Músicas
Rep
Gilberto Gil
Mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O que não sabe, o que não saberia
O que não saboreia porque é só visão
E tão somente cores, a cor do veludo
Ludo, luz, brinquedo, ledo engano, tele
Teletecido à prova de tesoura
Que não corta, não costura, que não veste
Que resiste ao teste da pele, não rasga
Nunca sai da tela, nunca chega à sala
Que é pura fala, que é beleza pura
É a pura privação de outros sentidos tais
Como o olfato, o tato e seus outros sabores
Não apenas cores, mas saliva e sal
Veludo em carne viva, nutritiva
Não apenas realidade virtual
Veludo humano, pano em carne viva
Menos realce, mais vida real
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O que não sabe, o que não saberia
Porque morreria sem poder provar
Como provar a pilha com a ponta da língua
Receber o choque elétrico e saber
Poder matar a fome é pra quem come, é claro
Não apenas pra quem vê comer
Assim feito a criança pobre esfarrapada
Come feijoada que vê na TV
Essa criança quer o que não come
Quer o que não sabe, quer poder viver
Assim como viveu um Galileu, um Newton
E outros tantos muitos pais do amanhã
Esses que provam que a Terra é redonda
E a gravidade é a simples queda da maçã
Que dão ao povo os frutos da ciência
Sabores sem os quais a vida é vã
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
Gravação
Gilberto Gil – O Sol de Oslo, 1998 – Pau Brasil
Comentário*
Compus essa música num quarto de hotel em Turim, na Itália, onde eu estava de passagem. Eu tinha aceitado fazer parte do projeto do Rodolfo Stroeter com a Marlui Miranda — o projeto especial de um disco com a visão de um conjunto de músicos que se reuniriam para trabalhar elementos especiais das suas formações artísticas, um disco em que iam aparecer coisas diferentes das que comumente aparecem nos nossos discos de carreira.
Então, o repertório foi pintando com essa tônica de excepcionalidade, de lateralidade, de marginalidade, à margem do nosso trabalho regular; sem a perspectiva do mercado, sem os hábitos de realização do trabalho serem particularmente informados pelas questões colocadas por um mercado — como lidar com ele, o que ele quer, o que ele absorve, o que ele rejeita: o metabolismo mercadológico; sem levar em conta os seus atributos. Consequentemente, as canções foram aparecendo muito livres, muito soltas, resultantes de pequenos delírios de cada um ou de dois ou três de nós, quando nos juntávamos para fazer o trabalho.
“Rep” é assim, a começar pelo título, uma brincadeira com “rap” e com “repente”, uma forma nordestina de traço ibérico, provavelmente de origem medieval, remontando aos cantadores medievais, um universo que teve uma acolhida muito especial no Nordeste do Brasil, no mundo armonial de Ariano Suassuna e de Antonio Nóbrega, e no trabalho extraordinário dos cantadores nordestinos, criados em escolas e escolas e escolas que foram se desdobrando ao longo da história, nesses duzentos anos em que essa tradição existe no país.
“Rep” tem um refrão que é um dos dísticos mais bem construídos da minha história de compositor, e que na verdade foi uma frase do meu discurso de posse na presidência da Fundação Gregório de Matos, em Salvador, em 1987. O meu discurso começava justamente assim: “O povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”. Eu não tinha me esquecido dele, e finalmente o usei numa letra.
A canção vai tecendo e desatando uma série de pensamentos poéticos sobre a predominância do olhar como sentido pós-moderno; sobre uma hegemonia, uma tirania mesmo, exercida pelo olhar sobre os outros sentidos, sobre os subsentidos interiores; sobre o quase bloqueio que o olhar determina na manifestação dos hipos- sentidos, dos subsentidos, dos sentidos mais sutis, interiores; enfim, sobre a dominação do olhar, da qual o audiovisual moderno é um dos maiores símbolos, e a televisão, talvez o maior dentre eles todos. “Rep” é sobre isso.
Trata-se de uma peça interessante, difícil de cantar. Poética. E do ponto de vista do próprio rap, a composição apresenta interesse particular, por ter uma cadência ternária, algo raro no gênero, já que os raps são em geral basicamente binários e quaternários, múltiplos de dois, no mundo inteiro. Isso lhe dá um caráter estranho como forma rítmica.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil