Chuck Berry Fields Forever dá uma visão dinástica do sincretismo religioso e cultural das Américas resultante da junção das culturas da Europa e da África, utilizando a música popular como fio condutor do processo e como um dos modos de apreendê-lo. As Américas são vistas a partir dos seus ritmos: o samba, brasileiro, o mambo e a rumba, centro-americanos, e o rhythm and blues, norte-americano, tudo isso desembocando no rock and roll, que seria assim a forma mais nova da linhagem e a mais representativa da época. Nesse aspecto, a canção não só faz uma apologia do gênero como uma propaganda da minha adesão a ele, o que só aconteceria de fato nos anos oitenta.”
Isomorfismo som-sentido – Os dez tês (num verso de catorze sílabas) de “Tambor de tinto timbre tanto tonto tom tocou”: ao colocar em prática este procedimento aliterativo a intenção do músico-poeta Gilberto Gil foi mimetizar “o tam-tam-tam dos tambores; a sonoridade inebriante – ‘tinto’ se refere a vinho -, o caratér alucinatório da batida reiterada dos tambores”; representar, em suma, “o transe através do som, como no candomblé.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Chuck Berry fields forever
Gilberto Gil
Tambor de tinto timbre tanto tonto tom tocou
E neve, garça branca, valsa do Danúbio Azul
Tonta de tanto embalo, num estalo desmaiou
Vertigem verga, a virgem branca tomba sob o sol
Rachado em mil raios pelo machado de Xangô
E assim gerados, a rumba, o mambo, o samba, o rhythm’n’blues
Tornaram-se os ancestrais, os pais do rock and roll
Rock é o nosso tempo, baby
Rock and roll é isso
Chuck Berry fields forever
Os quatro cavaleiros do após-calipso
O após-calipso
Rock and roll
Capítulo um
Versículo vinte
-Sículo vinte
Século vinte e um
Versículo vinte
-Sículo vinte
Século vinte e um
Chororô
Gilberto Gil
De quem chora tenho dó
Quando o choro de quem chora
Não é choro, é chororô
Quando uma pessoa chora seu choro baixinho
De lágrima a correr pelo cantinho do olhar
Não se pode duvidar
Da razão daquela dor
Não se pode atrapalhar
Sentindo seja o que for
Mas quando a pessoa chora o choro em desatino
Batendo pino como quem vai se arrebentar
Aí, penso que é melhor
Ajudar aquela dor
A encontrar o seu lugar
No meio do chororô
Chororô, chororô, chororô
É muita água, é magoa, é jeito bobo de chorar
Chororô, chororô, chororô
É mágoa, é muita água, a gente pode se afogar
Chororô, chororô, chororô
É muita água, é magoa, é jeito bobo de chorar
Chororô, chororô, chororô
É mágoa, é muita água, a gente pode se acabar
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao Vivo em Montreux), 1978 – Warner Music
Elba Ramalho – Coração Brasileiro, 1983 – Universal Music
Targino Gondim – Sou o forró!, 2021 – ONErpm
Comentário*
Chororô foi feita no quarto de hotel em Montreux, uns dois dias antes do meu primeiro show no festival de jazz da cidade. ‘Não tenho uma canção nova para esse show; o que é que eu vou fazer? Vou fazer um xote’, eu disse. Aí peguei o violão e fui tocando. Ao pensar na necessidade de uma letra, por algum desvão qualquer, não lembro qual, como naquelas ribanceiras em que você escorrega de repente, eu caí no ‘chororô’. Eu comecei pelo refrão, caindo no ‘chororô, chororô, chororô’, e me perguntei: ‘O que é que eu vou dizer agora?’ Aí eu tive de inventar a história de um chorão, que não era estimulada por ninguém: o choro era de alguém idealizado na minha cabeça.
Na verdade, embora idealizado, o personagem é como se fosse, também, uma espécie de alterego meu, e a canção como se fosse eu falando para mim mesmo: para um lado piegas, sentimentalóide, existente em mim. Como se houvesse em mim a possibilidade de idealizar uma personalidade hipertrofiada com essa característica, que desse margem a uma crítica, não digo necessariamente a mim mesmo, mas a qualquer um. ‘Chororô’ é uma música anti-emocionalista. Uma reiteração, também, do já aprendido nas experiências ligadas à economia álmica, existencial, emocional.
A canção tem um espírito nordestino evidente. O linguajar, trazendo expressões bem próprias, apresenta um inegável traço étnico do modo de falar nordestino – para combinar com a linguagem musical do xote, para inclusive favorecer o fraseado, o modo de cantar, a adaptação da palavra à melodia. Porque a música nordestina possui uma propriedade muito particular, e as frases, a construção dos versos, têm todo um idiomatismo próprio do modo de falar nordestino, comparado aos outros modos mais urbanos, ao carioca, por exemplo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Choro de criança
Gilberto Gil
Perinho Santana
Em casa quem não quiser choro de criança
Em casa quem não quiser choro de criança não casa
No caso quem não quiser choro de criança
Não casa porque quem casa tem que escutar
O choro de criança
O choro de criança é tudo
O choro de criança é tudo que se tem
O choro de criança é tudo que se tem em casa
O choro de criança é tudo que se tem em casa
Quando alguém se casa é choro de criança
O tudo que se tem
No caso quando alguém se casar
É choro de criança tudo
Que alguém terá de cantar
Pra consolar
O choro de criança
Chiquinho Azevedo
Gilberto Gil
Garoto de Ipanema
Já salvou um menino
Na praia do Recife
Nesse dia Momó também estava com a gente
Levou-se o menino
Pra uma clínica em frente
E o médico não quis
Vir atender à gente
Nessa hora nosso sangue ficou bem quente
Menino morrendo
Era aquela agonia
E o doutor só queria
Mediante dinheiro
Nessa hora vi quanto o mundo está doente
Discutiu-se muito
Ameaçou-se briga
Doze litros de água
Tiraram da barriga
Do menino que sobreviveu, finalmente
Chiquinho Azevedo
Teve muita coragem
Lá na Boa Viagem
Na praia do Recife
Nesse dia Momó também estava com a gente
Todo mundo me pergunta
Se essa história aconteceu
Aconteceu, minha gente
Quem está contando sou eu
Aconteceu e acontece
Todo dia por aí
Aconteceu e acontece
Que esse mundo é mesmo assim
Gravações
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – It’s good to be alive -anos 90, 2002 – Warner Music
Comentário*
A música foi feita, em desagravo ao Chiquinho, depois da prisão em Florianópolis. Como ele tinha sido condenado comigo por porte de maconha, e tinha ficado aquela pequena mancha na imagem dele, e como antes – em 75 – tinha acontecido o episódio que eu conto na canção, em que ele tinha tido a atitude heroica de salvar um menino em Recife, eu achei que era uma boa oportunidade para fazer um contraponto e, ao homenageá-lo, mostrar como ele era um belo cidadão, uma pessoa extraordinária, e como o fato de ele fumar e ter sido preso com maconha não diminuía em nada a beleza do ser humano que estava nele.
O episódio aconteceu durante a excursão do show Refazenda. Chiquinho, Momó (Moacir Albuquerque) e Dominguinhos tocavam comigo. Eu, Momó e Chiquinho – que viria depois a ser o baterista dos Doces Bárbaros – estávamos na praia, e, de repente, um menino se afogando, ele vai, se joga no mar, salva e traz o menino pra areia. O menino naquela agonia, inconsciente, bem defronte havia uma clínica; levamos o menino pra lá, o socorro era urgente, e aí, o médico: ‘Peraí, quem vai pagar, quem é o responsável, e não sei o quê.’ Aquela história. ‘Responsável, coisa nenhuma!’, a gente começou a gritar e xingar.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Chewing gun with banana
Gilberto Gil
Only when your Uncle Sam allows me in
With my tambourine, my cuica and my zabumba
Only when he knows that a samba is not a rumba
So then, I will mix it all
Miami with Copacabana
Your chewing gun I’ll mix with my banana
And then my samba’s gonna hit your soul
Boroboroborobo, boptch-boptch-bop
Boroboroborobo, boptch-boptch-bop
Boroboroborobo, boptch-bop
What a great confusion in the hall
Boroboroborobo, boptch-boptch-bop
Boroboroborobo, boptch-boptch-bop
Boroboroborobo, boptch-bop
We are dancing samba-rock’n’roll
Yes, but on the other hand
We can feel the boogie-woogie trying hard to understand
How to do a brake and shake a tambourine
Joing my Brazilian jamboree
[ inédita – Chiclete com Banana, de Gordurinha e Almira Castilho ]
Chamada
Gilberto Gil
Gravação
Gilberto Gil – Z, 2002 – Warner Music
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Chão batido
Gilberto Gil
o lugarejo aqui não tinha
ensejo nem capacidade
nem caminhão aqui não vinha
não tinha estrada de verdade
o mais perto que se podia
pegar transporte pra cidade
era na verdade Luzia
o estirão de qualidade
São João, São João
São João em vez de chão batido a estrada
agora tá toda asfaltada
minha Toyota anda que anda
comprei novinha financiada
em vez de pé de serra a banda
agora vai tocar ciranda
com hip hop misturada
por exigência da moçada
a globalização que manda
São João, São João
São João vamo encontrar com tanta gente
a festa agora é diferente
que o mundo tá todo mudado
sobrou pouquinho do passado
uma pamonha um milho assado
uma quadrilha, uma quermesse
e o baião que permanece
a cada dia mais cotado
e o xaxado e o xaxado,
São João, São João
São João também tem outra novidade
a tal da eletricidade
seguida da telefonia
do celular estrela guia
de qualquer ponto a gente envia
mensagens se localizando
que tá pertim, que tá chegando,
já reservei pela Internet
ingressos para o show da Ivete
São João, São João
São João essa garota na carona
é manga-rosa temporona
que manga verde é muito dura
Gravação
Gilberto Gil – Fé na festa, 2010 – Gege
Certeza (Mão na mão)
Gilberto Gil
Perinho Santana
Falarei de amor
A não ser
Que eu saiba sua cor
Sua dureza
Seu cheiro, seu sabor
Sua certeza
E a certeza que se tem do amor
Nasce exatamente do calor
Da mão na mão
Do fogo no coração
Que amassa a massa
E assa o pão
Que a fome
Come e passa
Gravação
Guadalupe – Princesa do meu lugar, 1980 – GM Music
Cérebro eletrônico
Gilberto Gil
Faz quase tudo
Quase tudo
Mas ele é mudo
O cérebro eletrônico comanda
Manda e desmanda
Ele é quem manda
Mas ele não anda
Só eu posso pensar se Deus existe
Só eu
Só eu posso chorar quando estou triste
Só eu
Eu cá com meus botões de carne e osso
Hum, hum
Eu falo e ouço
Hum, hum
Eu penso e posso
Eu posso decidir se vivo ou morro
Porque
Porque sou vivo, vivo pra cachorro
E sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Em meu caminho inevitável para a morte
Porque sou vivo, ah, sou muito vivo
E sei
Que a morte é nosso impulso primitivo
E sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Com seus botões de ferro e seus olhos de vidro
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1969), 1969 – Philips
Marisa Monte – Barulhinho Bom, 1996 – Phonomotor
Gilberto Gil – Quanta gente veio ver (Ao Vivo), 1998 – Gege
Gilberto Gil – It’s good to be alive – anos 90, 2002 – Warner Music
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Biscoito Fino
Comentário*
Eu estava preso havia umas três semanas, quando o sargento Juarez me perguntou se eu não queria um violão.
Eu disse: “Quero”. E ele me trouxe um, com a permissão do comandante do quartel. O violão ficou comigo uns quinze dias. Aí, eu, que até então não tinha tido estímulo para compor (faltava a “voz” da música, o instrumento), fiz “Cérebro eletrônico”, “Vitrines” e “Futurível”, além de uma outra, também sob esse enfoque,
ou delírio, científico-esotérico, que possivelmente ficou apenas no esboço e eu esqueci.
O fato de eu ter sido violentado na base de minha condição existencial — meu corpo — e me ver privado da liberdade da ação e do movimento, do domínio pleno de espaço-tempo, de vontade
e de arbítrio, talvez tenha me levado a sonhar com substitutivos e a, inconscientemente, pensar nas extensões mentais e físicas do homem, as suas criações mecânicas; nos comandos teleacionáveis que aumentam sua mobilidade e capacidade de agir e criar. Porque essas são ideias que perpassam as três canções.
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999. “Tinha já passado pela Vila Militar da Tijuca e de Deodoro; agora estava no Quartel dos Paraquedistas, onde fiquei sozinho numa cela. Foi lá que, pela primeira vez, li uma reportagem sobre macrobiótica, e era com John Lennon e Yoko Ono. Pedi à Gizeuda — irmã de Turíbio
Santos — e à Sandra, que naquela época era ainda minha namorada, para me trazerem livros sobre macrobiótica. Foi lá que tive as primeiras noções sobre isso e pedia ao pessoal da cozinha
do quartel para me trazer aveia e banana, e comecei um vegetarianismo incipiente, possível naquela situação, mas com uma disposição muito grande. Li os primeiros livros de ioga que a
Gizeuda me trouxe e comecei a fazer as primeiras posições de relaxamento e respiração.
“Sua verdadeira iniciação para um processo de liberdade interna começa na condição de prisioneiro. — Eu diria que passou a ter ali uma face mais visível a minha busca espiritual, a minha ânsia mística. Todo esse primeiro polimento, essa primeira retirada da poeira da superfície do meu ser foi feita ali dentro da prisão. ‘Cérebro eletrônico’ é uma das músicas que retratam isso. Era uma época onde a cibernética estava começando a ser discutida publicamente. O computador começando, ainda incipientemente naquele momento, mas já se tornando uma realidade. A gente nem chamava
ainda de computador, era cérebro eletrônico, aquele monstrengo, ainda nem um pouco miniaturizado como são os computadores
hoje. Era um tempo com aquelas perspectivas de ficção científica, com 2001: Uma odisseia no espaço, de Arthur Clarke, e as primeiras viagens espaciais se concretizando.
[…]
“Era o mundo, esse mundo moderno dos homens e suas ciências e eu com a ciência de Deus, com o conhecimento da condição Divina que era tudo que me restava ali. Confinado, só tinha a mim mesmo, em si mesmo. A música ‘Cérebro eletrônico’ reflete esse contraste, esse diálogo entre o mundo dos homens e seu poder, o mundo de Fausto e o mundo de Deus. Há uma frase
fundamental dessa música: ‘Só eu posso pensar se Deus existe/Só eu/ Só eu posso chorar quando estou triste’. Acho que esses versos são resumos daquela situação-limite, naquela fronteira entre a
vida e a morte que, simbolicamente, se instalara naquela tensão máxima entre liberdade e prisão. Estava ali, trancafiado, mas com viagens astrais e mentais, as que me eram possíveis. ‘Vitrines’,
por exemplo, foi uma música exatamente nesse sentido, saindo daquele microcosmo reducionista de prisão para acompanhar o voo livre das naves espaciais.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Casinha feliz
Gilberto Gil
Toda casinha feliz
Ainda é vizinha de um riacho
Ainda tem seu pé de caramanchão
Onde resiste o sertão
Toda casinha feliz
Ainda cozinha no fogão de lenha
Ou fogareiro de carvão
De dia, Diadorim
De noite, estrela sem fim
É o Grande Sertão: Veredas
Reino da Jabuticaba
As minas de Guimarães Rosa
De ouro que não se acaba
Onde resiste o sertão
Toda casinha é feliz
Porque à tardinha tem Ave Maria
E o beijo da solidão
Gravações
Gilberto Gil – Dia dorim noite neon, 1985 – Warner Music
Gilberto Gil – As canções de Eu, Tu, Eles, 2000 – Warner Music
Renato Braz – Outro quilombo, 2002 – Atração Music
Comentário*
A letra veio toda na cabeça, toda de cor, de coração total, quando eu a escrevi, em Curitiba, no hotel Mabu, sob uma tempestade de raios, relâmpagos e trovões, deitado no chão do quarto, com imagens de Ituaçu, da infância na cidade, na memória. ‘Casinha feliz’ começou com Guimarães mesmo, com Diadorim – o personagem do ‘Grande sertão: veredas’ –, com o sertão dele.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Cantiga de quem está só
Gilberto Gil
Quem ganhará nesta hora os teus abraços?
Meu pensamento rasteja o teu caminho
Minha saudade sem fim segue os teus passos
Ai, quem terá entre as mãos os teus cabelos?
Quem ouvirá dos teus lábios a frase louca?
No meu desejo de amor estou a vê-los
Chego a senti-los até em minha boca
A quem dirás “meu amor”
Com este jeito tão teu
Com este estranho calor
Que há tanto tempo foi meu?
Ai, quem será que tu vais mandar embora?
Quem chorará como eu, que choro agora?
Cantiga
Gilberto Gil
Torquato Neto
Eu te amo tanto, tanto
Que esta minha vida
Sem você
Seria para sempre triste
E eu nem sei se existe
Vida assim
Que alguém possa viver
Meu bem eu te amo tanto
Que vou te dizer
Daria minha vida
Pra não te perder
Cantando as Horas
Gilberto Gil
O tempo todo eu fico a procurar
Cá no meu peito tá acesa a chama
Minha boca chama a sua sem parar
Sou passarinho e bem devagarinho
Eu vou cantando as horas pra poder voar
Pra nossa casa
Pro nosso ninho
E no teu carinho me aconchegar
Nossos lençóis bordados, nossa cama
Quando a gente ama
Só pensa em ficar
Mas a saudade tem a sua trama
E é por ir embora que eu posso voltar
Eita que a saudade faz milagre
Abre a nossa porta depois de fechar
Eita que a espera não altera
Um amor maior que o tamanho do mar
Amanhã bem cedo estou na estrada
Nada que a demora avexe o coração
Se a saudade for muito apertada
Sei que largo tudo e pego um avião
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
Essa foi feita a partir de um fragmento de canção,
já com letra e tudo, que a Roberta me mandou pra que eu continuasse, terminasse. Eu só entrei no verso “Eita que a saudade faz milagre”, daí em diante é que é minha. Eu só entrei nessa pequena segunda parte, pra dar um fecho na canção. Mas toda a ideia, toda a temática, os elementos constituintes da canção, foi ela que estabeleceu.
Aí você pega o tema da saudade que é caro a você, assim como o da estrada. — É. Essa ideia de voltar pra casa, um sentimento bem nordestino também. Do retirante sempre saudoso, ansioso,
esperançoso de voltar pro seu torrão natal. Tem muito isso na música nordestina. E, como ela já veio com a canção proposta como um xote mesmo, foi natural que esse sentimento nordestino viesse também na música e nos versos que eu coloquei.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Canô
Gilberto Gil
da época do trem motriz
do auge dos canaviais
tens vivido a semear a luz
a paz e o amor que tem raiz
na índia dos teus ancestrais
vida cheia de momentos raros
nesta cara santo amaro
terra de doces paixões
zeca e todas as meninas
e os meninos, quantos sinos
quantos hinos, quantas orações
has de ouvir de nós
sempre essa voz
sempre essa voz
sempre em tom de louvor
nossa emoção, canô
nesta canção, canô
nossa emoção, nesta canção
parabéns pra você, canô
cem anos com você, canô
parabéns pra você, canô
cem anos com você, canô
Gravação
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Gege
Comentário*
Uma música em homenagem a Canô [a mãe de
Caetano Veloso e Maria Bethânia] fazendo cem anos. Aí, as reminiscências, as rememorações no tempo. “Desde o tempo do carro de boi/Da época do trem motriz”, que foi uma novidade extraordinária no transporte no Recôncavo da Bahia; o trem motriz que levava Salvador pra Santo Amaro. Canô, a personagem tão vivida e tão vívida naquela comunidade extraordinária. Primeira mulher a dirigir um carro naquela pequena cidade de Santo Amaro. Pioneira em tantos sentidos. E eu ousei associá-la, no ponto de vista de descendência, aos indianos. É que vieram alguns deles pra região, trazendo o gado nelore e zebu, do século XVIII pro século XIX.
A propósito dos traços indianos de Dona Canô. — Não só dela, mas do próprio marido, Zeca, também. E de todos os descendentes. Me brotou assim a ideia de que ela pudesse ter sido mesmo descendente de um daqueles indianos que estiveram por ali, naquela época.
A canção vai juntando essas coisas e, evidentemente, os filhos, a família. O carinho e a amizade profunda [entre as famílias de Caetano e de Gil]. Ela, Claudionor, e minha mãe, Claudina. Ele, José, e meu pai, também José. Muitas sintonias. Esse aspecto sintônico, sincrônico, da nossa união, eu e Caetano. E ela, sendo assumida como mãe minha também.
Havia vários campos de extração das pepitas, que iam aparecendo ali, nos vários campos do grande campo afetivo das nossas vidas. E eram cem anos, coisa rara. Como eu vim a fazer “Jacintho”,
depois, pra celebrar um centenário. Um outro centenário de um conhecido em São Paulo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Canção da moça
Gilberto Gil
Capinan
Que um dia possa ter um lugar
Um lugar que seja meu, que seja meu
Um luar, um luar sobre o caminho
Um amor a quem dê flores
Nuvens no céu, conchas no mar
Amor a quem ensine o amor
Que aprendi ao caminhar
Vou andando, vou sonhando, vou sorrindo
Teu sorriso, sonho antigo em minha dor
Cálice
Gilberto Gil
Chico Buarque
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
© Gege Edições Musicais / © Cara Nova Editora Musical LTDA.
Gravações
Chico Buarque e Milton Nascimento – Chico Buarque, 1978 – Philips
Maria Bethânia – Álibi, 1978 – Philips
MPB 4 – Bons Tempos, Hein?, 1979 – Universal Music
Gabriel O Pensador – Gabriel O Pensador, 1993 – Sony Music
Chico Buarque – Perfil, 1997 – Polygram
Meninos de São Caetano – Banda Sinfônica do Agreste, 1997 – Velas
Sérgio Ricardo – Songbook Chico Buarque – Vol. 3, 1999 – Lumiar Discos
Chico Buarque e Milton Nascimento – Millenium, 2004 – Universal Music
Gilberto Gil e Chico Buarque – Gil & Chico sound + vision / Phono 73, 2004 -Universal Music
Miucha e Bebel – Gil na delas, 2005 – BMG
Maria Bethânia – Bethânia Canta Chico {cd 2}, 2005 – Universal Music
Chico Buarque e Milton Nascimento – Gilberto Gil – 2 lados, 2010 – Universal Music
Chico César – Cantos e encontros de uns tempos pra cá, 2011 – Biscoito Fino
Pitty e Indireto- Single, 2011 – Pacific Records
João Fenix – De volta ao começo, 2016 – Biscoito Fino
Daniela Mercury – O axé, a voz, o violão, 2016 – Biscoito Fino
Antônio Zambujo – Até pensei que fosse minha, 2016 – Som Livre
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao Vivo na USP (1973), 2017 – Discobertas
Milton Nascimento e Chico Buarque – Os Dias Eram Assim (trilha sonora), 2017 – Som Livre
Comentário*
A Polygram queria fazer um grande evento com todos os seus artistas no formato de encontros, e foi dada a mim e ao Chico a tarefa de compor e cantar uma música em dupla.
Era semana santa e nós marcamos um encontro no sábado no apartamento dele, na Rodrigo de Freitas (a lagoa referida, aliás, por ele na letra). Eu pensei em levar alguma proposta e, um dia antes, no fim da tarde, me sentei no tatame, onde eu dormia na época, e me pus a esvaziar os pensamentos circulantes para me concentrar. Como era sexta-feira da Paixão, a ideia do calvário e do cálice de Cristo me seduziu, e eu compus o refrão incorporando o pedido de Jesus no momento da agonia. Em seguida escrevi a primeira estrofe, que eu comecei me lembrando de uma bebida amarga chamada Fernet, italiana, de que o Chico gostava e que ele me oferecia sempre que eu ia a sua casa.
No sábado não foi diferente: ele me trouxe um pouco da bebida, e eu já lhe mostrei o que tinha feito. Quando, cantando o refrão, eu cheguei ao ‘cálice’, no ato ele percebeu a ambiguidade que a palavra, cantada, adquiria, e a associou com ‘cale-se’, introduzindo na canção o sentido da censura. Depois, como eu tinha trazido só o refrão melodizado, trabalhamos na musicalização da estrofe a partir de ideias que ele apresentou. E combinamos um novo encontro.
Ele acabou fazendo outras duas estrofes e eu mais uma, quatro no total, todas em oito decassílabos. Dois ou três dias depois nos revimos e definimos a sequência. Eu achei que devíamos intercalar nossas estrofes, porque elas não apresentavam um encadeamento linear entre si. Ele concordou, e a ordem ficou esta: a primeira, minha, a segunda, dele; a terceira, minha, e a última, dele.
Na terceira, o quarto verso e os dois finais já foram influenciados pela ideia do Chico de usar o tema do silêncio. O termo, aliás, já aparecia na outra estrofe minha, anterior: ‘silêncio na cidade não se escuta’, quer dizer: no barulho da cidade, não é possível escutar o silêncio; quer dizer: não adianta querer silêncio porque não há silêncio, ou seja: não há censura, a censura é uma quimera; além do mais, ‘mesmo calada a boca, resta o peito’ e ‘mesmo calado o peito, resta a cuca’: se cortam uma coisa, aparece outra.
Aí, no dia em que nós fomos apresentar a música no show, desligaram o microfone logo depois de termos começado a cantá-la. Tenho a impressão de que ela tinha sido apresentada à censura, tendo-nos sido recomendado que não a cantássemos, mas nós fizemos uma desobediência civil e quisemos cantá-la.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Cada tempo em seu lugar
Gilberto Gil
Preciso refrear um pouco o meu desejo de ajudar
Não vou mudar um mundo louco dando socos para o ar
Não posso me esquecer que a pressa
É a inimiga da perfeição
Se eu ando o tempo todo a jato, ao menos
Aprendi a ser o último a sair do avião
Preciso me livrar do ofício de ter que ser sempre bom
Bondade pode ser um vício, levar a lugar nenhum
Não posso me esquecer que o açoite
Também foi usado por Jesus
Se eu ando o tempo todo aflito, ao menos
Aprendi a dar meu grito e a carregar a minha cruz
Ô-ô, ô-ô
Cada coisa em seu lugar
Ô-ô, ô-ô
A bondade, quando for bom ser bom
A justiça, quando for melhor
O perdão:
Se for preciso perdoar
Agora deve estar chegando a hora de ir descansar
Um velho sábio na Bahia recomendou: “Devagar”
Não posso me esquecer que um dia
Houve em que eu nem estava aqui
Se eu ando por aí correndo, ao menos
Eu vou aprendendo o jeito de não ter mais aonde ir
Ô-ô, ô-ô
Cada tempo em seu lugar
Ô-ô, ô-ô
A velocidade, quando for bom
A saudade, quando for melhor
Solidão:
Quando a desilusão chegar
Gravação
Gilberto Gil – O eterno deus Mu dança, 1989 – Warner Music
Comentário*
Um autorretrato autocrítico.
O começo versa sobre a atuação política no mundo; a ilusão de que a transformação pode ser feita segundo o seu lema, sua imagem; de que ela não é um processo lento, contraditório, cheio de altos e baixos e de vaivéns, ao invés de um escorrer no tempo; e o fato de que muitas vezes ela é imperceptível, misteriosa, e o afã humano de que ela seja algo dominável é uma panaceia, coisa das ideologias. Muito a ver com eu ter ido para a política, tentar dar uma contribuição, como gratificação egoísta de desejo.
Eu tinha passado pela Secretaria de Cultura, tentado a Prefeitura, vivido dois anos intensamente conflituosos da vida política em Salvador. Estava na Câmara, quando compus a música. Há nela um tom de lamento de The Fool on The Hill: o homem solitário, na montanha, apreciando o mundo louco; louco, também, de vê-lo e ser parte dele.
Na segunda estrofe, outra autocrítica: à mania de bondade. E na última, à irracionalidade do ímpeto como algo de eficácia indiscutível; à pretensão de que do impulso decorra tudo que se quer (ali, também, uma referência oculta a Caymmi: ‘Um velho sábio na Bahia’).
‘Cada tempo em seu lugar’: pra passar mais uma vez essa ideia de indissociabilidade do tempo-espaço, de que eu gosto muito.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil