Músicas
Se eu quiser falar com Deus
Gilberto Gil
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar
Gravações
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
Elis Regina – Elis Regina, 1982 – EMI/Odeon
Gal Costa – Songbook Gilberto Gil, Vol. 2, 1992 – Lumiar Discos sob licença exclusiva de Sony Music
Cesar Camargo Mariano e Pedro Mariano – Piano & Voz, 2003
Gilberto Gil – Eletroacústico (Ao vivo), 2004 – Warner Music
Maria Rita – Redescobrir, 2012 – Universal Music
Margareth Menezes – Para Gil & Caetano, 2015 – Estrela do Mar
Comentário*
“O Roberto me pediu uma canção; do que eu vou falar? Ele é tão religioso — e se eu quiser falar de Deus? E se eu quiser falar de falar com Deus?” Com esses pensamentos e inquirições feitos durante uma sesta, dei início a uma exaustiva enumeração: “Se eu quiser falar com Deus, tenho que isso, que aquilo, que aquilo outro”. E saí. À noite voltei e organizei as frases em três estrofes.
O que chegou a mim como tendo sido a reação dele, Roberto Carlos, foi que ele disse que aquela não era a ideia de Deus que ele tem. “O Deus desconhecido.” Ali, a configuração não é a de um Deus nítido, com um perfil claro, definido. A canção (mais filosofal, nesse sentido, do que religiosa) não é necessariamente sobre um Deus, mas sobre a realidade última; o vazio de Deus: o vazio-Deus.
Esse nada-Deus. — [Num dos encontros com Gil para as entrevistas que resultariam nas edições de seus comentários aqui apresentadas, o coordenador deste livro lhe entregou, a pedido do editor, Luiz Schwarcz, um exemplar do livro Uma história de Deus, da scholar norte-americana Karen Armstrong, uma ex-freira. Na mesma noite Gil começou a lê-lo, e na tarde seguinte leu para este interlocutor uma longa passagem que ele relacionou com o tema de “Se eu quiser falar com Deus”, que, por coincidência, tinha sido objeto das conversas no dia anterior.
Parte do trecho dizia: “Sem dúvida, [Deus] parece estar desaparecendo da vida de um número crescente de pessoas, sobretudo na Europa ocidental. Elas falam de um buraco em forma de Deus em suas consciências, onde antes Ele estava: onde antes havia Deus, hoje há um buraco em forma de Deus”. Segundo o compositor, essas observações da autora imediatamente o fizeram pensar na canção. “Alguma coisa desse Deus-buraco parece estar contida na letra de ‘Se eu quiser falar com Deus’”, disse, querendo se referir especialmente ao seu trecho final.]
O pós possível. — A criação do efeito veio por impulso, instintivamente: a sequência de “nadas” (treze no total) insinuando sucessivas camadas de buraco, criando a expectativa de algo e culminando com uma luz no fim (do túnel, da estrada, da vida), quer dizer, deixando entrever, embutida na morte, a possibilidade de realização de uma existência num plano diferente de tudo que se possa imaginar, mas que de qualquer maneira se imagina existir; a possibilidade de transmutação — com o desaparecimento do corpo físico, da entidade psíquica que chamamos de alma, inconsciente, eu — para outra coisa, outra forma de consciência de todo modo imprevisível, se não for mesmo nada.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil