Músicas
Academia
Gilberto Gil
A cada epidemia
A cada epica-tragi-cômica mania
De abusar o mudo
Absurdo e cego
Querer que o mundo recite poesia
Academia
A cada epidemia
A cada nova epidérmica mania
De querer mais tudo
Sobre mais que tudo
Como se tudo não fosse todo dia
Academia
A cada epidemia
A cada epidemia nova
Eu volto imediato pra Bahia
Abrir a porta para você
Gilberto Gil
É o que há de mais normal
E ainda assim lhe receber
É comungar, é um ritual
Tão rotineiro como o sol
Tão corriqueiro como o mal
Banal como qualquer prazer
E no entanto é com você
É por amor, é pura dor, é puro sal
Cada pitada é pra valer
Um pouco mais pode passar
Salgar a nossa refeição
Nossa afeição pode morrer
Nossa aflição, nos sufocar
Portanto deixe eu me benzer
Pedir a Deus pra iluminar
O corredor e o coração
Quando eu tiver de abrir a porta pra você
Gravação
Marília Gabriela – Marília Gabriela, 1983 – Opus Columbia/CBS
Bem devagar
Gilberto Gil
Sem correr
Bem devagar
A felicidade voltou para mim
Sem perceber
Sem suspeitar
O meu coração deixou você surgir
E como o despertar depois de um sonho mau
Surgiu o amor sorrindo em seu olhar
E a beleza da ternura de sentir você
Chegou sem correr
Bem devagar
Amor velho que se perde
Sai correndo pra outro ninho
Amor novo que se ganha
Vem sem pressa, de mansinho
© Gege Edições Musicais
Gravação
Caetano Veloso – Prenda minha, 1998 – Polygram Music
Comentário*
“Uma toada.
Há toadas marcantes de Luiz Vieira, de Dorival Caymmi, de Klécius Caldas; os anos 50 foram uma época em que os toadeiros apareceram. A toada aparece em Tom Jobim; algumas canções dele são toadas; exploram, imitam ou, enfim, utilizam elementos desse estilo, que é mais sertanejo e interiorano do que urbano, estando mais associado a regionalismos. Na época da bossa nova – que tinha habilidades de compatibilizar ritmos, de criar mesmo um novo estilo rítmico com base no samba, no baião e vários outros gêneros, mas tinha sua coisa própria – a toada ficou como um gênero nacional mas particularmente ligado a narrativas de viagens pelo interior, a descrições de paisagens de vilarejos, de locais singelos. “Bem Devagar” é bossa-novista, já possui um locus mais urbano, tendo a ver com o sentimento dos homens solitários das cidades grandes, da solidão da cidade grande, da ânsia pelo encontro. Mas a sua narrativa ainda é rural, interiorana; é a narrativa dos tempos escorridos das estradas e dos caminhos, da poeira, do pedregulho, trazendo a ideia do percorrimento; nela, é como se a própria substância – essa tal “felicidade” – subjetiva da canção viajasse, fosse viajante.
Sobre Caetano Veloso tê-la gravado em 1998 – Ele acha que, com uma maneira própria, criativa, diferenciada de trabalhar, eu contribuí para criar a nova toada, a toada moderna, que ele próprio veio também a cultivar. Essa música marca muito o momento em que nós nos conhecemos. E tem uma autoralidade mais desvencilhada do encantamento, da sedução da bossa nova; ela é mais o Gil chegando à bossa nova, passando por ela e a atravessando, mas com o seu próprio corpo, sem se perder nas brumas da noite bossa-novística. “Felicidade Vem Depois” se dissolvia no fluido, no solvente da bossa nova. “Bem Devagar”, não; ela tem mais integridade interior, mais acumulação pessoal, existencial e estética.
1962 – É o ano em que se define a possibilidade de eu me tornar compositor; em que compor canções se manifesta em mim como um modo reproduzível, repetitível, e eu domino os meios; a forma do encaminhamento para compor se torna um domínio, um campo de atuação em que eu começo a ter fluência. É o ano mesmo em que eu viro compositor, em que começo a compor; estou com vinte anos.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Abri a porta
Gilberto Gil
Dominguinhos
Apareci
A mais bonita
Sorriu pra mim
Naquele instante
Me convenci
O bom da vida
Vai prosseguir
Vai prosseguir
Vai dar pra lá do céu azul
Onde eu não sei
Lá onde a lei
Seja o amor
E usufruir do bem, do bom e do melhor
Seja comum
Pra qualquer um
Seja quem for
Abri a porta
Apareci
Isso é a vida
É a vida, sim
Gravações
A Cor do Som – Frutificar, 1978 – Warner Music
A Cor do Som – Geração Pop, 1978 – Warner Music
Dominguinhos – Nas Costas do Brasil, 1999 – Velas
Ito Moreno – Ito Moreno e Banda Clube do Forró, 2001 – Veleiro
Banda Plinta – Isso aqui tá bom demais, 2004 – Plinta Music/ Radar Records
Rastapé – Cantando A História do Forró (Ao vivo), 2005 – EMI Music
Priscila Castro e Beto Paiva – MPB Brasil, 2005 – Ultra Music
A Cor do Som – A Cor do Som Acústico, 2006 – Performance Be Record
Gilberto Gil – Duetos 2, 2008 – Warner Music
Quinteto Violado e Cézinha – Quinteto Violado Canta Dominguinhos, 2015 – Atração Fonográfica
Sandro Haick – Forró do Haick Vol. 1, 2016 – Eldorado
Flávia Bittencourt – Todo Domingos, 2017 – Flavia Bittencourt
Waldonys – Waldonys (Ao vivo), 2017 – Waldonys
A Cor do Som e Gilberto Gil – A Cor do Som 40 Anos, 2018 – A Cor do Som
Sandro Haick e Luciano Magno – Viva Dominguinhos (Instrumental), 2019 – Canal 3 Distribuidora
Trio Nordestino – Trio nordestino canta Gilberto Gil, 2020 – Biscoito Fino
Zezo – O Príncipe dos Teclados, Vol. 13, 2020 – Gema Produtora
Elba Ramalho e Toni Garrido – Elba Ramalho No Maior São João do Mundo (Ao vivo), 2022 – Deck
Comentário*
Eu estava na casa de Caetano, na rua Peri, no Jardim Botânico, na mesma ocasião da composição de “Super-Homem — A canção”, quando fiz “Abri a porta”. A canção não teve uma musa; eu tinha mesmo que escrever a letra para a música de Dominguinhos e escrevi. “Abri a porta”, o primeiro verso que saiu e que puxou o resto, já apresenta uma imagem propiciatória; já dá uma ideia de que “alguma coisa começou, vamos entrar nessa história”; é uma maneira de fazer entrar na história. A letra, toda, possui um sentido econômico, nas frases pequenas, minimalistas, feitas de acordo com a própria música, pela exigência do compromisso métrico da música. É bem-sucedida.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Belo dia
Gilberto Gil
Belo dia foi aquele dia azul
Azulado pelo anil imperial
Ajudado pelo sol e o vento sul
A tornar mais branca a roupa no varal
Belo dia foi aquele dia assim
Cintilante sem as nuvens do senão
Se não fosse aquele dia lindo enfim
Não podia ter sentido esta canção
O sentido dessa vida é ao invés
Azular a cor do branco é clarear
Escurecer pra dormir é através
De uma luz que o sono apaga ao acordar
© Gege Edições Musicais
Gravações
Baby Consuelo – O que vier eu traço, 1978 – Atlantic
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois gênios, 2009 – Warner Music
Comentário*
O Anil Imperial era uma marca de anil muito conhecida nos anos 40, 50; um produto pra clarear, corar as roupas. Uma espécie de alvejante daquela época, e que não vinha com a mistura pronta nos frascos como ultimamente. Um tablete da substância se dissolvia em água; em casa você fazia seu alvejante. O Anil Imperial é então citado na letra, vira uma das estacas da rima, associado à ideia de claridade, luminosidade. A canção é sobre a concretude do abstrato, o abstrato que se torna concreto: um dia lindo. Quer dizer: uma abstração, uma referência à generalidade meteorológica, se tornando substância poética, dando completude aos versos.
No último verso da segunda quadra, a palavra “sentido” apresenta um sentido duplo, podendo ser tanto o substantivo (com a ideia de “razão, razão de ser”) quanto o particípio passado do verbo “sentir”. Outro fator de interesse do ponto de vista estilístico, na letra, e que remete a um procedimento proveniente da poesia provençal, é o começo de um verso retomar o final do verso anterior, sobretudo na quadra do meio: “Belo dia foi aquele dia assim/Cintilante sem as margens do senão/Se não fosse aquele dia lindo, enfim”. — Exatamente.
Você deve ter feito a canção a pedido da Baby Consuelo.
— Foi. Foi uma encomenda mesmo. “Faça uma música pra mim”, aquela velha história.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Abra o Olho
Gilberto Gil
Ele disse: “abra o olho”
Caiu aquela gota de colírio
Eu vi o espelho
Ele disse: “abra o olho”
Eu perguntei como é que andava o mundo
Ele disse: “abra o olho”
O telefone tocou
Soando como um grilo de verdade
Eu ouvi o grilo
Ouvi o grilo cantando
Tava eu no mato de novo
No mato sem cachorro
Eu pensei: “tá direito?”
Que eu nunca tive cachorro ao meu lado
Ele disse: “abra o olho”
Eu disse: “aberto”, aí vi tudo longe
Ele disse: “perto”
Eu disse: “está certo”
Ele disse: “está tudinho errado”
Eu falei: “tá direito”
Eu falei: “tá direito”
Tudo numa gota de colírio
Ele disse: “é delírio
Navegar nas águas de um espelho”
“Meu nego, abra o olho”
Ele disse: “abra o olho”
Ele disse: “abra o olho”
Com aquela sua voz suave, amiga e franca
Eu falei “tá direito” de olho fechado e gritei:
“Viva Pelé do pé preto
Viva Zagallo da cabeça branca”
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao Vivo, 1974 – Polygram
Lanny Gordin – Lanny Duos, 2007 – Participação Gilberto Gil – Barravento
Peu Meurray – Pneumaticamente falando, 2012 – Odò Produção Cultural
Comentário*
“Sou eu pondo colírio nos olhos depois de ter fumado um cigarro de maconha, em Manaus. O hotel ficava fora da cidade, no meio do mato. Fui ao espelho, vi meus olhos vermelhos, pus colírio e fiz a música. Um diálogo de mim pra mim. O ‘ele’ é ‘o outro’, o outro eu, o do espelho. Um pingue-pongue-bumerangue: você joga pra atingir o que está lá, a seta volta e lhe atinge. Pelé e Zagallo dão o sentido de contradição e complementaridade yin-yang; um é África, o outro, Europa.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Aboio
Gilberto Gil
Capinan
Meu povo, tome coragem
Se aventure, se levante
Na arribação deste boi
Se aproxime dos apelos
E chamamento
Do canto do boiadeiro, oi
Levanta, meu companheiro
Boi Fulorô e Judeu
Levanta, Maracajá
Boi Estrela, Boi Espaço
Boi da serenidade
Da vida que Deus me deu
Ecô
Levanta, meu Boi Remanso
Desencantado e Chuvisco
Boi Cigano e Desengano
Levanta, Boi Alegria
Acorda, meu Boi Canário
Nas veredas do perigo
Ecô
Ramalhete e Nuvem Escura
Flor de maio e de janeiro
Bondade de meu sentido
Menina de meu desejo
Silêncio dos cemitérios
Do sofrer do boiadeiro
Ecô
Minha santa e namorada
Companheirinho da sede
Dou-te pão, cerveja e mel
Te dou água e te dou leite
Levanta, Boi Operário
Estrela D’Alva do céu
Ecô
No desespero do mundo
Acorda, meu coração
Levanta, Boi Valoroso
Levanta, meu Boi Desordem
Pra viver o teu destino
De martírio ou salvação
Ecô
Beira-mar
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Na terra em que o mar não bate
Não bate o meu coração
O mar onde o céu flutua
Onde morre o sol e a lua
E acaba o caminho do chão
Nasci numa onda verde
Na espuma me batizei
Vim trazido numa rede
Na areia me enterrarei
Na areia me enterrarei
Ou então nasci na palma
Palha da palma no chão
Tenho a alma de água clara
Meu braço espalhado em praia
Meu braço espalhado em praia
E o mar na palma da mão
No cais, na beira do cais
Senti meu primeiro amor
E num cais que era só cais
Somente mar ao redor
Somente mar ao redor
Mas o mar não é todo mar
Mar que em todo o mundo exista
Ou melhor, é o mar do mundo
De um certo ponto de vista
De onde só se avista o mar
E a Ilha de Itaparica
A Bahia é que é o cais
A praia, a beira, a espuma
E a Bahia só tem uma
Costa clara, litoral
Costa clara, litoral
É por isso que é o azul
Cor de minha devoção
Não qualquer azul, azul
De qualquer céu, qualquer dia
O azul de qualquer poesia
De samba tirado em vão
É o azul que a gente fita
No azul do mar da Bahia
É a cor que lá principia
E que habita em meu coração
E que habita em meu coração
E que habita em meu coração
© Gege Edições Musicais / © Editora Musical Arlequim LTDA.
Gravações
Gilberto Gil – Retirante, 1962 – Gege
Gilberto Gil – Louvação, 1967 – Philips
Gilberto Gil e Caetano Veloso – O rancho do novo dia, 1981 – Philips
Gilberto Gil – Unplugged, 1994 – Warner Music
Gilberto Gil – Beira do mar, 2000 – Dubas Musica
Gilberto Gil – Mar 4, 2001 – Dubas Musica
Gilberto Gil – Acústico, 2001 – Warner Music
Gilberto Gil – O seu amor, 2004 – Universal Music
A Vida de Um Casal
Gilberto Gil
Que não se acaba nunca de subir
Degrau após degrau, longa escalada
E o medo permanente de cair
O casamento é vento que não para
Às vezes brisa leve e pouca mágoa
Às vezes tempestade em copo d’água
Que a gente não consegue resistir
Pra conjugar o conjugal
Do verbo amar o essencial
Está na primeira pessoa do plural
Aval incondicional
E a adesão quase total
De uma pessoa a outra pessoa no final
Para seguir a vida a dois
Ou três ou quatro pessoinhas
Que virão depois no verbo procriar
A vida de um casal
Escada que não para de subir
Degrau após degrau
E nunca vai chegar ao céu
Que o céu já não tem mais lugar
Pra mais nenhum mortal
O céu real nós vamos construindo aqui no chão
Porção de sofrimento, tijolo, cimento e cal
A laje do bem, no lamaçal do mal
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
Uma canção que eu fiz pra mim mesmo. Que saiu assim das minhas elucubrações a respeito de relações humanas e amorosas, afetivas, e o casamento, essa instituição tão polêmica. Aí vem uma série de versos que vão tentando descrever as sensações, os pensamentos, as reflexões sobre a questão, sobre esse ato humano, partindo da metáfora da escada pra vida a dois. Do medo, que é um dos fatores desestabilizadores, por um lado, mas estabilizadores, por outro, das relações amorosas que se querem permanentes. Segue-se, na segunda estrofe, uma associação à natureza, nas imagens do vento, da brisa, da tempestade. Enfim, é desenvolvida a metáfora do casamento como construção mesmo, que se dá um dia após o outro, feita de empenho, desejo renovado, compromisso renovado. Da renovação que a permanência do casamento exige.
“A vida de um casal” foi feita na mesma época das canções para o disco Giro, da Roberta Sá, um pouco antes de eu ter feito “Afogamento”, só que não era uma canção pra ela. “Afogamento” foi, assim como tantas outras que a gente fez pro Giro. Essa eu fiz pra mim. Quando ela ouviu, quis gravar.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A última valsa
Gilberto Gil
Rogério Duarte
Me alça
No astral
A espiral é de fumaça
E o pensamento é de cristal
A última coisa bonita
Gilberto Gil
Que possa lhe prender
Não há mesmo amor
Pra lhe fazer ficar
Você não pode ser
A mim não pode dar
Amor inteiro
A vida inteira
E agora vai embora assim
Sem dor, sem nem deixar eu ver
Saudades em seu olhar
Sem nem dizer adeus
Que era a última coisa bonita
Que você podia me deixar
A sociedade afluente
Gilberto Gil
Depois que todos comeram
Depois que os pratos sujaram
Depois que os copos secaram
Depois que os discos tocaram
Depois que todos já foram
Ainda a lata do lixo
Pra pôr na porta da rua
Que amanhã é outro dia
Como todo e qualquer dia
Dia da Limpeza Pública
Mandar seu carro alegórico
Recolher nosso tributo
Bem cedo, antes que os detritos
Da banheira e da cozinha
Encham os olhos da vizinha
E ela coma do presunto
Que ficou na geladeira
Muito mais de uma semana
No final da noite
Depois que todos comeram
Depois que os pratos sujaram
Depois que os copos secaram
Depois que os discos desceram
Depois que todos já foram
Ainda a lata do lixo
Pra pôr na porta da rua
Gravação
Gilberto Gil – O Viramundo, 1976 – Gege
Comentário*
“Houve uma época em que se falava em ‘sociedades afluentes’, uma expressão que antecipa o que veio depois a ser chamado de sociedade pós-moderna; uma expressão para designar as sociedades de ascensão das grandes classes médias urbanas, modernas, consumistas – não só de bens materiais, como também de bens simbólicos novos, de novas formas de direito e de cidadania; sociedades de consumo com considerável grau de distribuição de renda, de um consumismo autorreferente como forma de qualificação de vida; com nova arquitetura e novas formas de urbanismo… Depois o termo entrou um pouco em desuso.
Hoje em dia eu ainda associo muito a expressão ‘afluente’ à expressão ‘pós-moderna’. É na sociedade afluente que aparecem os primeiros grandes sintomas da fragmentação pós-moderna, que veio a dar os motes para a cunhagem dessa expressão.
A música exprime a ideia da uma cidade que se encontra articulada através de símbolos como o fast-food, através do consumo de bens acessíveis às grandes massas – sociedade afluente é a sociedade da cultura de massa, produtora de lixo, os resíduos sólidos da vida moderna. Esse sentido de sociedade afluente como consumidora e produtora da desqualidade, da não qualidade, da quantidade pura, da qual o lixo é o principal centro, é a quantidade desqualificada, é o produto já sem a qualidade, a qualidade já foi consumida, só ficou o resto… ‘Sociedade Afluente’ foi composta no Rio.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Batmakumba
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumba
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê
Batmakumbayê
Batmakumba
Batmakum
Batman
Bat
Ba
Bat
Batman
Batmakum
Batmakumba
Batmakumbayê
Batmakumbayêyê
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumbaoba
© Gege Edições Musicais / © Warner/Chappell Edições Musicais LTDA.
Gravações
Gilberto Gil – Tropicália ou Panis Et Circensis, 1968 – Philips
Os Mutantes – Os Mutantes, 1968 – Universal Music
Rogério Duprat – A Banda Tropicalista do Duprat, 1968 – Philips
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao Vivo em Montreux, 1978 – Gege
Rita Lee – Multishow Ao Vivo, 2008 – Biscoito Fino
Comentário*
O Caetano e eu sentados no chão do apartamento dele, na avenida São Luís, centro de São Paulo, compondo a música: o que a gente queria, hoje me parece, era fazer uma canção com um dístico que fosse despida de ornamentos e possível de ser cantada por um bando não musical, algo tribal, e que, por isso mesmo, estivesse ligada a um signo da nossa cultura popular como a macumba, essa palavra nacional para significar todas as religiões africanas, não cristãs, e que é um termo que o Oswald de Andrade usou.
O Oswald estava muito presente na época; nós estávamos descobrindo a sua obra e nos encantando com o poder de premonição que ela tem. A ideia de reunir o antigo e o moderno, o primitivo e o tecnológico, era preconizada em sua filosofia; “Batmakumba” é de inspiração oswaldiana. E concretista, na ligação das palavras e na construção visual do k como uma marca; no sentido impressivo, não só expressivo, da criação. Não é só uma canção; é uma música multimídia, poema gráfico, feita também para ser vista.
Naquele momento, nós vivíamos cercados de elementos de interesses múltiplos, ligados nas novidades sonoras e literárias trazidas pelos poetas concretos e pelos músicos de vanguarda de São Paulo.
Sobre a adoção, a partir de agora, do k na microestrutura do poema, em lugar do c (em decorrência do que também o y passa a substituir o anteriormente grafado i, para melhor expressão tipográfica da alusão ao gênero de música estrangeira em moda na época). — Eu tenho a impressão de que chegamos a grafar a palavra com k porque vimos que o poema formava um k. O k passava a ideia de consumo, de coisa moderna, internacional, pop. E também de um corpo estranho; não sendo uma letra natural do alfabeto português-brasileiro, causava uma estranheza que era também a estranheza do Batman.
Sobre “bá”, “obá”, “baobá” como alguns dos sentidos sintetizados nas duas grandes palavras-valises da canção. — Pode ser que para o Caetano essas palavras tenham sido percebidas ou colocadas conscientemente ali, mas eu não descobri a presença delas na época, pelo menos; são extrações posteriores. Para mim não havia, por exemplo, o “obá” entidade, só o “oba” saudação, interjeição. A palavra “bat”, morcego, sim.
O susto do criador diante da própria criação. — Eu não sei o que é de quem ali. Para mim, a coisa foi feita mesmo a quatro mãos, quatro olhos, quatro ouvidos, música e palavras ao mesmo tempo, seguindo o procedimento de ir cortando as sílabas e depois as reconstituindo, uma a uma, até formar as duas asas. Eu até me assusto hoje; quando vejo, me pergunto: “Você fez isso mesmo?”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Baticum
Gilberto Gil
Chico Buarque
Bia falou:
“Ah, claro que eu vou”
Clara ficou
Até o sol raiar
Dadá também
Saracoteou
Didi tomou
O que era pra tomar
Ainda bem
Que Isa me arrumou
Um barco bom
Pra gente chegar lá
Lelê também
Foi e apreciou
O baticum
Lá na beira do mar
Aquela noite
Tinha do bom e do melhor
Tô lhe contando que é pra lhe dar água na boca
Veio Mané
Da Consolação
Veio o Barão
De lá do Ceará
Um professor
Falando alemão
Um avião
Veio do Canadá
Monsieur Dupont
Trouxe o dossier
E a Benetton
Topou patrocinar
A Sanyo
Garantiu o som
Do baticum
Lá na beira do mar
Aquela noite
Quem tava lá na praia viu
E quem não viu jamais verá
Mas se você quiser saber
A Warner gravou
E a Globo vai passar
Bia falou:
“Ah, claro que eu vou”
Clara ficou
Até o sol raiar
Dadá também
Saracoteou
Didi tomou
O que era pra tomar
Isso é que é
Pepe se chegou
Pelé pintou
Só que não quis ficar
O campeão
Da Fórmula 1
No baticum
Lá na beira do mar
Aquela noite
Tinha do bom e do melhor
Eu só tô lhe contando que é pra lhe dar água na boca
Zeca pensou:
“Antes que era bom”
Mano cortou:
“Brother, o que é que há?”
Foi a G.E.
Quem iluminou
E a MacIntosh
Entrou com o vatapá
O JB
Fez a crítica
E o cardeal
Deu ordem pra fechar
O Carrefour
Digo, o baticum
Da Benetton
Não, da beira do mar
© Gege Edições Musicais / © Marola Edições Musicais LTDA.
Gravações
Gilberto Gil – O eterno Deus mu dança, 1989 – Warner Music
Gilberto Gil & Chico Buarque – Este é o Gil que eu gosto, 1995 – Warner Music
Chico Buarque – Chico ou o País Da Delicadeza Perdida, 2005 – BMG
Gilberto Gil e Chico Buarque – Duetos com Gilberto Gil, 2007 – Warner Music
Lenine – Chico Buarque por eles, 2009 – Som Livre
Lenine – Songbook Chico Buarque – vol 2, 2015 – Lumiar Discos
A rua
Gilberto Gil
Torquato Neto
Tem seu leito de água clara
Por onde passa a memória
Lembrando histórias de um tempo
Que não acaba
De uma rua, de uma rua
Eu lembro agora
Que o tempo, ninguém mais
Ninguém mais canta
Muito embora de cirandas
(Oi, de cirandas)
E de meninos correndo
Atrás de bandas
Atrás de bandas que passavam
Como o rio Parnaíba
Rio manso
Passava no fim da rua
E molhava seus lajedos
Onde a noite refletia
O brilho manso
O tempo claro da lua
Ê, São João, ê, Pacatuba
Ê, rua do Barrocão
Ê, Parnaíba passando
Separando a minha rua
Das outras, do Maranhão
De longe pensando nela
Meu coração de menino
Bate forte como um sino
Que anuncia procissão
Ê, minha rua, meu povo
Ê, gente que mal nasceu
Das Dores, que morreu cedo
Luzia, que se perdeu
Macapreto, Zé Velhinho
Esse menino crescido
Que tem o peito ferido
Anda vivo, não morreu
Ê, Pacatuba
Meu tempo de brincar já foi-se embora
Ê, Parnaíba
Passando pela rua até agora
Agora por aqui estou com vontade
E eu volto pra matar esta saudade
Ê, São João, ê, Pacatuba
Ê, rua do Barrocão
Bat-staka
Gilberto Gil
Pego e ligo o rádio
Busco algum remédio para o tédio
A música soa
Como o som da construção de um prédio
Zoada de serra
Onde eu deveria ouvir guitarra
Como numa obra
Vozes que sugerem uma algazarra
Mexo no ponteiro
Corro atrás de nova sintonia
A música soa
E com ela a mesma fantasia
Mais um movimento
Tudo igual na próxima estação
Tijolo, cimento
Pedra, areia e muito vergalhão
De onde viria, oh, de onde viria
Toda essa engenharia civil?
Rock maçom, funk de alvenaria
Disconcreto, deus, onde já se viu!?
Fico mais atento
Tento achar nessa alucinação
Qual o elemento
Que por trás faz toda a ligação
Súbito o estalo
O abalo no meu coração
Nítido badalo
Lá está o bat-staka
Está lá o bat-bat-stakato
Bat-bat-batidão
Não adianta mudar
Não adianta mudar de estação
O bat-staka estala
O bat-staka está lá de plantão
Barca grande
Gilberto Gil
Eu vim aqui pra te ver
Como te vi, vou-me embora
Eu vim aqui pra te ver
Como te vi, vou-me embora
Trabalho na barca grande
Só chego fora de hora
Trabalho na barca grande
Só chego fora de hora
Hoje eu cheguei atrasado
Na barca pra trabalhar
Essa noite eu fui com Rosa
No Recife passear
Rosa nunca tinha ido
No Recife passear
Aproveitei que era noite
Pra Rosa poder gostar
Rosa é minha namorada
Mora com o pai pescador
Pescador de caranguejo
Pai de Rosa, minha flor
Minha flor nasceu no mangue
Nunca pode passear
Nunca pode ver Recife
A cidade, seu sonhar
Eu que já saí do mangue
Já consegui trabalhar
Na barca do Beberibe
Quero Rosa pra casar
Já posso ter um dinheiro
Pra Rosa se divertir
Essa noite eu levei Rosa
Pra Rosa poder sorrir
Hoje à noite eu vou ver Rosa
Ela vai sorrir contente
Recife, seu sonho morto
Ficou vivo de repente
Eu que sou louco por ela
Vou fazer Rosa cantar
Vou também cantar pra ela
Essa ciranda, essa ciranda
Eu vim aqui pra te ver
Como te vi, vou-me embora
Eu vim aqui pra te ver
Como te vi, vou-me embora
Trabalho na barca grande
Só chego fora de hora
Trabalho na barca grande
Só chego fora de hora
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil, 1968 – Philips
Gilberto Gil – Tropicália – Millennium, 2004 – Universal Music
Comentário*
“De como ‘Barca Grande’ se relaciona com Pernambuco e de como Pernambuco entra como referência e como inspiração em sua obra compositória e em sua carreira, já que a gênese dessa canção se vincula a uma estada sua no Estado, em 1967 – ‘Eu vim aqui pra te ver/ Como te vi, vou-me embora/ Trabalho na Barca Grande/ Só chego fora de hora’: isto é uma ciranda que é aproveitada como tema para desenvolvimento de uma canção, em ‘Barca grande’. A canção nasce, portanto, de uma
célula folclórica que vem a ser uma daquelas cirandas pernambucanas cantadas pelos barqueiros do rio Beberibe. O barqueiro chega fora de hora por quê? Por causa das noitadas amorosas. ‘Barca Grande’ aproveita isso que o folclore tem de reivindicar o tempo humanizado do trabalhador, o direito ao seu lazer, qualificado pelo amor, e o direito à preguiça, ao atraso no trabalho. As cançõezinhas folclóricas costumam fazer esse tipo de brincadeira jocosa do homem simples, trabalhador, com a quase escravidão imposta a ele; elas sempre expõem o modo como ele ludibria, contorna isso, reinstalando seu tempo autônomo, seu espaço afetivo, e o modo como ele reifica esse espaço individual no comentário irônico – um modo de enganar o patrão – sobre a noite bem vivida que o leva a chegar atrasado ao trabalho. Uma coisa que está nos sambas também, no cancioneiro popular todo, mas que no folclore, especialmente, aparece a toda hora.
No caso de “Barca Grande’, Pernambuco é obviamente uma fonte direta de inspiração para mim, relacionando-se com um momento em que eu faço a minha primeira visita prolongada ao Estado, onde fico um mês e vou a Caruaru com o compositor Carlos Fernando, que me dá uma fita com cirandas gravadas em Nazaré da Mata.
A importância de Pernambuco na minha obra é uma coisa muito clara para mim que cada vez mais eu venho reiterando. Recentemente mesmo, eu tive a oportunidade de reiterar esse afeto especial por Pernambuco, o sentido profundo de que o conjunto das manifestações musicais do Estado – a ciranda, o maracatu, o frevo, a banda de pífano, tudo isso – sempre exerceu uma influência no meu trabalho.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Barato total
Gilberto Gil
Lá, lalalalalalalá
Lá, lalalalalalalá
Quando a gente tá contente
Tanto faz o quente
Tanto faz o frio
Tanto faz
Que eu me esqueça do meu compromisso
Com isso e aquilo que aconteceu dez minutos atrás
Dez minutos atrás de uma ideia já dão
Pra uma teia de aranha crescer
E prender
Sua vida na cadeia do pensamento
Que de um momento pro outro começa a doer
Lá, lalalalalalalá
Lá, lalalalalalalá
Quando a gente tá contente
Gente é gente, gato é gato
Barata pode ser um barato total
Tudo que você disser deve fazer bem
Nada que você comer deve fazer mal
Quando a gente tá contente
Nem pensar que tá contente
Nem pensar que tá contente a gente quer
Nem pensar a gente quer
A gente quer, a gente quer
A gente quer é viver
Lá, lalalalalalalá
Lá, lalalalalalalá
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gal Costa – Cantar, 1974 – Philips
Zizi Possi – Este é o Gil que eu gosto, 1995 – Warner Music
Zélia Duncan – Novo Millennium, 2006 – Universal Music
Gal Costa – Recanto Ao Vivo, 2013 – Universal Music
Gil, Nando & Gal – Trinca de Ases (ao vivo), 2018 – Gege
Gilberto Gil – Em casa com os Gil, 2022 – Gege
Comentário*
“Outra música da época inspirada em e versando sobre a yoga, a macrobiótica, tudo isso. Discorre poeticamente acerca da ideia de bem-estar, do homem em situação plena de bem-estar. Eu não a fiz para a Gal – Gal a ouviu, gostou e gravou; eu a fiz para mim, para dizer aquelas coisas, para eliminar. ‘Barata pode ser um barato total’: o verso é para me referir ao fato de que Caetano tinha medo de barata; para brincar com ele, como quem diz: ‘O que é isso! Você está ótimo, não tem medo de nada’.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Banda Um
Gilberto Gil
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô-iê
Iê-iê-iê-iê
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô-ô
(Iô-iô-iô-iô)
Banda Um que toca um balanço parecendo polka
UmBandaUmBandaUm
Banda Um que toca um balanço parecendo rumba
UmBandaUmBandaUm
Banda Um que é África, que é Báltica, que é Céltica
UmBanda América do Sul
Banda Um que evoca um bailado de todo planeta
UmBandaUm, Banda Um
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô-iê
Iê-iê-iê-iê
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô-ô
(Iô-iô-iô-iô)
Banda pra tocar por aí
No Zanzibar
Pro negro zanzibárbaro dançar
Pra agitar o Baixo Leblon
O Cariri
Pra loura blumenáutica dançar
(Hum…) Banda Um, Banda Um
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô-iê
Iê-iê-iê-iê
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô, ô
Banda Um que soa um barato pra qualquer pessoa
UmBanda pessoa afins
Banda Um que voa, uma asa delta sobre o mundo
UmBanda sobre patins
Banda Um surfística nas ondas da manhã nascente
UmBanda, banda feliz
Banda Um que ecoa uma cachoeira desabando
UmBandaUm, bandas mis
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô-iê
Iê-iê-iê-iê
BandaUmBandaUmBandaUmBanda – ô-ô
(Iô-iô-iô-iô)
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Gilberto Gil – Ao vivo em Tóquio, 1986 – Warner Music
Gilberto Gil – Bandadois, 2009 – Gege
Comentário*
A umbanda – “O sentido universalista da umbanda como uma cisão do culto fechado das religiões, seja candomblé, seja a católica, ambas monistas, cada uma com a sua verdade; o panteísmo necessário da umbanda, uma religião que não é uma mas ‘todas’, misturando o kardeccismo, o catolicismo, o politeísmo africano. (E Banda Um é uma música-síntese com uma intenção e um conceito panculturalista, uma canção que cultiva as idéias de música, de juventude, de comportamento, de consumo e de vários nacionalismos.)”
A Banda Um – “E, ao mesmo tempo, o fato de sermos um pouco a Banda do Zé Pretinho [Gil se refere aqui ao grupo de Jorge Benjor, ao qual compara o seu]: Banda Um é como se fosse o nosso hino, o nosso prefixo musical.”
A UmBandaUm – “Banda Um é uma coisa, e umbanda é outra, exatamente o oposto: Banda Um é uma banda; umbanda são todas as bandas – ou nenhuma, em princípio. ‘UmBandaUm’ [a repetição seguida de ‘Banda Um’ no verso faz ressoar a palavra ‘umbanda’] estabelece o jogo dos contrários: faz o embutimento mútuo dos dois sentidos.
“A descoberta de todas essas coisas me animou à escolha, embora eu tenha hesitado muito em optar por Um Banda Um para nomear o disco e me apaziguar com a idéia de fazer esse tipo de brincadeira (que às vezes pode ficar gratuito; mas quando você descobre uma solução que, embora fácil, esteja carregada de sentido, e esse era o caso – ‘umbanda’ é uma palavra com uma carga enorme no Brasil -, aí, tudo bem). Acabei topando.”
Palavras-valise – ” ‘Zanzibárbaro’: do Zanzibar, um bar de negros, da Federação (bairro de Salvador). A loura ‘blumenáutica’: de Blumenau, e ao mesmo tempo náutica (a referência, embutida, aos esportes aquáticos, ao surfe, à juventude, ao mar, ao verão). Palavras-valises. Nelas cabe um bocado de idéias: você vai botando. É um dos procedimentos concretistas que mais me interessam. A invenção da palavra que é um condensado de significados.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A raça humana
Gilberto Gil
Uma semana
Do trabalho de Deus
A raça humana é a ferida acesa
Uma beleza, uma podridão
O fogo eterno e a morte
A morte e a ressurreição
A raça humana é
Uma semana
Do trabalho de Deus
A raça humana é o cristal de lágrima
Da lavra da solidão
Da mina, cujo mapa
Traz na palma da mão
A raça humana é
Uma semana
Do trabalho de Deus
A raça humana risca, rabisca, pinta
A tinta, a lápis, carvão ou giz
O rosto da saudade
Que traz do Gênesis
Dessa semana santa
Entre parênteses
Desse divino oásis
Da grande apoteose
Da perfeição divina
Na Grande Síntese
A raça humana é
Uma semana
Do trabalho de Deus
Gravação
Gilberto Gil – Raça Humana, 1984 – Warner Music
Comentário*
A música foi feita após uma estada de Gilberto Gil em Israel, durante a qual visitou os locais bíblicos como o túmulo de Jesus, a casa de Lázaro e outros. “O mote – ‘a raça humana é uma semana do trabalho de Deus’ – surgiu em Tel-Aviv”, reporta o autor. “Ao voltar, elaborei a letra toda. A canção é a emanação das sensações vividas por mim naqueles lugares”.
– Às vezes, ao final de uma frase melódica que requer uma palavra oxítona também pode se justapor uma proparoxítona; o cantar faz a acentuação recair tanto na antepenúltima quanto na última sílaba. É o que acontece em A Raça Humana no verso que termina com “gênesis”, proporcionando o fenômeno rítmico com “giz”.
Gil: “Sem descaracterizar o acento gramatical e sem criar a sensação de problemas prosódicos. Porque, você quase não ouve o ‘sis’ da palavra, falada: a ênfase fica no ‘gê’; mas na música, você canta ‘gênesis’. Soa bem a incidência acentual nas duas sílabas. É a liberdade que só a música dá, de entoar diversamente.”
– Uma particularidade da poesia de música, porque esse tipo de rima só se efetua realmente, claramente, na melodia. E depois, mais abaixo, você ainda diz ‘parênteses’, rimando com ‘gênesis’ (e ‘giz’).
Gil: “Eu adorava essa expressão do Caetano Veloso, ‘ferida acesa’ [de Luz do Sol: “Marcha o homem sobre o chão/ Leva no coração uma ferida acesa”], e resolvi transpô-la, traduzi-la para o contexto de A Raça Humana. ‘Ferida acesa’: como se o pus fosse luz.”
– Luz e pus, beleza e podridão.
“A ideia é essa.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A paz
Gilberto Gil
João Donato
A paz
Invadiu o meu coração
De repente, me encheu de paz
Como se o vento de um tufão
Arrancasse meus pés do chão
Onde eu já não me enterro mais
A paz
Fez o mar da revolução
Invadir meu destino; a paz
Como aquela grande explosão
Uma bomba sobre o Japão
Fez nascer o Japão da paz
Eu pensei em mim
Eu pensei em ti
Eu chorei por nós
Que contradição
Só a guerra faz
Nosso amor em paz
Eu vim
Vim parar na beira do cais
Onde a estrada chegou ao fim
Onde o fim da tarde é lilás
Onde o mar arrebenta em mim
O lamento de tantos “ais”
© Gege Edições Musicais / © Acre Editora Musical LTDA.
Gravações
Zizi Possi – Amor & Música, 1987 – Universal Music
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
André Mehmari e Célio Barros – Prêmio Visa (Edição comemorativa: 10 anos de lançamento), 1998 – Gravadora Eldorado
Brazilian Tropical Orchestra – Plays Caetano, Gil e Djavan, 1999 – Movieplay Digital
Rosa Passos – Songbook João Donato, Vol. 3, 1999 – Lumiar Discos
João Bosco – Um barzinho, um violão 2 (Ao vivo), 2001 – Universal Music
Jarbas Tauryno – O Canto da Transformação, 2002 – Lua Music
Max Vianna – A Escrava Isaura (trilha sonora), 2004 – Record Music
Fabio Bortoleto – Coisas de novela, 2006 – Atração
Antonio Villeroy e Orquestra de Câmara Theatro São Pedro – Sinal dos Tempos (Ao vivo), 2006 – PIC Music
Gilberto Gil e João Donato – Duetos, 2007 – Warner Music
João Donato – O piano de João Donato, 2007 – Deckdisc
Paula Morelenbaum e João Donato – Água, 2011 – Biscoito Fino
Revelação – A luz das estrelas, 2014 – Universal Music
Rodrigo Braga – Piano Bar (Nacional 1), 2014 – Música Fabril
Cibele Codonho – Afinidade, 2016 – Eldorado
Gilberto Gil e Carolina Ferraz – Ação da Cidadania 25 Anos, 2018 – Biscoito Fino
Oswaldo Montenegro – Canto uma canção bonita, 2019 – Albatroz Brasil
João Donato – Donatural (Ao vivo), 2024 – Biscoito Fino
Comentário*
João Donato apareceu em casa um dia com uma fita com várias canções, todas chamadas “Leila” — “Leila 1, 2, 3, 4” — umas quinze ou dezesseis no total. Eu disse: “Deixa pra outro dia, hoje a gente não tem tempo…”. E ele: “Não, vá, apure aí, faça alguma coisa”. E começou a cochilar ao meu lado. A imagem dele dormindo sossegado, em plena luz do dia, me chamou a atenção para o sentido da paz. Me veio à lembrança o título do livro Guerra e paz, de Tolstói, e a letra foi sendo construída sobre essa contradição, reiterando minha insistência sobre o paradoxo.
Uma bomba sobre o Japão/Fez nascer o Japão da paz”, em “A paz”; “a luz nasce da escuridão”, em “Deixar você”; “minha religião é a luz na escuridão”, em “Minha ideologia, minha religião”, o canto de abertura do disco Dia dorim noite neon. Essa é a recorrência básica no meu trabalho: yin e yang, noite e dia, sim e não, permanência e transcendência, realidade e virtualidade: a polaridade criativa (e criadora). “Pois eu sou e Deus é/ E disso é que resulta toda a criação”, como diz uma outra música minha, “É”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Banda Larga Cordel
Gilberto Gil
Pôs na boca, provou, cuspiu
É amargo, não sabe o que perdeu
Tem um gosto de fel, raiz amarga
Quem não vem no cordel da banda larga
Vai viver sem saber que mundo é o seu
Mundo todo na ampla discussão
O neuro-cientista, o economista
Opinião de alguém que esta na pista
Opinião de alguém fora da lista
Opinião de alguém que diz que não
Uma banda da banda é umbanda
Outra banda da banda é cristã
Outra banda da banda é kabala
Outra banda da banda é alcorão
E então, e então, são quantas bandas?
Tantas quantas pedir meu coração
E o meu coração pediu assim, só
Bim-bom, bim-bom, bim-bom, bim-bom
Ou se alarga essa banda e a banda anda
Mais ligeiro pras bandas do sertão
Ou então não, não adianta nada
Banda vai, banda fica abandonada
Deixada para outra encarnação
Rio Grande do Sul, Germania
Africano-ameríndio Maranhão
Banda larga mais demografizada
Ou então não, não adianta nada
Os problemas não terão solução
Piraí, Piraí, Piraí
Piraí bandalargou-se um pouquinho
Piraí infoviabilizou
Os ares do município inteirinho
Com certeza a medida provocou
Um certo vento de redemoinho
Diabo de menino agora quer
Um i pod e um computador novinho
Certo é que o sertão quer virar mar
Certo é que o sertão quer navegar
No micro do menino internetinho
O Netinho, baiano e bom cantor
Ja faz tempo tornou-se um provedor – provedor de acesso
À grande rede www
Esse menino ainda vira um sábio
Contratado do Google, sim sinho
Diabo de menino internetinho
Sozinho vai descobrindo o caminho
O rádio fez assim com seu avô
Rodovia, hidrovia, ferrovia
E agora chegando a infovia
Pra alegria de todo o interior
Meu Brasil, meu Brasil bem brasileiro
O You Tube chegando aos seus grotões
Veredas do sertão, Guimarães Rosa,
Ilíadas, Lusíadas, Camões,
Rei Salomão no Alto Solimões,
O pé da planta, a baba da babosa.
Pôs na boca, provou, cuspiu
É amargo, não sabe o que perdeu
É amarga a missão, raiz amarga
Quem vai soltar balão na banda larga
É alguém que ainda não nasceu
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Banda larga cordel, 2008 – Warner Music
Comentário*
É a música-título. A questão de adotar para uma canção o título de um disco ou vice-versa, o título de uma canção para um disco. Como Refazenda, Refavela, Quanta e tantos discos meus. Então tinha este desafio: como é que faço uma canção que ilustre o fato do que nós estamos falando, de um conjunto conceitual que aparece nesse disco inteiro ou pelo menos pretende aparecer nesse disco inteiro? A canção foi se tecendo em função disso. Os vários elementos ligados às próprias tecnologias, a ideia da própria banda larga, a denominação que se popularizou, que se disseminou na época. Banda larga como o nome da nova entidade técnica, de transporte de informação. Esse novo telégrafo. Sentimento de frustração. — Aí, sei lá, restou, resta pelo menos um pouco até hoje, um certo sentimento de não atingimento do desejo fundamental; uma certa, pequena frustração, no sentido de que talvez a canção não tenha dado conta do modo final; de que as pedras, os tijolos da construção não tenham cumprido a função de uma arquitetura mesmo nova; de que eu não tenha construído uma casinha fiel ao meu mapa mental-sentimental inicial, que deu margem à canção. É uma canção para a qual eu talvez não tenha conseguido resolver bem as questões da gravação, do arranjo, da execução com um conjunto de músicos.
Porque tem isso: músicas que acabam melhor realizadas do que outras. E essa é uma das que eu acho que fiquei devendo. É uma impressão forte. Talvez a inspiração tenha, quem sabe, sonegado um pouco a sua generosidade, mais uma coisa assim; a inspiração se escondeu um pouquinho ali e ficou. Talvez tenha a ver com o fato de que eu à época estava completamente absorvido por aquelas coisas: Banda larga cordel é um disco que eu faço quando estou no ministério [da Cultura]. A questão do artista com dificuldade de reproduzir a ideia inicial de uma obra. A defasagem entre a imagem mental, o pincel e a tela. A dificuldade em cumprir esse percurso com total integridade, desde a ideia até o instrumento, até o suporte. Eu tenho uma sensação que eu atribuiria mais àquele momento de absorção muito grande, de concentração difícil — eu fui fazendo o disco todo nos momentos de folga das minhas viagens, das minhas atribuições de gabinete em Brasília. E também ao desafio de cobrir com sons e palavras consistentes as novidades, de dar conta do novo elemento que surgia ali. O interesse apresentado pela letra. — “A internet e o ‘internetinho’”: eu adoro esse momento, porque o Netinho tinha sido o primeiro artista a adotar um aparato, um aparelho de internet, a se tornar um provedor. Na Bahia, inclusive. Ele, fascinado pela internet. A canção não é de forma alguma desinteressante. Não, ela é interessante. A sensação de incompletude talvez seja só minha, seja solitária. Pra alguém que ouve, pra alguém que lê, pra alguém que se debruça sobre a letra e a pluralidade dos aspectos abordados, pra alguém assim, pro ouvinte e pro leitor, talvez a canção não se apresente dessa forma como pra mim.
Ela dá uns saltos surpreendentes, mas com sustentação. Quando fala do menino, tem a ver chamá-lo de internetinho. Porque quem fica com a internet é neto, é o netinho. E a isso vem se acrescentar a alusão ao Netinho que não é gratuita, tanto que, como você diz, ele foi um pioneiro nesse campo. — É o netinho dele e de todos nós. São todas essas crianças que hoje manipulam celulares. Como os meus netos Dom, Sereno, minha bisneta, brincando com os aparelhinhos deles. A canção era a antevisão desse mundo que chegou, que está aí, e que já se anunciava ali muito claramente. São elementos trazidos pra dentro da canção que são muito interessantes. Talvez o que eu sinta é exatamente a falta de alguns outros que transcendessem o pitoresco de uma forma mais evidente, de um semantismo mais brutalmente impactante: talvez falte um certo brutalismo que essa canção deveria ter mais. Talvez eu tenha sido muito benevolente com a ideia.
As circunstâncias, porém, exigiam uma resolução não demorada. Você não poderia se debruçar muito tempo sobre ela. Outro aspecto interessante é que se trata de mais uma canção sua a fazer convergir o político e o poético. Tanto no plano estilístico, com o emprego de um bom número de palavras compostas, inventadas, de extração literária joyceana, tipo infovia, infoviabilizou, demografizada, bandalargou-se, internetinho. Quanto no sentido político mais propriamente dito, na chamada à atenção para a necessidade de levar os avanços pros sertões. — Exato. A distribuição da riqueza. A insistência na socialização necessária de todo bem, toda riqueza, todo produto. Esse aspecto socializante é importante, sim.
E também tem a ver com o seu trabalho à frente do Ministério. Os “pontos de cultura”. — Exatamente. Exatamente esse convite ao mundo cibernético para vir discutir com a institucionalidade cultural brasileira. O trabalho do John Perry Barlow, o trabalho do Berners-Lee, o Stalk e todos esses, os grandes mentores da cultura livre que se discutia muito naquele momento, a questão proprietária versus a questão livre. Todos esses aspectos da socialização necessária, da distribuição da riqueza simbólica e material também trazida pela dimensão cibernética nova.
Tem tudo isso. Só que era tanta coisa que eu fico com a sensação de que a canção não tenha dado conta de tudo. Mas é isso mesmo: ela teve que fazer as escolhas editoriais do momento.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A novidade
Gilberto Gil
Bi Ribeiro
Herbert Vianna
João Barone
Na qualidade rara de sereia
Metade, o busto de uma deusa maia
Metade, um grande rabo de baleia
A novidade era o máximo
Do paradoxo estendido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Outros a desejar seu rabo pra ceia
Ó, mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ó, de um lado este carnaval
Do outro a fome total
E a novidade que seria um sonho
O milagre risonho da sereia
Virava um pesadelo tão medonho
Ali naquela praia, ali na areia
A novidade era a guerra
Entre o feliz poeta e o esfomeado
Estraçalhando uma sereia bonita
Despedaçando o sonho pra cada lado
Ó, mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ó, de um lado este carnaval
Do outro a fome total
Gravações
Os Paralamas do Sucesso – Selvagem?, 1986 – EMI Music Brasil
Os Paralamas do Sucesso – D, 1987 – EMI Records Brasil
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Waner Music
Os Paralamas do Sucesso – Vamo batê lata, 1995 – EMI Music Brasil
Gilberto Gil – Quanta gente veio ver (Ao vivo), 1998 – Gege
Chama Chuva – Forró Chama Chuva, 2001 – EMI Music
Biquini Cavadão – 80, 2001 – Universal Music
Gilberto Gil – Kaya n’gan daya (Ao vivo), 2003 – Warner Music
Cidade Negra – Cidade Negra, 2006 – Sony BMG
Os Paralamas do Sucesso e Titãs – Paralamas e Titãs juntos e ao vivo, 2008 – Planmusic
Gilberto Gil, Ivete Sangalo e Caetano Veloso – Especial Ivete, Gil e Caetano, 2012 – TV Globo
Os Paralamas do Sucesso – Multishow Ao Vivo, 2014 – Mangaba Produções Artísticas Ltda
Comentário*
Gilberto Gil estava em Florianópolis quando Herbert Vianna ligou pra ele e lhe pediu para pôr letra na única música que faltava para fechar o disco (Selvagem) que os Paralamas do Sucesso estavam terminando de gravar. Logo, Herbert mandava via sedex a gravação instrumental da música, que Gil retirou no correio.
Gil: “Fui pro hotel e botei a fita no gravador. Depois de umas quatro passadas, saí anotando. Eram mais ou menos duas da tarde. Às três horas eu estava ligando pro estúdio já para passar a letra. Foi uma coisa assim: bum! A letra veio como um tiro certeiro, absolutamente de chofre, inteira. E de um modo surpreendente até pra mim, porque, mesmo sem tempo pra qualquer avaliação crítica no dia seguinte, resultou no que eu acho um dos meus melhores textos – pela escolha e pela maneira de tratar o assunto, pela concisão e pela elegância da construção.”
Um estímulo visual… – “O quarto do hotel dava para o mar, e eu estava escrevendo na mesinha de frente para a janela, com a visão do mar ao fundo. Daí a ideia da sereia que vinha dar à praia.”
… e outro, sonoro – “Algumas sílabas no início do cantarolar do Herbert na fita me insinuaram algo que soava como a palavra ‘novidade’, e eu aproveitei essa sugestão sonora. O restante veio por acaso mesmo.”
Riqueza versus miséria – “O tema da desigualdade sempre fez parte do modo de inserção da minha geração na discussão dos problemas da sociedade; do nosso desejo de expressá-los. Universitário por excelência, o tema é portanto anterior e recorrente em meu trabalho. Está em Roda, em Procissão, em Barracos. Agora, em A Novidade, a imagem da sereia é que dá a partida para o tratamento da questão; a novidade é essa. Pode-se imediatamente pensar no Brasil, mas é sobre o Terceiro Mundo em geral; mais: sobre todo o ‘mundo tão desigual’, mesmo, de que fala o refrão.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A notícia
Gilberto Gil
Que trouxe a notícia
Que o meu amor tinha morrido
Teria sido encontrado
Coração varado
Por flechas de algum cupido
Novo bandido talvez contratado
Por alguém bem interessado
Na minha solidão
Minha desilusão
Na vaga aberta na minha paixão
Tramaram tudo
De forma perfeita
Aproveitaram a estação
Insuspeita:
O verão
– Provavelmente um cupido de cara morena
De voz tão serena –
E o luar
Sabiam que ela gostava da praia
Não há quem não caia
Seu coração caiu
Sob as flechadas desse bandido
Cupido
E a polícia, que passava, viu
Foi a polícia
Que trouxe a notícia
E agora alguém deve estar pronto
Agradecendo, sorrindo
Pagando ao cupido
Saindo
Ao meu encontro
Rei morto, rei posto
Devo estar disposto
A conhecer o interessado
Na minha solidão
Minha desilusão
Na vaga aberta na minha paixão
Gravações
Maria Bethânia – Ciclo, 1983 – Philips
Wando – Coisa cristalina, 2017 – Discobertas
Comentário*
Essa foi uma daquelas canções às quais me refiro [no comentário sobre “Plateia”] que eu mandei pra Bethânia, uma das quatro ou cinco daquela fornada, entre as quais “Plateia”, e eu me lembro que ela escolheu essa, “A notícia”. Quem é louca por essa música — cantou em shows — é a nossa gauchinha, Adriana Calcanhotto.
Eu tenho coisas aqui e ali, que eu nem cheguei a terminar, que juntavam fantasia e realidade. “tv Punk”, por exemplo, é um pouco assim. Mas eu acho que com um enredo desse, de “A notícia”, não. Por causa da inserção dos elementos que vêm da vida real pra uma história incrível. A polícia no meio de um caso de paixão, vindo com a notícia sobre uma ação fictícia. O criminoso é Cupido, que mata o amor com uma flechada. O Cupido é um desses assassinos de aluguel. Ele é pago por alguém pra matar o amor, pra abrir a vaga no coração de uma pessoa [a primeira, da canção]. Quer dizer, é uma encomenda. A trama é muito louca. Ao mesmo tempo remonta às histórias de crimes encomendados e tão frequentes nas grandes cidades do Brasil, como o Rio de Janeiro. A canção aproveita essas lembranças do mundo real pra criar uma trama criminosa no mundo da fantasia, com personagens do mundo fantástico, como o Cupido.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A mulher que eu sou
Gilberto Gil
Ruy Guerra
A morte
Gilberto Gil
Não precisa do nosso chamado
Recado
Pra chegar
Ociosas, oh sim
As rainhas são quase sempre prontas
Ao chamado dos súditos
Súbito colapso
Pode ser a forma da morte chegar
Não precisa de muito cuidado
Ela mesma se cuida
É rainha que reina sozinha
Não precisa do nosso chamado
Medo
Pra chegar
Gravação
Jards Macalé – Jards Macalé, 1972 – Universal Music
Comentário*
“O esoterismo implica a concepção inclusiva da morte; a morte não exclui nada, a morte está incluída; ela é fechamento de ciclo; a ideia de que não há vida sem morte; de que tudo que nasce, morre; tudo que tem um começo, tem um fim; toda face tem um dorso. Do equilíbrio com a relação dinâmica da permanência da interação dos opostos: a morte é um desses opostos; então, não há vida sem morte, nem morte sem vida. Pelo menos no campo da camisa de força da dualidade – a superação do dual oferecida, sugerida pelos sábios, pelos santos.
Compus essa música em Londres, quando eu voltei para lá, em 72, para arrumar as coisas para regressar ao Brasil em definitivo. Ela veio de um daqueles insights, uma daquelas emanações de sentimento profundo que dão um pensamento. A canção faz uma associação interessante da morte com as rainhas ociosas, e dos seus súditos com a gente.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A mão direita
Gilberto Gil
Torquato Neto
Bananeira
Gilberto Gil
João Donato
Bananeira, não sei
Bananeira, sei lá
A bananeira, sei não
A maneira de ver
Bananeira, não sei
Bananeira, sei lá
A bananeira, sei não
Isso é lá com você
Será
No fundo do quintal
Quintal do seu olhar
Olhar do coração
© Gege Edições Musicais / © Guilherme Araújo Produções Artísticas LTDA. (adm. por Warner/Chappell Edições Musicais LTDA.)
Gravações
João Donato – Lugar Comum, 1975 – Philips
Emílio Santiago – Emílio Santiago (Remastered), 1975 – Emílio Santiago
Bebel Gilberto – Tanto Tempo, 1996 – Crammed Discs
J. T. Meirelles e Ed Motta – Songbook João Donato, Vol. 1, 1999 – Lumiar Discos
João Donato – Millennium, 2000 – Universal Music
Joyce – Tudo Bonito, 2000 – Sony Music
Maogani – Cordas cruzadas, 2001 – ROB Digital
João Donato – BIS Bossa Nova, 2001 – Emi Music Brasil
Bebel Gilberto – Serie Gold II / Bossa Nova Lounge, 2002 – Universal Music
Bebel Gilberto – The Best o Brazilian Jazz, 2002 – Universal Music
João Donato – Presente cotidiano, 2002 – Dubas Musica
Quarteto em Cy – Quarteto em Cy Ao Vivo, 2002
Garrafieira – Garrafieira, 2004 – Biscoito Fino
João Donato – Retratos, 2004 – Emi Music Brasil
Joyce e João Donato – Bossa Nova, 2005 – Sony Music
João Donato – Electric Samba Groove – Pure Brazil II, 2005 – Universal Music
João Donato – Coisas tão simples, 2006 – Emi Music Brasil
Sérgio Mendes – Timeless, 2006 – Concord Music Group, Inc
Caio Mesquita – Jovem Brazilidade 2, 2007 – Luar Music
João Donato – The Bossa Nova Wave, 2008 – Emi Music Brasil
João Donato & Gilberto Gil – Donatural – João Donato e convidados, 2009 – Biscoito Fino
Emílio Santiago e João Donato – GNT: Programa Mulheres Possíveis, 2009 – Globosat Programadora
João Donato – Ê Menina, 2011 – Emi Music Brasil
João Donato – Sambou, Sambou, 2011 – Emi Music Brasil
Eliane Elias – Light My Fire, 2012 – Universal Music
Emílio Santiago – Chill Brazil 7, 2012 – Warner Music
João Donato e Gilberto Gil – De conversa em conversa – o melhor da bossa nova, 2012 – Biscoito Fino
João Donato – Welcome to Copacabana – the brazilian melting pop, 2012 – Emi Music Brasil
Bebel Gilberto – Bebel Gilberto in Rio, 2013 – Biscoito Fino
João Donato – O couro tá comendo – João Donato Live, 2014 – Discobertas
João Donato – Bossa Dubas Posto 9 (cd3), 2014 – Dubas Musica
Hamleto Stamato – Speed Samba Jazz 5, 2015 – L.PE Produções Musicais
João Donato – Sambolero, 2017 – Mills Records
João Donato – Raridades (anos 70), 2017 – Discobertas
A mão da limpeza
Gilberto Gil
Quando não suja na entrada
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Que mentira danada, ê
Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o negro penava, ê
Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza
Negra é a vida consumida ao pé do fogão
Negra é a mão
Nos preparando a mesa
Limpando as manchas do mundo com água e sabão
Negra é a mão
De imaculada nobreza
Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
Eta branco sujão
Gravação
Gilberto Gil – Raça humana, 1984 – Warner Music
Comentário*
“Eu fiz A Mão da Limpeza para repor certas coisas no lugar e remendar um preconceito histórico contra os negros; para responder, no mesmo tom, um desaforo – o velho ditado: ‘Negro, quando não suja na entrada, suja na saída.’
“Ocorriam-me imagens de lavadeiras lavando roupa nas beiras de rios, inúmeros, por que eu passei no interior da Bahia e outros lugares; de cozinheiras negras, jovens e velhas, espalhadas pelas cozinhas do Brasil; de várias faxineiras limpando as casas. Ocorria-me com muita nitidez o quão acionados e quão importantes são os negros para o trabalho de limpeza em geral que é feito na vida, e também com tamanha nitidez o quão sujadores são exatamente os que têm mais recursos, os mais ricos, os mais beneficiados da sociedade que, em sua grande maioria, correspondem à classe mais clara, a faixa mais branca.
“Quer dizer, os negros são tão maciçamente empenhados na função da limpeza da comunidade e acabam sendo acusados de ser os sujões. No fundo, o provérbio tem uma conotação nitidamente moral, além de física; o que se tenta considerar como sujo no negro é sua existência, sua pessoa, sua condição humana. Nesse sentido é muito mais terrível, e a música nem alcança a dimensão da crítica disso; ela apenas toca nisso.
“Mas jogando a sujeira como algo produzido preferencialmente pelos brancos, ela faz a limpeza da nódoa que quiseram impor aos negros. E deixa implícita também uma condenação moral aos brancos. Ou seja: ‘Sujos na verdade são vocês, de corpo e alma; pelo menos, mais sujos que os negros vocês são. Há muito mais sujeira a apurar ao longo do processo da civilização de vocês do que da nossa.’ É o que a música diz. E ela diz o que tem a dizer, com contundência e eficácia.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A luz e a escuridão
Gilberto Gil
Dos mistérios do universo
A luz e a escuridão
Fazem par, verso e reverso
Dos percursos da visão
A luz que corta qual faca
Afiada e bem precisa
E a escuridão, faca cega
Que só apalpa e alisa
A luz e a escuridão
As duas irmãs babaças
Uma diz sim e outra não
E ambas fazem suas graças
Aqui estão três irmãs
A quem a luz disse não
E a escuridão disse sim
Acendendo a inspiração
Oh, vida de tanto enredo
De tantas contradições
Aqui estão olhos que veem
Pela luz dos corações
Ali, onde o olhar é oco
É a voz da luz que fala
Luz das ceguinhas do coco
Iluminando esta sala
Gravação
Gilberto Gil – A pessoa é para o que nasce (trilha sonora do filme), 2005 – Tratore
Comentário*
Uma canção pra um filme sobre as velhinhas cegas, feita quando elas participaram do [festival] PercPan, que eu dirigia com o Naná Vasconcelos. O cineasta Roberto Berliner tinha feito um filme com elas e me solicitado uma música. Eu aproveitei e fiz essa homenagem a elas, recepcionando-as no palco do Castro Alves com essa canção. Um dos versos fala: “Luz das ceguinhas do coco/ Iluminando esta sala”. É isto: elas três sentadinhas ali no palco, já diante daquela plateia, e eu introduzindo-as, fazendo essa cantiga de boas-vindas pra elas. Que é muito explícita nesse aspecto; direta.
Poético-filosófica também. Você aproveita pra tratar de luz e escuridão: é seu campo, seu terreno, sua praia. — Exatamente. O poetar é razoavelmente interessante. “A luz que corta qual faca/ Afiada e bem precisa/ E a escuridão, faca cega/ Que só apalpa e alisa”. Isso parece João Cabral. — Parece mesmo.
Por essas comparações, essas analogias que ele faz. Aqui você associa luz e escuridão com faca; duas facas diferentes. — A escuridão com “faca cega”, a expressão pra faca que perde o corte. “Que só apalpa e alisa”.
É de fato cabralina essa quadra. — Uma lâmina que não fere, uma lâmina sem…
Aí já nos lembramos do livro Uma faca só lâmina, do Cabral.
— Sim. É bem possível que lá no fundo, na hora, tivesse um residuozinho qualquer da memória desse poema dele.
Muito original o emprego desta palavra que eu nunca vi numa canção: “mabaças” (gêmeas). — E bonita a estrofe também “A luz e a escuridão/As duas irmãs mabaças/ Uma diz sim, a outra não/ E ambas fazem suas graças”. A escuridão, no caso, é a delas, dos olhos delas, e a graça, a do encanto, da capacidade de cantar e versejar, da inspiração das irmãs. Nem sei o que é feito delas…
Num vídeo no YouTube, você conta que compôs a canção enquanto esperava a chegada delas, que atrasaram, e aí você aproveitou para fazer alguma coisa pra recepcioná-las. — A ideia da canção é exatamente isso: ser uma canção de recepção. Aí você a mostrou pro Naná, que gostou… — Foi.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A luta contra a lata ou A falência do café
Gilberto Gil
O barulho que vocês estão ouvindo é um barulho de latas!
De latas! Eu disse: “Latas! Latas!”
O exército de latas mil do inimigo
Tomou de assalto as prateleiras e os balcões
Em nome das plebéias chaminés plantadas
Em nossos quintais
Palavras proferidas por um velho dono
De terras roxas de uma vasta região
Em nome das grã-finas tradições plantadas
Em seu coração
(Café! Café! Café! Café!)
Chaminés plantadas nos quintais do mundo
As latas tomam conta dos balcões
Navios de café calafetados
Já não passeiam portos por ai
Rasgados velhos sacos de aninhagem
A grã-finagem limpa seus brasões
Protege com seus sacos de aninhagem
Velha linhagem de quatrocentões
Os sacos de aninhagem já não dão
A queima das fazendas também não
As latas tomam conta do balcão
Vivemos dias de rebelião
Enlate o seu café queimado
Enlate o seu café solúvel
Enlate o seu café soçaite
Enlate os restos do barão
A lata luta com mais forças
Adeus, elite do café
Enlate o seu café solúvel
Enquanto dá pé
Gravação
Gilberto Gil e Os Mutantes – Tropicália, Millennium, 1998 – Universal Music
Comentário*
“Essa canção desdobra a lógica da música de protesto que vinha da fase pré-tropicalista, anterior, incluindo signos de composição, de decupagem, de montagem, de edição, típicos da fase tropicalista. Faz uma crítica direta, territorializada no campo da alta burguesia paulista, aos barões do café; aos resíduos de aristocracia descurada, descaracterizada já, paulista, quatrocentona, na segunda metade do século 20, àqueles resíduos já macilentos da aristocracia do café, sendo tudo isso figurado com a imagem dos sacos de aniagem que se desfazem, pela capacidade que eles têm de se esfarrapar, se desfazer, com o seu tecido provisório, improvisado, típico para ser apenas um invólucro rápido para o café ou o cacau. Uma crítica à burguesia ainda semi-aristocratizada, já dominada pela lata, já sujeita à nova lógica produtiva da indústria moderna, mas ainda vivendo sentimentos de altivez e de soberba da aristocracia antiga.
– Para um tropicalista, um prato cheio.
Gil: Uma xícara cheia…
– Uma lata cheia…
Gil: Uma lata cheia de muitas xícaras…
– Cheias de ironia, de sarcasmo mesmo.
Gil: De sarcasmo.
A ideia do café solúvel como uma grande ameaça: no momento em que o café se tornou solúvel, se tornou enlatável, acabou-se o reinado da saca de café. É uma maneira de associar estágios tecnológicos – formas de produção – aos estágios sociológicos. A música quer fazer essa associação: o saco de aniagem estava para a aristocracia, assim como a lata está para a burguesia. Dá conta da luta interna, transcorrendo no próprio extrato, na própria cripta social, das elites: da luta das elites, com a superação da aristocracia pela burguesia. Quanto ao proletariado, é como se ele estivesse ironicamente do lado, afastado de braços cruzados, vendo a burguesia apunhalando a aristocracia…
Quanto ao jogo aliterativo de trechos da letra (‘Café calafetados’, ‘a lata luta/ elite/ enlate’) que, sonoramente tão carregado, aparece pioneiramente em sua obra – São procedimentos tropicalistas ligados já à poesia concreta. Estímulos novos trazidos pelo concretismo.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Balé de Berlim
Gilberto Gil
Nossa seleção chega a Berlim
Numa perna só
Moleque saci
Uma perna só jogando por tantos milhões
De corações de curumins
Uma perna só pra tantos olhos e pulmões
Tantos estômagos e rins
Tantos fígados
Nossa seleção chega a Berlim
Traz um protetor
Senhor do Bonfim
Traz um protetor no amor que integra essa nação
Amor de pai, de mãe, de irmão
Traz um protetor no amor ao mar, amor ao sol
Amor aos dias de verão
E o carnaval
O carnaval não mata a fome
Nem mata a sede o São João
Mas nem só de pão vive o homem
Por isso viva a seleção
Nossa seleção chega a Berlim
Perder ou ganhar
Será sempre assim
Será sempre a vibração no ar, no ar o ardor
Meu coração de torcedor
Guardará sempre a lembrança de uma ilusão
E o nome de um jogador
Beckenbauer
Bauer
Barbosa
Bobo
Bobby Charlton
Puskas
Bellini
Eto´o
Viva Pelé!
Viva Mané!
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil e Zeca Pagodinho – Single, 2006 – Warner Music
Comentário*
“Balé de Berlim” foi feita especialmente pra Copa da Alemanha [de 2006], utilizando o mesmo começo e praticamente toda a mesma estrutura da canção que havia sido feita pra Copa da França [de 1998], “Balé da bola”. A da França começava: “Quando o meu olhar beijar Paris,/Terei mais amor, serei mais feliz”. E a da Alemanha: “Nossa seleção chega a Berlim/Numa perna só, moleque Saci”. É a mesma música. Ambas pra saudar nossa seleção na Copa do Mundo. Ambas sambas animados, rasgados, como a gente costuma classificar esse tipo de samba. E a motivação era o futebol, que tem seu lugar razoável na minha obra, e eu gosto. Eu queria replicar o samba de saudação à seleção. É claro que as paisagens eram diferentes, que eram duas seleções também diferentes, já oito anos depois — e eram duas cidades. O que Berlim despertava em mim não era exatamente a mesma coisa que Paris, que tem um lugar na vida da gente bem mais destacado — um pouco mais associado mesmo com a beleza e a grandeza da cidade. De todo modo, era a seleção, era Copa do Mundo, e “Balé de Berlim” é um samba-exaltação pra essa seleção. Aí as imagens e as ideias foram surgindo, e veio a do moleque Saci; a de um balé jogado numa perna só, por essa entidade tão tipicamente brasileira e tão especial, tão ligada à capacidade de desempenho de um ser humano de uma perna só. A coisa dos negros todos associados numa forma magistral ao futebol brasileiro. Essas coisas vinham nos substratos da ideia de escrever, de encontrar versos, palavras, expressões pra compor a canção. E ela tem no final aquela enumeração de jogadores, começando com Beckenbauer, vindo o Bauer, do São Paulo, grande jogador da década de 50, e Barbosa, da seleção de 50. E Bobô, que chegou a ser convocado e a jogar na Seleção, um ou dois jogos. Ele, jogador do Bahia, meu primeiro time de estimação.
Você enumera oito jogadores no final, seis com nomes começados com a letra B. — Tem Bobby Charlton, da seleção da Inglaterra, de 66. Bellini, do Brasil de 58. E aí Pelé e Mané.
O Saci é o símbolo do Internacional. — Eu não sabia na época. Eu só vim a me dar conta disso agora. Foi muito recentemente que eu vi a associação do Saci ao símbolo, à emblemática geral do Internacional.
Eu também. Foi mais recentemente que isso veio a me chamar a atenção. Foi por ocasião das cenas de racismo protagonizadas por alguns torcedores do Grêmio. — Mas o nosso querido Lupicínio [Rodrigues, o compositor, autor do hino do Grêmio] era gremista. Isso [a percepção atual do racismo no futebol] pode dar a oferecer fragmentos da história, da dimensão, das relações, mas não dá conta de tudo. O futebol transcende tudo isso. Pelo menos deveria transcender. Já houve tempos em que transcendia mais, não ficava tão submisso à lógica do corretamente político. Futebol era mais solto. Hoje em dia nós todos estamos mais presos a condicionantes variadas que não eram muito presentes no futebol antigo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Balafon
Gilberto Gil
Isso que toca bem, bem
Isso que toca bem, bem
Chama-se balafon
Em cada lugar tem
O nome deve ser outro qualquer
No Camerum
Isso que a gente chama marimba
Tem na África todo mesmo som
Isso que toca bem, bem
Num lugar, não lembro bem
Chama-se balafon
Marim-bajé
Iré-xiré
Balafonjá
Orim-axé
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Refavela, 1977 – Warner Music
Gilberto Gil – Nightingale, 1979 – Gege
Comentário*
Balafon é uma marimba africana que reproduz escalas pentatônicas; um instrumento que existe em todo canto da África e em cada lugar tem um nome. A música fala disso.
Sobre os quatro termos finais. — “Marim-bajé/ Iré-xiré/ Balafonjá/ Orim-axé” são aliterações de palavras africanas. Algumas são em quimbundo (marimba [tambor]) e em iorubá (bajé […], iré […], xiré […], orim […], axé […]), que eu fui justapondo. Outras, como “balafonjá”, uma palavra-valise, foi mesmo um procedimento concretista.
Jamesjoycianos. — Sim.
Quem primeiro veio com esse procedimento, na verdade, foi Lewis Carroll. James Joyce, depois, radicalizou seu uso, num romance todo composto de compósitos, de palavras-valises.
— Todo assim. Finnegans Wake.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Balé da Bola (Copa 98)
Gilberto Gil
Quando meu olhar beijar Paris
Terei mais amor
Serei mais feliz
Sentirei no ar a emoção, no ar o ardor
Meu coração de torcedor
Esperou tanto tempo por esta ocasião
Que um dia o menestrel sonhou
Magos da bola na Cidade Luz
Fazem milagres, transmutações
Dores e horrores que a vida produz
São transformados no balé da bola
Suor e sangue no balé da bola
Crime e castigo no balé da bola
Quando a seleção marcar um gol
Serão séculos
E mais séculos
Desde que na velha China, no velho Japão
Jogava-se com um balão
E na antiga Grécia ou na França medieval
Praticava-se o futebol
Quando a seleção marcar um gol
Serão séculos
E mais séculos
Transcorridos desde que os astecas e os tupis
Conforme a voz da lenda diz
Pelejavam com a lua-bola e o balão-sol
Num jogo de viver feliz
E hoje a bola rola mais perfeita
Esfera mágica, elevação
Nos pés dos ídolos deste planeta
Tem seu momento de consagração
A bola símbolo da perfeição
Tem seu momento de consagração
Quem lembrar Pelé ou Platini
Sabe o que se comemora aqui
Tantos que eu vi, tantos que eu não vi não (bis)
Todos tem aqui seu panteão
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Projeto especial Boticário, 1998 – Warner Music, Geleia Geral
Comentário*
Eu estava na França durante a Copa de 98: eu vi todos os jogos da seleção, com exceção de um, Brasil e Dinamarca, porque eu estava em Istambul, na Turquia, no dia. Eu estava em turnê pela França – pela Europa – e tudo tinha sido feito e programado para eu ir e poder ver os jogos: na final, eu estava no Stade de France.
Eu escrevi ‘Balé da bola’ por causa da Copa, poucos meses antes da competição, e a gravei pouco antes de viajar para a Europa, para cantá-la lá. O show era aberto com ela. Engraçado: do ponto de vista da qualificação da canção, do seu estar dentro e fora do tempo, foi interessante que o Brasil não tenha ganho essa Copa – porque ela não era uma daquelas músicas de torcida brasileira (era, mas ao mesmo tempo não era…).
Aí, no dia seguinte à final, nós estávamos já em Madri, onde íamos fazer um show, e na hora da passagem de som os músicos perguntaram: ‘Mas como é que vamos abrir o show?’ ‘Mas é claro que vamos abrir com ela, qual é o problema? Qual é o problema?’, eu disse. ‘É uma música sobre o futebol, imagina’. Porque ela foi feita a propósito da Copa da França – o que incluía todas as seleções.
E, nesse sentido, era interessantíssimo que a França tivesse sido campeã… Porque era ali, em Paris, e porque o samba tinha essa coisa de ‘Pelé e Platini’, porque era um ballet…
Tenho paixão por essa música. Por ser meu primeiro samba-enredo, fazendo uma viagem extraordinária por toda a coisa do futebol. E também pelo seu lado musical, pela fluidez do samba, junto com a letra.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A linha e o linho
Gilberto Gil
Como se eu fosse o pano e você fosse a linha
E a agulha do real nas mãos da fantasia
Fosse bordando, ponto a ponto, nosso dia-a-dia
E fosse aparecendo aos poucos nosso amor
Os nossos sentimentos loucos, nosso amor
O ziguezague do tormento, as cores da alegria
A curva generosa da compreensão
Formando a pétala da rosa da paixão
A sua vida, o meu caminho, nosso amor
Você a linha, e eu o linho, nosso amor
Nossa colcha de cama, nossa toalha de mesa
Reproduzidos no bordado a casa, a estrada, a correnteza
O sol, a ave, a árvore, o ninho da beleza
Gravações
Gilberto Gil – Extra, 1983 – Warner Music
Gal Costa e Marco Pereira – Songbook Gilberto Gil, Vol. 1, 1992 – Lumiar Discos
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Gilberto Gil e Arthur Moreira Lima – MPB Piano Collection, 1999 – Sony Music
Gilberto Gil – Eletroacustico (Ao vivo), 2004 – Warner Music
Andréa Dutra e Marcus Nabuco – O amor de uns tempos pra cá, 2008 – Soladesom
Zé Mauricio – Além da razão, 2008 – Gionva Serviços Ltda
Gilberto Gil – Bandadois (Ao vivo), 2009 – Gege
Diogo Poças – Tempo, 2009 – Warner Music
Gilberto Gil e Lenine – Gil + 10, 2011 – Pedra da Gávea
Gilberto Gil, Ivete Sangalo e Caetano Veloso – Especial Ivete, Gil e Caetano, 2012 – TV Globo
Carla Bezerra – Meu amanhã, 2014 – Carla Bezerra [dist. Tratore]
Joana D’ Arc – Com o som no coração, 2015 – Tribo Records
Mauro Senise – Amor até o fim: Mauro Senise toca Gilberto Gil, 2016 – Fina Flor
Comentário*
Na vida a dois, a pessoalização do amor; o êxtase pré-samádico; nas gradações religiosas, um estágio no qual, ainda em corpo, tem-se a dimensão divina; um ponto onde humano e sobre-humano superpõem-se.
Nós estávamos em Paris, no Hotel Meurice, onde Hitler havia feito o seu quartel-general quando da ocupação, e onde também saiu “Extra” na mesma ocasião. Flora tinha acabado de adormecer; ainda a acariciei um pouco e já estava entrando num estado de torpor quase sonho, quando me chegaram as primeiras frases. Havia a maciez da pele dela, a do tecido do lençol e os bordados na colcha — todos os elementos; minha sensação era de leveza, paixão e afeto. Aquelas palavras ficaram como que boiando num éter, e eu já tinha me deitado, mas resolvi me levantar e completar a letra toda. No final ainda me lembrei da minha mãe e da minha avó bordando nos panos os motivos que eu cito. Dias depois fiz a música.
Recentemente, eu recebi de uma família de bordadeiras, mãe e filhas, de Três Marias, interior de Minas, um lenço bordado junto com uma carta de agradecimento pela canção. No lenço, a inscrição “A linha e o linho”. Para mim foi instigante o fato de, nesses dois substantivos, apenas o o e o a finais os diferenciarem, determinando também a diferença dos sexos. E propiciando que um momento tocante, especial, se transformasse em poesia, como num lance de ilusionismo, prestidigitação.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Balada do lado sem luz
Gilberto Gil
O mundo da sombra
Caverna escondida
Onde a luz da vida
Foi quase apagada
O mundo da sombra
Região do escuro
Do coração duro
Da alma abalada, abalada
Hoje eu canto a balada do lado sem luz
Subterrâneos gelados do eterno esperar
Pelo amor, pelo pão
Pela libertação
Pela paz, pelo ar
Pelo mar
Navegar, descobrir
Outro dia, outro sol
Hoje eu canto a balada do lado sem luz
A quem não foi permitido viver feliz e cantar
Como eu
Ouça aquele que vive do lado sem luz
O meu canto é a confirmação da promessa que diz
Que haverá esperança enquanto houver um canto mais feliz
Como eu gosto de cantar
Como eu prefiro cantar
Como eu costumo cantar
Como eu gosto de cantar
Quando não tão abalada, a balada abalada
Do lado sem luz
© Gege Edições Musicais
Gravação
Maria Bethânia – Pássaro proibido, 1976 – Philips
Comentário*
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999. — “Ela tem um autoflagelo, um peso que não parece comigo, que, como compositor, sou solar e faço músicas quase sempre bem ensolaradas. Mas essa está lá embaixo, numa gruta. É estranha, porque fala de um lado sem luz e tem a vontade de abrigar um fenômeno curioso dos eclipses e do lado oculto da Lua. Me recordo que lembrei das naves que perdiam contato com a Terra, quando passavam pelo outro lado do satélite, quando o centro de operações da Nasa perdia contato com os astronautas. Era essa a ideia de bloqueio e corte nas comunicações. Escuro total, isolamento, o outro lado sem luz. Isso tudo transposto como metáfora de condição da alma humana, quando ela perde isso por alguma circunstância traumática no corte do fio de ligação com a Luminosidade. Essa música também contém a metáfora dos aprisionados e é, ao mesmo tempo, uma exortação à liberdade para eles que estão com as almas abaladas pela perda da Luz. […] “Enfim, é uma canção de compaixão pelos seres ainda embrutecidos.”
Ela traz uma carga dramática incomum na sua obra e que ficou muito bem evidenciada na voz teatral da Bethânia. Ela só pediu uma coisa: que trocasse a palavra “catacumba”, porque ela tem uma cisma com essa palavra. Aí eu coloquei subterrâneo e achei que ficou bem melhor, universalizando mais o sentido.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Baião atemporal
Gilberto Gil
No último pau-de-arara de Irará
Um da família Santana viajará
Levará uma semana até chegar
Junto com mais dois ou três outros cabras que estarão lá
No último pau-de-arara de Irará
Se essa viagem comprida fosse um cordel
Seria boa saída acabar no céu
Só que este conto que eu canto é pra lá de zen
Não tem sentido, não serve pra nada e é pra ninguém
Pra ninguém botar defeito e não ter porém
Basta pensar que Irará poderá não ser
Que os paus-de-arara de lá já não têm porquê
Porque os tempos passaram e passarão
Tudo que começa acaba, e outros cabras seguirão
Cruzando o atemporal do tão do baião
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Tropicália 2, 1993 – Universal Music
Comentário*
“Uma homenagem à família Santana, toda ela, em especial, claro, ao Tom Zé, que foi nosso colega, nosso companheiro, tropicalista da primeira hora, com um papel importantíssimo no tropicalismo, autor de várias canções do disco ‘Tropicália’, e primo de Roberto, produtor, sobrinho de Fernando, deputado, um Santana como tantos, clássico.
Em ‘Baião atemporal’ eu quis passar o sentido retirante da vida dele, que saiu do Irará, foi para Salvador, saiu de Salvador, foi para São Paulo, e os aspectos marcantes da vida nordestina, todos eles atributos muito nítidos da família, formada por nordestinos caboclos muito fortes; daí eu ter usado o baião, por ser talvez a forma clássica da música nordestina, da qual derivam todos os outros gêneros. Na canção a família Santana é tomada como um símbolo das famílias retirantes do Nordeste, e eu brinco com elementos ligados à vida nordestina, como o próprio pau-de-arara, que é o veículo da saída, o meio de transporte da retirada, e o cordel, o meio de contar histórias, especialmente para aquele que se tornava artista, no caso do Roberto Santana.
‘Um conto para lá de zen’, quer dizer: para não ter sentido, para não servir para nada, por não ser utilitarista, não ser para ser levado em conta a partir da grandeza ou da riqueza da sua narrativa, por não se tratar de uma história para ser contada, mas de um ‘conto’ a respeito da substância misteriosa, alquímica, da transformação, a que transforma tudo, que transforma os homens e os desloca de uns lugares para outros, enfim, que os faz se submeterem a essa coisa difícil do desenraizamento, da desterritorialização, das grandes migrações modernas – do que os retirantes nordestinos são um exemplo muito claro dentro do Brasil –, enfim, dos êxodos, no sentido bíblico da palavra. Como os retirantes da família Santana, que se atiraram para várias distâncias diferentes, com várias profundidades de atração pelo mundo exterior diferentes, uns tendo ficado em Salvador, outros ido para São Paulo, uns para a política, outros para o comércio, tendo outros ficado nas artes; é uma família muito grande, com muitas personalidades, e muitos retirantes.
A canção – composta especialmente para o disco ‘Tropicália 2’ – é sobre eles, com o Tom Zé como um personagem central. Ele estava retirado, havia muitos anos. Foi na verdade, o David Byrne, com a história de gostar da música brasileira e querer mostrá-la para o mundo, de uma forma especial, que o levou a voltar à cena. A partir do interesse de Byrne por Caetano, por Gil, por Tom Zé, e das aparições das canções do Tom Zé nas coletâneas de música brasileira de Byrne, nas resenhas nos jornais americanos, ele foi meio que compulsoriamente jogado de novo na vida profissional, convidado mesmo por esses eventos.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A jovem vizinha
Gilberto Gil
Pena que ela ache tão estranha minha maneira de ser
Ser do meu jeito, bem que ela queria
Pena que a vontade foi tão reprimida que não dá mais pé
Porque ela pensa que a culpa é minha
Da natureza ter espalhado a vida por aí
Mas tudo é só porque ela está sozinha
Com grilos e grilhões que a mãe deixou antes de sair
Às compras
Eu também gosto da mãe da vizinha
Pena que ela faça uma ideia tão errada de Jesus
Parece até que ela não adivinha
Que não foi exatamente por ser como ela é
Que o mestre foi parar na cruz
Que não foi exatamente por dizer o que ela diz
Que o mestre foi parar na cruz
Que não foi exatamente por fazer como ela faz
Que o mestre foi parar na cruz
Gravação
Sérgio Sá – Fora de prumo, 1984 – Warner Music
Baião / De onde vem o baião
Gilberto Gil
Debaixo do barro do chão da pista onde se dança
Suspira uma sustança sustentada por um sopro divino
Que sobe pelos pés da gente e de repente se lança
Pela sanfona afora até o coração do menino
Debaixo do barro do chão da pista onde se dança
É como se Deus irradiasse uma forte energia
Que sobe pelo chão
E se transforma em ondas de baião, xaxado e xote
Que balança a trança do cabelo da menina, e quanta alegria!
De onde é que vem o baião?
Vem debaixo do barro do chão
De onde é que vêm o xote e o xaxado?
Vêm debaixo do barro do chão
De onde vêm a esperança, a sustança espalhando o verde dos teus olhos pela plantação?
Ô-ô
Vêm debaixo do barro do chão
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gal Costa – Água Viva, 1978 – Philips
Luiz Caldas Trio Elétrico Tapajós – Cristal Liso, 1982 – Sunset Enretenimento
Gilberto Gil – Parabolicamará, 1991 – Warner Music
Elba Ramalho e Dominguinhos – Songbook Gilberto Gil, Vol. 1, 1992 – Lumiar Discos
Ito Moreno – De onde vem o baião, 1999 – Velas
Gilberto Gil – São João (Ao vivo), 2001 – Warner Music
Genaro & Walkyria – Forró N 1, 2004 – Atração
Cristina Amaral – Pérola Nordestina (Acústico), 2008 – Cristina Amaral [dist. Tratore]
Adriana Partimpim – Partimpim Tlês, 2012 – Sony Music
Orquestra de Sopros da Pro Arte e Flautistas da Pro Arte, Ituaçú – Gilberto Gil, 2012
Marcello Gonçalves e Daniela Spielmann – De onde vem o baião, 2013 – Kuarup Discos
Trio Nordestino – Trio Nordestino Canta Gilberto Gil, 2020 – Biscoito Fino
Nicolas Krassik – Estrela, Nicolas Krassik interpreta Gilberto Gil, 2021 – Gege
Comentário*
‘De onde vem o baião’ foi feita para a Anastácia. É uma canção sobre a energia telúrica que movimenta o moinho da criação musical nordestina; essas coisas que energizam o mundo poético, lírico, nordestino; essas imagens que vêm da natureza em geral e são transpostas para o espírito humano, assimiladas aos motores, aos fatores propulsores da alma criativa nordestina: o canto da ema, o mandacaru quando flora na seca, a plantação onde o verde dos teus olhos se espalha e esse barro do chão de onde vem o baião; uma canção sobre as forças deflagradas pela vivacidade rítmica do baião passando pelas pernas, pelos braços, pelas cabeças, pelos cabelos dos que dançam, dos que tocam, dos que cantam o baião; o baião como uma planta do agreste, uma coisa assim, o tal do baião.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
A gaivota
Gilberto Gil
De asas paradas
Voando no sonho
D’aguas da lagoa
Gaivota querida
Voa numa boa
Que o vento segura
Voa numa boa
Gaivota na ilha
Sem noção da milha
Ficou longe a terra
Gaivota menina
Gaivota querida
Voa numa boa
Que o alento segura
Voa numa boa
Gaivota, te amo e gaivotaria sempre em ti
Gaivotar seria poder te eleger para mim
Eu te quero, e se fosse o caso, quereria mais ainda
Ser, eu mesmo, gaivota sobre mim
Sobrevoar meus temores, meus amores
E alcançar o alto, alto, o mais alto dos teus sonhos
Dos teus sonhos de subir
De subir aos ares
Gaivota querida
Gaivota menina
Pousa perto de mim
Gravações
Ney Matogrosso – Bandido, 1976 – Continental
Gilberto Gil – O viramundo ao vivo, 1998 – Polygram
Gilberto Gil – E- collection disco 2, 2000 – Warner Music
Gilberto Gil – Série sem limite – cd 1, 2001 – Universal
Gilberto Gil – Refavela, 2002 – Warner Music
Gilberto Gil – Original álbum series (cd 4), 2012 – Warner Music
Ney Matogrosso – 70 anos, 2015 – Warner Music
Comentário*
Eu já tinha saído da cadeia propriamente dita, mas estava internado como determinação judicial, por causa da prisão por porte de maconha, em Florianópolis. Estava numa clínica, e as gaivotas eram muito presentes ali no dia-a-dia da gente; elas voavam sobre a Ilha e a Lagoa da Conceição, e um dia uma delas, voando, me inspirou a escrever uma canção.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Bacurizim
Gilberto Gil
De onde nascerá
O guri, o bacurizim
De onde nascerá
De onde virá bacurizim
Quixeramubim
No metrô de uma capital
Na metrópole
Em lugar do torrão natal
De onde nascerá
De que bucho esticadim
Nascerá meu bacurizim
Zim de Zezinho, som do z
Letra do alfabeto
Luz de uma estrela escondida
Cruz na memória gravada
Raio de um disco avistado
Pousado naquela estrada
Bacuri me-ni-na
Me-ni-no
Nuzinho no frio
Zezinho no frio
© Gege Edições Musicais
Gravação
MPB 4 – 4 Coringas, 1984 – Barclay
Bahia de todas as contas
Gilberto Gil
Rompeu-se a guia de todos os santos
Foi Bahia pra todos os cantos
Foi Bahia
Pra cada canto, uma conta
Pra nação de ponta a ponta
O sentimento bateu
Daquela terra provinha
Tudo que esse povo tinha
De mais puro e de mais seu
Hoje já ninguém duvida
Está na alma, está na vida
Está na boca do país
É o gosto da comida
É a praça colorida
É assim porque Deus quis
Olorum se mexeu
Rompeu-se a guia de todos os santos
Foi Bahia pra todos os cantos
Foi Bahia
Pra cada canto, uma conta
Pra cada santo, uma mata
Uma estrela, um rio, um mar
E onde quer que houvesse gente
Brotavam como sementes
As contas desse colar
Hoje a raça está formada
Nossa aventura plantada
Nossa cultura é raiz
É ternura nossa folha
É doçura nossa fruta
É assim porque Deus quis
Olorum se mexeu
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gal Costa – Baby Gal, 1983 – Philips
Comentário*
Interessantíssima essa imagem inicial. Não precisava mais nada… Ali há uma condensação de significâncias. A Gal também estava me pedindo uma música, e aí me veio essa imagem à cabeça: “Rompeu-se a guia de todos os santos”, imantada pelo sentido profundo do esparramar da Bahia pelo Brasil. A coisa das alas das baianas nas escolas de samba: nada é tão simbólico dessa egrégora que é a Bahia para o Brasil do que a ala das baianas. A ideia da letra parte daí. Quer dizer, a Bahia é o Brasil, como se o Brasil fosse resultante de um “esparramento” da Bahia por esse grande território. Não é por acaso; eu acho até que a sobreposição dos mapas da Bahia e do Brasil denuncia uma identidade. O mapa da Bahia é muito parecido com o mapa do Brasil. É o único território de estado brasileiro que reproduz o desenho do território nacional todo. Então na época isso foi mais um elemento na hora da composição que seguramente, eu me lembro claramente, também me ocorreu. O Brasil como uma dilatação da Bahia. Aí, claro, entra o elemento afro como centralidade na formação dessa Bahia mítica. É isto: tudo o que a gente já sabe que é, que foi e que será…
… A contribuição baiana pra civilização brasileira, privilegiando o aspecto doce, terno. — Exato.
“Nossa cultura é raiz/ É ternura nossa folha/ É doçura nossa fruta/ É assim porque Deus quis” soa como um ponto de convergência com “Toda menina baiana”. — Sim.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Back in Bahia
Gilberto Gil
Lá em Londres, vez em quando me sentia longe daqui
Vez em quando, quando me sentia longe, dava por mim
Puxando o cabelo
Nervoso, querendo ouvir Cely Campelo pra não cair
Naquela fossa
Em que vi um camarada meu de Portobello cair
Naquela falta
De juízo que eu não tinha nem uma razão pra curtir
Naquela ausência
De calor, de cor, de sal, de sol, de coração pra sentir
Tanta saudade
Preservada num velho baú de prata dentro de mim
Digo num baú de prata porque prata é a luz do luar
Do luar que tanta falta me fazia junto com o mar
Mar da Bahia
Cujo verde vez em quando me fazia bem relembrar
Tão diferente
Do verde também tão lindo dos gramados campos de lá
Ilha do Norte
Onde não sei se por sorte ou por castigo dei de parar
Por algum tempo
Que afinal passou depressa, como tudo tem de passar
Hoje eu me sinto
Como se ter ido fosse necessário para voltar
Tanto mais vivo
De vida mais vivida, dividida pra lá e pra cá
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Expresso 2222, 1972 – Polygram
Gilberto Gil – O Viramundo ao vivo (cd 1), 1976 – Polygram
Gilberto Gil e Rita Lee – Refestança, 1977 – EMI Records Brasil
Wanderléa – Maravilhosa (ao vivo), 2014 – Coqueiro Verde
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois amigos, um século de música, 2015 – Uns Produções e Gege
Barão Vermelho – Songbook Gilberto Gil – vol 2 – Lumiar Discos 2015
Gilberto Gil – Back in Bahia – ao vivo (1972), 2017 – Discobertas
Gilberto Gil – Umeboshi – ao vivo (1973), 2017 – Discobertas
Comentário*
Era o primeiro verão na Bahia depois que eu tinha voltado de Londres, e eu fui à festa de Nossa Senhora da Conceição em Santo Amaro da Purificação. Eu estava na casa onde Canô, mãe de Caetano, estava dando a festa; vendo as pessoas queridas e a alegria que emanava delas, da lembrança da saudade que eu sentia dessas e outras coisas em Londres veio o impulso para escrever a canção — que eu comecei ali, letra e música juntas, de cabeça, e complementei no dia seguinte, já na casa de Sandra, na Graça, em Salvador. “Back in Bahia” se baseia em motivos musicais muito íntimos, nordestinos — improviso, embolada, galope, martelo —, e em modos cordélicos, com rimas rítmicas [e também internas], típicas do versejar nordestino, e versos simétricos [quase todos de dezesseis sílabas]: entre eles, o “De vida mais vivida, dividida pra lá e pra cá”, de que eu mais gosto: poesia pura, concreta, como o “Fazer o canto, cantar o [cântaro] cantar”, em “Palco”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Babylon
Gilberto Gil
Jorge Mautner
First time I came to Babylon
I felt so lonely
I felt so lonely and people came along
To mistreat me
Calling me so many names in the streets
And I was so shy
That I began to cry
But now
I am so proud
Of whatever should be
Cause I have a silver knife
And my lover is Satan’s wife
And I don’t care
If you don’t dare see
© Gege Edições Musicais / © Direto
A força secreta daquela alegria
Gilberto Gil
Jorge Mautner
Que me olha tão aflita
Que roseira bonita
Que me olha tão aflita
Pela chuva que não vem
Corro, pego o regador
Ela me olha com amor
Sabe o que lhe convém
Sabe o que lhe convém
Às vezes falo ao acaso
Com a samambaia de um vaso
Em cima da janela olhando a baía
Em cima da janela olhando a baía
Usamos telepatia
Falamos da vida
Sobre os amores das flores
E a força secreta daquela alegria
A fogueira
Gilberto Gil
A família no caminhão
Gilberto Gil
Capinan
Caetano Veloso
[instrumental]
“Brasil ano 2000”, FORMA/CIA 1969
A existência do sol
Gravação
Gilberto Gil – Um trem para as estrelas (filme de Cacá Diegues, 1987) – Globo/Som Livre