Músicas
Nova
Gilberto Gil
Moreno Veloso
Um brilho no céu
Uma constelação
Bem longe daqui
Uma nova canção
De força maior
Pro universo habitar
Qual sempre a matriz
Supernova será
Água pra benzer
Ouro pra enfeitar
A bela visão
D’um neutrino a bailar
Mãe, ora yeiê
Sua bençao pra mim
Que sempre assim
Eu me lembre em você
© Gege Edições Musicais / © Uns (Warner/Chappell)
Nossa
Gilberto Gil
Inteiramente ao nosso amor
Cantar nossa música
Agora é só decidir
Aonde queremos ir
Armar nossa tenda
Armar nossa tenda, já
Que a nossa varanda vai ser
A estrada da vida
Por onde o sol passará
E a lua também virá
Contar nossa lenda
E os tempos futuros vão
Saber como foi
Escrever nos muros vão
Nas pedras do chão
A história da nossa ilusão
A história da nossa ilusão
Gravação
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Comentário*
Canção importantíssima na minha vida. Porque é de quando Flora — depois de passar um tempo comigo aqui no Rio, os primeiros tempos juntos — é instada, é levada de volta a São Paulo pra resolver a questão da vida dela com a família, com o pai e com a mãe. Nesse ínterim, quando ela vai pra São Paulo, eu fico aqui sozinho, no Rio, no quarto do hotel, e faço essa canção. Pra ela, sobre ela, sobre nós, sobre nossa vida, “Nossa”, já vislumbrando a vida conjunta. Na verdade, desdobrando sensações, sentimentos e expectativas que já estavam na canção “Flora”, a primeira que eu fiz pra ela. “Nossa” era uma canção de expectativa, de aguardo: eu aguardando que ela, de São Paulo, me dissesse alguma coisa, se viria mesmo ficar comigo, viver comigo. É uma canção de desejo, de intenção propiciatória. Muito marcante pra mim. A segunda pra ela.
Sobre a reincidência da palavra “ilusão”, que finaliza a canção.
— Uma vez mais a palavra “ilusão”. Ela aparece muito em canções minhas num sentido menos comum. O José Miguel Wisnik [no texto escrito para este livro, não à toa intitulado “O dom da ilusão”] se refere a isso muito fortemente, sempre com o sentido expansivo da dimensão semântica. Ela cobre muitos aspectos desse cerne, dessa semente semântica. “Ilusão” não só no sentido do verbo “iludir” ou “se iludir”, mas, no caso do verso final dessa canção (“A história da nossa ilusão”), por exemplo, no sentido mais ibérico — de ilusión — do grande campo do fascínio, do encanto.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Nós, por exemplo
Gilberto Gil
Nós somos apenas nós
Por exemplo
Apenas vozes da voz
Somos nós, por exemplo
Apenas vozes da voz
Nós somos apenas vozes
Ecos imprecisos do que for preciso
Impreciso agora
Impreciso tão preciso amanhã
Nós, por exemplo, já temos Iansã
Nós, por exemplo, já temos Iansã
Nós somos apenas vozes
Nós somos apenas
Nós, por exemplo
Apenas vozes da voz
Somos nós, por exemplo
Apenas vozes da voz
Nós somos apenas vozes
Do que quer que seja luz no cor-de-rosa
Cor na luz da brasa
Gás no que sustenta a asa no ar
Nós, por exemplo, queremos cantar
Nós, por exemplo, queremos cantar
Nós somos apenas vozes
Nós somos apenas nós
Por exemplo
Apenas vozes da voz
Somos nós, por exemplo
Apenas vozes da voz
Nós somos apenas vozes
Do que foi chamado de “a grande expansão”
Pé no chão da fé
Fé no céu aberto da imensidão
Nós, por exemplo, com muita paixão
Nós, por exemplo, com muita paixão
Nós somos apenas vozes
Nós somos apenas
Nós, por exemplo
Apenas vozes da voz
Somos nós, por exemplo
Apenas vozes da voz
Gravação
Doces Bárbaros – Doces Bárbaros, 1976 – Philips
Comentário*
Na época da feitura do repertório geral dos Doces Bárbaros, no espaço de sete dias eu fiz, numa sequência: ‘Nós, por exemplo’, ‘Esotérico’, ‘O seu amor’, ‘Rita Lee’, ‘Pé quente, cabeça fria’, ‘Chuck Berry fields forever’ e uma que a Bethânia gravou, ‘Balada do lado sem luz’, também dessa série. Eu estava fazendo shows (‘Refazenda’) com Dominguinhos, Momó e Chiquinho Azevedo, no teatro do Sesc, no Pelourinho, em Salvador. Toda noite eu chegava em casa depois da apresentação e fazia uma música; durante uma semana eu fiz isso, ficava até três quatro da manhã compondo. Nada era pré-pensado, nada; a não ser ‘Nós, por exemplo’, que eu compus em função do show que havíamos feito na Bahia em 64.
Na busca de atualizar a ideia contida no título do espetáculo, dado por Caetano na ocasião, eu o retomei, também para tentar expressar o que significaria ‘Nós, por exemplo’ ainda, doze anos depois. A canção tem uma certa complexidade, uma certa ambição de escopo.
‘Vozes da Voz’ – ‘Nós somos vozes da Voz’, quer dizer: nós somos a razão do cantar, cantamos o Canto – a Voz nesse sentido, maiúscula, a Voz da vida, a Voz do mundo, daquilo que é preciso cantar; a Voz do imprescindível, da necessidade básica de expressão como uma das fomes do homem, cantar como elemento nutritivo, como hábito de reconstituição. Nós já tínhamos nos tornado vozes individuais, cada um de nós uma voz da Voz, e agora, ao nos juntarmos de novo, nos reencontrando nos Doces Bárbaros, éramos de novo vozes da Voz. Por que cantamos? Por que o homem canta? Por que cantar? Por que a música? A voz como vocação. Nós éramos os reprodutores perpetuadores dessa vocação do homem. Nesse
sentido, ‘Nós, por exemplo’ foi mais um jingle meu.
Qualidade jinglística – Você tem que escolher o interlocutor, identificá-lo; identificado, imediatamente você passa a falar de alguma coisa com alguém, por alguma razão. O jingle é isso: tem um utilitarismo embutido; a visão pragmatico-utilitária é logo colocada em ação. A mensagem tem que ter utilidade, funcionalidade, servir a alguma coisa. As minhas canções para os Doces Bárbaros tiveram esse sentido jinglístico, panfletário, aforístico.
A maioria delas – a começar por ‘Nós, por exemplo’ – teve a função de expressar os elementos de coesão, os signos que estavam associados ao nosso encontro e ao nosso percurso histórico enquanto grupo, enquanto pessoas associadas; ao nosso associativismo; à Bahia como elemento de ligação entre nós quatro; às nossas inclinações estéticas; aos gostos e às coisas que abordamos de forma comum; àquilo que nos ocorreu que trouxe elementos importantes para as nossas vidas e que foram historicamente relevantes.
‘A grande expansão’ – A expressão faz referência a uma das várias formas de chamar o mundo. Eu, na verdade, estava pensando em Pietro Maria Baldi. Baldi, um italiano que viveu no Brasil e fez um trabalho ligado à ideia do Brasil como uma nova terra prometida, um Eldorado; às, digamos, grandes profecias sobre o papel diferenciado do Brasil e à coisa toda de Brasília e o Planalto Central, onde ele viveu muito tempo. Baldi escreveu vários livros, e eu cunhei a expressão ‘a grande expansão’, na letra, pensando em um deles, chamado ‘A Grande Síntese’. E também no big bang e na formação do universo tal como ele é conhecido, bem como no estágio por que passamos hoje, que é de expansão, como eco ainda da
explosão inicial.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Nos barracos da cidade (Barracos)
Gilberto Gil
Liminha
Ninguém mais tem ilusão
No poder da autoridade
De tomar a decisão
E o poder da autoridade
Se pode, não fez questão
Se faz questão, não consegue
Enfrentar o tubarão
Ô-ô-ô, ô-ô
Gente estúpida
Ô-ô-ô, ô-ô
Gente hipócrita
O governador promete
Mas o sistema diz não
Os lucros são muito grandes
Mas ninguém quer abrir mão
Mesmo uma pequena parte
Já seria a solução
Mas a usura dessa gente
Já virou um aleijão
Ô-ô-ô, ô-ô
Gente estúpida
Ô-ô-ô, ô-ô
Gente hipócrita
Gravações
Gilberto Gil – Dia dorim noite neon, 1985 – Warner Music
Gilberto Gil – Ao vivo em Tóquio, 1987 – Warner Music
Cidade Negra – Quanto Mais Curtido Melhor, 1998 – Sony Music
Kid Abelha – Um barzinho, um violão (Ao vivo no Rio de Janeiro, Vol. 1), 2001 – Universal Music
Gilberto Gil – Kaya N’Gan Daya, 2003 – Warner Music
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases (Ao vivo), 2018 – Gege
Gilberto Gil e BaianaSystem – Gil Baiana Ao Vivo em Salvador, 2020 – Gege e Máquina de Louco
Comentário*
‘Barracos’ é outra das canções minhas que nasceram de uma música que veio pronta e na qual eu tive que encaixar uma letra. E já veio com frases melódicas exigindo redondilhas maiores: com esse formato. Aí me ocorreu falar dos barracos das comunidades periféricas; do fenômeno da exclusão como uma distorção do sistema – um tema clássico entre os vários da canção popular, e que tinha caracterizado parte considerável de toda a música de protesto da fase de formação daquilo que veio a se chamar MPB, desse grande sistema chamado MPB; música de protesto da qual ‘Procissão’ foi bem um símbolo. ‘Barracos’ é uma nova ‘Procissão’.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Noite de lua cheia
Gilberto Gil
O céu flutua na noite de lua cheia
O amor atua na noite de lua cheia
Ocupa a rua na noite de lua cheia
Calma, queda a alma
Clara a emoção
Branca e branda a chama
Tão morna a paixão
Longe leva a vista
Leve leva o ar
Luva veste a terra
Leite lava o mar
Love, love quase se vê
Move, move em mim, em você
Chove, chove prata sobre nós
Ouve, ouve, deve ser a lua, sua voz
É quando quero, quando espero um grande amigo
É quando vivo por um bom motivo – a lua
É quando sinto que não minto quando digo:
Não há perigo, tenho um grande abrigo – a rua
Noite de amor
Gilberto Gil
Gravação
Gilberto Gil e Cazuza – Um Trem Para as Estrelas, 1987 – Som Livre
No quartel
Gilberto Gil
Gravação
“Brasil ano 2000”, vários, Forma/CIA 1969
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
No Norte da saudade
Gilberto Gil
Moacyr Albuquerque
Perinho Santana
Pra não ter porém
Pra não ter noite passada
Pra não ter ninguém
Atrás
Mais ninguém
Vou pra quem
Vai me ver noutra cidade
No norte da saudade, que eu vou ver
meu bem
Meu bem, meu bem
Vai me ver noutra cidade
No norte da saudade, que eu vou ver
meu bem
Meu bem, meu bem
Gravações
Gilberto Gil – Refavela, 1977 – Philips
Gilberto Gil – Fé na festa, 2010 – Gege
Gilberto Gil e Flor Gil – De avô pra neta, 2020 – Gege
Comentário*
Ela começa a ser feita em Aracaju por mim, Momó [Moacyr Albuquerque] e Perinho. Seguimos dali pra Maceió, pra Natal, e em Fortaleza nós concluímos a composição, no meio da viagem. É por isso que ela tem o título de “No norte da saudade”: porque ela vai em direção a novos encontros, deixando rastro. “Logo cedo, pé na estrada/ Pra não ter porém”: esse “porém” aí já tem um tom de lamentação ao mesmo tempo que busca explicitar o sentido da liberdade, o sentido do livrar-se daqueles momentos e deixá-los para trás: deixar a menina vivendo a saudade dela, eu levando a saudade dela pra outro lugar, pra outro encontro, pra outro momento. É uma canção seminal muito importante, de alta voltagem poética, eu acho. Associada a questões factuais, a toda uma cultura do on the road, dos anos 70, do exercício das novas liberdades, dos novos costumes, das novas expressões do amor, dos encontros; da sexualidade. E que foi recuperada no show Refavela 40 [em 2017] e em seguida incorporada pela Flor [a neta cantora, que interpreta a canção também na sua versão em inglês, “Goodbye, My Girl”], se tornando uma das canções constituintes do repertório dela.
“No norte da saudade” tem musicalmente uma particularidade, porque é um reggae-xote com uma levada que o Momó fez no baixo e um momento reservado ao solo do Perinho na guitarra que é preenchido de uma forma magistral, na gravação. Essa canção é interessante pela música mesmo, não é só pela letra; pelo modo duradouro como ela foi registrada.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
No mundo do lua
Gilberto Gil
Se o milagre acontecesse de eu voltar
Este breu da inexistência ainda é melhor
Este céu da inexistência pelo menos
Pr’eu poder voltar na terra sem poder
O consolo nesse mundo onde sou não
Afinal de contas se ainda sou rei
Que vocês ainda possam me escutar
Gravação
Gilberto Gil – Gonzaga, de pai pra filho, 2012 (trilha sonora do filme) – Gege
Comentário*
[Outra homenagem de Gil a Luiz Gonzaga, depois de “13 de dezembro” (letra de Gil sobre música instrumental de Gonzaga), “No mundo do Lua” foi composta para o filme Gonzaga, de pai pra filho.]
Ele já desaparecido e, ao mesmo tempo, a presença ainda extraordinariamente forte da música dele: a letra acabou tratando disso, da manifestação do desencarnado; ele, desencarnado, falando do que poderia, do que teria que significar pra ele uma nova encarnação — que só interessaria se ele pudesse continuar a tocar sua sanfona, fazendo seu baião; que ele dispensaria o milagre de Deus fazê-lo voltar sem poder tocar e cantar por aí. Preferia não voltar. Lá onde ele está, quieto feito os anjos da igreja de Ituaçu, ele estaria melhor. É um jogo com o ente desencarnado, falando para o mundo da encarnação, que é o mundo terreno, o nosso mundo. Eu acho a letra interessantíssima, uma das mais interessantes que já fiz. Formada por sentenças, algumas delas muito bem encontradas, atribuídas a ele. Eu não lembro de outra canção cujo eu lí- rico é desencarnado, o que já imprime um caráter especial à letra. O que me fez ir por esse caminho foi mesmo a força da existência de uma figura como a dele e a força da existência após a inexistência. A ideia mesmo do legado histórico, artístico, de uma vida que se eterniza; da imortalidade tão evidentemente plausível em alguém como ele. O que diria esse alguém que deixa alguma coisa para o mundo: é o que quis dizer essa canção. Com um certo humor, uma jocosidade, uma coisa característica de muitos dos baiões, xaxados e xotes que formam a grande obra de Gonzaga. Do apelido de Gonzaga, por ele ter o rosto arredondado. — “Lua” ficou um dos apelidos mais conhecidos dele, mais adotados por todo o mundo. Luiz “Lua” Gonzaga.
Do título “No mundo do Lua” como paráfrase de “no mundo da Lua” (ou seja, “outro mundo”). — Exatamente. Tem esses achados interessantes essa canção.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
No dia que eu vim-me embora
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Minha mãe chorava em ai
Minha irmã chorava em ui
E eu nem olhava pra trás
No dia que eu vim-me embora
Não teve nada de mais
Mala de couro forrada
Com pano forte e brim cáqui
Minha vó já quase morta
Minha mãe até a porta
Minha irmã até a rua
E até o porto meu pai
O qual não disse palavra
Durante todo o caminho
E quando eu me vi sozinho
Vi que não entendia nada
Nem de pro que eu ia indo
Nem dos sonhos que eu sonhava
Sentia apenas que a mala
De couro que eu carregava
Embora estando forrada
Fedia, cheirava mal
Afora isso, ia indo
Atravessando, seguindo
Nem chorando, nem sorrindo
Sozinho pra capital
Nem chorando, nem sorrindo
Sozinho pra capital
Gravações
Caetano Veloso – Caetano Veloso, 1967 – Philips
Maria Alcina – Maria Alcina, 1973 – Warner Music
Dominguinhos – Oi, lá vou eu!, 1977 – Universal Music
Luiz Gonzaga – O canto jovem de Luiz Gonzaga, 1982 -RCA
Vinicius Cantuária – Sutis diferenças, 1984 – EMI Music
Vânia Bastos – Cantando Caetano, 1995 – Velas
Pena Branca e Xavantinho – O melhor de Pena Branca e Xavantinho, 1997 – Veleiro Produções Artísticas Musicais e Comércio Ltda.
Carmen Queiroz – Enquanto eu fizer canção, 2011 – Tratore
Guadalupe – Dedicado a você, 2016 – Canal 3 Distribuidora
No céu da vibração
Gilberto Gil
Todos os animais
Os vegetais também o são
Como será
Não ser assim?
Não precisar
O começo, o meio, o fim
A encarnação, Deus?
Como será
Não estar aqui nem lá
E tão somente andar ao léu
No céu da vibração?
Para os olhos, fez-se a cor
Para os ouvidos, o som
Para os corações, o fogo do amor
E para os puros, o que é bom
Só me resta agradecer
E aguardar a ocasião
De tão somente andar ao léu
No céu da vibração
Ninguém segura este país
Gilberto Gil
Que está por cima, meu bem, eu também acho
Segurando a barra dessa rima
Deve haver algum pernambucano por baixo
Um sergipano por fora
Um maranhense de lado
Um rio-grandense de toca
Um carioca pirado
Um paulista ocupado
Um mineiro calado
Um catarinense tímido
Um amazonense úmido
Cada qual no seu perfeito estado natural
Entra baiano, sai ano
Mais um carnaval
De lascar o cano
Gravação
Gilberto Gil – Satisfação (Raras e inéditas), 1999 – Universal Music
Comentário*
Essa foi feita para brincar com a concentração de importância que se fazia com a representação baiana, em parte criticando um pouco esse excesso de importância, em parte assumindo, de uma maneira vaidosa, a importância – e a imagem de que os baianos são interessantes, de que a Bahia tem um charme, a Bahia tem um jeito, os baianos estão na moda (para o bem, para o mal).
A letra sai comparando a Bahia com os outros estados, a começar com Pernambuco – me lembro que isso provocou o compositor Carlos Fernando, que fez uma música respondendo, devolvendo a provocação. Uma marchinha bem alegre, jocosa, como muitas marchas carnavalescas ou juninas, aproveitando para fazer um mapa brasileiro: na minha cabeça, quando eu estava compondo, me vinham os mapas brasileiros da infância, com todos os estados, cada um de uma cor.
A expressão do título, que nem figura na letra, era para mexer com o slogan da ditadura e para, simultaneamente, exprimir a ideia de que ninguém segura mesmo a força avassaladora da cultura popular brasileira e o grande mito do carnaval, as festas populares, os grandes rituais de agregação, de formação de unidade.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ninguém dá o que não tem
Gilberto Gil
João Augusto
Ninguém dá o que não tem pra dar
Mas se amor com amor alguém tem que pagar
É você que está devendo
Porque não quer dar
Ou porque não tem
Porque nunca me dá nada
E recebe tanto bem
Sim, eu sei
Quem espera sempre alcança
Mas espera também cansa
Estou cansado de esperar
Meu amor é como um pobre
Luta tanto pra viver
Quando nasce, não se cria
E se cria, é pra morrer
Nightingale
Gilberto Gil
Jorge Mautner
Caught it by the tail
When I held it in my hand
It was a nightingale
It was a nightingale
I was happy and took him home
He was hurt and so alone
Water, love and seeds
Those were all his needs
In about a week or so
He was fit to go
He sang a ting, ling, ling, ling, bird song
A swinging, ling, ling, ling, long melody
He sang a ting, ling, ling, ling rock song
A swinging, ling, ling, ling, long song for me
One day at daybreak
He said good-bye
He flew up and he was like
A comet in the sky
A comet in the sky
[ O Rouxinol, de Gilberto Gil e Jorge Mautner ]
Neve na Bahia
Gilberto Gil
Bruxa
Ducha de água fria
No fogo do meu plexo solar
Loura
Moura
Neve na Bahia
Um furacão sem fúria no meu mar
Agri-
Doce
Tal um sal de fruta
Vós me agradais quanto vós me agredis
Onça
Garça
Inocente e astuta
Clareza absoluta e mil ardis
Gueixa disfarçada de boneca
Sudanesa travestida de alemã
Por que sois o mistério à luz do dia?
Por que sois sempre a noite de manhã?
Ainda bem que sois fruta no meu sonho
A eterna obviedade da maçã
Que escolho e colho e mordo na bochecha, Xuxa
E tendes travo e gosto de avelã
Vick
Vapor
Lenta anestesia
Pimenta na garrafa de isopor
Xuxa
Bruxa
Ouro de alquimia
Sois flecha de um cupido pós-amor
Gueixa disfarçada de boneca
Sudanesa travestida de alemã
Por que sois o mistério à luz do dia?
Por que sois sempre a noite de manhã?
Ainda bem que sois fruta no meu sonho
A eterna obviedade da maçã
Que escolho e colho e mordo na bochecha, Xuxa
E tendes travo e gosto de avelã
Gravação
Gilberto Gil – Parabolicamará, 1991 – Warner Music
Comentário*
Anos atrás, no meu gabinete na Câmara dos Vereadores, em Salvador, eu recebi um fax com o pedido que uma revista, que ia publicar uma reportagem sobre a Xuxa, fazia, para que eu escrevesse alguma coisa sobre ela. Eu escrevi um texto pequeno, que eu nunca vi publicado (nem sei se saiu), e que começava assim: ‘Xuxa bruxa, ducha de água fria, no fogo do meu plexo solar’. Um ano e meio depois, quando eu estava preparando o repertório de um novo disco, vindo numa viagem de Manaus para o Rio, eu peguei meu caderno e vi aquele texto anotado. Aí resolvi elaborá-lo, fazendo o resto.
Mantive aquele início, dei-lhe a forma de estrofe, e continuei a ideia.
O resultado foi um antijingle. Um elogio de algo que está encoberto, feito um pouco com pena do encobrimento, criado por uma fantasia da mídia e dos interesses do sucesso e do pragmatismo inerente à carreira dela. A música fala da sua sensualidade e dos disfarces que estão por trás: ‘Pimenta na garrafa de isopor’ é para dar o sentido camuflado do ardor e do caráter picante que ela tem; quer dizer: aquele calor, aquela fogueirinha, mas toda embalada numa coisa como se não fosse para isso, mas para um anti-clímax, no meio-termo do gesto, numa mediação constante entre a labareda e a brasa.
‘Neve na Bahia’ é um antiapologético e um apologético do anti. A canção engloba os conceitos tanto da publicidade quanto da propaganda – que, embora muito próximas, podem ser distinguidas, mas também aproveitadas num conceito único: é o caso do que ocorre aqui, em que se têm as duas coisas, pois a canção faz propaganda de uma anti-imagem e ao mesmo tempo entra no próprio espaço da publicidade que já está implicado no nome da Xuxa, da personalidade pública dela.
A letra traz implícita uma espécie de voyerismo, de alguém que fica vendo a televisão como se fosse um buraco de fechadura, tentando centrar o foco naquele personagem tão iluminado pelas luzes da superexposição, sem perder de vista as manipulações necessariamente implicadas naquele tipo de superexposição dirigida e instrumentalizada como a da Xuxa. Ao mesmo tempo, explicita tanto uma frieza que é típica da hiper-programação e dela própria, com os estereótipos de menina nórdica e racional, quanto os contrapontos: a esperteza, a leveza dela.
Algo que fica evidente também é um afeto especial dedicado em nome do coletivo, em nome do afeto coletivo, expresso na visão dela como fruta, no verso ‘a eterna obviedade da maçã’ – em referência ao que a programação dela utiliza e manipula, ou seja, à ideia do erótico embalado, cuidadoso, global, da programação infantil. A música, aliás, é uma marchinha bem suave, parecida com ela, com o tom infanto-juvenil dela. Uma homenagem com dois olhos, um que vê a frente e outro que vê atrás; um que vê um lado e outro que vê o outro.
Por que o ‘vós’ – Por causa de um artifício de adequação à rima [com ‘ardis’, daí o pronome, para corresponder à forma verbal ‘agredis’] e porque o ‘vós’ dava uma ideia de tom reverencial de quem está falando com alguém de uma representação da aristocracia do mundo da televisão – esse mundo-tela, distante –, uma espécie de princesa que ela é; para dar também uma ideia desse distanciamento.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Nêga (Photograph blues)
Gilberto Gil
Nega
You spent so blissfully
The last few days with me
Nega
I spent so nicely too
The last few days with you
When I met you, it was so fine
I didn’t talk a lot to you
I only mentioned your smooth hair
You made a speech about shampoo
We took many, many, many photographs
Downtown
As we passed through
Nega
You spent so blissfully
The last few days with me
Nega
I spent so nicely too
The last few days with you
You’ve been going just where I’ve gone
All my people you have seen
I’ve been doing just what you’ve done
Now I can dig your cup of mu tea
We let our moments become, become
What they really had to be
Nega
You spent so blissfully
The last few days with me
Nega
I spent so nicely too
The last few days with you
Develop our photographs
As simple dreams that will come true
Perhaps they will make you laugh
Or make you sure about we two
Develop, baby, our photographs
Perhaps they will make you sure
Perhaps they will show you nothing
Nothing, but a shade of blue
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil, 1971 – Philips
Gilberto Gil e Jorge Ben Jor – Gil e Jorge, 1975 – Philips
Comentário*
Na verdade, sou eu exercitando a capacidade narrativa no inglês de música popular; tentando versejar em inglês, transpondo ideias e sentimentos que poderiam ser expressos naturalmente em português brasileiro para o inglês rudimentar que eu estava começando a praticar. É uma música de treino poético na língua inglesa. É assim que eu considero. E eu uso o “nêga” pra dar também o imbricamento das línguas, das narrativas poético- -musicais populares nas duas línguas. É um experimentalismo autoral, poético-composicional. Essa expressão está em momentos vários do cancioneiro popular, o tempo todo. A nêga isso, a nêga aquilo, a nêga aquilo outro.
Mas eu tenho a impressão de que o termo “nêga/nêgo” passa a ter, nas canções da geração de vocês, uma aplicação mais ampla do que apenas a uma pessoa negra. — Passa a se aplicar ao campo afetivo mais geral em canções da minha turma, da minha época? É… “Ô, meu nêgo! Ô, minha nêga” é um tratamento carinhoso que se dá a qualquer pessoa. Uma expressão, um vocativo afetivo granjeado, franqueado a qualquer relacionamento; uma menção a qualquer ente, minimamente querido, valoroso, valioso. É nessa acepção que “nêga” entra nessa música em inglês.
O termo com essa associação a uma pessoa cativante, querida, interessante de alguma forma, com essa evocação racial, transcende completamente ao racialismo e ao racismo, a qualquer coisa desse tipo. É como eu vejo também a palavra “mulata”, que hoje em dia acabou cancelada, proscrita, mas que pra mim tem a mesma qualidade. “Mulata” também tem alguma coisa para além da cor da pele, para além do traço racial. [Gil a relaciona com “neguinha”, lembrando “‘Eu sou neguinha’, pra dar um exemplo”.]
Da referência ao chá mu, o “mu tea”. — Era uma bebida muito ingerida na casa e que fazia parte do dia a dia daquela época, de vivência com a macrobiótica.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Nascente poente
Gilberto Gil
John D’Andria
Não havia gente para ver
Não havia o nosso olhar
No primeiro sol nascente
Sobre a terra ardente
Sobre o infante mar
Nada pronto pra testemunhar
Pedra, planta, peixe vivo
Nada, nem um ser
Nem um ser
Deus sem ter a quem falar
Deus não podia ter
A quem mostrar a luz, o brilho, a cor
Eu digo: Deus como a gente crê
O Deus do jeito que a gente inventou
Até que um coração bateu
Inventando Seu amor
Derradeiro sol poente
Quando a noite eterna, enfim, descer
Que será do nosso olhar?
Derradeiro sol poente
Sobre a terra quente
Sobre o velho mar
Tudo pronto pra se desmanchar
Pedra, planta, peixe vivo
Tudo, cada ser
Cada ser
Deus começa a se calar
Deus tendo que extinguir
A nossa chama, a luz do Seu amor
O nosso Deus morrendo feliz
Logo após o pôr, o fim do sol
Do sol o pôr que Ele mesmo quis
Pôr que Ele mesmo matou
Gravação
Fafá de Belém – Aprendizes da esperança, 1985 – Som Livre
Comentário*
O nascer e o morrer do sol, no sentido literal, cosmológico, cosmogônico, e Deus relacionado com isso. O sentido profundo da precedência de Deus da procedência do homem da precedência de Deus: um dos filões filosofantes da minha obra. Aqui a história tem o primeiro sol nascente e o derradeiro sol poente.
A noção do Deus inventado pelo homem por você é de certa forma intrigante por você ser um homem de notória religiosidade.
— Mas com uma trajetória em que crer e descrer sempre se complementaram. No meu trabalho você tem isso. Eu comecei crendo em Deus, depois descri, depois voltei a crer, e hoje vivo uma síntese dessas idas e voltas. A noção do Deus incriado criador a um só tempo; a noção de que a valência do existir divino só passou a ser depois que o homem pensou em Deus, ou seja, de Deus como uma invenção do homem, observável aqui, em “Nascente poente”, também está presente na música “É” (“Pois eu sou e Deus é/E disso é que resulta toda a criação”). Esse vai e vem, essa ideia de precedência e procedência, uma precedência de Deus, uma procedência do homem, um homem a proceder de Deus, mas ao mesmo tempo um Deus procedente do homem, esse jogo aparece em versos, em estrofes, em momentos vá- rios de canções minhas. Em “Tempo rei”, “Aqui e agora”, você encontra esse gen binário homem-Deus, Deus-homem.
Tal sentido parece ser proveniente de um espírito abrangente e includente que religiões caracterizadas por um extremismo monoteísta não admitem. — Não admitem. São pequenas, são de baixa frequência. As religiões de alta frequência são politeístas. Monoteísmo é uma distorção, uma redução. Monoteísmo-reducionismo é o homem querendo reduzir tudo à sua…
Só um Deus único, homem, pai, todo-poderoso, sem deusa, mulher, mãe. — É muito pouco. Os monoteístas tiveram que fazer um esforço enorme através da retórica pra poderem se explicar, pra poderem se justificar.
Ao mesmo tempo religiões politeístas, como o candomblé, incluem o monoteísmo, incluem o Deus. — Mas é óbvio. O sincretismo todo que surgiu com as religiões africanas e o cristianismo; as figuras da adoção do monoteísmo católico pelo politeísmo africano e todos os desdobramentos que surgiram disso; toda essa abertura constitui uma oportunidade que só os politeísmos podem oferecer. Os monoteísmos são fechamentos, ensimesmamentos. Deus em si mesmo. Deus que não vai pra lugar nenhum, que só serve pra si mesmo; pra buscar a explicação de si próprio. O monoteísmo não é generoso, não abrange a criação do mundo, não se joga à grande fragmentação. É pequeno, não tem jeito.
É verdade. Mas assim como reconheço essa qualidade do politeísmo, reconheço o valor da religião em que quase não se tem Deus, como o budismo. — Claro. Aí é a contemplação do Incriado. Do Deus desconhecido. A noção de um Deus desconhecido nos aproxima do desapego do próprio ego, nos salva da hipertrofia do ego.
Gênese. — Foi a Fafá de Belém que trouxe a música dessa canção pra mim, cujos autores, americanos, me vieram através dela, que me pediu pra eu fazer a letra.
[Fafá conta que recebera quatro músicas do compositor Eric Bulling em estado bruto e que imaginou brasileiros fazendo letras pra elas. E na música em questão aqui ela viu versos de Gil. “Era muito Gilberto Gil. E ele mandou essa letra, que é fantástica”].
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Não tenho medo da vida
Gilberto Gil
Eis a loucura assumida, você há de imaginar
É que a vida atou-se a mim desde o dia em que eu nasci
Viver tornou-se, outrossim, o modo de desatar
Viver tornou-se o dever de me desembaraçar
A vida é somente um dom independente de quem
Seja capaz de gritar seu nome, alto e bom som
A vida seria um tom, uma altura a se atingir
Viver é saber subir, alcançar a nota lá
Lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar
Não tenho medo da vida, mas medo de viver, sim
A vida é um dado em si, mas viver é que é o nó
Toda vez que vejo um nó, sempre me assalta o temor
Saberei como afrouxá-lo, desatá-lo eu saberei?
A vida é simples, eu sei, mas viver traz tanta dor!
A dor na carne e na alma, a calma a se propagar
A durar dia após dia, a varar noite, a dormir
A ver o amor a vir a ser, a ter e a tornar
A amanhecer de novo e de novo um novo dia…
Isso às vezes me agonia, às vezes me faz chorar
Gravação
Gilberto Gil – Fé na festa, 2010 – Gege
Comentário*
[A canção tem sua gênese relacionada com Rogério Duarte e com um dia em que Gil e Caetano foram visitá-lo quando ele se encontrava doente, em Salvador. Rogério estava na cama, quando disse para Gil fazer uma canção que dialogasse com “Não tenho medo da morte”.]
Eu estava no quarto e presenciei quando o Rogério lhe sugeriu que fizesse “Não tenho medo da vida”. Eu tinha ido à Bahia para vê-lo, e todo dia ia visitá-lo. — Sim, você também é parte da história. Eu tinha feito “Não tenho medo da morte”, mostrei pra ele, e ele, provocativo como sempre, imediatamente disse: “Devia escrever ‘Não tenho medo da vida’ ”. Eu achei que aquilo era um desafio muito legítimo, muito profundo. Fui pra casa e logo em seguida, dois, três dias depois, a música já estava feita.
Ele estava muito doente, com câncer, se tratando, numa fase já muito dificultosa da vida quanto ao desempenho físico, à fala. E foi a reação provocativa natural dele. “‘Não tenho medo da vida’: fale sobre isso também.” Foi como se dissesse: “Dizer ‘não tenho medo da morte’ é fácil. Eu quero ver dizer que não tem medo da vida!”. Bem. Isso propiciou uma especulação razoavelmente exigente pra criar a canção, pra encontrar as palavras e os versos, o contexto narrativo. Eu me espelhei muito na música “Não tenho medo da morte”.
A estrutura é a mesma. Quatro estrofes de dez versos, dez redondilhas maiores. — A mesma. Com o verso “Você há de imaginar” no lugar de “Você há de perguntar”. Eu fui tecendo.
E onde tem “Não tenho medo da morte” na primeira, tem “Não tenho medo da vida” na segunda, abrindo tanto a primeira como a terceira estrofe. — Isso. Tudo pra dar esse sentido de espelhamento que estava muito claro na proposta do próprio Rogério no momento em que ele a fez.
Você se lembra de como é que você reagiu, em termos de como iria desenvolver o tema? — Isso veio, foi chegando. Quando você diz logo “Não tenho medo da vida/Mas sim medo de viver”, você já remete ao elemento deflagrador da própria música “Não tenho medo da morte”. A ideia de que a vida é maior que a vida. Assim como a morte é maior que a morte. Morrer é ato seu, de um eu. Enquanto viver é mais do que isso, transcende isso. Da mesma maneira que morrer é um ato seu, de um eu, enquanto a morte é muito mais que isso: é mais mistério, mais o não alcançável, mais o incompreensível, o impalpável; é mais ausente porque é depois. No caso da vida, também é mais do que a sua vida, do que a minha, do que a de alguém, do que a de algum ser. Vida quer ser tudo e nada. Viver é verbo, vida é substantivo, é substância.
A vida está atada na pessoa, no vivente. — Sim, sim, sim. Viver é um desenrolar. Um desatar.
Justo. E você vai falar de viver como um nó depois, na terceira estrofe. Mas na segunda é tão clara a diferenciação que você faz entre a vida como “um tom, uma altura a se atingir” e o viver como “subir” até alcançar a nota lá. — “A nota lá — lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar”: a ideia de que viver é sofrer, de que “tudo é sofrimento”, no sentido dos Upanixades [parte das escrituras hindus, consideradas como instruções religiosas, derivando dos Vedas, a base da filosofia do hinduísmo]. Viver é cada um por si. Viver em si, viver em um, viver num eu, viver em mim, viver em ti: esse viver pessoal.
“[…] Viver é que é o nó/Toda vez que vejo um nó, sempre me assalta o temor:/Saberei como afrouxá-lo, desatá-lo eu saberei?/A vida é simples, eu sei, mas viver traz tanta dor!” — O verbo “viver” sendo assumido como algo a ser processado em cada ser, em cada vivente, em cada um. Daí para o fecho com “A dor na carne e na alma/A calma a se propagar”, onde a ideia de um exaustivo decorrer dos dias e das horas, a calma, a calmaria da vida.
O final fala o que eu nunca vi ser dito por um compositor: da sequência dos dias da vida como uma agonia. E que eu acho que só poderia vir de você mesmo. — Acho que não. Eu acho que é um sentimento comum. Talvez rarefeito em uns, mais constante em outros, mas comum, todo mundo tem. A vida é agônica. A vida é uma passagem agônica. Dá agonia — agonia de viver.
Reconheço que é um sentimento comum. Mas, entre compositores, é difícil para mim imaginar outro dizendo a mesma coisa. O que, para mim, atesta uma vez mais a originalidade do seu tematizar a morte (porque é na necessária relação complementar com a morte que você tematiza a vida nessa canção).
— Sim, como ela nasceu da provocação do Rogério ao falar: “Dizer que tem medo da morte é fácil. Quero ver dizer que não tem medo da vida!”. A resposta é bem atenta à pergunta dele. “Como é ter medo da vida?”, ele perguntou. Eu dei atenção a isso. Aí tem um gosto [pelo tema]. E deu muito gosto fazer essa canção.
Que é uma das canções relacionadas com Rogério, e sendo o Rogério também alguém que sempre, de algum modo, tratou da questão da morte, da relação entre vida e morte, sendo ele um homem religioso também. — Um sannyasi, um renunciado com uma compenetração muito grande em relação a isso, ao sentido da entrega da vida nas mãos da morte. Morte como culminância da vida. Morte como salvação. O renunciado age assim, em nome disso, da transcendência, da superação do medo de viver. Superação daquela tal agonia. Encontro com a paz, a pacificação.
E isso está contido de alguma maneira nas primeiras criações suas em que o Rogério estava envolvido. — Sim. “Objeto semi-identificado”. “Diga lá, digo eu, diga você”, aquele diálogo [retomado depois no álbum Quanta, com “Objeto ainda menos identificado”].
Do ponto de vista musical, como você compara “Não tenho medo da vida” e “Não tenho medo da morte”? — “Não tenho medo da vida” tem mais brilho, mais luminosidade musical. É mais luminosa. Também nesse sentido tem valor o espelhamento, o contraste. “Não tenho medo da morte” é mais monótona, lúgubre, mais escura, correspondendo ao senso comum sobre a morte como escuridão, desaparecimento. “Não tenho medo da vida” é mais brilhante nas soluções melódicas, na variedade melódica, nas ideias de tonalidade. Ela “sobe” quando fala de erguer, alcançar a nota lá. “Não tenho medo da morte” tem notas mais graves, é toda construída com um melodiar mais soturno. “Não tenho medo da vida” é mais solar mesmo. Nesse sentido, o (não) medo da morte é noite, o (não) medo da vida é dia.
Essa dupla de canções se complementa mesmo. Como a própria vida e a própria morte. E é a nota lá mesmo que se canta no final do verso com essa palavra? — Não. Depende da tonalidade que você adotar, no sentido geral da música. Pode ser que, quando você escolhe uma tonalidade lá qualquer, essa nota pode coincidir com lá. No caso, acho que não coincidia não. Não tenho certeza, mas acho que não. E aí, por isso, é que fica o lá espacial, o lugar.
O “lá” atingido. — Eu nunca tive o sentimento de “Não tenho medo da vida” não ter dado conta da encomenda. Eu poderia ter tido, porque a dificuldade era enorme. A provocação foi de alta monta. Corresponder à expectativa do Rogério representava um grande desafio. Mas eu logo mergulhei na tarefa, fui pra casa e fiz a música, e logo fui mostrar pra ele. A canção não me deixou nenhuma sensação de vazio, de buraco, de não preenchimento, de não atingimento. Eu a acho bem atingida. Como a tal da nota lá [a que a letra se refere] a que a gente chega…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Não tenho medo da morte
Gilberto Gil
mas sim medo de morrer
qual seria a diferença
você há de perguntar
é que a morte já é depois
que eu deixar de respirar
morrer ainda é aqui
na vida, no sol, no ar
ainda pode haver dor
ou vontade de mijar
A morte já é depois
já não haverá ninguém
como eu aqui agora
pensando sobre o além
já não haverá o além
o além já será então
não terei pé nem cabeça
nem fígado, nem pulmão
como poderei ter medo
se não terei coração?
Não tenho medo da morte
mas medo de morrer, sim
a morte é depois de mim
mas quem vai morrer sou eu
o derradeiro ato meu
e eu terei de estar presente
assim como um presidente
dando posse ao sucessor
terei que morrer vivendo
sabendo que já me vou
Então nesse instante sim
sofrerei quem sabe um choque
um piripaque, ou um baque
um calafrio ou um toque
coisas naturais da vida
como comer, caminhar
morrer de morte matada
morrer de morte morrida
quem sabe eu sinta saudade
como em qualquer despedida.
Gravação
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Gege
Gilberto Gil – Concerto de cordas e Máquinas de ritmo (Ao vivo), 2012 – Biscoito Fino
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Dois Amigos, Um Século de Música (Ao vivo), 2015 – Gege e Uns Produções
Gilberto Gil – Em casa com os Gils, 2022 – Gege
Comentário*
Eu estava em Sevilha com Antônio Damásio e com John Perry Barlow, o grande estudioso da questão do ciberespaço. Estávamos todos em reuniões, numa espécie de simpósio, de congresso que estava ocorrendo lá sobre internet e todas as questões novas suscitadas pelo ciberespaço. Num dia daqueles, depois dos encontros que tivemos pela manhã e pela tarde, fomos pro hotel eu e Flora, e Flora foi dormir, se recolheu, e eu não; por alguma razão não quis me deitar e fiquei na mesinha da sala onde estavam meus papéis e livros. E aí me veio essa história, de não ter medo da morte — ao tê-lo.
Diferenciando a morte do morrer. — Morrer como ato e a morte como um destino. Daí escrevi um poema inteiro. Veio em mais ou menos uma hora, uma hora e pouco. Fui me deitar e dormir um pouquinho depois. Quando eu cheguei de volta ao Brasil, disse ao Bem, meu filho: “Olha, escrevi uma coisa na Espanha quando eu estava com uns colegas discutindo temáticas contemporâneas e internacionais; me ocorreu esse poema”. Eu somente tinha escrito os versos então.
A tão popular medida das redondilhas maiores… Em quatro estrofes de dez versos… — Tão popular, tão clássica. “Vamos fazer um ritmo pra eu recitar esse poema”, eu disse ao Bem. E aí ele escreveu. Eu recitei o poema pra ele, e em cima daquele ritmo sintetizado, feito com máquina, eu comecei um fio melódico e fui levando adiante a composição toda, o canto todo dela, sobre a cama, o ritmo que o Bem tinha construído.
A canção é provocativa. São autoprovocações feitas em relação a mim mesmo. Desafios à minha condição humana e à minha — à nossa — condição extra ou transumana ou para-humana. É um dos temas também recorrentes no meu trabalho.
Já no seu álbum de 1969 (Gilberto Gil ), com canções compostas na prisão, duas faixas se referem a morte, a que abre e a que fecha o disco: “Cérebro eletrônico” e “Objeto semi-identificado” (com Rogério Duarte), respectivamente. Três anos antes você havia composto “Amor até o fim”, referindo-se de forma indireta ao assunto, e dois anos depois faria uma canção intitulada, afinal de contas, “A morte”. Enfim, é um tema que você encara há muito tempo. — Ah sim, sempre, desde a infância, com a perda permanente de pessoas; pessoas e animais que nasciam, morriam, nasciam, morriam. Nasciam, cresciam, morriam. Então não teve jeito. “A morte faz parte da vida,/E se vale a pena viver,/Então morrer vale a pena” [“Então vale a pena”, que é outra canção a respeito do tema; de 1978]. Porque, mesmo não sendo muito tematizado, trata-se de algo que encaramos o tempo todo. Eu e outras poesias, do Augusto dos Anjos, é isso o tempo todo: um jorro desse questionamento. A materialidade humana na incorporação de corpos materiais e a sua inutilidade final: não serve pra nada; só serve para o humano propriamente; não serve para a coisa das destinações, do “existirmos: a que será que se destina?”, da “Cajuína” do Caetano. Quer dizer: é um tema que todos nós encaramos. São bichinhos que nos fustigam a interioridade o tempo todo. Alguns com atitudes receosas, querendo se afastar, não querem levar essa conversa avante. Outros, pelo contrário, querem especular sobre isso. Eu sou um especulador. Eu gosto, tenho vários momentos de especulação sobre a questão.
Isso tem a ver com a sua religiosidade, com o aspecto religioso da sua personalidade, do homem que você é. — Religioso filosófico, eu diria. Filosofal, filosofante.
De todo modo, é um tema que a gente pode chamar de difícil. Pelo menos para o ocidental o é. Consequentemente vai ser um tema difícil de abordar também em arte, por um artista, tanto que são poucos os compositores como você que se dedicam a encará-lo. Nelson Cavaquinho fala de morte: às vezes o samba é sobre a Mangueira, e de repente no meio incide a ideia da morte. — Exato. E, associada a “Não tenho medo da morte”, tem “Se eu quiser falar com Deus”, que eu fiz para o Roberto Carlos e que apresenta uma excelência de filtragem dessa questão nos versos, no modo como eles decorrem e as palavras vão se associando, as rimas se conectando. Eu acho uma bela canção.
Ambas constituem daqueles pontos altos, luminosos, da arte da canção popular. A realização delas é determinante nisso, tendo a ver com o desenvolvimento do tema, do pensamento, da reflexão em cima do tema, e de como tudo se arredonda. — É a tarefa do escultor. Seu cinzel. Como é que o pintor ou o literato, o romancista ou o filósofo, o poeta também, vai quebrando a pedra pra dar forma à arte. Eu tenho essa verve, sou um poeta de formação basicamente simplista. Um descendente dos Gonçalves Dias, dos Olavos Bilacs, e só meio forçado pela vida, pelos encontros, é que eu amplio o meu leque de interesses sobre a poesia para fronteiras mais amplas. Mas basicamente eu sou um menino criado com poesia convencional, clássica, das lidas ginasianas, e a grande poesia popular nordestina, e que a partir dos instrumentais oferecidos por esses campos simples, que eu chamo de informação simplista, vai abordar coisas difíceis, digamos assim, entre aspas, “profundas”. E aí, do ponto de vista formal, eu vou ter meus flertes com poesia moderna, poesia concreta, com isso, com aquilo, com aquilo outro…
A letra de “Domingo no parque” já apresenta uma novidade no aspecto formal, que não guarda muita relação com o tipo de poesia mais tradicional, a que você se refere como parte importante da sua formação. Há nela uns procedimentos, como certas repetições vocabulares, que fazem pensar em cinema. Ali já é você aspirando a — e expressando — algo novo, apreendendo novidades do mundo da arte que estava em evolução. — Poéticas de várias origens, advindas de vários campos de percepção, de observação da expressividade, sobre a expressividade. Como expressar esse olhar circulante sobre as coisas todas? Assim, evidentemente, logo cedo, muito cedo, menino ainda, eu me interessei por música, e isso deu na poesia, deu na literatura, veio dar nesses outros atratores. Fui atraído por outros campos de expressividade e juntando fragmentos de tudo isso no meu trabalho, na minha lavra. Que é, ainda assim, eu diria, em última análise, uma lavra simplista, simplificadora.
Condizente com a arte popular… — Com esse desejo da comunicação popular; da música popular brasileira. É isso. Então tem a aderência a esse campo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Não grude não
Gilberto Gil
Não grude não não grude
Não grude não, oxente, onde já se viu!
Não grude não, não grude
Não grude não, não grude
Não grude não, o disgrama, quiuspariu!
Não grude não, não grude
Não grude não, não grude
Não grude não, afasta, vai, sai pra lá!
Não grude não, não grude
Não grude não, não grude
Não grude não, basta, deixa eu respirar.
Não quero evitar você
Mas jurar amor não vou
Iaiá, o açude secou
Me ajude a me escafeder
Quem se escafede não fede
Quem se escafede não mede
Da liberdade não cede nem um tantim
Numa cidade, sodade
Noutra cidade, sodade
Quem se escafede se antecede ao fim do fim.
Não grude não, não grude
Não grude não, não grude
Não grude não, carrapicho de jardim!
Não grude não, não grude
Não grude não, não grude
Não grude não, carrapato, chato, assim!
Não grude não, não grude
Não grude não, não grude
Não grude não, faz um, faz um favozim!
Não grude não, não grude
Não grude não, não grude
Não grude não, alô, já vou, atchim!!!
Gravação
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Gege
Comentário*
“Não grude não” e “O oco do mundo” fizeram parte da trilha de O homem que desafiou o diabo, de Moacyr Góes, tendo sido criadas para o filme. E “não grude não” era o bordão que o personagem principal, Ojuara, feito pelo Marcos Palmeira, usava para dispensar abraços dos novos amigos e dos inimigos reconciliados. — Exatamente. Isso se encaixava bem num perfil de composição de que eu gosto e que me acompanha desde o início, que é a coisa de jingle. Tratar de personagens ou comentar sobre objetos e sobre personagens; traçar pequenos comentários a respeito das existências das coisas, do significado da existência delas. É um trabalho que tem sido ao longo da minha vida facilitado pelo gosto que eu tenho por retratar coisas. “Não grude não” é um xaxado nordestino, muito tributário da verve nordestina, na linguagem que é típica do versejar nordestino, porque o personagem estava ligado ao Nordeste.
No meio tem um verso que diz: “Quem se escafede se antecede ao fim do fim”. Não é só ao fim. É ao fim do fim. — A incorporação da ideia de transcendência. O mundo poético, o mundo do imaginário, diz respeito a esse gosto, essa necessidade, essa premência do transcender: do atingimento da dimensão transcendental pra lá de tudo, pra lá de vida ou morte, pra lá de começo e fim, pra lá… Essa ideia que povoa muitos aspectos das religiosidades e das filosofias e que também é um dos traços básicos das minhas canções. Em toda canção minha tem um pezinho nessa coisa; tem um jeitinho que eu dou sempre de colocar essas questões. Numa frase ou outra, num lugar ou outro, tem sempre um “tempo rei”… E nessa canção é justamente nesse verso. — É. Quem se escafede está investindo na liberdade, na libertação. E, portanto, quando se fala em última análise de libertação, se fala disso — de transcender. Libertar-se de tudo que é circunstancial humano. E “escafeder” é uma expressão nordestiníssima, né?
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Não chore mais
Gilberto Gil
Da gente sentado ali
Na grama do aterro, sob o sol
Ob-observando hipócritas
Disfarçados, rodando ao redor
Amigos presos
Amigos sumindo assim
Pra nunca mais
Tais recordações
Retratos do mal em si
Melhor é deixar prá trás
Não, não chore mais
Não, não chore mais
Bem que eu me lembro
Da gente sentado ali
Na grama do aterro, sob o céu
Ob-observando estrelas
Junto à fogueirinha de papel
Quentar o frio
Requentar o pão
E comer com você
Os pés, de manhã, pisar o chão
Eu sei a barra de viver
Mas se Deus quiser
Tudo, tudo, tudo vai dar pé
Tudo, tudo, tudo vai dar pé
Tudo, tudo, tudo vai dar pé
Tudo, tudo, tudo vai dar pé
Não, não chore mais
Não, não chore mais
Gravações
Gilberto Gil – Realce, 1979 – Warner Music
Sandra de Sá – Um barzinho, um violão (Ao vivo no Rio de Janeiro, Vol. 1), 2001 – Universal Music
Gilberto Gil – Kaya N’Gan Daya, 2002 – Warner Music
Daniela Mercury – Balé Mulato (Ao vivo), 2006 – Páginas do mar
Natiruts – Natiruts Reggae Brasil (Ao vivo), 2016 – Zeropontodois Entretenimento Ltda. sob licença da Sony Music
Rodrigo Santos – A festa rock, Vol. 1, 2018 – Mins Música
Comentário*
Eu pensava na transposição de uma cena jamaicana para uma cena brasileira o mais similar possível nos aspectos físico, urbano e cultural. Emblemática do desejo de autonomia e originalidade das comunidades alternativas, “No Woman, No Cry” retratava o convívio diário de rastafáris no government yard (área governamental) em Trenchtown, e a perseguição policial, provavelmente ligada à questão da droga (maconha), que eles sofriam. Essa situação eu quis transportar para o parque do Aterro, no Rio de Janeiro, também um parque público, onde localizei policiais em vigília e hippies em rodinhas, tocando violão e puxando fumo, como eu costumava vê-los de noite na cidade. Coincidindo com o momento em que a abertura política estava começando, “Não chore mais” acabou por se referir a todo um período de repressão no Brasil.
“Não chore mais”. — Minha tradução para o refrão-nome foi uma escolha arbitrária, porque eu nunca entendi direito o que os autores queriam dizer com o proverbial “no woman, no cry”. Até procurei, mas não tive meios de saber. Alguns me disseram que a expressão significa “nenhuma mulher, nenhum problema”; eu pensei em “nenhuma mulher, nenhum choro”, um adágio local talvez. E também numa possível forma em inglês dialetado para o correto “no, woman, don’t cry”.
Optei por algo próximo disso inclusive porque, assim, eu me aproximava mais do sentido dos outros versos da música, uma espécie de lamento pela perda dos amigos e pela presença perturbadora da repressão que, na versão pelo menos, adquire um ar de canção de despedida, com o homem dizendo à mulher que está indo embora, mas que isso não é o fim do mundo, e que é pra ela se lembrar do tempo dos dois juntos etc. Uma instauração de um espaço afetivo que eu até hoje não sei se o original contém.
“Amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais”. — Eu não pensava em ninguém especificamente; a tradução vinha diretamente dos versos em inglês, com o detalhe do uso do termo “presos” — surgido naturalmente com a lembrança do modo de atuar da repressão, através das prisões, torturas e mortes de pessoas.
“Melhor é deixar pra trás”. — Há uma certa licenciosidade interpretativa aí. “You can’t forget your past” (“Você não pode esquecer o seu passado”), diz o original. Me referindo ao período que estava terminando no Brasil, eu digo: “Vamos passar a borracha nisso tudo. O passado tem um débito conosco, mas vamos dar um crédito ao futuro”. Uma posição típica da minha ideologia interna, do meu otimismo, do meu gosto pela conciliação, do traço tolerante da minha personalidade.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Namba, a gangamorada
Gilberto Gil
Olha nos olhos
Namba deita pa Ganga
Beija na boca
Namba deita pa Ganga
Pernas pros ares
Iaiá Namba é pa Ganga
Linda morada
Namorada de Ganga
Nambamorada
Nambamorada de Ganga
Nambamorada
[ inédita – para o filme Quilombo ]
Na Real
Gilberto Gil
Nada é real, você é
Nada é igual, você é
Nada é normal, você é, você é
Dito assim, você, você e mais você
Parece que eu não sei o que é o amor
Amor por tudo e todos, luz do bom viver
Que a palavra de Deus nos ensinou
Sendo assim, você, você e mais você
É como se eu não pudesse enxergar
As gotas de orvalho soltas sobre a flor
As gaivotas soltas sobre o mar
É que você, você, você e só você
É mais que o necessário para abrir
O armário cheio de ilusões dentro de mim
Para que tudo ali possa caber
Sendo assim, real, real é só você
De quem disponho além de um sonho em vão
Que nada em nada iguala, em nada o seu poder
De me fazer mais normal, puro e são
Gravação
Gilberto Gil – Ok Ok Ok, 2018 – Gege
Comentário*
Mais uma para a coleção de canções para a Flora, para a mulher. — O reconhecimento da companheira como símbolo de todo o humano, de toda a humanidade. A união, a unidade provocada pelo casamento exige que em sua redução seja todo o amor representado.
Sobre as primeiras estrofes. — Nada é real, só você é real: parece uma rejeição a todo o sentido amplo, universal, impessoal do amor. Porque como uma personalização absoluta do amor pode significar exatamente o extremo absolutamente impessoal desse mesmo amor? É que ali pode estar concentrado todo o amor por uma humanidade. É isso que dá sentido ao casamento. Por que ser casado? Por que continuar casado? Por que ser um casal? Por que ser um par? Por que ser uma coisa dois em um, um em dois? Aí vem a questão do Tao de novo. O Tao dá o um, o um dá o dois e o três dá tudo. De novo, a ideia que é o cerne da minha poética. Essa canção insiste nisso até ao fazer a apologia do amor a dois.
Não se trata evidentemente de uma canção de amor comum, porque ela tem um significado complexo pra uma canção de amor. A despeito da ênfase na grande importância do amor de dois, ele não implica um não amor por tudo e por todos.
— Pelo contrário. Só porque é um, é todos. Só porque é para um e de um, é de todos e para todos. A exigência da personificação: a pessoa personifica todas as pessoas. Nisso está embutida a ideia da paz também. A relação que pacifica todas as outras.
Não significando também que o amante não veja a beleza de outras coisas como o orvalho, as gaivotas… — “É como se eu não pudesse enxergar/ As gotas de orvalho soltar sobre a flor/ As gaivotas soltas sobre o mar”: é como se, mas não é.
Do final. — “Sendo assim real, real é só você”, quer dizer: real é o que está aqui, aquela que está ao meu lado. “De quem disponho além de um sonho em vão”: a disposição permanente, o encontro reiterado, inevitável, indissolúvel. “Que nada em nada iguale em nada o seu poder/ De me fazer mais normal, puro e são”: a ideia da sustentação da saúde; de eu envelhecer e ela ser o meu amparo. Nossa senhora do amparo. Minha senhora do amparo.
A canção apresenta interesse também por se tratar de um discurso do homem reconhecendo na mulher o poder de lhe proporcionar a normalidade e a lucidez. — A saúde e a sanidade. É isso o que a canção queria e é o que ela pôde fazer.
Um funk romântico suave de sabor retrô, por remeter no arranjo às ondas de metais dos anos de Earth, Wind & Fire? — Não só no arranjo: na composição mesmo; na melodia.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Na imaginação
Gilberto Gil
Na imaginação
Eu já sei
Falta ao meu coração
Ser o rei
Ser o rei e ordenar
O prazer
Da emoção de amar
E viver
Cada respiração
Como for
Como for cada vez
A paixão
Cantar cada canção
Como for
Como for cada vez
Todo amor
© Gege Edições Musicais
Gravação
Guadalupe – Guadalupe, 1979 – CBS
Na casa dela
Gilberto Gil
Trago a emoção
Bem vivida em meu coração
Do instante em que
Ví o fogo santo brotar do chão
Como uma flor
Como uma semente de ardor
Com um esplendor de uma cor
Que não tem comparação
O fogo eu vi
A sensação pude sentir
Nos meus pés descalços
Era suave e morno o calor
E há mais no ar
Havia perfume a exalar
Tão embriagador de quase não
Se poder respirar
Como se não bastassem
O fogo e o olor
Foi tocado um sino que eu sei
Que um anjo foi quem tocou
Fogo, calor, perfume
Som de sino, oiô
Só faltava o mel,
Só faltava o mel
Mas o mel chegou!
Pingava mel
Da parede escorria mel
Eu passava o dedo
E provava sem medo, sem temor
Doce sabor
Comprovava o gosto de amor
Lá na casa dela
Na casa dela, a Mãe do Senhor
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – São João (Ao vivo), 2001 – Warner Music
Comentário*
Essa é sobre os fenômenos de materialização que aconteciam na casa de uma mãe e uma filha, duas médiuns, perto de Campinas, em São Paulo. Fenômenos que eram testemunhados, presenciados por várias pessoas, dentre elas eu, Flora, Moreno Veloso, Elba Ramalho. Nós fomos levados pra lá como todas as pessoas iam, levadas por outras; como nas romarias.
Então nada é metafórico nem alegórico na letra? É tudo concreto mesmo? — Concreto. Havia todos esses fenômenos, e havia todo um processo devocional que se desenvolvia ali, assumido mais fortemente por uns, menos por outros. A Elba, por exemplo, chegou a ter esses fenômenos reproduzidos na casa dela com as imagens que ela teve de Nossa Senhora; em muitas ocasiões, na casa dela em São Conrado [no Rio de Janeiro], do rosto de Nossa Senhora também escorreu mel.
Brotava fogo não só do chão, mas de outros lugares da casa também; das paredes. A canção é pra narrar aquele ritual e as sensações propiciadas por ele, sensações essas que a gente não pode especular se eram do campo do real ou da ilusão; se estávamos todos — como é que poderíamos dizer? — hipnotizados ou não.
Mas se era ilusão todos estavam tendo a mesmíssima ilusão.
— A mesmíssima ilusão. Um pouco na mesma dimensão, digamos assim, dos fenômenos dos óvnis, os fenômenos das luzes, dos discos voadores e das tais abduções; de quando as pessoas são abduzidas. As abduções são desse campo de fenômenos extra materiais, do campo do extraordinário.
O ritual era religioso? — Religioso ou parar religioso ou trans religioso; através de instâncias religiosas, mas transcendendo a mera dimensão religiosa devocional. Tinha a ideia de infusão, de encontro com o elemento milagroso, não havia muito distanciamento entre o milagre e o presenciar do milagre. Nós éramos parte daquilo tudo ali.
Por que a canção entrou num de seus discos “nordestinos”, São João vivo! — Talvez porque ela seja um baião. As mulheres não são nordestinas. Acho que são ambas mineiras ou dali do interior de São Paulo; da região entre Minas e São Paulo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil