Músicas
Others Saw It
Gilberto Gil / Jorge Mautner
That that walt witman saw
Maiakowiski saw
Many others saw too
Something profoundly new
About manking in Brazil
Teddy Roosevelt as well
Rabindranah tagore
Stephan Zweig once again
All of them said amen
To that burst of life will
Roosevelt certenly felt
Our socio-cultural blend
He would consider it as a normal global trend
Mainly is his own country it should apply
He would try, melting pot, he would try
Even to pass a law his congress denied.
Rabindranah tagore preferred a prophecy
Bold enough he would say that Brazil is goinna be
A shore, a floor, a door into an other land
Wonderland, ye ye ye, motherland
Land of a man reborn on a mat made of sand
Maiakowiski heard
A whisperig mermaid
Softtly tell him about
A new mankind that is out there
There in the slums and blocks
Of these violent towns
South American Towns
African Towns around
Places for life unbound
For sunny sons of god
Places for life unbound
For tons and tons of blood
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Gege
Comentário*
A versão de “Outros viram” eu fiz sozinho. Eu já havia feito uma versão pro inglês de uma música minha com Mautner, “O rouxinol”, pro disco Nightingale; canção que deu título ao disco que eu fiz então nos Estados Unidos com produção do Sérgio Mendes. Aí aproveitei pra fazer uma versão também dessa música, “Outros viram”, pra o inglês. Pra seguir uma tradição particular do meu trabalho com Jorge. Mas, no caso de “Others Saw It”, eu fiz já de posse, digamos, do cerne embrionário, da visão, da canção. E contando, de novo, com a facilitação da plasticidade linguística do inglês. Aí a tentação ficava irrecusável. E havia a perspectiva da ampliação do público: um público mundial, sendo o inglês uma língua de poder civilizatório muito grande. Aí eu fiz a versão, logo em seguida da canção. Ao gravar o disco, gravei a minha letra com Jorge e depois a minha versão em inglês.
A admiração misteriosa que alguns estrangeiros, entre os quais os três grandes poetas citados na canção, dedicaram ao Brasil e o sentido de vertê-la para o inglês. — Para dar a ideia da dimensão, da cobertura ampla que a noção auspiciosa de Brasil tem. A coisa de isso não ser uma particularidade nossa; não ser autorreferente. A noção de um Brasil redencionista, redentor — esse Cristo Redentor — não ser só uma visão nossa, mas ser uma visão planetária. A versão em inglês tinha um pouco a finalidade de comunicar isso.
Você já demonstrou sua competência para verter tanto do inglês para o português — como demonstram as recriações de “No Woman, No Cry” e de “I Just Called to Say I Love You” — como do inverso. — É o fascínio de transitar entre uma língua e outra e o encontro com essas facilidades maiores ou menores em relação à plasticidade linguística. Isso tudo é fascinante.
Os versos alusivos a Tagore exibem uma sonora sequência de vocábulos sucessivos terminados em “or” num verso (“a shore, a floor, a door”) seguida de outra com termos com “land” em função sufixal (“other land/Wonderland/motherland”), com uma brilhante conclusão imagética (“a man reborn on a mat made of sand”). — Essa imagem poética do homem deitado na areia.
E num “mat” feito de areia! “Mat” que é um termo usado hoje entre nós para designar o tapete usado na prática de ioga. Isso num trecho relacionado com um poeta indiano. — Exatamente. E as areias brancas das praias brasileiras… Tudo isso…
São liberdades que particularidades de uma língua como o inglês, de estrutura sintética, permitem, propiciando que na versão de uma canção escrita originalmente em português você use mais palavras do que — e até lance ideias não constantes — nos versos de partida. — Exatamente, mais ainda. Permite que eu fique mais livre para provocar o surgimento de outras palavras. Daí, em “Others Saw It”, eu pude fazer desdobramentos semânticos que não estavam nas propostas iniciais do Jorge. Pude viajar melhor.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Outros viram
Gilberto Gil
Jorge Mautner
Maiakowscki viu
Outros viram também
Que a humanidade vem
Renascer no Brasil!
Teddy Roosevelt sentiu
Rabindranath Tagore.
Stefan Zweig viu também
Todos disseram amém
A essa luz que surgiu!
Roosevelt que celebrou nossa miscigenação
Até a considerou como sendo a solução
Pro seu próprio país
Pra se amalgamar
Misturar “melting pot” feliz
Não conseguiu pois seu Congresso não quis!
Rabindranath Tagore também profetizou
Ousou dizer que aqui surgiria o ser do amor
Um ser superior, civilização da emoção, da paixão, da canção
Terra do samba sim e do eterno perdão!
Maiacowski ouviu
A sereia do mar
Lhe falar de um gentio
De um povo mais feliz
Que habita esse lugar!
Esta terra do sol
Esta serra do mar
Esta terra Brasil
Sob este céu de anil
Sob a luz do luar!
Gravação
Jorge Mautner – Revirão, 2006 – Gege/ Warner Music
Comentário*
Da escolha de um tema muito importante, um tema alto. — Um tema que está ligado à percepção de uma especialidade brasileira. O Brasil como um evento civilizatório importante pelos seus traços de mistura, de miscigenação cultural, racial, e sua localização geográfica no planeta. E pela história da sua gestação mesmo como nação. A questão do empreendimento dos templários portugueses, a importância do sebastianismo com sua visão de uma terra edênica que surgiria. Essa visão profética associada a uma terra e um povo específicos e especiais. A música toca nessa questão, na compreensão do papel do Brasil ou na suposição sobre o papel do Brasil; no almejo de que o Brasil seja algo diferente, algo diverso, com os traços todos de especificidade geográfica, de convergência de culturas vindas de vários lugares do mundo etc., que dão margem a essa especulação, a esse sonho, ao seu surgimento. E o sebastianismo é uma das correntes mais imediatamente ligadas a tudo isso, porque os portugueses foram os descobridores.
Eu escrevi a canção com Jorge, fizemos tudo junto. Ele evidentemente propôs as referências a Maiakóvski, a Walt Withman, a Tagore. A coisa dos grandes louvadores da dimensão brasiliana da vida. Os grandes fãs do Brasil. Isso era tema de nossas conversas. Nós estávamos em Araras, na serra do Rio de Janeiro. Ele passava uns dias comigo, e a gente fez essa música. Fizemos outra na mesma ocasião, que foi “Os pais”, que escrevemos juntos também.
Além das alusões aos três grandes poetas, Stevan Zweig e Teddy Roosevelt são citados. — Stefan Zweig, que veio pra cá e morou aqui, escreveu o livro Brasil, país do futuro, com essa mesma atitude de compreensão de uma dimensão profética em relação à civilização brasileira. Ele foi um desses visionários sobre a dimensão e a inserção do Brasil no mundo. E o Roosevelt [que fez uma expedição à Amazônia com o marechal Cândido Rondon] aplicou a expressão “melting pot” relacionada ao Brasil. Ele disse que a sociedade brasileira era um “melting pot”; que deveria se desenvolver a partir de uma visão de amálgama de raças e culturas. E teria voltado para os Estados Unidos com a intenção de institucionalizar o “melting pot” como uma dimensão civilizatória importante. Chegou a propor isso ao congresso americano, que acabou não topando. Ele possivelmente deve ter notado semelhanças, aproximações em termos dos vetores de formação do Brasil e dos Estados Unidos, ambas civilizações novas, num continente novo, o continente americano. Ambas com a mistura de europeus, brancos, indígenas locais e negros trazidos d’África. Eu acho que ele achava que Brasil e Estados Unidos tinham esse viés em relação ao resto do mundo, que eram civilizações irmãs por causa desses traços de parentescos muito aproximativos.
Ambas nações de grande dimensão territorial. — Grande dimensão territorial e unidade linguística. Eu acho que foi isso que o levou à tentação de propor a institucionalização, ou seja, como isso seria feito, que tipo de parametração em termos de regras e réguas seria empregada pra estabelecer tais medidas e tomá-las como administrativas e técnicas. Ele devia ter uma ideia de tudo isso na cabeça. É interessante essa canção despertar, dentre outras coisas, esse interesse de revisita histórica, de recuperação histórica de um momento de uma grande figura — sem contar os outros grandes que são mencionados — que foi um presidente da República do maior país das Américas, hoje a maior potência política, cultural, social do mundo; é importante a canção levantar essa curiosidade histórica sobre ele e sobre o significado do Brasil.
O fato de a canção ter sido composta em 2006, uma época politicamente mais positiva no país do que a que nós estamos vivendo agora [2021], não contribuiu de alguma maneira para que vocês se animassem a escrevê-la? — É possível que aquele momento histórico tenha ensejado uma positividade; tenha supostamente aberto uma janela pra essa visão, pro descortino da luminosidade, da claridade de que a civilização brasileira era portadora. E portanto era propício, pertinente, o anúncio disso. Era o momento adequado a esse anúncio, a essa profetização. É possível que sim; é seguro que sim. Já por tudo: por toda a modernidade brasileira — Brasília, Bossa Nova, todo o encadeamento histórico do Brasil; Getúlio Vargas, Segunda Guerra Mundial, tudo mais; lá atrás a missão e a influência francesa… Enfim todo esse encadeamento histórico de reunião dessas vertentes variadas, de várias origens e de vários caracteres. Acho que tudo estimulava [o sentido da canção], e aquele, evidentemente, era um momento em que esse encadeamento histórico ficava mais evidente pra o estudioso de Brasil.
Estávamos sob o governo do Lula. O Brasil ganhou uma respeitabilidade que não havia tido ainda nem com Fernando Henrique. — Que não havia sido possível ainda com Juscelino. Mas todos esses foram momentos insinuadores disso [da contribuição original que o país poderia dar]. Por isso citei a missão francesa, citei Getúlio e a Segunda Guerra Mundial, citei a Bossa Nova. Lula é um coroamento, digamos assim, da ideia de unidade nessa tendência, por força da própria condição nova da história nas comunicações, a agilidade das comunicações internacionais: o novo tempo já ali, já chegando a internet, essas coisas todas. Houve uma espécie de coroamento dessa tendência na escolha de um estadista moderno, original. E os traços de personalidade, de formação, de alguém como o Lula, davam a ele o perfil de uma liderança que talvez significasse mais do que tudo que já tinha vindo antes em termos do estadismo brasileiro. Uma dimensão utópica.
E havia o fato de que você era ministro da Cultura. — Também. Até por isso mesmo, por todas essas razões. Eu era ministro da Cultura por tudo isso, por toda essa cadeia de condicionamentos históricos.
“Outros viram” é uma canção do poeta que é ministro da Cultura. — Sim, sem dúvida. E de Mautner, com a perspicácia que ele sempre teve em relação a isso, a expectativa permanente dele em relação ao redencionismo promovido pelo reajuste da sociedade brasileira, pela reconciliação da sociedade brasileira com princípios universais, amplos, de valores. Jorge sempre foi um defensor ferrenho dessa ideia. Então ter ocorrido a ele essa reunião de nomes e figuras intelectuais e poéticas, coincidindo, como disse eu antes, com a dimensão profética do sebastianismo português, o Brasil sendo necessariamente visto como um desdobramento da civilização lusitana. Tudo isso junto.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Outros bárbaros
Gilberto Gil
Em nossos corações ainda resta um quê de ansiedade
Apesar de ter sido um grande prazer para todos
Resta saber se ainda queremos seguir
Querendo-nos, mútuo prazer
Outros bárbaros tão doces tão cruéis
Seguem vindo
Vivendo seus papéis de mocinhos e
De bandidos
Será que ainda temos o que fazer na cidade
Em nosso corações já reside um quê de saudade
De saudade
Gravações
Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Caetano Veloso – Outros (doces) bárbaros, 2004 – Conspiração Filmes e Biscoito Fino
Comentário*
[Na volta dos Doces Bárbaros, com Caetano, Gal e Bethânia, “Outros bárbaros” refletia sobre os versos “Com amor no coração/ Preparamos a invasão/ Cheios de felicidade/ Entramos na cidade amada”, de “Os mais doces bárbaros”, de Caetano, que abriu o álbum Doces bárbaros, de 1976.] Será que ainda tem aquela invasão proposta por Caetano? A quantas anda aquela questão? Aquela propunha a regeneração da utopia e essa aqui, mais reflexiva, já considerava a possibilidade das distopias que estão a caminho, em marcha pela modernidade, pela pós-modernidade, pelo transbordamento do consumismo, do capitalismo.
Os anos 1970 haviam sido essencialmente utópicos. Reinara a utopia. — Exatamente, e essa música chamava a atenção pro lado utópico daquelas investidas, com uma visão resguardada, crítica, por causa dos “[…] bárbaros tão doces, tão cruéis”, que “Seguem vindo vivendo seus papéis/ De mocinhos e de bandidos”, em referência às novas gerações, os sucessores, ao que vêm, à sucessão, à história. Uma crença na história. E a história não se reduz a um conto da carochinha; a história é barra-pesada.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Outra Coisa
Gilberto Gil
Outra coisa é lhe bem querer
Uma coisa é brincar de trancelim
Outra é destilar teu prazer
Doce, alcaçuz
Pele, gosto e noz
Rara, tua luz
Brilha, floração
Solta, amplidão
Uma coisa é querer você pra mim
Outra coisa é lhe cortejar
Uma coisa é o estandarte de brim
Outra, o coração desfilar
Livre, quando diz
Firme, tua voz
Forte, como quis
Para ser explosão
Um “q” de vulcão
Uma coisa é querer você pra mim
Outra coisa é lhe ter amor
Uma coisa é o teu sabor de gin
Outra, o teu perfume de flor
Ouço
Gilberto Gil
Todos os corações batendo
Todos os corações do mundo
Batendo
Ouço
Todo esse barulhão que fazem
Toda essa percussão selvagem
Batendo
Ouço
Muitos dos corações se calam
Muitos dos corações se falam
Mais alto
Ouço
Todos os corações do mundo
Sim, todos eles me tomando
De assalto
Ouço
É a voz do amor fraterno
A nos livrar do inferno latente
Ouço
Todos os corações batendo
Ouço sim e por fim me entendo
Por gente
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
[À menção de que, em termos atmosféricos, sonoramente falando a canção lembra faixas de Raça humana]: Especialmente porque é feita a partir de um gênero vigoroso que é o rock ‘n’ roll. “Ouço” é um rock pesado, heavy. Uma retomada daquela motivação enquanto gênero musical, enquanto forma de expressão juvenil, ligada à ideia de juventude, com um vitalismo jovem. Essa é a base, digamos assim, anímica da canção. Mas há o campo linguístico, mental, espiritual, todo ligado à ideia da fraternidade.
A pletora rítmica estabelecida pela fusão das batidas de muitos corações, esses tambores físicos, e uma tentativa de interpretação de significados possíveis dessa percussão, desse batuque. O que eles dizem, o que querem dizer? “É a voz do amor fraterno/A nos livrar do inferno/ Latente”. O conforto da solidariedade: como somos finalmente confortados pela ideia do solidário, pela ideia de que somos uma coisa só, somos seres humanos para uma única grande e completa humanidade.
E por fim: “Me entendo por gente”. — Sou um desses pequenos tambores dessa grande orquestra de percussão. É isso.
Sobre “Ouço” datar do mesmo período (de preparação do repertório do disco OK OK OK ) de “Quatro pedacinhos” e “Kalil”, canções relacionadas com o tratamento do coração a que ele se submeteu, e falar de coração — o vocábulo que, no plural, mais se pronuncia na letra. — Exato. Ele acabava, indiretamente, servindo de mote. E acabou explicitamente citado, manifestado em vários momentos das canções.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Oslodum
Gilberto Gil
Eu vou pra Oslo
Pra sair no Oslodum
O bloco astro
Da terra do bacalhau
Que todo ano
Caia neve ou faça sol
Vai pra a avenida
No dia de carnaval
Eu vou, eu vou
Eu vou pra Oslo
Pra sair no Oslodum
O bloco astro
Da terra do bacalhau
Que todo ano
Caia neve ou faça sol
Vai pra a avenida
No dia de carnaval
Eu vou pra Oslo pra ver
A turma do pelô
Do pelourinho, pelourinha, pelourão
Eu vou pra Oslo aprender
Um canto pra Xangô
Que lá chama Thor
O filho do Trovão
Eu vou pra Oslo cantar
Eu vou pra Oslo encantar
Aquela moça, a mais bonita do lugar
No pelourinho lourinho
Da cabecinha lourinha
Do coração igual ao nosso
A palpitar
Gravação
Gilberto Gil – O sol de Oslo, 1998 – Pau Brasil
Comentário*
“Oslodum” é o Olodum de Oslo. Eu estava indo pra Oslo e ia gravar um disco com o Rodolfo Stroeter, o Trilok Gurtu, o Toninho Ferragutti e a Marlui Miranda — uma turma muito interessante. Naquela época era meio irrecusável a temática dos blocos afro, que tinha “afrorado”. Daí esse encaixe de palavra- -valise, como concentração temática. Resumidamente é isso.
“Asfro” foi um neologismo inventado pelo meio musical, pra designar alguma coisa fake, alguma coisa que não é, alguma coisa falsa. Alguma coisa errada: uma nota, uma execução, uma acentuação “resvalante” num ritmo; qualquer coisa desse tipo. E, no caso da canção, a expressão é usada pra exatamente designar um Olodum fake: um Olodum loiro.
O machado de Xangô é o mesmo machado de Thor. A letra tinha então de fazer essa associação cultural-religiosa afro-nórdica, que se tornou irrecusável por causa de o símbolo ser o mesmo pros dois deuses, pras duas entidades: o mesmo machado com duas hastes, machado duplo.
“No pé lourinho lourinho/ Da cabecinha lourinha/ Do coração igual ao nosso a palpitar” tem a ambição de concertação racial, a noção de que somos todos acima das raças; de que acima das raças está a raça humana. Raça humana como mãe de todas as raças.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Os pais
Gilberto Gil
Jorge Mautner
Estão preocupados demais
Com medo que seus filhos caiam nas mãos dos narco-marginais
Ou então na mão dos molestadores sexuais
E no entanto ao mesmo tempo são a favor das liberdades atuais!
Por isso não acham nada demais
Na semi-nudez de todos os carnavais
Na beleza estonteante e tão natural
Da moça que expressa no andar provocante
A força ondulante da sua moral
Amor flutuante acima do bem e do mal
Os pais, os pais
Estão preocupados demais
Com medo que seus filhos caiam nas mãos dos narco-marginais
Ou então na mão dos molestadores sexuais
E no entanto ao mesmo tempo são a favor das liberdades atuais
Por isso não podem fugir do problema
Maior liberdade ou maior repressão
Dilema central dessa tal de civilização
Aqui no Brasil, sob o sol de Ipanema
Na tela do cinema transcendental
Mantem-se a moral por um fio
Um fio dental!
Gravação
Jorge Mautner – Revirão, 2006 – Gege e Warner Music
Comentário*
Fizemos letra e música juntos com ideias sugeridas pelo Jorge. O início foi todo dele. Aí a gente foi complementando com uma palavra aqui, uma mudança ali, uma frase a mais… Mas “Os pais” tem a verve mautneriana em plena vigência. Ao longo da feitura da música, conforme as frases melódicas iam surgindo, se sucedendo, a gente foi estabelecendo as estrofes, os tamanhos, as medidas. Aí foram surgindo também variações, complementações das ideias sugeridas uma ou duas frases antes, e assim a gente fez a música toda. A partir dos motes principais propostos pelo Jorge, nós, a quatro mãos, fizemos tudo.
Interessante a correlação que a canção estabelece entre o dilema dos pais e a própria civilização. — A canção é sobre o que a gente poderia, num certo reducionismo, considerar como sendo a classe média mundial, toda ela comprometida com avanços, transformações, revoluções, visões positivas sobre o desenrolar das coisas, e ao mesmo tempo tendo uma reação, uma resistência natural à transformação. A polaridade transformação/ conservadorismo fica ali em diálogo permanente. A música é sobre isso. Pega um recorte recente, atual, do processo civilizatório e, dentro desse recorte, apresenta a tensão sobre deixar rolar e segurar ao mesmo tempo. Afrouxar os laços e ao mesmo tempo fortalecê-los. É sobre isso. E é interessante que o modo como Jorge coloca as coisas é muito interessante e muito divertido, muito atraente, pra fazer uma canção.
O fato de vocês, mas mais particularmente o Jorge, que deu início à letra, morarem no Rio de Janeiro colaborou de algum modo para provocar o impulso de escrever uma canção dessa? — Eu tenho a impressão que sim. Pelo fato mesmo de que as questões abordadas pela canção têm, a partir do Rio de Janeiro, um ponto de apoio para difusão nacional. O Rio é um lugar informador da questão dos costumes. Concentra uma generalidade brasileira. Está falando do Rio, está falando um pouco do Brasil inteiro. É uma cidade exemplar nos vários momentos da história; o Rio sempre teve um papel importante, sempre teve pioneirismos de atitudes. Então o fato de ele morar no Rio, de ser carioca, é muito importante nessa canção.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Oriente
Gilberto Gil
Pela constelação do Cruzeiro do Sul
Se oriente, rapaz
Pela constatação de que a aranha
Vive do que tece
Vê se não se esquece
Pela simples razão de que tudo merece
Consideração
Considere, rapaz
A possibilidade de ir pro Japão
Num cargueiro do Lloyd lavando o porão
Pela curiosidade de ver
Onde o sol se esconde
Vê se compreende
Pela simples razão de que tudo depende
De determinação
Determine, rapaz
Onde vai ser seu curso de pós-graduação
Se oriente, rapaz
Pela rotação da Terra em torno do Sol
Sorridente, rapaz
Pela continuidade do sonho de Adão
Gravação
Gilberto Gil – Expresso 2222, 1972 – Philips
Comentário*
A “voz”. — Eu e Sandra [Sandra Gadelha, a terceira mulher de Gil] estávamos em Ibiza, na Espanha, numa casinha que tínhamos alugado num bosque de eucalipto. Era um fim de tarde de verão; tínhamos ido à praia e tomado orchata de chufa. Eu estava sentado à porta do chalé, fitando a transição do céu azul para o céu noturno; começavam a surgir as primeiras estrelas. Sandra lá dentro, preparando alguma coisa, e eu ali, quieto. De repente eu vi uma estrela cadente e aquilo me deu interiormente a sensação de uma voz. “Se oriente!” — surgiu essa voz. “Se oriente, rapaz.” Aí eu entrei, peguei papel e lápis, e…
De como os sentimentos e as reflexões foram nutrindo a inspiração poética e a composição se transformando numa condensação de símbolos. — Da saudade do sul, do hemisfério Sul, veio a ideia do Cruzeiro como orientação, como se eu tivesse de me lançar ao mar em busca da redescoberta da minha terra (Cabral, as três caravelas, as navegações: tudo isso vinha à cabeça), desencadeando-se a seguir a meditação sobre a minha situação no exílio, com uma autojustificação da necessidade da viagem e uma metáfora para o sacrifício da aventura forçada (os navios negreiros, o trabalho escravo no porão dos negreiros; tudo vinha à cabeça e os pensamentos iam sendo sintetizados nos versos).
O fato de eu ter feito o projeto da família, a faculdade; de ter recusado uma pós-graduação na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, para assumir o trabalho na Gessy Lever e ficar em São Paulo, perto de Caetano, de Bethânia, de Gal, do projeto pessoal, a música; e de o trabalho na Gessy Lever ter sido uma espécie de pós-graduação também, assim como a situação do exílio tinha para mim um significado de pós-graduação… Por tudo isso “Oriente” é a música minha que eu considero mais pessoal e autossolidária, mais solitária. Não sou eu em relação a uma mulher ou a uma cidade; sou eu em relação a mim mesmo, a um momento de vida. “Back in Bahia” também é autorreferente; ela e “Oriente” são complementares. Minhas músicas da época são assim. Expresso 2222 é meu disco mais elaborado no sentido de relatar um período.
Atmosfera oriental. — O “sorridente” foi lembrança remota e inconsciente dos versos de Rogério Duarte comigo em “Objeto semi-identificado”: “sorridente” contém “oriente”. (O uso do termo ali dá também um alívio em relação ao tom de cobrança de antes: “se oriente”, “considere”, “determine”.) O clima do Oriente estava no ar: os hare-krishna, os tarôs, os I Chings. E eu estava num ambiente propício para a referência adâmica do final; Ibiza era o paraíso da contracultura, refúgio de hippies de todo o mundo: europeus, americanos, brasileiros, indianos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Orgia subterrânea
Gilberto Gil
Gravação
“Brasil ano 2000”, vários, Universal
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
Oração pela libertação da África do Sul
Gilberto Gil
Se o rei Zulu já não pode andar nu
Salve a batina do bispo Tutu
Salve a batina do bispo Tutu
Ó, Deus do céu da África do Sul
Do céu azul da África do Sul
Tornai vermelho todo sangue azul
Tornai vermelho todo sangue azul
Já que vermelho tem sido todo sangue derramado
Todo corpo, todo irmão chicoteado – iô
Senhor da selva africana, irmã da selva americana
Nossa selva brasileira de Tupã
Senhor, irmão de Tupã, fazei
Com que o chicote seja por fim pendurado
Revogai da intolerância a lei
Devolvei o chão a quem no chão foi criado
Ó, Cristo Rei, branco de Oxalufã
Ó, Cristo Rei, branco de Oxalufã
Zelai por nossa negra flor pagã
Zelai por nossa negra flor pagã
Sabei que o papa já pediu perdão
Sabei que o papa já pediu perdão
Varrei do mapa toda escravidão
Varrei do mapa toda escravidão
Gravação
Gilberto Gil – Dia dorim noite neon, 1985 – Warner Music
Comentário*
Sermão dos sul-africanos. — Se já perdemos a inocência dos gentios silvícolas, os homens puros do sonho rousseauniano, e temos que carregar a cruz dos colonizadores, imposta violentamente às Américas e às Áfricas todas, e isso, mais do que esboço, já é inserção na história, um corpo em crescimento, não mais um parto; se já são, desde as Cruzadas, quase mil anos, então, não há o que recusar: é uma pena ter que trocar a beleza luminosa daqueles exuberantes corpos negros, nus pelas estepes, por uma batina mofada de suor de um catequizador, ele mesmo um índio domesticado, mas se isso constrange por um lado, por outro ele agora está a serviço dessa nova obra a que é preciso dar consistência, solidificar, e é essa a questão básica da África do Sul: a civilização, o mundo ocidental está lá, a vida tribal não se sustenta mais lá, então vamos sanear, fazer disso uma atmosfera respirável, dar saúde a esse novo organismo, resolver o problema o mais rápido possível, e ele está aqui para isso, em nome disso, ele é o trem da história, ele agencia isso, ele, muito mais do que a pessoa dele, ele, o bispo Tutu.
De encomenda. — “Oração pela libertação da África do Sul” foi feita para atender a um pedido explícito do físico Mário Schenberg, que queria uma música para, sobre a África do Sul. Eu ainda disse: “Nós temos feito protestos, manifestações, assinado manifestos contra o apartheid e tal”. E ele: “Mas não é suficiente; é preciso uma canção”. Fiz a canção e a dediquei a ele.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Oração
Gilberto Gil
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Opachorô
Gilberto Gil
Oxalá, tomara
Haja uma maneira
Deste meu Brasil melhorar
Santa Clara queira
Queira Santa Clara
Falte uma besteira
Presse céu de anil clarear
Oxalá paz
Opachorô
Haja bem mais
Opachorô
Oxalá nós
Opachorô
Nos banhemos de luz
De luz de luz
De Todos os Santos
E da Guanabara
Tantos mares, tantos
Que as baías possam guardar
Todos os encantos
Tanta coisa rara
Pra enxugar os prantos
Santa Clara clareia o sol
Clarão do sol
Queira Deus, Oxalá
Gravação
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Comentário*
Uma oração propiciatória para o Brasil. Onde “Oxalá” aparece nas duas acepções [como substantivo próprio e como interjeição; no segundo sentido, o termo na última frase, “Oxalá tomara”, soa explicativo, como “numa aula gramatical”, diz Gil]. Me lembro que na hora que eu fiz a canção, lembrava da música do Jorge Ben Jor, “Santa Clara clareou” (“Santa Clara clareou/Ô, ô/E aqui quando chegar, vai clarear”). O “opachorô” entrou no meio da canção musicalmente, no sentido de cumprimento da função musical da letra, como ornamento. Ao mesmo tempo, no entanto, ele é o grande símbolo de Oxalá, porque é o cajado, a arma de Oxalá. Cada orixá tem sua arma; tem o arco, tem o machado. E Oxalá tem o opachorô. Assim, “opachorô” acabou sendo promovido a título da canção por isso — por ser o emblema de Oxalá —, numa recuperação importante de uma palavra nagô.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
One o’clock last morning, 20th april, 1970
Gilberto Gil
I came when it was coming up to one
I mean I came when the midnight was past
I mean I came when the middle age was gone
I mean I came when it was coming up to one
Yes my oneness
At one o’clock last morning
I saw him tão triste
I told him he was alive and he could cry
I mean I saw him so sad that I said a thing
I told him he was a bird and he could fly
I mean I saw him when it was coming up to become
Such a sadness
At one o’clock last morning
Onde o xaxado tá
Gilberto Gil
Por onde anda meu xaxado
Já que o rock é tão falado
E o xaxado nem se ouviu?
Ando todo aperreado
Pra dançar o tal xaxado
Se não tiver xaxado
Vou-me embora do Brasil
Cumadre disse
Cumadre falou que sabe
Por favor, diga, cumadre
Onde é que o xaxado vai ser
Sou brasileiro
Quase fui seminarista
Cumadre, me dê a pista
Pr’eu xaxá até morrer
O xaxado tá
Na sandália do safado
Na espingarda do soldado
Na ordem do delegado
Na origem do sistema
No escurinho do cinema
Na comida da jurema
No canto da siriema
Onde o xaxado tá
Sacoleja toda gente
Coroinha padre e crente
Deputado renitente
Osório Duque Estrada
Dom Pedro um e dois
Villa-Lobos, Pixinguinha
Deixa o resto pra depois
Cumadre minha tinha filho e mamadeira
Criou mais de dez menina
Todas elas xaxadeira
Xaxa xaxa, xaxadeira
Chama o macho pro xaxado
Que xaxá sem ter um macho
Nunca deu bom resultado
Onde o xaxado tá
Tem uns hôme isquisito
Uns são pobre, outros são rico
Uns são calmo, outros aflito
Uns tem zóio pro futuro
Outros nunca viram isso
Uns pronto pra dar sumiço
Outros firme pra cantá
Onde o xaxado tá
No sertão de Pernambuco
No mundão do Ceará
Onde o xaxado tá
Onde houver uma cabocla
Me tirando pra dançá
Onda azul
Gilberto Gil
Bené Fonteles
parte mar / parte sol / parte Deus
água azul / água dia / água ardente
céu / luar / sofrer
parte nuvem / parte noite / parte só
água branca / água fria / água ausente
palma / viola / onda
parte seiva / parte forte / parte ser
água verde / água sã / água estar
peixe / morte / azul
parte sangue / parte oca / parte ter
água vermelha / água vã / água dar
[ inédita ]
Comentário*
[Atendendo a um pedido de Bené Fonteles, de uma contribuição para uma campanha em defesa das nascentes, “Artistas pela natureza”, projeto que ele coordenava, Gil lhe enviou o poema visual, originalmente escrito não propriamente para ser musicado e cantado. Bené ia de início recitá-lo num espetáculo no Teatro Nacional, em Brasília, mas o musicou. A canção resultante acabou se tornando um hino da fundação ambiental Onda Azul.]
Fragmentos de frases que vão se justapondo. Como se fossem assim quase haicais. A cara do Bené!
É uma série de doze haicaizinhos; haicais radicais, porque seus versos são ainda mais curtos do que costumam ser os haicais em português. — Pois é, exatamente, por isso que estou dizendo “quase”. Quase haicais.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Olho nu
Gilberto Gil
Devo expor o meu ponto de vista
Daqui de onde estou
A cidade oferece uma pista
Posso aterrissar
Meu olhar no Outeiro da Glória
E da Glória descortinar
A cidade na minha memória
Cristo Redentor
Consolador, domina a paisagem
Todo o meu fervor
Me acompanha nessa viagem
Que já vem do amor
Que já vem desde cedo comigo
Que da Glória vai me levar
Adiante, na estrada que eu sigo
Na Ásia, na África
Na Oceania
Na intergaláctica
No céu da Bahia
Sem nenhum pudor
A memória pertence ao futuro
Daqui de onde estou
A cidade é um lugar seguro
Posso até supor
Tanta calma nas ruas de Copa
E no Cristo pós-Redentor
Novas luzes ligadas da Europa
Na Ásia, na África
Na Oceania
Na intergaláctica
No céu da Bahia
Olho mágico
Gilberto Gil
Você quer ver um piolho
No pêlo da minha púbis
No pêlo da minha púbis
Que olho, que olho
Você pensa que tem olho
Você pensa que tem olho
Que tem olho de olho mágico
Você quer me ver vivendo
Algo patético ou trágico
Você pensa que eu estou no big brother
Você pensa que eu seria um grande irmão
Você pensa que eu estou fora de moda
Porque ainda considero a solidão
Que molho, que molho
Quer ver o dente de alho
Quer ver o dente de alho
Refogando o meu repolho
Quer alho, quer alho,
Quer pimenta malagueta
Quer que eu chupe uma chupeta
Quer que eu imite um zarolho
Quer meu álbum de retratos
Remexer minha gaveta
Arrumar o meu armário
Refazer meu guarda-roupa
Andar na minha lambreta
Você quer a rima fácil
Como se eu fosse um poeta
De proveta ou de prancheta
Que saco, que saco
Como se isso fosse um naco
Como se isso fosse a nesga
Como se isso fosse a fresta
Que saco, que saco
Como se isso fosse um jeito
De você bisbilhotar o meu silêncio ou minha festa
Eu estou lhe dando tudo
Eu estou me dando todo
O meu celular me cola
inteirinho em seu roteiro
Não precisa me editar
Filmei tudo o tempo inteiro
Quero ver quem vê primeiro
Até onde eu vou chegar
Primeiro, primeiro
Quero ver quem vê primeiro
Até onde eu vou chegar
Até onde eu vou chegar
Meu retrato celular
Retrato celular
Gravação
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Gege
Comentário*
Essa foi encomenda, direta mesmo, feita pelo Andrucha Waddington. Andrucha chegou um dia em casa e disse assim: “Eu estou fazendo um filme só com celular. É tudo tomada de, é todo do celular. Queria que você fizesse uma música pra ilustrar isso”. Eu, como estava na época envolvido com aquela coisa toda — ciberespaço, internet, novas tecnologias de comunicação etc. —, aceitei o desafio. Disse: “Tá legal, vou tentar”. Por onde é que eu vou começar? Olho mágico era o nome do filme, o nome do projeto que Andrucha queria; já chamava Olho mágico. Olho, piolho…: começa por aí e segue por coisas que tinham a ver com os enredos variados dos personagens, com os elementos de coisas que ele estava focalizando.
“Você pensa que estou fora de moda/Porque ainda considero a solidão”. — Prenunciava-se ali a chegada da rede social com esse panteísmo das individualidades, cada uma delas um deus na rede social, e “eu, ainda considerando a solidão”, me afastando, reivindicando minha individualidade por comparação a essa desindividualização, ou extrema individualização que vai dar na desindividualização da rede social. É uma canção sobre isso.
E tem as brincadeiras [das estrofes quinta à sétima]. As sugestões todas dadas pela câmera do celular e a ideia da câmera do celular como um olho mágico, que já era da ideia originária do próprio Andrucha. E aí vai, com a roteirização da narrativa através de personagens do Olho mágico dele.
Retrato Celular era o nome da série; uma proposta do Andrucha de fazer retratos celulares com vários personagens. Um pouco a coisa dos roteiros domésticos que na quarentena alguns artistas revisitaram; dos filmezinhos feitos em casa com um ou dois personagens: essa narrativa que o Retrato Celular do Andrucha propôs anos atrás e que ficou vigente na pandemia, popularizou-se na abordagem microcinematográfica da pandemia.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
OK OK OK
Gilberto Gil
Já sei que querem a minha opinião
Um papo reto sobre o que eu pensei
Como interpreto a tal, a vil situação
Penúria, fúria, clamor, desencanto
Substantivos duros de roer
Enquanto os ratos roem o poder
Os corações da multidão aos prantos
Alguns sugerem que eu saia no grito
Outros que eu me quede quieto e mudo
E eis que alguém me pede “encarne o mito”
“Seja nosso herói”, “resolva tudo”
Dos tantos que me preferem calado
Poucos deles falam em meu favor
A maior parte adere ao coro irado
Dos que me ferem com ódio e terror
Já para os que me querem mais ativo
Mais solidário com o sofrer do pobre
Espero que minha alma seja nobre
O sufi ciente enquanto eu estiver vivo
OK, OK, OK, OK, OK, OK
Ainda querem a minha opinião
Um papo reto sobre o que eu pensei
Como interpreto a tal, a vil situação
Que o nobre, nobre mesmo, amava os seus
Prezava mais o zelo e a compaixão
Tratava seu vassalo com afeição
A mesma que pelo cão e o cavalo
Então não falo, músico e poeta,
Me calo sobre as certezas e os fins
Meu papo reto sai sobre patins
A deslizar sobre os alvos e as metas
OK, OK, OK, OK, OK, OK
Sei que não dei nenhuma opinião
É que eu pensei, pensei, pensei, pensei
Palavras dizem sim, os fatos dizem não
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
É como se fosse um reconciliar-se com as pragas da canção “Praga”, que eu fiz pra Preta; queixosa, reclamando dos ataques que ela sofreu nas redes sociais. “ok ok ok” sou eu dizendo: “Tudo bem, já sei que é assim mesmo, isso agora veio pra ficar”. Daí essa indisposição relativa permanente entre o agente cultural, o artista, e o seu público, seus seguidores e seus detratores. Essa relação com os que o apreciam e os que o depreciam.
“Já sei que querem a minha opinião”. — O jogo da mitologia popular, os seus agentes. O lado opinativo, permanentemente exigido. A dimensão da opinião vinda do artista popular, essa politização que data basicamente dos anos 60, da época da ditadura. Os movimentos todos: a mpb e a Tropicália; a Jovem Guarda com seus resguardos. Uns, mais resguardados, outros mais atiçados, atirados, com a ideia de movimento e militância que desperta a ideia de opinião, de tribuna ou púlpito de onde se fazem os discursos políticos. O “já sei que querem a minha opinião” é bem isso. Já sei que a gente é dessa praia. “ok ok ok” é uma canção pra dar conta disso, pra falar dessas questões. Eu acho uma canção bem realizada.
As solicitações de opiniões de artistas sobre a realidade na música brasileira começam com o surgimento de vocês, uma geração de cantores e compositores que exercem também um papel intelectual. — Todos egressos dos movimentos estudantis, universitários, que já tinham a função dupla de atitude intelectualizada e militância operária. Foi a época do surgimento da ideologização, do posicionamento em relação à esquerda ou à direita. É legítimo atribuir à nossa geração a gênese disso.
Dois quartetos no miolo da canção apresentam sua visão de nobreza de alma. Na disposição solidária para com o sofrimento do pobre e nas menções a sentimentos pelos seres vivos, você cita humanos e animais. — Aí está o cerne, o encontro com a natureza da minha poética, que é toda ela associada ao sentimento universalista, do congraçamento da comunidade universal. A reivindicação da noção de nobreza, em contraposição à vulgarização burguesa, é um aspecto que eu defendo muito nessa canção, que faz a defesa do resgate da essencialidade humanista e humanitária. Porque era a compreensão da necessidade da relação de igual pra igual com os outros seres todos que enobrecia o homem. Era isso que dava a ele o caráter de nobreza. Aí eu invoco não os falsos nobres, mas aqueles que eram realmente detentores da nobreza. Um pouco reclamando da pulverização da vulgaridade pela internet, nas redes sociais; do descuramento, da diluição final da dimensão burguesa nessa vulgarização, já que descaracteriza completamente a burguesia como classe social. Nem isso a burguesia pode mais reivindicar: ser uma classe social. São esses comentários embutidos sobre política e ideologia que estão nas entrelinhas, nos recantos da canção, e só o autor é que sabe. Agora a gente dá um pouco de explicação.
É uma canção rica, densa, que condensa várias coisas. — Muitas. Não é à toa que ela é emblema do álbum, dá o título.
Sobre as duas últimas quadras, sobre não cobrar do artista certezas e fins absolutos. — A reserva de solidão que eu exijo no final. A necessidade de preservar esse território, defender esse exílio. A reivindicação da dimensão do artista, do poeta, dizendo o que é ainda necessário dizer para fazer-se compreender. Ou: a vida real não é feita de certezas, de definições. A vida real é essa flutuação permanente entre opostos. É dinamismo. Não é enrijecimento. Essa foi a canção que acabou dando título ao disco também porque era muito confessional nesse sentido.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Objeto sim, objeto não
Gilberto Gil
Um objeto não
Como Rômulo e Remo
Rômulo e Remo aparecerão
No mesmo dia, na mesma cidade
No mesmo clarão
Um surgindo do céu
Outro vindo do chão
Um objeto sim
Um objeto não
Eubioticamente atraídos
Pela luz do Planalto Central
Das Tordesilhas
Fundarão o seu reinado
Dos ossos de Brasília
Das últimas paisagens
Depois do fim do mundo
É o reinado de ouro
Depois do fim do mundo
O reino de Eldorado
Depois do fim do mundo virão
O objeto sim, o objeto não
Os ilumencarnados seres
Que esta terra habitarão
O identifi Si
O identudo Gui
O identido Ni
O identipo Fi
O identado Ka
E mais uma porção
Dos identifisignificados
Novos seres que virão
Do fundo do céu
Do alto do chão
Gravação
Gal Costa – Gal Costa, 1969 – Philips
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – O Viramundo, 1999 – Universal
Comentário*
Rômulo e Remo, porque eram fundadores de uma cidade; por serem dessas grandes figuras mitológicas a que mais se refere a fundação de uma cidade. Coincidentemente, tempos depois eu fui saber que Rômulo, Remo e a loba estão numa estátua em frente ao Palácio do Buriti, presente de Roma a Brasília quando da sua fundação. O que, de uma certa forma, explica a associação que eu fiz entre a fundação de Roma e a fundação de Brasília: Brasília era de novo, milênios depois, uma cidade fundada, fundada por alguém, com os registros da sua fundação: assim como Roma teve, através de uma narrativa mitológica, uma fundação, Brasília também, através das narrativas históricas de hoje: foi planejada, Dom Bosco idealizou, Juscelino Kubitschek fez, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer desenharam, enfim… A associação com Rômulo e Remo vinha, portanto, do fato de Brasília ter sido uma cidade que teve também uma fundação, da qual a gente tinha conhecimento e que tinha se dado no nosso tempo. Tudo isso fazia palpitante a associação com Roma, Rômulo e Remo.
Quanto aos discos voadores, bem, naquele momento, todos os discos passavam por Brasília… (assim como todos os caminhos levavam a Brasília, como dizia o slogan do Juscelino); todos tinham alguma coisa a ver com a cidade, o grande locus das seitas esotéricas (por causa do Vale do Amanhecer, de tantos bruxos mais ou menos conhecidos, íntimos ou não; enfim…). E havia também a indução poética dada por Caetano, ao aludir à inauguração do ‘monumento no Planalto Central do país’, em ‘Tropicália’.
Os ‘seres’ que a letra cita vinham das sílabas da palavra ‘significado’ – entre eles o ‘identudo’ Gui, o mais próximo de um antropóide e o único identificado de fato, já que é o Gui, o Guilherme Araújo, sendo os outros não identificados. Todos descem pela rampa da nave-mãe e, desfilando, entram pela cidade: uma turma de desconhecidos em que o único que eu conheço é o Guilherme… Isso reproduz um pouco a cena do ‘Contatos imediatos’, que, quando eu vi, eu me lembrei imediatamente da canção: vendo os extra-terrestres saindo da nave no filme, eu ficava me perguntando: cadê o Guilherme?…
Os últimos versos têm a ver com as inversões presentes em muitas das descrições esotéricas – de Shambala e Agharta, cidades do centro da Terra – e com uma teoria de que os discos voadores vêm não do céu, mas do fundo da terra, um pouco como no ‘Planeta dos Macacos’. Enfim, não só os cineastas, mas os músicos também se nutrem desse liquidificador panfletário neo-mitológico. ‘Objeto sim, objeto não’ é um panfleto neo-mitológico, assim como ‘Um índio’, de Caetano; ambas são canções que refundam a aliança da ciência com o mito reivindicada pelo mundo pós-moderno ou, em parte, uma reação ao pós-modernismo que vem com os hippies e os esotéricos. Todos os produtos desse campo são panfletos da nova era.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Objeto semi-identificado
Gilberto Gil
Rogério Duarte
Rogério Duprat
– Digo eu.
– Diga você.
– E línguas como que de fogo tornaram-se invisíveis.
E línguas como que de fogo tornaram-se invisíveis. E se distribuíram e sobre cada um deles assentou-se uma. E todos eles ficaram cheios de espírito santo e principiaram a falar em línguas diferentes.
– Eu gosto mesmo é de comer com coentro. Uma moqueca, uma salada, cultura, feijoada, lucidez, loucura. Eu gosto mesmo é de ficar por dentro, como eu estive na barriga de Claudina, uma velha baiana cem por cento.
– Tudo é número. O amor é o conhecimento do número e nada é infinito. Ou seja: será que ele cabe aqui no espaço beijo da fome? Não. Ele é o que existe, mais o que falta.
– O invasor me contou todos os lances de todos os lugares onde andou. Com um sorriso nos lábios ele disse: “A eternidade é a mulher do homem. Portanto, a eternidade é seu amor”.
Compre, olhe, vire, mexa. Talvez no embrulho você ache o que precisa. Pare, ouça, ande, veja. Não custa nada. Só lhe custa a vida.
– Entre a palavra e o ato, desce a sombra. O objeto identificado, o encoberto, o disco-voador, a semente astral.
– A cultura, a civilização só me interessam enquanto sirvam de alimento, enquanto sarro, prato suculento, dica, pala, informação.
– A loucura, os óculos, a pasta de dentes, a diferença entre o 3 e o 7. Eu crio.
A morte, o casamento do feitiço com o feiticeiro. A morte é a única liberdade, a única herança deixada pelo Deus desconhecido, o encoberto, o objeto semi-identificado, o desobjeto, o Deus-objeto.
– O número 8 é o infinito, o infinito em pé, o infinito vivo, como a minha consciência agora.
– Cada diferença abolida pelo sangue que escorre das folhas da árvore da morte. Eu sou quem descria o mundo a cada nova descoberta. Ou apenas este espetáculo é mais um capítulo da novela “Deus e o Diabo etc. etc. etc.”
– O número 8 dividido é o infinito pela metade. O meu objetivo agora é o meu infinito. Ou seja: a metade do infinito, da qual metade sou eu, e outra metade é o além de mim.
– E fim de papo.
– Tá legal.
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1969), 1969 – Philips
Comentário*
Uma leitura de pequenos excertos dos nossos cadernos de anotações – meu e de Rogério Duarte -, fruto das longas conversas que tivemos durante os três meses [após a prisão no Rio] em que convivemos então em Salvador; das nossas especulações sobre sobrenaturalidade e hiper-realidade; das nossas leituras sobre yoga; das elaborações que fiz de minhas meditações na prisão. O Rogério Duprat colocou a música depois.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ó, Maria
Gilberto Gil
Faz tempo que você sabe
Que eu também sou da Bahia
Ó, Maria
Quantos anos você tinha
Quando o mato era fechado
Lá na estrada da Rainha
Quando era a céu aberto
Que o batuque se batia?
Ó, Maria
Faz tempo que você sabe
Que eu também sou da Bahia
Ó, Maria
Vê se você me adivinha
Das sete qual é a porta
Pro corredor da Lapinha
De união qual é o traço
Barra-Barris-Barroquinha
Ó, Maria
Faz tempo que você sabe
Que eu também sou da Bahia
O veado
Gilberto Gil
Como é lindo
Escapulindo pulando
Evoluindo
Correndo evasivo
Ei-lo do outro lado
Quase parado um instante
Evanescente
Quase que olhando pra gente
Evaporante
Eva pirante
O veado
Greta Garbo
Garbo, a palavra mais justa
Que me gusta
Que me ocorre
Para explicar um veado
Quando corre
Garbo esplendor de uma dama
Das camélias
Garbo vertiqualidade
Animália
Anamélia
Ó, veado
Quanto tato
Preciso pra chegar perto
Ando tanto
Querendo o teu pulo certo
Teu encanto
Teu porte esperto, delgado
Ser veado
Ser veado
Ter as costelas à mostra
E uma delas
Tê-la extraída das costas
Tê-la Eva bem exposta
Tê-la Eva bem à vista
Gravação
Gilberto Gil – Extra, 1983 – Warner Music
Comentário*
O fator estimulante da canção foi a minha fantasia infantil com o animal — bonito e demasiadamente arisco, difícil de ser caçado, fugidio, ágil, lépido, desviando-se com facilidade do perseguidor —, associada à visão do estereótipo do homossexual assumido, a bicha-louca que faz da sua condição uma linguagem e gosta de se expressar como tal, com um modo de dar ao tórax e à bunda, como nas estátuas gregas, uma proeminência que estes, nas posturas relaxadas, não teriam.
Naquele momento o tema estava muito associado a nós, artistas que fazíamos a defesa da estética do androginismo — incorporando inclusive a ornamentália feminina em princípio proibida ao homem, mas enfim assumida por nossa geração como forma de afirmação de autonomia de ideia, proposta, gosto, de contestação do conservadorismo — e que nos colocávamos contra a histórica perseguição policial e a matança de homossexuais no Rio, em São Paulo, nas grandes cidades, como resultado de uma intolerância social em relação a eles. Por tudo isso, “O veado” é uma música ideológica.
É também a expressão da necessidade que eu sentia de aproxima- ção e compreensão da homossexualidade, e de participação nela. Não sou homossexual (poderia ser, mas não sou), não foi algo necessário na minha vida; mas da veadagem eu faço questão: é o que eu tenho reivindicado sempre para mim. Nesse aspecto, a música é aquilo que o Haroldo de Campos falou muito bem: o “veado viável”. É como nós podemos ser veados.
O interessante é que a letra faz a defesa disso com isso, quer dizer, com uma elaboração que tem a ver com a veadagem mesmo (e que, desse modo, participa dela): com a costura, o bordado, o brocado, o barroco. O encadeamento sonoro é melífluo; as palavras brotam com volúpia, com tempero, condimento, pimenta. E com garbo — de Greta Garbo, ela mesma uma figura andrógina, uma das grandes deusas da veadagem planetária (uma vez eu fiquei hospedado numa casa em Estocolmo onde ela tinha morado).
Se você é artista, tem que aprender a ser veado. É o meu caso: eu sou aprendiz.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O sonho acabou
Gilberto Gil
O sonho acabou
Quem não dormiu no sleeping-bag nem sequer sonhou
O sonho acabou hoje, quando o céu
Foi de-manhando, dessolvindo, vindo, vindo
Dissolvendo a noite na boca do dia
O sonho acabou
Dissolvendo a pílula de vida do doutor Ross
Na barriga de Maria
O sonho acabou desmanchando
A transa do doutor Silvana
A trama do doutor Fantástico
E o meu melaço de cana
O sonho acabou transformando
O sangue do cordeiro em água
Derretendo a minha mágoa
Derrubando a minha cama
O sonho acabou
Foi pesado o sono pra quem não sonhou
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Expresso 2222, 1972 – Philips
Comentário*
Glastonbury foi um festival grande, mítico, no interior da Inglaterra, feito com todos os cuidados astrológicos e esotéricos para ser o festival dos festivais da Era de Aquário. Fizeram uma pirâmide enorme, três palcos, trouxeram gurus. Poucos nomes do mainstream participaram, mas por lá passaram todos os grupos alternativos — e todos os ácidos lisérgicos.
Nós fomos todos, toda a comunidade brasileira em Londres na época: eu, Caetano, Sandra, Dedé, Cláudio Prado, Antônio Peticov, Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Paloma Rocha, filha do Glauber — talvez até ele tenha aparecido —, Péricles Cavalcanti.
Foi uma semana de desbunde, até que terminou. A gênese da música se relaciona com o amanhecer do dia da retirada, quando nos preparávamos pra voltar. Olhando as barracas sendo desarmadas e o acampamento abandonado, os restos todos no chão, me veio a sensação de que “o sonho acabou” — no sentido de que era o fim do festival, mas também de um sonho muito especial.
Naquele momento, a frase do John Lennon [“the dream is over”, da música “God”] estava no ar. “O sonho acabou” diz respeito à minha identificação com ele em seu novo momento de reciclagem do lixo aquariano e arquivamento de um certo deslumbramento do psicodelismo. É uma música discipular; eu era absolutamente louco por ele.
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999. “A estrada é um eterno retorno. ‘O sonho acabou’ era exatamente essa ideia de tomar ali uma constatação trágica, profunda, que Lennon fazia no momento de profunda dor ao compor ‘God’. Tudo para que eu pudesse dizer: ‘O sonho acabou/quem não dormiu no sleeping-bag nem sequer sonhou’, ou seja, se dormirmos nele, sonhamos. Tudo é possível, porque esse sonho, essa radiação se dá e se perpetua. O sonho, como tudo no mundo, é vibração; então ele não se interrompe. Os reflexos dessas ondas vão bater lá nos cafundós do universo, seja lá quantas megas eras forem e quantos éons tivermos que ter. Mas elas voltarão e repercutirão. É isso que quer dizer essa música sobre a repercussão do sonho, ou seja, o sonho, como tudo, como qualquer vibração da natureza repercutirá. ‘O sonho acabou hoje, quando o céu/foi de-manhando, dessolvindo, vindo, vindo/dissolvendo a noite na boca do dia/O sonho acabou/dissolvendo a pílula de vida do doutor Ross/na barriga de Maria’. Então, era isso: ao mesmo tempo que estamos engolindo a pílula da vida, estamos plantando nas nossas vísceras as raízes de um novo sonho. O sonho acabou, mas o sonho continua. Rei morto, rei posto.”
A música do Lennon, então, lhe deu força para fazer essa canção e para que o verdadeiro sonho continuasse vivo. — Ah, deu… Ouvia aquele disco o tempo todo. John cantando: “Mother!!!” — tinha uma força muito grande. E “God”, onde ele falava que o sonho acabou, era uma música sobre aquele confinamento que ele tinha vivido em Los Angeles e que não era só traduzido na capa do disco ou nas reportagens e entrevistas que ele deu. Foi ele que nos alertou sobre aquela corrida toda que a gente vinha fazendo com os ácidos e os desbundes. De repente, é alguém que diz: “Peraí, moçada! Peraí!”. Aquilo foi uma chamada de atenção muito interessante e muito profunda para uma reorganização e recondução do rebanho. Ele, de novo, toma o cajado do pastor na mão e, de ovelha, fez-se pastor de suas ovelhas. Falou e falava para si mesmo e para todos nós. Prestei muita atenção no que John falou e aquilo reorganizou nossas hostes de anjos e demônios internos. Em mim, pelo menos, e em muitos de nós, aquilo reordenou o diálogo interno e falou fundo nos nossos corações e me fez meditar, ajudando a trabalhar minha volta ao Brasil. Voltar para casa e retomar a função pastoral.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O seu amor
Gilberto Gil
O seu amor
Ame-o e deixe-o
Livre para amar
Livre para amar
Livre para amar
O seu amor
Ame-o e deixe-o
Ir aonde quiser
Ir aonde quiser
Ir aonde quiser
O seu amor
Ame-o e deixe-o brincar
Ame-o e deixe-o correr
Ame-o e deixe-o cansar
Ame-o e deixe-o dormir em paz
O seu amor
Ame-o e deixe-o
Ser o que ele é
Ser o que ele é
Ser o que ele é
© Gege Edições Musicais
Gravações
Doces Bárbaros – Doces Bárbaros, 1976 – Universal Music
Ney Matogrosso – Sujeito Estranho, 1980 – WEA International Inc.
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Ney Matogrosso – Ney Matogrosso anos 70, 2017 – Warner Music
Caetano Veloso, Moreno Veloso e Tom Veloso – Ofertório (Ao vivo), 2018 – Uns Produções Artísticas Ltda
Comentário*
A intenção foi brincar com o slogan da ditadura, “Ame-o ou deixe-o”, promovendo, através da substituição de uma conjunção, um corte profundo de ruptura no significado reducionista, possessivista e parcial do aforismo oficial, símbolo do fechamento e da exclusão maniqueísta, para criar um outro, com outra moral, a do amor — e, portanto, absolutamente generoso, democrático e libertário. A concepção de “amor livre” é também reiterada, reintroduzida como objeto de respeito e admiração à liberdade no amor, e ampliada até para um sentido mais cristão, de amor irrestrito.
Minimalista já na escolha de uma máxima tão concisa e conclusa, a letra também o é na construção — na maneira como suas significações se sobrepõem como degraus de uma escada tosca, de pedreiro, somando-se com certo desejo geométrico e uma ambição de organização aritmética de fatores numa conta de adição feita com números muito simples.
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999. “Era o período mais duro e mais cruel da ditadura. Nos aeroportos estava aquele dístico que era quase um símbolo do poder militar. Quando a gente foi fazer os Doces Bárbaros, eu achava que o repertório do show tinha que ser muito amplo e tinha que representar uma angulação muito aberta para todas as questões; inclusive, as questões políticas. Tinha que expor nosso papel e não só o que nós quatro tínhamos — os Doces Bárbaros — mas toda nossa geração. Os frutos dos anos 60, o grito de 68 e tudo aquilo. Havia pequenas respostas que ainda precisavam ser dadas. Quando me ocorreu o ‘ame-o ou deixe-o’, achei que era uma boa resposta para aquilo tudo, para aquele confinamento espiritual a que os detentores do poder, àquela época, se dedicaram. E eles se dedicaram ao claustro e à claustrofilia, naquele medievalismo todo dos quartéis e daquela coisa toda de um Brasil só para eles. Era um país todo virando uma ordem unida, e quem não quisesse aquela ordem que se retirasse. Achei que aquilo tudo era uma bobagem e, ao mesmo tempo, fiquei vendo como aquele slogan era uma apropriação terrível, indébita, de uma coisa que diz respeito ao sentimento máximo do ser humano que é o amor. E que coisa mais espúria usar a palavra ‘amor’ naquele contexto! “Então, me ocorreu fazer uma coisa para nós quatro cantarmos, como se fosse também um canto de meditação. Vinha nele a restauração do sentido do amor mesmo, o mais profundo, com toda a vivência amorosa e amorável que a minha geração tinha tido: o movimento hippie, com a ideia do amor livre e de superar as fronteiras…”
… sem posses… — … sem curral e essas limitações todas de ciúme, amor possessivo, amor institucional e utilitário a serviço da economia […] para a manutenção do poder das classes e das castas. Essa manipulação sociopolítico-econômica que se faz do seu sentido que se introjeta nessa coisa de posse e que tira o ser humano da sua e traz a perda do paraíso. Nessa canção volta um pouco a ideia de reconquista desse paraíso. Ali está o amor que corre e deixa correr, que vai brincar com os outros: “Ame-o e deixe-o brincar/ Ame-o e deixe-o correr…”, e deixa também se perder, ir e voltar, se quiser. Era isso, ao mesmo tempo, uma resposta ao uso espúrio da palavra “amor”, à redução utilitarista política da frase, uma correção trocando a preposição “ou” pela preposição “e”. Quanto mais se ama, mais se deixa ir e vir. Era se opor àquela ideia maniqueísta: “Ou isso ou aquilo; ou isso ou aquilo outro; ou eu ou ele”. A ideia era para o contrário: “Eu e ele e ela e tantos outros”. Evidentemente, uma música para nós, uma música de…
… ensinamentos básicos de sobrevivência amorosa. — … e de autoensinamentos para reiterar e relembrar em mim a necessidade do compromisso com o desapego. Ela é uma lição de desapego.
Essa música dá uma contribuição muito importante, porque, particularmente, a MPB tem esse discurso “dor de corno” mal resolvido ainda muito evidente. — Tem na música do mundo inteiro e em toda canção romântica. Onde houver o par, há a exigência elementar da posse. São histórias do ninho que foi deixado por um dos pássaros. É o medo da solidão. É uma coisa que se opõe ao ideal do oriental, que é cada um na solitude, pela conquista do amadurecimento. Mas a visão do ocidental, da posse, é esta: vampirização do outro.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O som da pessoa
Gilberto Gil
Bené Fonteles
A segunda pessoa soa como tu és
A terceira pessoa soa como ele
e ela também
Qualquer pessoa soa
toda pessoa
boa
soa
bem
Gravações
Bené Fonteles – Benditos, 1983 – independente
Gilberto Gil – GiLuminoso: A Po.Ética do ser (CD do livro de Bené Fonteles e Gilberto Gil), 1999 – Editora UnB
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Comentário*
[Bené Fonteles conta que viu o poema no livro Expresso 2222, de 1982, organizado por Antonio Risério.] Ele diz que pegou a letra e já saiu cantando, que aquilo já era uma canção pra ele.
Bené Fonteles: “Fiz a melodia na hora que li o poema. Parece que recebi… Como você levantou, começou num rascunho de ‘Refazenda’ [ver comentário sobre a gênese dessa canção à p. 161]. Mas, quando fiz a melodia, não sabia de nada. Achei que era só um poema sem música. Nem ousei pensar no que estava fazendo. Deixei fluir… Quando estava gravando meu primeiro disco, que Belchior produziu, quis gravar a canção porque a letra diz o que sinto sobre soar bem e sobre a importância da palavra que soa bem vindo de uma alma que soa bem. E Gil sempre me soa assim pela sua grandeza. Belchior mostrou pra ele a canção, e Gil autorizou a gravação. Depois a gravamos no Gil Luminoso por sugestão dele, pois eu não tinha colocado na lista das canções que Gil me pediu escolher pro disco”.
Gil sobre o verso “Toda pessoa boa soa bem”, que pode ser visto no fac-símile do esboço da letra de “Refazenda” [à p. 161]. — Que não foi utilizado na canção “Refazenda” e que eu recuperei pra essa redução mais minimal do poema. “O som da pessoa” é um poeminha. Eu gosto muito. Gozado: quem adorava esse poema e quis fazer uma canção com ele foi Gonzaguinha. Ele se referia a esse poema de forma muito entusiástica e tinha vontade de musicá-lo. Não sei nem se ele chegou a fazê-lo, eu acho que não; que, se tivesse feito, a gente saberia. Mas o Bené fez.
Sobre a motivação da feitura dos versos. — O que é uma pessoa, o que é a alma, a dimensão anímica na vida dessa pessoa, e pra onde essa dimensão anímica se desloca, pra um plano da proximidade com a consciência, da percepção da consciência, da autoconsciência; o eu e os significados disso. Essas eram questões que estavam o tempo todo ali povoando o meu trabalho. A lavra das canções estava toda ela ligada ao recanto dessa mina, à mineração de pepitas sobre mente e espírito. “O som da pessoa” é uma das minhas canções sobre meditação. É, ela mesma, uma pequena meditação [assim como a canção homônima, “Meditação”].
Sobre a música feita pelo Bené traduzir o aspecto meditativo da letra. — Ele percebeu que era essa a intenção original, que, aliás, também é regra, aparecendo muito frequentemente, no trabalho dele próprio. As canções, os sambas que ele faz, têm um pouco esse mesmo tom. E aí, quando ele me mostrou, eu achei perfeito; achei que a música tinha sido acoplada de maneira muito natural às palavras.
Sobre o parceiro. — Eu e o Bené nos conhecemos desde há muito tempo; desde os anos 70. Ele com um relacionamento muito estreito com várias figuras da Bahia — o Mário Cravo Neto e o André Luís de Oliveira — e uma aproximação muito intensa que teve comigo, com meu trabalho, com o trabalho do Caetano. Ele é um ser orbital do nosso mundo, do nosso planeta, um dos satélites desse planeta poesia, brasileiro, e já àquela época foi mostrando interesse pela Bahia, uma referência profunda pra ele — um lugar de refúgio dele — até hoje.
Muito espiritualizado; de uma espiritualização aberta, miscigenada, sincrética. — Sincrética, pluralista. E ele vê essa mesma identidade em mim, no Caetano, em vários outros artistas, poetas. Um grande devoto de Luiz Gonzaga.
Paraense de origem, de família cearense, com ligação com o Nordeste e com o Centro-Oeste (Mato Grosso e Mato Grosso do Sul).
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O rouxinol
Gilberto Gil
Jorge Mautner
Pra pescar o sol
Mas tudo que eu pesquei
Foi um rouxinol
Foi um rouxinol
Levei-o para casa
Tratei da sua asa
Ele ficou bom
Fez até um som
Ling, ling, leng
Ling, ling, leng, ling
Cantando um rock com um toque diferente
Dizendo que era um rock do oriente pra mim
Cantando um rock com um toque diferente
Dizendo que era um rock do oriente pra mim
Depois foi embora
Na boca da aurora
Pássaro de seda
Com cheiro de jasmim
Cheiro de jasmim
O revólver do meu sonho
Gilberto Gil
Waly Salomão
Roberto Frejat
Apagou a fita daquela canção
A Casa do Sol Nascente?
Enfiou a tesoura na transação?
Passou a gilete na ligação?
Meteu a borracha no traço de união
Ocidente-Oriente?
Passado-futuro-presente
Fundido e confundido na minha mente
A todo o vapor
Barato era tudo muito mais
As Curvas da Estrada de Santos
O motor fervia
O carro rugia, meu amor
O coração batia tão feroz
Mas o mundo corria muito mais veloz que nós
Mais veloz que nós
O revólver do meu sonho atirava
Atirava no que via
Mas não matava o desejo
Do que ainda não existia
Interfone, blitz, joaninha, computador
O futuro comum de hoje em dia
Que eu, cigana, já pressentia
Mas você não percebia
No espelho retrovisor
O revólver dos Beatles disparava nas paradas
Me assustava, me encantava e movia
E eu ia, e eu ia, e eu ia
E recocheteava
Arembepe, Woodstock, píer, verão da Bahia
Arembepe, Woodstock, píer, verão da Bahia
O revólver do meu sonho atirava
Atirava no que via
Mas não matava o desejo
Do que ainda não existia
O oco do mundo
Gilberto Gil
para trans e meta pós
o oco do mundo a foz
de um rio sem nascente
como um broto sem semente
um raio de sol sem luz
como infecção sem pus
o oco do mundo a sós
o oco do mundo ainda
na minha periferia
como eco da bahia
saudade do meu sertão
o oco do mundo inteiro
passando pela tangente
ainda na minha frente
como um campo de visão
o oco do mundo vem
se aproximando de mim
primeiro como calor
depois como frenesi
em seguida como odor
e logo como tremor
o oco do mundo vem
se aproximando de mim
o oco do mundo então
já no meu interior
pedaço de pau na mão
fazendo de mim tambor
batendo tirando som
e sangue e suor e horror
o oco do mundo então
encarnação do terror
o oco do mundo sai
vai se pôr por traz de mim
depos de me haver cruzado
a alma e o corpo presente
depois de engulir-me a mente
e sugar o meu passado
o oco do mundo sai
no futuro projetado
o oco do mundo fora
do alcance da linguagem
o oco do mundo imagem
sem epelho, sem suporte
o oco do mundo a morte
sem corpo, sem substrato
sem noção, sem aparato
como o azar sem a sorte
o oco do mundo em si
despido de qualquer veste
nem cão nem cabra da peste
nem anjo nem mãe de deus
opaco buraco negro
sem casca caroco ou ego
o oco do mundo cego
sozinho em seu próprio céu
o oco do mundo enfim
o oco do mundo além
além do mal e do bem
da verdade nua e crua
alem do saber dos sabios
alem do deus dos snobs
o oco do mundo é o bobs
no cabelo da perua
Gravação
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Warner Music
Comentário*
“Não tenho medo da morte” e “O oco do mundo” são da mesma safra; são “espanholas”. De Sevilha [onde foi composta a primeira], eu fui pra uma cidade chamada Vitória, onde eu fiz, acabei de fazer, “O oco do mundo”. “Não tenho medo da morte” e “O oco do mundo” se relacionam. Elas são gêmeas não univitelinas. Têm caras diferentes, mas lá no fundo é a mesma questão.
De novo o gosto pela especulação do cerne da poesia. Bastaria a primeira estrofe (de “O oco do mundo”): já daria conta. Mas como o especular sobre a transdimensionalidade do cheio e do vazio não termina nunca, é insaciável, não tem satisfação, então a letra teve que ir para uma segunda estrofe, uma terceira e… Eu me lembro lá em Vitória, eu me dizendo: “Não tenho mais nada que dizer sobre isso. O oco do mundo é oco e pronto. Mas não, peraí, diga mais, pense mais, fale mais, sinta mais”. Nessa tautologia: repetindo, insistindo, pleonasmicamente, sobre a mesma coisa.
E de novo a redondilha maior. — A redondilha maior, a estilística clássica… E eu cito aqui Augusto dos Anjos, porque ele poderia ter feito “O oco do mundo”. É bem augustiniano-angelical. Bem Augusto dos Anjos.
Quando você escreveu a letra, você já fez a música junto ou imaginou um tipo de canto? — Não; só depois é que eu pensei nisso.
Ela é meio hip-hop; algo entre o rock, o hip-hop e a melodia. — Exatamente. Como “Não tenho medo da morte” já teria sido também, porque começou com um ritmo e uma linha melódica que acabou se espraiando para todas as estrofes, mas que na última interpretação que eu fiz dela, pro show com Caetano, já desaparece; em praticamente boa parte da melodia ficou só o cantochão, a versão jogralizada, recitativa, pura.
Então a versão de “Não tenho medo da morte” do show com o Caetano tem a ver mesmo com a essência original, a aspiração original dela. — Exatamente. Eu reduzi a rítmica que o Bem propôs a uma batida simples no violão, no tanger da corda grave de um mi. Fiz mesmo uma redução estilística da canção, depois de ter feito a gravação original dela com um arranjo de cordas do Jaquinho Morelenbaum.
“O oco do mundo” teria algo a ver com “Copo vazio” também, não? — Sem dúvida. “Copo vazio” é uma outra dessas tais canções especulativas sobre não começo, não fim. Nãofimnãocomeçonãofimnãocomeço. O que não tem começo nem terá fim. É isso.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O mar e o lago
Gilberto Gil
Ondas no lago sereno
Vento repentino
Ares de menino
Fugas de brigas de rua
Luas e luas e luas
Repentina paz
Meu velho rapaz
O velho Mário Lago
O velho, o mar e o lago
O mar e o lago
A alma bem resolvida
A embarcação ancorada
Mar incorporado
Mares do passado
Aqui agora o presente
Lago tranquilo da mente
Paz no coração
Meu amado irmão
O velho Mário Lago
O velho, o mar e o lago
O mar e o lago
Gravações
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – It ‘s Good To Be Alive (Anos 90), 2002 – Warner Music
Comentário*
Eu fui tocado pela ideia da música falando: ‘O Mário Lago’; ‘o Mário Lago’; ‘o Mário Lago’; chegou uma hora que o sentido do que eu falava saiu do nome da pessoa e foi para… ‘o mar e o lago’.
Aí eu achei irrecusável a descoberta: afinal, eram o mar e o lago. O mar, a grande água (eu me lembrava do ‘I ching’: ‘É propício atravessar a grande água’: o mar), e o lago, a pequena água; a grande poça e a pequena poça. Eu achei que era então para falar dele desse modo: ‘O mar e o lago’. ‘Mar incorporado’: a incorporação do mar pelo lago, a incorporação do lago pelo mar, esses dois corpos d’água de dimensões tão diferentes, mas com a mesma qualidade do acumular, do estar ali, do tempo que junta as coisas – esse sentido está configurado em ambos, tanto no mar, quanto no lago. E a ideia do grande e do pequeno também nele, na humildade do grande homem velho. Ele foi tipicamente um caso desses em que o velho foi ficando cada vez mais lépido, chegando até os 90 e tantos.
Uma figura maravilhosa. Um nome da arte popular brasileira do século 20; da música, mas não só da música: da militância política, do teatro, do rádio, da televisão. Autor de grandes clássicos, com vários parceiros, o Ataulfo [Alves], o Custódio [Mesquita]. Eu achei a descoberta dos dois corpos d’água no nome dele tentadora, e não resisti a escrever uma canção sobre ‘o mar e o lago’ nele, n’o Mário Lago’. Ele já era velho mesmo.
A letra ficou guardada por muito tempo antes de eu fazer a música, vindo a gravá-la somente no disco ‘Quanta’.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O lugar do nosso amor
Gilberto Gil
De uma bomba que explodiu
No saguão do nosso amor
Não foi tão grande assim
Nem tão profundo assim
Que lá no fundo fosse o fim do mundo
Lá no fundo o que ficou
Estilhaços de aflição
E pedaços de rancor
Não valem nada não
Não enchem um caminhão
Pegue com sua mão
Jogue no lixo
Deixe limpar seu coração
A bomba que explodiu, meu bem
Não passava de um traque
Tratava-se de um truque
De um mágico de fraque
História de almanaque de ilusões
Não há nada a lamentar
Ficou tudo no lugar
No lugar do nosso amor morar
O livre-atirador e a pegadora
Gilberto Gil
Não é um par porque logo são três – ou mais
O fato é que já estão acostumados
Namoradas, namorados vários de uma vez
Muita performance, muita parada
Muita balada, muito forrozão
Não tem romance, não tem paixão frustrada
De valenaite não precisam, não
Eh, vale dia e noite, eh, vale noite e dia
Vale pro carnaval, vale pro São João
Vale pro Rio, pra São Paulo, pra Bahia
Vale pro Ceará, vale pro Maranhão
O livre-atirador e a pegadora
A pegadora e o livre-atirador, que amor
Que amor pra eles é amor-pletora
Quem namora (2x), quem namora quem
Quem Timbalada, quem Babado Novo
Quem Psirico, quem calcinha azul
Calcinha Preta com cuequinha branca
Quem vale norte, vale norte a sul
Gravação
Gilberto Gil – Fé na festa, 2010 – Gege
Comentário*
Essa música foi provocada por uma expressão, “vale-night” [extraída da canção homônima, de Durval Lelys], que apareceu no Carnaval da Bahia com o Asa de Águia [a letra menciona outros grupos da música baiana em voga no período: Timbalada, Babado Novo, Psirico, Calcinha Preta], com o significado de liberação, um tiquete de liberação sexual entre casais. A canção surgiu disso; os elementos foram aparecendo, a ideia dos couples, dos pares de vários tipos: os heterossexuais, os homossexuais, os transexuais, os lgbtxyz da vida, todos eles. Daí também a ideia do xote, do conceito instigante da ironia, do duplo sentido, típico de um tipo de música nordestina, especialmente o xote, de que a gente tem outros exemplos no meu próprio trabalho. Os personagens vão surgindo, e vai se desenvolvendo um xote apimentado. Era um disco de música nordestina que eu estava fazendo: Fé na festa, de música junina. Então a ideia do xote veio quase seguramente por causa disso. Eu poderia ter feito uma outra canção com outro gênero, tratando das mesmas questões. Mas eu escolhi o xote, porque o xote abriga muito bem esse tipo de coisa apimentada.
Fala-se, inclusive, de amor pletora. — Exatamente. Variações múltiplas. Um sentimento de fartura, de sexualidade farta.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O Lenço e o Lençol
Gilberto Gil
Não tenho dono
Ninguém será capaz de me dobrar
Como seu eu fosse um lenço e pôr no bolso
E me tirar do bolso e se enxugar
O meu amor eu dou a quem me veja
Como um lençol quarando no varal
Alguém que chega me abraça e me beija
E eu ali pulando o carnaval
Pulando o carnaval
Literalmente
Ou pulando e caindo bem sentada
Em posição de lótus na calçada
A multidão passando alegremente
Sou quem sou vou fazendo o que eu bem queira
Sem eira nem beira nem protocolo
Quem me quiser que descubra a maneira
Não me bote no bolso e sim no colo
Quem me quiser que veja eu sou imensa
Eu sou intensa como a luz do sol
Quem me quiser que veja a diferença
Do tamanho do lenço e do lençol
Quem me quiser que veja a diferença
Do tamanho do lenço e do lençol
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
Nessa canção Roberta Sá é a personagem; canção feita pra ela e inspirada nela. Mulher solta, liberta, autônoma, todo esse conjunto de características associado às mulheres contemporâneas, às moças de hoje; e ela, sem dúvida alguma, é uma das representantes mais vivas, vivazes, desse campo.
[Gil manifesta um gosto particular pelas ideias poéticas de passagens como aquela em que a “personagem” cai sentada, ressaltando ali “o sentido da interioridade, da adesão irrecusável à profundidade interior dela; a ideia da meditação mesmo no meio do Carnaval. Nela também tem o cultivo da dimensão da interioridade, do silêncio, da pessoa quieta”. Ele destaca ainda o trecho que culmina no verso contendo a expressão-título (“Do tamanho do lenço e do lençol”, em diálogo com “A linha e o linho”) da canção: “O lençol não é coisa pra se botar no bolso, se dobrar e se enxugar; não é”. O objetivo foi “associá-la, assim, à dimensão mais ampla, mais aberta do lençol”.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O jornal
Gilberto Gil
Um jornal é tão bonito
Tudo escrito, tudo dito
Tudo num fotolito
É tão bonito um jornal
Vigilantes do momento
Senhores do bom jargão
Façam já soprar o vento
Seja em qualquer direção
Que o jornal é a matéria
E o espírito do mundo
Coisa fútil, coisa séria
Todo escrever vagabundo
Um jornal é tão diverso
Um jornal é tão diverso
Tudo impresso, tudo expresso
Tudo pelo sucesso
É tão diverso um jornal
Não importa a má notícia
Mas vale a boa versão
Na nota um toque de astúcia
E faça-se a opinião
De outra feita, quando seja
Desejo editorial
Faça-se sujo o que é limpo
Troque-se o bem pelo mal
Um jornal é tanta gente
Um jornal é tanta gente
Tudo frio, tudo quente
Tudo preso à corrente
É tanta gente um jornal
Um que dita, um que escreve
Um que confessa, um que mente
Um que manda, um que obedece
Um que calcula, um que sente
Um que recebe propina
Um que continua honesto
Um puxa-saco dos fortes
Um que mantém seu protesto
Um que trafica influência
Um que tem opinião
Um jornalista de fato
Um rato de redação
Um jornal é igual ao mundo
Um jornal é igual ao mundo
Tudo certo, tudo incerto
Tudo tão longe e perto
É igual ao mundo um jornal
Gravação
Erasmo Carlos – Homem de rua, 1992 – Sony Music
Comentário*
“O jornal” foi criada para o Erasmo Carlos, por ele ter sido líder de um movimento — a Jovem Guarda — que, como tantos outros líderes de movimentos musicais no Brasil, tinha tido um tratamento complicado por parte da imprensa. Esses caminhos enviesados da chamada crítica de cultura… Eu pensei: “Erasmo vai gostar de uma canção assim, que venha em defesa de nós, artistas, de nossa instituição; que nos defenda do modo canhestro como a gente é tratado pela imprensa numa boa parte das vezes”.
Fiz então uma canção passando por dentro da redação. Uma canção que reconhece a importância do jornal, mas que, ao mesmo tempo, argumenta que não adianta o jornal querer se colocar numa instância acima do bem e do mal, acima de tudo, porque na verdade ele é feito por pessoas, com todos os seus interesses próprios, particulares, ou de grupos ou facções, com seus defeitos; ali não há estar acima de nada. É uma música que passa por dentro das entranhas humanas das redações.
A canção versa inclusive sobre uma visão meio aética que os jornalistas têm que ter, no seu compromisso com fazer, vender, espalhar notícia; dar contornos próprios, específicos, às versões que fazem dos fatos — esse lado difícil do jornalismo. Ela é dura, mas humanizante: dá ao jornal uma dimensão da qual eles querem sempre fugir, a da realidade humana a que pertencem; eles querem estar um pouco acima disso, mas não estão.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O fim da história
Gilberto Gil
Venha comprovar
Nem negar que a História
Possa se acabar
Basta ver que um povo
Derruba um czar
Derruba de novo
Quem pôs no lugar
É como se o livro dos tempos pudesse
Ser lido trás pra frente, frente pra trás
Vem a História, escreve um capítulo
Cujo título pode ser “Nunca Mais”
Vem o tempo e elege outra história, que escreve
Outra parte, que se chama “Nunca É Demais”
“Nunca Mais”, “Nunca É Demais”, “Nunca Mais”
“Nunca É Demais”, e assim por diante, tanto faz
Indiferente se o livro é lido
De trás pra frente ou lido de frente pra trás
Quantos muros ergam
Como o de Berlim
Por mais que perdurem
Sempre terão fim
E assim por diante
Nunca vai parar
Seja neste mundo
Ou em qualquer lugar
Por isso é que um cangaceiro
Será sempre anjo e capeta, bandido e herói
Deu-se notícia do fim do cangaço
E a notícia foi o estardalhaço que foi
Passaram-se os anos, eis que um plebiscito
Ressuscita o mito que não se destrói
Oi, Lampião sim, Lampião não, Lampião talvez
Lampião faz bem, Lampião dói
Sempre o pirão de farinha da História
E a farinha e o moinho do tempo que mói
Tantos cangaceiros
Como Lampião
Por mais que se matem
Sempre voltarão
E assim por diante
Nunca vai parar
Inferno de Dante
Céu de Jeová
Gravação
Gilberto Gil – Parabolicamará, 1991 – Warner Music
Comentário*
A canção foi composta para responder à colocação do scholar nipo-americano Francis Fukuyama, que num artigo publicado um pouco antes defendeu a tese neoliberalista de que, com o final do comunismo — que, segundo ele, teria desaparecido —, a História teria também acabado. O artigo se chamou justamente “O fim da História”, e foi escrito para provar o término da marcha das utopias. Para lançar minha contestação frontal a isso, eu fiz a advocacia do “eterno retorno”, tratando exatamente da questão de que tratava Fukuyama (a derrocada do socialismo enquanto configuração dos conjuntos nacionais do Leste Europeu), e trazendo à discussão o mito de Lampião (havia então a notícia de que, numa cidadezinha do Nordeste, tinham tentado tirar a sua estátua, o que gerou polêmica, sugerindo-se um plebiscito em que o povo acabou preferindo mantê-la).
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O eterno deus Mu dança!
Gilberto Gil
Sente-se que a coisa já não pode ficar como está
Sente-se a decisão dessa gente em se manifestar
Sente-se o que a massa sente, a massa quer gritar:
“A gente quer mu-dança
O dia da mu-dança
A hora da mu-dança
O gesto da mu-dança”
Sente-se tranqüilamente e ponha-se a raciocinar
Sente-se na arquibancada ou sente-se à mesa de um bar
Sente-se onde haja gente, logo você vai notar
Sente-se algo diferente: a massa quer se levantar
Pra ver mu-dança
O time da mu-dança
O jogo da mu-dança
O lance da mu-dança
Sente-se – e não é somente aqui, mas em qualquer lugar:
Terras, povos diferentes – outros sonhos pra sonhar
Mesmo e até principalmente onde menos queixas há
Mesmo lá, no inconsciente, alguma coisa está
Clamando por mu-dança
O tempo da mu-dança
O sinal da mu-dança
O ponto da mu-dança
Sente-se, o que chamou-se Ocidente tende a arrebentar
Todas as correntes do presente para enveredar
Já pelas veredas do futuro ciclo do ar
Sente-se! Levante-se! Prepare-se para celebrar
O deus Mu dança!
O eterno deus Mu dança!
Talvez em paz Mu dança!
Talvez com sua lança
Gravações
Gilberto Gil – O eterno Deus Mu Dança, 1989 – Warner Music
Carla Visi – Carla Visita Gilberto Gil, 2001 – MZA Music
Comentário*
De acordo com Gil, o vocábulo “mu”, para designar uma divindade, assim como a palavra “mudança” transformada em nome próprio também de uma entidade divina, é uma licenciosidade poética, fundamentada semanticamente, contudo, numa relação com o termo Lemúria, do qual é extraído, e que é, segundo estudiosos esotéricos das idades, o nome da região pré-Atlântida de onde ter-se-ia originado a raça negra.
“Na verdade”, conta ele, “a criação do vocábulo foi acidental, tendo ocorrido em decorrência da decomposição da palavra ‘mudança’ em ‘mu-dança’, forçada pelo trecho da melodia que o Celsinho Fonseca tinha me dado, pronta, em Paris, para eu letrar. No final, tudo acabou ficando apropriado, tanto os substantivos Mu e Mudança significando dois deuses (um deus-deus e um deus-deusa) como o verbo dançar, já que a música era dançante, meio disco, meio funk.
Sendo que o sentido de ‘mudança’ era, antes de tudo mais, o motivo principal da canção: a ideia paradoxal da transformação como a única constante do universo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O compositor me disse
Gilberto Gil
Essa canção
Que eu cantasse como se o vento soprasse pela boca
Vindo do pulmão
E que eu ficasse ao lado pra escutar o vento jogando as palavras
Pelo ar
O compositor me disse que eu cantasse ligada no vento
Sem ligar
Pras coisas que ele quis dizer
Que eu não pensasse em mim nem em você
Que eu cantasse distraidamente como bate o coração
E que eu parasse aqui
Assim
Gravações
Elis Regina – Elis, 1974 – Philips
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao vivo), 1974 – Universal Music
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Comentário*
“O compositor me disse” é uma música que dialoga com a intérprete para a qual eu a compus, a Elis Regina, meio cabotinamente. Sou eu me arvorando em mestre, tentando lhe ensinar coisas; falando como um terapeuta para um paciente. Ela própria se queixava muito de certa dificuldade para um relaxamento. Como não sou psiquiatra, psicólogo, eu lhe mandei um recado através da canção. Era uma lição de ioga, para induzi-la a pensar no respirar e a não pensar naquilo que está sendo dito, ao cantar; a fazer do canto um veículo de expressão da interioridade completa, e da serenidade, um pressuposto, um patamar da elevação do canto. Ela sabia do que se tratava, e havia suficiente intimidade entre nós para que aquilo não soasse pretensioso, demasiadamente cabotino, paternalista até. Ela tinha admiração por minhas inclinações pela ioga; gostava do meu modo de gostar disso. E gostava de me gravar. Elis foi a cantora que mais me gravou, considerando o período da sua produção. Ela era louca por mim, eu era louco por ela, por outras tantas razões — eu fui apaixonado por ela fisicamente.
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999. “É oriental, pré-socrática. E antes de mandar para ela, quando fui cantar a canção com o violão, eu tive uma dificuldade de harmonizá-la, no sentido de escolher os acordes: qual a sucessão, qual a sequência, como é que vai… Porque ela tem uma harmonia implícita, mas de difícil vislumbre. Não é fácil mesmo de vislumbrar. Acabei escolhendo uma versão harmônica que eu mandei para ela. Elis a transformou bastante na gravação, porque aí o César Camargo Mariano, com toda sua boa ambição estético-harmônica, transformou muito. Mas é basicamente uma canção para ser cantada ‘a palo seco’ e para ser sussurrada, fazendo emergir na pessoa que a cantar — no caso dela, que era uma adestrada nas coisas da música — certos eflúvios harmônicos.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O cometa
Gilberto Gil
Waly Salomão
Que acentua a divisão
Profeta branco, anuncia
O fim do planeta Terra
Fome, seca, epidemia
Bexiga, maleita, morte
O diabo a quatro
Eta cometa da peste
De mil e seiscentos e sessenta e quatro
O cometa é um facão
Que acentua a divisão
Pro povo preto é bendito
É bem-vindo e é bonito
Ajunta céu e terra
Fartura e festa
Estrela e mata
Eta cometa porreta
De mil e seiscentos e sessenta e quatro
Gravação
Gilberto Gil – Quilombo, 2002 – Warner Music
O bom jogador
Gilberto Gil
O bom jogador não engana a geral
Afrouxa quem tem coragem
Deixa de galinhagem
O amor aqui de casa
Gilberto Gil
A chuva não dá sinal
Quem no mel seu mal padece
Seu bem conserva no sal
Vai doer de novo o parto
Vai secar de novo o açude
Vida aqui tem sala e quarto
Quem não couber que se mude
O amor daqui de casa
Tem um sentimento forte
Que nem gemido na telha
Quando sopra o vento norte
Que nem cheiro de boi morto
Três dias depois da morte
Quem só conhece conforto
Não merece boa sorte
O amor daqui de casa
Tem um sentimento nu
Com gosto de umbú travoso
Com cheiro de couro crú
Gravações
Gilberto Gil – As canções de eu, tu, eles, 2000 – Warner Music
Gilberto Gil – São João Vivo! (Deluxe), 2005 – Warner Music
Nicolas Krassik e Cordestinos – Nicolas Krassik e Cordestinos, 2008 – Rob Digital
Comentário*
A principal das canções que eu compus para o filme ‘Eu Tu Ele’, do Andrucha Waddington, justamente para a personagem principal (Darlene), vivida pela Regina Casé; pensando no significado geral dela, do seu posicionamento com relação ao amor e ao compartilhamento da sua vida afetiva com dois amantes. Eu já possuía a música, já a tinha composto certo dia, havia não muito tempo, e a cantarolava de vez em quando. Eu a tinha composto no modo de si maior, aproveitando uma modalidade violonística dessa tonalidade. Então, quando surgiu a tarefa de criar canções para a trilha, eu disse: ‘Deixa eu aproveitar essa música que é tão nordestina, vou ver se encaixo nela as palavras’. E fui fazendo a letra, toda em redondilhas maiores. A melodia já era apropriada exatamente para versos dessa medida, muito característica das frases melódicas da toada nordestina.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil