Músicas
Procissão
Gilberto Gil
Edy Star
Se arrastando que nem cobra pelo chão
As pessoas que nela vão passando
Acreditam nas coisas lá do céu
As mulheres cantando tiram versos
Os homens escutando tiram o chapéu
Eles vivem penando aqui na terra
Esperando o que Jesus prometeu
E Jesus prometeu vida melhor
Pra quem vive nesse mundo sem amor
Só depois de entregar o corpo ao chão
Só depois de morrer neste sertão
Eu também tô do lado de Jesus
Só que acho que ele se esqueceu
De dizer que na terra a gente tem
De arranjar um jeitinho pra viver
Muita gente se arvora a ser Deus
E promete tanta coisa pro sertão
Que vai dar um vestido pra Maria
E promete um roçado pro João
Entra ano, sai ano, e nada vem
Meu sertão continua ao deus-dará
Mas se existe Jesus no firmamento
Cá na terra isto tem que se acabar
Gravações
Gilberto Gil – Retirante, Vol. 1, 1962 – Gege
Tamba Trio – Tamba Trio, 1965 – Philips
Gilberto Gil – Louvação, 1967 – Philips
Marinês – Marinês, 1967 – CBS
Gilberto Gil – Gilberto Gil, 1968 – Philips
Gilberto Gil – Ao Vivo na USP, 1973 – Gege
Sérgio Reis – Natureza, 1978 – RCA
Simone – Simone Bittencourt de Oliveira, 1995 -Sony Music
Fran e Chico Chico – Onde?, 2020 – Blacktape
Trio Nordestino – Canta Gilberto Gil, 2020 – Biscoito Fino
Comentário*
A clássica composição é locada em Ituaçu, cidade da infância de Gil, localizada no interior baiano, onde ele se acostumou a assistir às procissões católicas durante as festas religiosas. A religião é vista como ‘ópio do povo’, bem de acordo com a perspectiva marxista da realidade, que orientava o pensamento do compositor, alinhado ao do CPC (Centro Popular de Cultura), à época. Testemunha da situação de abandono do homem do campo nordestino, o músico-poeta a denuncia.
A questão da exploração do homem pelo homem, das grandes diferenças sociais, das grandes dívidas históricas, da colonização, da escravidão: era o momento em que se tomava consciência de tudo isso através dos livros, da ampla discussão no mundo estudantil, universitário; em que se passava a ter o hábito sistemático, quase imposto mesmo, obrigatório, de todos nós lermos as obras dos pensadores brasileiros de esquerda, o Caio Prado Júnior, o Florestan Fernandes, o Nelson Werneck Sodré.
A releitura do marxismo a partir da realidade brasileira e a situação pós-45, de ilegalidade, do Partido Comunista. Os intelectuais comunistas e o legado que eles deixaram retomado com intensidade pela nossa geração, com a fase pós-Juscelino, pós-desenvolvimentista-brasileira, e com a crítica ao modelo de neo-colonização americano, no momento em que o Brasil entra de novo no ciclo dos grandes empréstimos internacionais para financiamento do seu desenvolvimento. Os economistas liberais Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos. O confronto marxismo/liberalismo. E nós, os compositores, e os estudantes, com suas várias interpretações individuais desses grandes temas, dessas grandes discussões.
‘Procissão’ é uma música que relata isso e que, ao mesmo tempo, retoma, faz a re-apropriação, no sentido de resgate, do linguajar popular, da linguagem simples do homem sertanejo; ela é, toda, como se fosse um sertanejo falando; a narrativa, toda, feita através de um personagem próprio, típico, local, eu vindo disso, tendo vivido no sertão, e tendo o fato de que essa música nasceu de uma memória muito clara das procissões em Ituaçu.
Uma contribuição – Eu recebi uma pequena contribuição de um amigo, o Edy, na letra; ele sugeriu dois ou três dos versos da terceira estrofe. Edy é um cantor, compositor, também travesti, baiano, para quem eu vim a fazer, anos mais tarde, ‘Edith Cooper’. Ele chegou a escrever vários versos; eu aproveitei apenas um trechinho e o incluí na música.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil