Músicas
A morte
Gilberto Gil
Não precisa do nosso chamado
Recado
Pra chegar
Ociosas, oh sim
As rainhas são quase sempre prontas
Ao chamado dos súditos
Súbito colapso
Pode ser a forma da morte chegar
Não precisa de muito cuidado
Ela mesma se cuida
É rainha que reina sozinha
Não precisa do nosso chamado
Medo
Pra chegar
Gravação
Jards Macalé – Jards Macalé, 1972 – Universal Music
Comentário*
“O esoterismo implica a concepção inclusiva da morte; a morte não exclui nada, a morte está incluída; ela é fechamento de ciclo; a ideia de que não há vida sem morte; de que tudo que nasce, morre; tudo que tem um começo, tem um fim; toda face tem um dorso. Do equilíbrio com a relação dinâmica da permanência da interação dos opostos: a morte é um desses opostos; então, não há vida sem morte, nem morte sem vida. Pelo menos no campo da camisa de força da dualidade – a superação do dual oferecida, sugerida pelos sábios, pelos santos.
Compus essa música em Londres, quando eu voltei para lá, em 72, para arrumar as coisas para regressar ao Brasil em definitivo. Ela veio de um daqueles insights, uma daquelas emanações de sentimento profundo que dão um pensamento. A canção faz uma associação interessante da morte com as rainhas ociosas, e dos seus súditos com a gente.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Morte de Drime
Gilberto Gil
Outras gravações:
“Um trem para as estrelas”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
Instrumental, Som Livre 1987
Não tenho medo da morte
Gilberto Gil
mas sim medo de morrer
qual seria a diferença
você há de perguntar
é que a morte já é depois
que eu deixar de respirar
morrer ainda é aqui
na vida, no sol, no ar
ainda pode haver dor
ou vontade de mijar
A morte já é depois
já não haverá ninguém
como eu aqui agora
pensando sobre o além
já não haverá o além
o além já será então
não terei pé nem cabeça
nem fígado, nem pulmão
como poderei ter medo
se não terei coração?
Não tenho medo da morte
mas medo de morrer, sim
a morte é depois de mim
mas quem vai morrer sou eu
o derradeiro ato meu
e eu terei de estar presente
assim como um presidente
dando posse ao sucessor
terei que morrer vivendo
sabendo que já me vou
Então nesse instante sim
sofrerei quem sabe um choque
um piripaque, ou um baque
um calafrio ou um toque
coisas naturais da vida
como comer, caminhar
morrer de morte matada
morrer de morte morrida
quem sabe eu sinta saudade
como em qualquer despedida.
Gravação
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Gege
Comentário*
Eu estava em Sevilha com Antônio Damásio e com John Perry Barlow, o grande estudioso da questão do ciberespaço. Estávamos todos em reuniões, numa espécie de simpósio, de congresso que estava ocorrendo lá sobre internet e todas as questões novas suscitadas pelo ciberespaço. Num dia daqueles, depois dos encontros que tivemos pela manhã e pela tarde, fomos pro hotel eu e Flora, e Flora foi dormir, se recolheu, e eu não; por alguma razão não quis me deitar e fiquei na mesinha da sala onde estavam meus papéis e livros. E aí me veio essa história, de não ter medo da morte — ao tê-lo.
Diferenciando a morte do morrer. — Morrer como ato e a morte como um destino. Daí escrevi um poema inteiro. Veio em mais ou menos uma hora, uma hora e pouco. Fui me deitar e dormir um pouquinho depois. Quando eu cheguei de volta ao Brasil, disse ao Bem, meu filho: “Olha, escrevi uma coisa na Espanha quando eu estava com uns colegas discutindo temáticas contemporâneas e internacionais; me ocorreu esse poema”. Eu somente tinha escrito os versos então.
A tão popular medida das redondilhas maiores… Em quatro estrofes de dez versos… — Tão popular, tão clássica. “Vamos fazer um ritmo pra eu recitar esse poema”, eu disse ao Bem. E aí ele escreveu. Eu recitei o poema pra ele, e em cima daquele ritmo sintetizado, feito com máquina, eu comecei um fio melódico e fui levando adiante a composição toda, o canto todo dela, sobre a cama, o ritmo que o Bem tinha construído.
A canção é provocativa. São autoprovocações feitas em relação a mim mesmo. Desafios à minha condição humana e à minha — à nossa — condição extra ou transumana ou para-humana. É um dos temas também recorrentes no meu trabalho.
Já no seu álbum de 1969 (Gilberto Gil ), com canções compostas na prisão, duas faixas se referem a morte, a que abre e a que fecha o disco: “Cérebro eletrônico” e “Objeto semi-identificado” (com Rogério Duarte), respectivamente. Três anos antes você havia composto “Amor até o fim”, referindo-se de forma indireta ao assunto, e dois anos depois faria uma canção intitulada, afinal de contas, “A morte”. Enfim, é um tema que você encara há muito tempo. — Ah sim, sempre, desde a infância, com a perda permanente de pessoas; pessoas e animais que nasciam, morriam, nasciam, morriam. Nasciam, cresciam, morriam. Então não teve jeito. “A morte faz parte da vida,/E se vale a pena viver,/Então morrer vale a pena” [“Então vale a pena”, que é outra canção a respeito do tema; de 1978]. Porque, mesmo não sendo muito tematizado, trata-se de algo que encaramos o tempo todo. Eu e outras poesias, do Augusto dos Anjos, é isso o tempo todo: um jorro desse questionamento. A materialidade humana na incorporação de corpos materiais e a sua inutilidade final: não serve pra nada; só serve para o humano propriamente; não serve para a coisa das destinações, do “existirmos: a que será que se destina?”, da “Cajuína” do Caetano. Quer dizer: é um tema que todos nós encaramos. São bichinhos que nos fustigam a interioridade o tempo todo. Alguns com atitudes receosas, querendo se afastar, não querem levar essa conversa avante. Outros, pelo contrário, querem especular sobre isso. Eu sou um especulador. Eu gosto, tenho vários momentos de especulação sobre a questão.
Isso tem a ver com a sua religiosidade, com o aspecto religioso da sua personalidade, do homem que você é. — Religioso filosófico, eu diria. Filosofal, filosofante.
De todo modo, é um tema que a gente pode chamar de difícil. Pelo menos para o ocidental o é. Consequentemente vai ser um tema difícil de abordar também em arte, por um artista, tanto que são poucos os compositores como você que se dedicam a encará-lo. Nelson Cavaquinho fala de morte: às vezes o samba é sobre a Mangueira, e de repente no meio incide a ideia da morte. — Exato. E, associada a “Não tenho medo da morte”, tem “Se eu quiser falar com Deus”, que eu fiz para o Roberto Carlos e que apresenta uma excelência de filtragem dessa questão nos versos, no modo como eles decorrem e as palavras vão se associando, as rimas se conectando. Eu acho uma bela canção.
Ambas constituem daqueles pontos altos, luminosos, da arte da canção popular. A realização delas é determinante nisso, tendo a ver com o desenvolvimento do tema, do pensamento, da reflexão em cima do tema, e de como tudo se arredonda. — É a tarefa do escultor. Seu cinzel. Como é que o pintor ou o literato, o romancista ou o filósofo, o poeta também, vai quebrando a pedra pra dar forma à arte. Eu tenho essa verve, sou um poeta de formação basicamente simplista. Um descendente dos Gonçalves Dias, dos Olavos Bilacs, e só meio forçado pela vida, pelos encontros, é que eu amplio o meu leque de interesses sobre a poesia para fronteiras mais amplas. Mas basicamente eu sou um menino criado com poesia convencional, clássica, das lidas ginasianas, e a grande poesia popular nordestina, e que a partir dos instrumentais oferecidos por esses campos simples, que eu chamo de informação simplista, vai abordar coisas difíceis, digamos assim, entre aspas, “profundas”. E aí, do ponto de vista formal, eu vou ter meus flertes com poesia moderna, poesia concreta, com isso, com aquilo, com aquilo outro…
A letra de “Domingo no parque” já apresenta uma novidade no aspecto formal, que não guarda muita relação com o tipo de poesia mais tradicional, a que você se refere como parte importante da sua formação. Há nela uns procedimentos, como certas repetições vocabulares, que fazem pensar em cinema. Ali já é você aspirando a — e expressando — algo novo, apreendendo novidades do mundo da arte que estava em evolução. — Poéticas de várias origens, advindas de vários campos de percepção, de observação da expressividade, sobre a expressividade. Como expressar esse olhar circulante sobre as coisas todas? Assim, evidentemente, logo cedo, muito cedo, menino ainda, eu me interessei por música, e isso deu na poesia, deu na literatura, veio dar nesses outros atratores. Fui atraído por outros campos de expressividade e juntando fragmentos de tudo isso no meu trabalho, na minha lavra. Que é, ainda assim, eu diria, em última análise, uma lavra simplista, simplificadora.
Condizente com a arte popular… — Com esse desejo da comunicação popular; da música popular brasileira. É isso. Então tem a aderência a esse campo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil