Músicas
Giro
Gilberto Gil
Giro, giro, giro, giro, giro, giro
Acho que só vou parar quando o dia
Quando o dia de manhã
Também quem mandou chegar na bahia
Ter que receber nanã
Quem mandou comer mais uma fatia
De bolo de carimã
Acho que era neste axé que eu queria
Me tornar menina irmã
Giro, giro, giro, giro, giro, giro
Giro, giro, giro, giro, giro, giro
Giro, giro, giro, giro, giro, girou
Tudo girou
Mundo girou
Me segura rapaz
Viro, viro, viro, viro, viro, viro
Viro, viro, viro, viro, viro, viro
Hoje tá virando amor de verdade
Desse que vem pra ficar
Hoje tá brilhando o sol na cidade
No sonho do orixá
Hoje tou matando aquela saudade
Que me trouxe até aqui
Hoje não tem nada pela metade
Bolo inteiro só pra mim
Viro, viro, viro, viro, viro, viro
Viro, viro, viro, viro, viro, viro
Viro, viro, viro, viro, viro, virou
Tudo virou,
Mundo virou,
Me segura rapaz
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
“Giro” é a primeira música que fiz para o disco da Roberta Sá. Não era ainda nem pro disco, eu fiz pra ela e pensando nela como personagem, como cantora, como agente cultural, como fator de interligação entre as culturas nordestinas várias e a Bahia; como uma das mais significativas desse conjunto. É sobre ela chegando à Bahia e se encantando com o candomblé. É a conversão dela: ela se torna adepta da religião, do conjunto de crenças e dos orixás. Uma conversão cultural ensejada pelo deslumbramento, encantamento, compartilhamento, que essa conversão propicia — com tantas outras cantoras, cantores, autores, de todo o cancioneiro amplo, vasto, que tem a Bahia como tema. “Dá licença, dá licença, meu senhor”, Denis Brean.
Denis Brean, de Campinas, um dos paulistas que se encantaram. — Como mineiros como Ari Barroso, e por aí vai. É a Roberta aderindo a esse campo da dimensão profundamente cultural da religiosidade afro. Ela, que descobriu o orixá dela, Xangô, na santeria. Com um pai de santo cubano; não foi no candomblé.
“Giro” acabou dando nome ao disco dela, um trabalho que consistiu numa parceria de vocês. E o termo resulta, coincidentemente, da junção das duas primeiras letras dos seus nomes. — Sim: Gi-Ro. Foi ela quem sacou. Gil e Roberta.
Ela canta muito bem, tem um jeito muito interessante, uma capacidade muito grande de apreensão dos modos brasileiros. É uma grande cantora. E além disso tem o lado de compositora, que ela cultiva também — com parcimônia, com modéstia, mas cultiva.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Gimme your love
Gilberto Gil
Liminha
Make me move, baby
Gimme your love
Cause your love is paradise
Just as sweet as my reggae
Gimme your love
Make me move, baby
Gimme your love
Cause your love is like a prize
Just as rich as my reggae
So, baby, get up
Hurry up, hurry up
Don’t be too late, I’m gonna wait
Until you catch me up
Hurry up, hurry up
I guess when fate is great
We bite the bate, I won’t give up
Hurry up, hurry up
Today I’m gonna be your date
You better hurry up
Hurry up, hurry up
The reggae beat will beat
Until we meet and celebrate
Gimme your love
Make me move, baby
Gimme your love
Love has taken by surprise
Just as much your heart as mine
Gimme your love
Make me move, baby
Gimme your love
Now we gotta sincronize
Just your love and my reggae
Gimme your love
Make me move, baby
Gimme your love
We shall follow destiny
Just as true as truth can be
Gilbertos
Gilberto Gil
E a cada vinte e cinco um aprendiz
Aparece a cada cem anos um mestre da canção no país
Aparece a cada cem anos um
E a cada vinte e cinco um aprendiz
Foi Dorival Caymmi quem nos deu
A noção da canção como um liceu
A cada cem anos um verdadeiro mestre aparece entre nós
E entre nós alguns que o seguirão
Ampliando-lhe a voz e o violão
É assim que aparece mestre João
E aprendizes professando-lhe a fé
Um Francisco, um Caetano algum Roberto e a canção foi mais feliz
Gravação
Gilberto Gil – Gilbertos Samba, 2014 – Gege
Gilberto Gil – Gilbertos Samba (Ao Vivo), 2014 – Gege
Comentário*
A canção foi feita pra dar conta do profundo afeto e reconhecimento da maestria de João — nesse caso, como discípulo de Caymmi; ele próprio deixando vários discípulos, uma sucessão.
“A cada 25 anos aparece um mestre” é uma frase de Caymmi, num comentário sobre mim para um livro do fotógrafo Mario Luiz Thompson, que fez vários retratos de artistas e publicou um livro com as fotos. E a frase acabou sendo um pretexto para eu atribuir essa periodicidade de 25 anos aos discípulos e um centenário aos mestres. Já que ele tinha dito que alguém como eu aparecia de 25 em 25 anos, então alguém como ele — mestre maior — só apareceria de cem em cem.
A propósito de falar do João, você acaba falando do Caymmi, o que é natural. — Natural, tem tudo a ver, levando-se em conta o fato de que é considerável a noção de João como discípulo de Dorival e de nós todos, outros — Chico, Caetano, Roberto —, como discípulos de João. É essa ideia de sucessão, a ideia do liceu. Liceu de artes e ofícios.
Você tinha em mente fazer uma canção para o álbum em homenagem ao João, com o repertório dele? — Sim: fazer uma canção que desse conta do sentido do título do álbum, dos Gilbertos juntos. A ideia, a princípio, era a de botar o nome João Gilberto Gil; depois eu resumi pra Gilbertos. E ainda dei um toque de língua inglesa com Gilbertos Samba. O que dava uma chave mais próxima para eles entenderem o conceito do disco.
Sobre João. — Eu não tocava violão. Tocava acordeom. Só tive coragem de pegar no violão quando eu ouvi João. O violão me afastava. Eu tinha as questões da decifração das chaves, dos signos do violão. Tinha uma dificuldade enorme de aproximação. Não entendia o instrumento. Eu pegava num violão e não entendia nada. Nenhuma afinidade. Quando eu ouvi “Chega de saudade”, aí eu disse: “Minha mãe, me dê um violão!”. Ela me deu dinheiro, e eu fui comprar o violão. Aí, pronto, foi com ele que eu vim a compor: “Se você disser que ainda me quer, amor,/ Eu vou correndo lhe abraçar./ Seus beijos, seus carinhos vivo a procurar” [“Felicidade vem depois”, de 1962]. Minha primeira música, primeira canção. Bem bossa nova, bem João.
Ele é o terceiro mestre: Gonzaga, Caymmi, João. Aí depois vêm os outros todos. Que vão fazendo esse papel duplo de colegas, discípulos e mestres.
Do título da canção. — Eu fui me tornando cada vez mais devoto dele, cada vez mais atento, cada vez mais cioso de uma relação indissociável com ele. E ainda havia o fetiche do nome. Lá nos cantinhos da emoção artística, musical, tinha essa parceria no nome Gilberto em comum. Isso estava dentro de mim havia muito tempo. Até que, por causa do longo trabalho feito, por causa das consequências do longo ensinamento obtido através dele, eu tomei coragem de associar o meu nome ao dele artisticamente numa canção, acrescendo o s ao Gilberto, no título.
Na abertura de “Aquele abraço”, você dedica o samba a “Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano Veloso”. Você tem o Caetano como mestre também? — Sim, claro. Ele tem a dupla função, no meu caso, de ser um dos mestres e um dos colegas discípulos. Sem ele não haveria despertado em mim a possibilidade de escrever, de fazer canções num sentido mais amplo. Através dele eu cheguei a uma ideia mais ampla de canção popular, a uma ideia mais ampla de poesia, a uma ideia mais ampla de cinema como arte reveladora da dimensão moderna do mundo. Sem ele isso não teria sido possível. Eu até tenho dúvidas se eu teria mesmo me profissionalizado como músico. Com as digressões que eu já fazia com a universidade, a empresa, a indústria, o mundo empresarial, talvez eu tivesse derivado definitivamente pra uma coisa qualquer desse campo. Mas com Caetano — com tudo o que ele significou no encontro na Bahia, com a aglutinação que ele propiciou com todos os outros, o “Nós, por exemplo” — se desencadeou a possibilidade de eu ter uma alternativa de caminho meu [na música, na arte], que acabei adotando e seguindo.
Na letra de “Gilbertos”, entre os aprendizes emblemáticos colegas seus, você cita Chico, Caetano e também Roberto; o cantor que ele é, de fato, é muito tributário do João. — Sem dúvida. Como eu comecei a tocar violão por causa do João, Roberto começou a cantar por causa do João. Ele ia pra boate do Plaza, em Copacabana, cantar João Gilberto. Aí eu achei de bom propósito, de bom alvitre, colocar o nome dele nessa canção. Claro que cabem ali muitos outros, mas aí eu peguei logo dois que são gilbertianos confessos em todos os sentidos no exercício da música, que são Caetano e Chico, e Roberto, cuja relação profunda com João é menos conhecida. E, no meu caso, já estou ali no próprio nome da canção.
Por fim o último verso, carregado de significado: “E a canção foi mais feliz”. Porque com João e a bossa, a canção brasileira felicitou-se. — Exatamente. Alçou-se a uma dimensão mais ampla, mais etérea. Propiciou as possibilidades de chamar o mundo da felicidade para compartilhar do cotidiano, sofisticou a poética do mundo da felicidade. Foi através de João que isso foi possível. Uma revelação pra nós e pro mundo.
As canções de amor não eram positivas como as bossa-novistas, um estilo em que não prevalecem canções de amor tristes, de amor frustrado; abre-se uma porta diferente que dá para um campo iluminado. — É claro. Que vai além da Dolores Duran…
Do Antônio Maria… — Antônio Maria… A chamada “canção de fossa”. — Fossa.
Mautner não gosta desse nome, não. — Mas é compreensível que se tenha adotado esse nome.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Gema clara
Gilberto Gil
Fui dura
Virei fera
Pantera
Tigreza
Raça pura
Tomara
Que agora
Cê me queira
Formiga
Frutinha
Formosura
Primeiro, foi necessário lhe convencer
Da força da mulher, da paixão
Agora, pelo contrário, vim lhe trazer
Paz e sossego pro coração
Primeiro
Fiz você
Ficar louco
Agora
Vou lhe dar
Muita calma
Loucura
Fui amor
Para o corpo
Agora
Serei luz
Para a alma
O corpo-gema, o sol me deu pra mim lhe dar
Um diadema de ouro de Oxum
A alma clara, a mansa luz vem do luar
Na noite odara sem medo algum
Geléia geral
Gilberto Gil
Torquato Neto
E a manhã tropical se inicia
Resplandente, cadente, fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira
Que o “Jornal do Brasil” anuncia
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
A alegria é a prova dos nove
E a tristeza é teu porto seguro
Minha terra é onde o sol é mais limpo
E Mangueira é onde o samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem
Pindorama, país do futuro
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
É a mesma dança na sala
No Canecão, na TV
E quem não dança não fala
Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala
As relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada
Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano
Superpoder de paisano
Formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela
Carne-seca na janela
Alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade
Hospitaleira amizade
Brutalidade jardim
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
Plurialva, contente e brejeira
Miss linda Brasil diz “bom dia”
E outra moça também Carolina
Da janela examina a folia
Salve o lindo pendão dos seus olhos
E a saúde que o olhar irradia
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
Um poeta desfolha a bandeira
E eu me sinto melhor colorido
Pego um jato, viajo, arrebento
Com o roteiro do sexto sentido
Voz do morro, pilão de concreto
Tropicália, bananas ao vento
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
Gravações
Gilberto Gil – Tropicália Ou Panis Et Circensis, 1968 – Philips
Gilberto Gil – Quilombo, 1984 – Warner Music
Daniela Mercury – Daniela Mercury, 1991 – Daniela Mercury
Assucena, Liniker, Letrux e Josyara – Biscoito Fino, 2023 – Biscoito Fino
Patrícia Ahmaral – Patrícia Ahmaral canta Torquato Neto, 2023 – Patrícia Ahmaral [dist. Tratore]
Ganga Zumba (O poder da bugiganga)
Gilberto Gil
Waly Salomão
Repica, repica, repica agogô
Tumba Lelê, beber aluá
Se lambuzar na tigela daquele amalá
Toda Palmares recorda da primeira vez
Ganga Zumba dançou alujá
Toda cantiga trovoa, seu eco ecoa
Na voz da Serra da Barriga
Vem, Acotirene, dona do segredo
Ialorixá que chama Ganga Zumba
Lhe oferece o trono da fartura
Toda a formosura e o poder da bugiganga
Fontes e mais fontes
Potes e mais potes
O céu na terra é Aruanda
É assim Palmares
Palmas pelos ares
Cante e dance e abra a roda
Acaiúba, Namba, Canindé
Ana de Ferro, mulher-dama linda da Holanda
Ganga Zumba reina, nunca teve medo
Seu segredo está no raio da justiça
Nunca é permitido mentir
Sempre abençoado o amor
Desejo doido, beber otim
Festejo d’Oxum, d’Obá, d’Oiá
Todo vaso quebra
Toda bugiganga se espedaça
Toda graça lhe abandona
Ganga Zumba desce da montanha
Com veneno na entranha
Acaba a sua zanga
Ganga Zumba morre
E a lenda corre
Pelo reino de Aruanda
Nunca é permitido esquecer
Sempre dá no jogo de Ifá
Qual o rei que vai suceder
Salve o reino d’Aruanda
Futurível
Gilberto Gil
Seu segundo estágio de humanóide hoje se inicia
Fique calmo, vamos começar a transmissão
Meu sistema vai mudar
Sua dimensão
Seu corpo vai se transformar
Num raio, vai se transportar
No espaço, vai se recompor
Muitos anos-luz além
Além daqui
A nova coesão
Lhe dará de novo um coração mortal
Pode ser que o novo movimento lhe pareça estranho
Seus olhos talvez sejam de cobre, seus braços de estanho
Não se preocupe, meu sistema manterá
A consciência do ser
Você pensará
Seu corpo será mais brilhante
A mente, mais inteligente
Tudo em superdimensão
O mutante é mais feliz
Feliz porque
Na nova mutação
A felicidade é feita de metal
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1969), 1969 – Universal Music
Gilberto Gil – Concerto de cordas e máquinas de ritmo, 2012 – Biscoito Fino
Comentário*
Em relação às perspectivas de um “mundo novo” e suas implicações, diferentemente de “Lunik 9”, que reagia contrariamente a elas, “Cérebro eletrônico” já as admitia, mas com certa ironia; ali, o homem diz para o computador: “Tudo bem você, mas eu sou mais eu” (o que, aliás, é o pressuposto básico da cibernética e continua sendo o pressuposto do que está a serviço do homem, as novas inteligências artificiais colocadas sob o controle da inteligência original, a humana, a dos neurônios).
“Futurível” vai além, ao ponto de propor um futuro possível (futurível: mais uma vez, o procedimento concretista). O eu da música é o cientista detentor da tecnologia (ou o extraterreno mais avançado) falando para o homem comum (a cobaia…) do teste de iniciação aos novos tempos a que ele será submetido, nesses termos: “Olha, você está sendo trazido pra um novo estágio de humanidade, mas não se preocupe, isso é muito natural”.
Outro dia eu estava lendo uma entrevista com o Buckminster Fuller que o Arnaldo Antunes me mandou, onde ele, respondendo a várias questões relativas a tecnologia e ecologia, dizia: “Não temos com o que nos preocupar, não; nós vamos virar náilon mesmo”. Ele elabora uma trança de pensamentos para chegar a isso. Então, não tem muito jeito — por mais reativo que a gente seja a essas ideias, elas estão em andamento, em processamento.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Funk-se quem puder
Gilberto Gil
É imperativo dançar
Sentir o ímpeto
Jogar as nádegas
Na degustação do ritmo
Funk-se quem puder
É imperativo tocar
Fogo nas vértebras
Fogo nos músculos
Música em todos os átomos
A nossa atlântica e atlética
Romântica e poética
República da música
Conclama os físicos, místicos
Bárbaros, pacíficos
Índios e caras-pálidas
Nossos exércitos, políticos
Poder eclesiástico
E o comitê do carnaval
É hora de salvar a pélvis
Soltá-la, libertá-la
Agitá-la como o Elvis
Grande guerreiro e mártir
Da nação do rock’n’roll
Funk-se quem puder
Se é hora da barca virar
Não entre em pânico
Jogue-se rápido
Nade de volta à mãe África
Funk-se quem puder
Se é tudo que resta a fazer
Não perca o ânimo
Chegue mais próximo
Sambe e roque-role o máximo
Na degustação do ritmo
Música em todos os átomos
Nade de volta à mãe África
Sambe e roque-role o máximo
Gravações
Gilberto Gil – Extra, 1983 – Warner Music
Myrian Eduardo – Sentidos, 1996 – Myrian Eduardo
Cacala Carvalho e João Braga – Cada tempo em seu lugar, 2012 – Zênitha Música [Dist. Quae]
Comentário*
“Funk-se quem puder” era para dar qualificação ao funk e a tudo o que ele significa, tudo que vem com ele como cultura: o funk como música, como diversão, como catarse, como revolução, como libertação; o mundo da música funk e seus símbolos adicionais. O recado era: “Há uma salvação, você pode se salvar, salve-se quem puder; há uma válvula de escape: o funk”. Então, funk-se quem puder: vamos dançar para não dançar.
A terceira estrofe [formada pela longa série de proparoxítonas] parece uma procissão tropicalista daquelas encenadas por Zé Celso ou por Glauber Rocha: um auto encenado, um auto de graças tropicalistas pagão.
A quinta estrofe [com o verso “Se é hora da barca virar”] faz uma leve referência, de passagem, ao Brasil daquele momento; ao clima generalizado de descrença com relação ao futuro que imperava e a um possível futuro auspicioso para o país. Como se, o barco — o Brasil — afundando, fosse possível se jogar no mar e sair nadando de volta à África para sobreviver ao naufrágio.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Emoriô
Gilberto Gil
João Donato
Ê, emoriô
Emoripaô
Emoriô deve ser
Uma palavra nagô
Uma palavra de amor
Um paladar
Emoriô deve ser
Alguma coisa de lá
O sol, a lua, o céu
Pra Oxalá
Gravações
João Donato – Lugar Comum, 1975 – Philips
Fafá de Belém – Fafá de Belém, 1975 – Universal Music
Sandra de Sá – E-collection, 1998 – Warner Music
Gilberto Gil e BaianaSystem – Gil Baiana Ao Vivo em Salvador, 2020 – Gege e Máquina de Louco
Comentário*
‘Emoriô’ é uma exclamação. Nos Filhos de Gandhi a gente canta: ‘Emoriô, emoripaô, emoriô babá’. Na verdade, ao fazer a música, e durante esse tempo todo, até hoje, eu nunca tive muita curiosidade – deveria ter tido – de saber o que o termo, de língua africana, provavelmente de origem nagô mesmo, significa. É um canto, entre outros tantos cantos que se cantam no Gandhi e que estão associados diretamente ao candomblé. Uma expressão própria do mundo religioso afro-baiano.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Frevo rasgado
Gilberto Gil
Bruno Ferreira
Que a coisa virou confusão
No salão
Porque parei, procurei
Não encontrei
Nem mais um sinal de emoção
Em seu olhar
Aí eu me desesperei
E a coisa virou confusão
No salão
Porque lembrei
Do seu sorriso aberto
Que era tão perto, que era tão perto
Em um carnaval que passou
Porque lembrei
Que esse frevo rasgado
Foi naquele tempo passado
O frevo que você gostou
E dançou e pulou
Foi quando topei com você
Que a coisa virou confusão
No salão
Porque parei, procurei
Não encontrei
Nem mais um sinal de emoção
Em seu olhar
A coisa virou confusão
Sem briga, sem nada demais
No salão
Porque a bagunça que eu fiz, machucado
Bagunça que eu fiz tão calado
Foi dentro do meu coração
Porque a bagunça que eu fiz, machucado
Bagunça que eu fiz tão calado
Foi dentro do meu coração
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1968), 1968 – Philips
Claudette Soares – Gil, Chico e Veloso por Claudete Soares, 1968 – Philips
Rogério Duprat – A Banda Tropicalista do Duprat, 1968 – Philips
Som Três – Som Três Show, 1968 – EMI Records Brasil
Caetano e Gil – Barra 69, 1972 – Universal Music
Elba Ramalho – Arquivo II, 2000 – Nova Estação
Comentário*
Bruno Ferreira, filho do Abel Ferreira – o grande clarinetista, saxofonista e compositor –, era jovem músico – violonista também – de formação erudita. Na época, ainda estava se formando. Depois, ele se tornou regente da Orquestra Sinfônica da Universidade da Paraíba. Agora o nome dele é Leonardo Bruno. As últimas notícias que tive dele, em 2002, davam conta de que estava trabalhando com orquestra na Universidade do Espírito Santo, lecionando nas áreas de regência e composição, e também com um coral em Petrópolis. Bruno fez parte da música de ‘Frevo Rasgado’ – pequenos trechos da composição – comigo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Fox no mercado
Gilberto Gil
Gravação
Vários – Um trem para as estrelas, 1987 – Som Livre
Ella
Gilberto Gil
Carol Rogers
Eu vivo o tempo todo com Ella
Ella
Eu vivo o tempo todo pra Ella
Through the magic night
She’s my guiding light
Her love glows like a fire deep in my heart
Everywhere that I go
Her name seems to follow singing
Ella
Ella que me faz um navegador
Ella
Ella que me faz um navegador
[ Ela, de Gilberto Gil ]
Gravação
Gilberto Gil – Nightingale, 1978 – Elektra
For a hungry man
Gilberto Gil
There is no great appeal in God
For a hungry man
There is no being good
For a hungry man
Everybody is bad
For a hungry man
Every dream is dread
For a hungry man
The only thing is food
For a hungry man
There is no great deal in life
For a hungry man
There is nothing he could
But to be alive
As if already dead
But to see a stone
And want it to be bread
For a hungry man
The only thing is food
Fogo líquido
Gilberto Gil
A mania de queimar
O que é bom e o ruim
Meu fogo vem
Do meu modo de esfregar
Todas as partes de mim
Seja paixão
Seja o que você quiser
Meu fogo existencial
É a combustão
Da razão do meu viver
Na chama do irracional
O coração
Risca o fósforo do ardor
E a dor se inflama voraz
Consumição
Numa fogueira de amor
De gralhos secos da paz
Bem mais pra lá
Do distante azul do céu
Na escuridão total
Se encontrará
Meu destino junto ao seu
Nas mãos de Deus, afinal
Gravação
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Comentário*
Sobre viver requerer fogo: a gente morre quando perde o fogo; esfria. — Exatamente.
A letra já começa falando do fogo como resultado da fricção das partes da pessoa. — “Todas as partes de mim”. E aí vem uma tentativa de explicação. “Seja paixão/ Seja o que você quiser/ Meu fogo existencial/ É a combustão/Da razão do meu viver/Na chama do irracional”. Essa química ou alquimia, essa condição físico-química do fogo, do arder, porque alguma coisa arde; o fogo existencial, a razão de viver, ardendo na chama do irracional. É interessante isso.
Interessante também a entrada inesperada de uma segunda pessoa no final. Um interlocutor a quem a música está sendo endereçada. Mas é como se endereçada a um vago, a uma vaga amorosa, um vago amor. Um amor a ninguém. — Não transitivo. Um amor a alguém ninguém.
Nem transitivo direto, nem indireto. Intransitivo. — Intransitivo. Amor por esse segundo personagem que entra ali.
“Na escuridão total/ Se encontrará/ Meu destino junto ao seu/ Nas mãos de Deus, afinal”. — Onde todos nos encontraremos. É isso. É um ninguém todos. Um alguém todos ninguém. Ninguém todo mundo. É essa coisa louca, maluquice.
E esse “Meu destino junto ao seu” é algo que retorna depois, no final também, em “Quatro pedacinhos”, com o verso “Por ter juntado o meu destino ao seu”.
Alguns compositores como você, usando da linguagem da canção popular, a partir de um momento da história, sobretudo dos anos 1960, vão se permitir criações que têm um pé no popular, mas também se abrem para o que é simplesmente artístico. — Independentemente de serem de alta ou baixa cultura, abrem-se pra algo menos imediatamente comunicável. Mais filosofal. Meu trabalho é muito permeado por isso, é quase que caracterizado basicamente por isso. É a característica principal do meu trabalho, da relação palavra-som-palavra-som, juntar formas de canção, de cancionetar, do cancioneiro popular, com assuntos variados que vão desde os corriqueiros, banais, do romantismo comum, até isso — até a ousadia filosofante. Minha obra é muito isso.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Eleve-se alto ao céu (Lively up yourself)
Gilberto Gil
Robert Nesta Marley (Bob Marley)
Você que eleve-se alto ao céu
Com seus pés no chão
Eleve-se alto ao céu
Que o reggae é o dono do salão
Você que eleve-se alto ao céu
E não diga não
Você que eleve-se alto ao céu
Em afirmação
Que que cê fez então
Cê faz assim, faz assim
Como nunca fez em mim
Cê que sobe assim, desce assim
Dança pra mim
Cê vem assim, vai assim, assim
Skanka assim, skanka assim
Skankaradamente
Você que eleve-se alto ao céu
Não diga não
Você que eleve-se alto ao céu
Assim diz o papaizão
Eleve-se alto ao céu
Com seus pés no chão
Você que eleve-se alto ao céu
Que o reggae é o dono do salão
Gravações
Gilberto Gil – Kaya N’Gan Daya, 2002 – Warner Music
Gilberto Gil – Kaya N’Gan Daya (Ao vivo), 2003 – Warner Music
Comentário*
Do emprego, em versões, de termos em português que remetem sonoramente às palavras correspondentes em inglês – Este é um recurso que eu gosto de usar em versões, principalmente de canções muito emblemáticas, nas quais a sonoridade de termos-chave já se universalizou: todo mundo já ouve aquele som internamente, o som da palavra já está muito impregnado na lembrança da canção. Em ‘Não chore mais’, a versão de ‘No woman, no cry’, eu aplicava isso [usando ‘mais’ no lugar de ‘cry’ para explorar a semelhança fônica entre ‘ais’ e ‘ai’, no refrão], mas com menor intensidade. No caso da versão de ‘Lively up yourself’, eu fiquei meses à procura da solução para o verso que iniciava a canção, à qual eu cheguei um dia de manhã, quando eu estava na Cicília, ao acordar.
Eu já havia tentado outras fórmulas, tinha comigo as anotações de pelos menos duas, que na verdade não satisfaziam. Até que naquela manhã me ocorreu o ‘leve-se/ eleve-se’, a ideia de usar a dupla opção alternadamente, ‘Leve-se alto ao céu’ e ‘Você que eleve-se alto ao céu’, da mesma forma que o Marley alterna “Lively up yourself” e “You’re gonna lively up yourself’, acrescentando alguma coisa antes, no início do verso. Com isso, eu tentei me aproximar sonoramente do original e cobrir semanticamente dois sentidos: o de alçar-se, com ‘eleve-se’, e o de peso, com ‘leve-se’, uma forma com uma sílaba a mais. Para completar, no final do verso eu emprego ‘céu’ em correspondência sonora a ‘self’, de ‘yourself’. A recriação dessa frase é talvez a melhor solução que eu já tenha dado para uma versão de letra de música.
No caso da versão de ‘Kaya’, a utilização do termo homófono em português – a forma verbal ‘caia’ – é mais direta. A transposição da letra original não demandava tanta modificação, as palavras foram surgindo bem naturalmente. Alguma coisa especial nela talvez seja a reconstituição, na segunda parte, do trecho que faz menção à comunidade [‘neighborhood’; a versão sugere nessa passagem uma alusão ao ato de fumar maconha, ‘kaya’, em roda]: na verdade a comunidade de afeto, com o compromisso com a paz, ligada por uma linha ideológica pacifista e de traço nitidamente hippie.
A propósito de ‘Tempo só’, a versão apenas do estribilho de ‘Time will tell’, se afastar do sentido do trecho correspondente no original – Meu objetivo foi me deslocar do tom condenatório, de julgamento, que o texto em inglês adquire no trecho (literalmente: ‘Você pensa que está no céu, mas vive no inferno’), um traço extremamente maniqueísta (bem/mal, céu/inferno), de implicação salvacionista, da letra, que eu desloquei para um plano mais suave.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Eles
Gilberto Gil
Caetano Veloso
A vida começa no ponto final
Eles têm certeza do bem e do mal
Falam com franqueza do bem e do mal
Crêem na existência do bem e do mal
O florão da América, o bem e o mal
Só dizem o que dizem, o bem e o mal
Alegres ou tristes, são todos felizes durante o natal
O bem e o mal têm medo da maçã
A sombra do arvoredo, o dia de amanhã
Eis o que eles sabem, o dia de amanhã
Eles sempre falam no dia de amanhã
Eles têm cuidado com o dia de amanhã
Eles cantam os hinos no dia de amanhã
Eles tomam o bonde no dia de amanhã
Eles amam os filhos no dia de amanhã
Tomam táxi no dia de amanhã
É que eles têm medo do dia de amanhã
Eles aconselham o dia de amanhã
Eles desde já querem ter guardado
Todo seu passado
No dia de amanhã
Não preferem São Paulo nem o Rio de Janeiro
Apenas têm medo de morrer sem dinheiro
Eles choram aos sábados pelo ano inteiro
E há só um galo em cada galinheiro
E mais vale aquele que acorda cedo
E farinha pouca, meu pirão primeiro
E na mesma boca sempre o mesmo beijo
E não há amor como o primeiro amor
Como o primeiro amor, que é puro e verdadeiro
E não há segredo e a vida é assim mesmo
E pior a emenda do que o soneto
Está sempre à esquerda a porta do banheiro
E certa gente se conhece no cheiro
Em volta da mesa
Longe da maçã
Durante o natal
Eles guardam o dinheiro
O bem e o mal
Pro dia de amanhã
Gravação
Caetano Veloso – Caetano Veloso, 1967 – Philips
Fogo de Palha
Gilberto Gil
Ou vai virar paixão
Não me deixe só agora
Segure a minha mão
Que a sanfona tá chorando
E a lua clareando a nossa união
Se a paixão não pega
É o amor que pega sim
Mesmo que “cê” vá embora
O xodó nunca tem fim
Sempre há de chegar a hora
De ver você de novo aqui no meu jardim
É assim com todo mundo
Com nós dois também será
Quando o amor é verdadeiro
Quando o afeto é bem sincero
Não há como se livrar
Mesmo se e fogo de palha
O bicho quando se espalha
Tudo em volta vai queimar
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
O tema também já foi proposto pela Roberta Sá [a exemplo do que ocorreu em “Cantando as horas”, outra parceria de Gil com Roberta, e de outras canções feitas para o álbum Giro]. Ela escreveu até “E a lua clareando a nossa união”; música e letra. Eu peguei daí em diante. Fui pegando o mote da música e também a métrica versificante que ela tinha proposto e fiz todo o resto. Mas o título “Fogo de palha” e tudo mais já veio dela, sugerido já na primeira estrofe. É bem um xote bem clássico. Roberta é potiguar, tem afinidade absoluta com isso [embora tenha ido para o Rio adolescente ainda]. E tem ampliado seu interesse por todos os gêneros brasileiros — baianos, mineiros, paulistas, cariocas etc. Mas a origem dela é nordestina.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Flecha ao alvo
Gilberto Gil
Gravação
Vários – Brasil Ano 2000, 1969 – Universal Music
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
Flora
Gilberto Gil
Frondosa toda a folhagem
Multiplicada a ramagem
De agora
Tendo tudo transcorrido
Flores e frutos da imagem
Com que faço essa viagem
Pelo reino do teu nome
Ó, Flora
Imagino-te jaqueira
Postada à beira da estrada
Velha, forte, farta, bela
Senhora
Pelo chão, muitos caroços
Como que restos dos nossos
Próprios sonhos devorados
Pelo pássaro da aurora
Ó, Flora
Imagino-te futura
Ainda mais linda, madura
Pura no sabor de amor e
De amora
Toda aquela luz acesa
Na doçura e na beleza
Terei sono, com certeza
Debaixo da tua sombra
Ó, Flora
Gravações
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
Gilberto Gil – Ao Vivo em Tóquio, 1982 – Warner Music
Elis Regina – Trem Azul, 1982 – Som Livre
Comentário*
[Para Gil, seria difícil não aproveitar a sugestão poética de um nome tão bonito] para expressar todo um afeto a partir de uma “[…] viagem pelo reino do teu nome”. Eu não resisti. Assim, os elementos e as imagens da canção são todos extraídos do reino vegetal. “Flora” é como se eu penetrasse no bosque para encontrar a fada.
Das relações entre música e números e do gosto pela composição dividida em três partes, com sua justificativa. — Fiz as duas primeiras partes [cada parte dividida, na presente transcrição, em duas estrofes] num dia e, insatisfeito com isso, fiz no outro a terceira, que me satisfaz menos. Aquelas são muito profundas, densas, e a última mais diluída, ornamental — ficou como se fosse de presente pra ela, Flora. Ainda assim achei melhor mantê-la, pela minha mania do três; pela ideia de síntese que o número três dá. Às vezes duas partes são suficientes, mas em geral eu prefiro colocar mais uma, para promover dois deslocamentos semânticos entre as unidades — um, da primeira para a segunda, e outro, da segunda para a terceira. Quer dizer: três (partes) pra dois (movimentos).
Música-anzol. — Era o verão de 79. Ela estava passando férias em Salvador. Eu a tinha conhecido um mês antes, e nós ainda não namorávamos. Telefonei para um amigo comum. “Diga que eu quero vê-la, que vou estar no Teatro Vila Velha entre quatro e seis da tarde. Tenho uma coisa pra mostrar a ela.” Quando ela chegou, eu cantei a música.
“Flora” foi portanto uma cantada literal. Cantei Flora na canção e com a canção. É minha única canção-cantada; que bom que tenha ficado suficiente em beleza e elegância. A alma exigia capricho: o sentimento era intenso, e o desejo, de uma relação durável. O que eu cantava não era só uma pessoa, mas toda uma vida com ela. Na letra eu já a imagino “idosa”, “bela senhora”, “futura”. Elis é que me disse: “Nunca uma mulher teve de um homem uma música dessa!”. Uma música em que já se lhe oferecia a conformidade a estados que iriam aparecer na sucessão de eventos no tempo.
A canção teve pra mim, como talvez pra ela, o caráter da irrecusabilidade da proposta. “Flora” foi além das intenções nela contidas; acabou tendo uma função. A cantada funcionou. É bom que a música e a poesia também tenham essa utilidade. Um modo sutil de ser útil. Uma sutil utilidade; uma “sutilidade”…
Um não sei o que é. — Há algumas canções na minha obra que me dão a sensação de um deslocamento para um outro plano, onde a poesia tem os seus elfos, as suas ninfas… “Flora” é uma delas. Ali parece que o ser da paixão se desloca também, usando a canção como se fora instrumento, escrava dele; que o conjunto da habilidade e do talento do indivíduo, eu, esteve a serviço de uma encomenda feita por uma outra coisa, um ser, em destaque.
Minha sensação é a de que essas músicas (“Metáfora” é outra; “Dada” também) respondem a uma questão que não era minha enquanto artista; em princípio, é como se eu não as tivesse feito. É como se, de repente, através delas eu pudesse ter acesso a uma leve presença de um ser poético que fosse um espírito, um ser da categoria dos transmateriais, para o qual o criador homem fosse cego: o ser das coisas, o ser eterno.
Eu mesmo não o enxergo e tenho uma grande dificuldade com a apreensão do significado de expressões tais como “o espírito do poeta”, “o espírito das coisas”; às vezes eu chego perto de alcançá-lo, outras, ele me foge. Parece algo ao mesmo tempo palpável e fugidio; é um negar-se ao afirmar-se, um afirmar-se ao negar-se; é uma coisa… eu não sei realmente o que é…
É um não sei o que é! — Um não sei o que é! Bravo! É esse tipo de natureza que eu atribuo ao tal ser de que falo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Flagelo
Gilberto Gil
Carlinhos Brown
Gravação
Gilberto Gil – Z, 2002 – Warner Music
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Ele falava nisso todo dia
Gilberto Gil
Alaiá, alaiá, alaiaialeluia
Ele falava nisso todo dia
Ele falava nisso todo dia
A herança, a segurança, a garantia
Pra mulher, para a filhinha, pra família
Falava nisso todo dia
Ele falava nisso todo dia
Ele falava nisso todo dia
O seguro da família, o futuro da família
O seguro, o futuro
Falava nisso todo dia
Alaiá, alaiá, alaiaialeluia
Alaiá, alaiá, alaiaialeluia
Ele falava nisso todo dia
A incerteza, a pobreza, a má sorte
Quem sabe lá o que aconteceria?
A mulher, a filhinha, a família desamparada
Retrata a carreira frustrada de um homem de bem
Ele falava nisso todo dia
O seguro de vida, o pecúlio
Era preciso toda a garantia
Se a mulher chora o corpo do marido
O seguro de vida, o pecúlio
Darão a certeza do dever cumprido
Alaiá, alaiá, alaiaialeluia
Alaiá, alaiá, alaiaialeluia
Ele falava nisso todo dia
Ele falava nisso todo dia
Se morresse ainda forte, um bom seguro era uma sorte
pra família
A loteria
Falava nisso todo dia
Era um rapaz de vinte e cinco anos
Era um rapaz de vinte e cinco anos
Hoje ele morreu atropelado em frente à companhia
de seguro
Oh! que futuro!
Oh! Rapaz de vinte e cinco anos
Alaiá, alaiá, alaiaialeluia
Alaiá, alaiá, alaiaialeluia
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil, 1968 – Philips
Maria Bethânia – Recital na Boite Barroco, 1968 – Odeon
Rogério Duprat – A Banda Tropicalista do Duprat, 1968 – Universal Music
Lulu Santos – Letra & Música, 2005 – BMG
Comentário*
Um dia eu li num jornal de São Paulo a notícia de um jovem que tinha se casado, feito seguro de vida e morrido; a família estava reclamando o seguro. Eu tinha 25 anos na época, estava casado, mas não tinha seguro de vida. Fiquei pensando: ‘E se tivessse sido eu?’ Aí eu fiz Ele Falava Nisso Todo Dia, uma música de militância, uma investida contra a busca de toda a segurança burguesa, de todos os anteparos, armaduras e ações contra as intempéries da vida. Estávamos todos investindo contra essas coisas.
O que a canção condena é o desprezo pela vida nesse cultivo excessivo das formas de proteção, as cercas, do mundo burguês. É incrível como, aos 25 anos, o ‘rapaz’ – que personifica o ideal mediano, de classe média, de homem do mundo na sua versão mais comum – reitera com tanta obsessão esse cultivo; é lamentável a desimportância da vida para alguém tão jovem. E é paradoxalmente trágico que tudo que ele fala, tudo com que sonha, finalmente se realize com a sua morte prematura. Como uma fatalidade apropriada, ‘desejada’, uma auto-imolação para a vitória dos seus princípios: ele falava tanto naquilo que aquilo teve de acontecer para materializar o valor do ideal burguês.
Em resumo, é a minha posição ideológica que decreta a morte da ideologia dele. Quer dizer, quem o mata sou eu. Na frente da companhia de seguros! Pra esfregar no rosto dele: ‘Tá vendo? Você não queria tanto? Foi morto por isso’.
Por outro lado, é tão louvável que o homem seja capaz de levar o sentimento básico de proteção à prole, de provisão do futuro dos filhos, àquele paroxismo. Essa música é ingênua por isso (ela ataca mas ao mesmo tempo justifica tanto ter um seguro de vida…): ela tem a ingenuidade do maniqueísmo ideológico típico da época. À leitura dialética, distanciada, a sua retórica não resiste. Hoje, numa situação mais cuidadosa, eu teria elaborado outros versos; já vejo daqui, de lá… No embate ideológico daquele tempo a parcialidade era radical porque a briga era de porrada, bando contra bando, USP contra Mackenzie…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Filhos de Gandhi
Gilberto Gil
Todo o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Iansã, Iemanjá, chama Xangô
Oxossi também
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Mercador, Cavaleiro de Bagdá
Oh, Filhos de Obá
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Senhor do Bonfim, faz um favor pra mim
Chama o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Oh, meu Deus do céu, na terra é carnaval
Chama o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Gravações
Gilberto Gil – Phono 73, 1973 – Philips
Maria Bethânia – Drama – 3º Ato, 1973 – Philips
Gilberto Gil e Jorge Ben – Gil, Jorge, Ogum, Xangô, 1975 – Philips
Gilberto Gil – O Viramundo, Vol. 2 (Ao Vivo), 1976 – Gege
Gilberto Gil – Em Concerto, 1987 – Gege
Caetano Veloso & Gilberto Gil – Dois amigos, um século de música, 2015 – Sony Music 2015
Wado – Ivete, 2016 – Wado [dist. Tratore]
Gilberto Gil – Ao Vivo na USP (1973), 2017 – Discobertas
Comentário*
Chegado de Londres, em 72, eu fui passar o Carnaval na Bahia, e encontrei o afoxé Filhos de Gandhy sem massa humana na avenida, reduzido a apenas uns quarenta ou cinquenta na praça da Sé. O bloco, tão vivo na minha memória, tinha sido um dos grandes emblemas da minha infância e era o mais antigo da cidade. Começou a sair em 49, quando eu tinha sete anos; os integrantes passavam pela porta de casa no bairro de Santo Antônio, todos de branco, com turbantes e lençóis, palhas de alho trançadas e fita na cabeça, e com um toque que era diferente do samba, da marcha, do frevo, dando uma sensação de espaço sagrado (depois viemos a saber que o afoxé era mesmo um toque religioso do candomblé). Eu tinha veneração pelo Gandhy, e ao revê-lo numa situação de indigência me deu uma dor seguida de um arroubo de filialidade, de amor de filho, arrimo de família; resolvi dar uma força. A primeira coisa que fiz foi me inscrever no bloco — para “engrossar o caldo”. Depois fiz a música, e continuei saindo — saí treze anos seguidos. As fileiras foram aumentando, e o Gandhy se recuperando. Os jovens ficaram entusiasmados com minha presença, e os velhos se sentiram mais estimulados a trabalhar; enfim, foi um estímulo geral. [Mercador de Bagdá, Cavaleiro de Bagdá, Filhos de Obá: outros blocos de afoxé citados na letra.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Figura de retórica
Gilberto Gil
Eu sou a frase de um discurso de paraninfia
Da turma de bacharelandos
Da Universidade da Bahia
A popular figura metafórica
Eu sou a beca preta que o doutor vestia
Na tarde daquele memorável samba
No salão nobre da reitoria
Beca preta, doutor de anedotas, normalista linda
Nossas fantasias não têm igual
Aos Fantasmas de Hamilton, Coemo, Rubinho e Mutinha
Nossas simpatias neste carnaval
Gravação
Gilberto Gil – Acústico MTV, 1994
Comentário*
Uma música ao estilo de marchas-ranchos.
Citações. — O verso “Na tarde daquele memorável samba” é de “Meu romance” [de Leonel Azevedo, sucesso de Orlando Silva nos anos 1940]. “Doutor de anedotas”, de “Café Soçaite” [de Miguel Gustavo]: “Doutor de anedota e de champanhota,/Estou acontecendo no café soçaite./Só digo ‘enchanté, muito merci, all right’./ Troquei a luz do dia pela luz da Light”. E “normalista linda” [da canção homônima de Benedito Lacerda e Davi Nasser], de outro samba: “Mas a normalista linda/Não pode casar ainda,/Só depois que se formar./Eu estou apaixonado,/O pai da moça é zangado,/ E o remédio é esperar”. São citações de memórias do cancioneiro, tão forte, tão presente.
Os Fantasmas. — Mutinha era filho da professora Guiomar, uma negra, ele negro também, negro mesmo, afro, retinto. Coemo era branco. Os outros eram mestiços. Hamilton, mestiço de índios com brancos com negros. Rubinho, de várias raças. Eles fundaram Os Fantasmas, que depois se tornaram Os Corujas, que deram origem a todos os blocos de Carnaval de classe média, ligados a um Carnaval modernizante, em Salvador. Hamilton foi quem me levou pra gravar meu primeiro jingle. Ele era o líder musical do quarteto Irapuru.
Uma música emblemática. — Não fazia muito tempo que eu tinha me formado. Seis, sete anos: eu me formei em 64. Os versos têm a ver com a aproximação entre mundo acadêmico e cultura popular, um papel dos grandes músicos dos seminários de música da Bahia, Koellreutter, Ernst Widmer, Walter Smetak, toda aquela turma — e os descendentes, os alunos: Tom Zé… A música na Universidade da Bahia era muito forte. “Figura de retórica” remete àquilo tudo. Essa música é como se fosse um emblema. Eu adoro ela. Eu vou recuperá-la.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Feliz por um triz
Gilberto Gil
Por um triz sou feliz
Mal escapo à fome
Mal escapo aos tiros
Mal escapo aos homens
Mal escapo ao vírus
Passam raspando
Tirando até meu verniz
O fato é que eu me viro mais que picolé
Em boca de banguelo
Por pouco, mas eu sempre tiro o dedo – é
Na hora da porrada do martelo
E sempre fica tudo azul, mesmo depois
Do medo me deixar verde-amarelo
Liga-se a luz do abajur lilás
Mesmo que por um fio de cabelo
Sou feliz por um triz
Por um triz sou feliz
Eu já me acostumei com a chaminé bem quente
Do Expresso do Ocidente
Seguro que eu me safo até muito bem
Andando pendurado nesse trem
As luzes da cidade-mocidade vão
Guiando por aí meu coração
Chama-se o Aladim da lâmpada neon
E de repente fica tudo bom
Gravação
Gilberto Gil – Raça humana, 1984 – Warner Music
Comentário*
Essa faz parte dos rocks de Raça humana, um disco com um repertório constituído em boa parte de músicas compostas no gênero. Assim como “Punk da periferia”, assumia-se como o discurso de um punk. “Feliz por um triz” assimila uma linguagem típica de roqueiros. Aqui eu incorporo um deles na primeira pessoa, mas não sou necessariamente eu quem fala, e sim o personagem, o roqueiro. A letra transmite um sentimento de insatisfação diante da insalubridade do entorno, sendo expressão disso por meio da acidez e da rispidez do estilo, do jeitão rock ‘n’ roll de reclamar contra o sistema da vida moderna, de vocalizar o desconforto diante dessa vida. No trecho final, no entanto, eu admito que me coloco com minha personalidade, minha visão, meu desejo e minha crença na capacidade alquímica de transformação, de transmutação. Daí esse final com um milagre, com o gênio da lâmpada dando um jeito na situação…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Felicidade vem depois (Se você disser)
Gilberto Gil
Que ainda me quer, amor
Eu vou correndo lhe abraçar
Seus beijos, seus carinhos
Vivo a procurar
Como o poeta busca a inspiração
Nas noites de luar
Se você disser
Que ainda me quer, amor
Eu vou correndo lhe abraçar
E unidos, bem juntinhos
Partiremos só nós dois
E o bom, felicidade
Vem depois
Gravações
Gilberto Gil – Retirante, Vol. 1, 1962 – Discobertas
Paulinho da Viola – Songbook Gilberto Gil, Vol. 3, 1992 – Lumiar Discos
Claudia Telles – Quem sabe você, 2009 – Nova Estação
Comentário*
É a música que eu considero a primeira composição minha. Eu fiz muitas coisas antes, na época em que tocava acordeon, antes de tocar violão; fazia composições improvisadas, que não chegava nem a definir como canções: eram improvisos que às vezes eu mantinha na forma de uma canção por alguns dias, depois abandonava. Essa é a primeira que eu me lembro de ter feito e ter considerado como uma canção definitiva, com começo, meio e fim, numa forma que se repetia. Era claramente influenciada pela bossa nova, tendo sido feita só depois de eu ter encontrado na bossa nova – de a bossa nova ter despertado em mim – uma noção mais nítida do que é uma canção, do que é haver autor, do que é haver autores para as canções; de elas serem autorais, estarem ligadas a uma pessoa ou a pessoas que as compõem. As canções de Luiz Gonzaga e Dorival Caymmi tinham despertado um pouquinho isso em mim, mas eram canções que pertenciam ao domínio público, embora tivessem autores; eram canções que se dançavam nas festas e se cantavam nas casas como as canções folclóricas, como as canções de roda, de ninar. Só a bossa nova me trouxe mais claramente a ideia da canção de autor, e “Felicidade Vem Depois” foi a minha primeira canção nesse sentido autoral, de canção que se registra para que se faça público, para que se possa propiciar o compartilhar, por outras pessoas, do que é a criação individual. E, sem dúvida alguma, era para imitar mesmo a bossa nova, para mostrar a mim mesmo que eu tinha absorvido aqueles códigos e que aquele modelo se diferenciava do que havia antes.
À observação de que o início da canção – da letra, sobretudo – se assemelha ao de “Desafinado”, de Tom Jobim e Newton Mendonça – Eu não tenho lembrança da consciência dessa influência, dessa relação, mas é possível que ela tenha havido, já que toda canção era impregnada de bossa nova, toda motivação em fazê-la era por causa da bossa nova; era o desejo mesmo de imitar Tom Jobim, Vinícius de Moraes, os compositores da bossa nova – e de imitar João Gilberto.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Feiticeira
Gilberto Gil
Bem que eu queria ser
Feiticeira
Pra enfeitiçar você
Com encanto e sedução
Lhe atrairia pro meu canto
E lhe faria amor, amor, amor
Até que o pranto
Lhe fizesse o coração
Tão duro, amolecer
Com poder de sugestão
Lhe afastaria do seu trono
E lhe faria amor, amor, amor
Até que o sono
Lhe fizesse o coração
Tirano, adormecer
Eu faria todo mundo saber
Eu traria todo mundo pra ver
Minha cama inteira só pra você
Gravação
Zezé Motta – Dengo, 1980 – Atlantic
Comentário*
[“Feiticeira” é uma das duas canções que Gil fez para Zezé Motta gravar, ambas para um mesmo disco e escritas no eu lírico feminino, intencionalmente dela.] É da época em que eu estive mais próximo dela. Convivíamos, nos encontrávamos muito e nos apreciávamos, nos admirávamos mutuamente. Foi uma época de aproximação mesmo. Ela, evidentemente, muito interessada no significado geral do meu trabalho, a questão da negritude perpassando as nossas preocupações gerais (“Poço fundo” é nessa linha). Em “Feiticeira” eu queria retratar nela o afeto que ela tinha por mim ou, mais do que isso, o afeto mútuo que tínhamos ambos pelo outro. Ambos cancerianos. Ali estão nossos amores. Os meus por ela e os dela por mim.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Fechado pra balanço
Gilberto Gil
Meu saldo deve ser bom
Tô fechado pra balanço
Meu saldo deve ser bom
Deve ser bom
Um samba de roda, um coco
Um xaxado bem guardado
E mais algum trocado
Se tiver gingado, eu tô, eu tô
Eu tô de corpo fechado, eu tô, eu tô
Eu tô fechado pra balanço
Meu saldo deve ser bom
Tô fechado pra balanço
Meu saldo deve ser bom
Deve ser bom
Um pouco da minha grana
Gasto em saudade baiana
Ponho sempre por semana
Cinco cartas no correio
Gasto sola de sapato
Mas aqui custa barato
Cada sola de sapato
Custa um samba, um samba e meio
E o resto?
O resto não dá despesa
Viver não me custa nada
Viver só me custa a vida
A minha vida contada
Gravações
Elis Regina – Em Pleno Verão, 1970 – Universal Music
Zimbo Trio – Strings & Brass Plays The Hits, 1971 – Polygram Music
Comentário*
O título e o tema da canção são autoexplanatórios: eu estou ali, em Londres, porque me obrigaram a isso, me prenderam, me tiraram de circulação, me mandaram para o exílio, e eu estou “fechado pra balanço”: uma expressão típica daquele período, que se via em placas penduradas na frente das lojas, em fim de ano. Eles fechavam os estabelecimentos para fazer o balancete anual.
Um samba cheio de balanço, de malemolência, de insinuações de ginga, de finta, no sentido futebolístico, de dribles; cheio de cascas de banana para as pessoas escorregarem…; um samba para os bons sambistas, os bons suingueiros — como Elis, que o adorou e que o cantou.
Samba de roda, coco, xaxado, trocado, gingado: uma lista do saldo, das coisas que eu tinha levado daqui, as acumulações, as riquezas da minha cultura, da minha realidade cultural, brasileira, que formavam o meu tesouro na situação de exílio. As “cartas no correio”: a forma como eu me reportava com o Brasil, como eu mantinha relações afetivas com a família, com os amigos. A “sola de sapato”: para dizer do hábito de andar muito em Londres. E, no final, “a minha vida contada”, no sentido de contabilização; eu, o contador, fazendo a minha firma.
Uma música interessante, ao mesmo tempo prosaica, ao mesmo tempo poética.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Febril
Gilberto Gil
Veio gente reclamar uma escola
Veio gente me aplaudir
Veio gente vaiar
Veio gente dormir nas cadeiras
Veio gente admirar meu talento
Veio gente adivinhar meu tormento
Veio gente me xingar
Veio gente me amar
Veio gente disposta a se matar por mim
E eu cantava aquela música, aquela música
Alucinação
Como se eu fosse um punhado de gente
E aquela gente ali, não
Como se o salão repleto fosse um deserto
E eu fosse mil
Mil troncos de árvores velhas
Árvores velhas de pau-brasil
Tanta gente, e estava tudo vazio
Tanta gente, e o meu cantar tão sozinho
Todo mundo, mundo meu
Meu inferno, meu céu
Meu vizinho
Gravações
Zizi Possi – Dê um rolê, 1984 – Universal Music
Gilberto Gil – Dia dorim noite neon, 1985 – Warner Music
Renato Braz – Casa de morar, 2012 – Renato Braz (dist. Tratore)
Comentário*
Eu tinha dois ou três dias para entregar uma música para a Zizi Possi, quando fiquei fortemente gripado. Com febre alta, mas com aquilo na cabeça – ‘a música da Zizi: o que é que eu faço?’ -, fiz essa canção sobre a solidão do artista no palco e, após terminar a sua feitura e relê-la, eu vi que o texto estava nitidamente influenciado pelo meu estado febril. Daí o título, associado, sem dúvida alguma, ao delírio do ato de se apresentar em um palco e à febre da idolatria, do fã-clube.
“Veio gente reclamar uma escola” – Enquanto compunha, eu me lembrei de um episódio ocorrido dias antes, numa ida minha a um show do Belchior no teatro João Caetano. Depois do show, já no camarim, ele atendendo as pessoas que entravam, uma delas me viu e me pediu: ‘Arranja uma escola para o meu filho, uma bolsa escolar’.
“Veio gente disposta a se matar por mim” – Essa frase é o máximo; na exposição da cena, ela tem para mim uma equivalência com os versos da música Bastidores, que o Chico Buarque fez para o Cauby Peixoto: ‘E os homens lá pedindo bis/ Bêbados e febris/ A se rasgar por mim’. Nesse aspecto da solidez da solidão do artista, as duas são canções irmãs.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ele e euGilberto Gil
Ele vive calmo Ele vive eletriconsumida, consumada ou mudamente Eu vivo calmargalarga, abertamente
© Gege Edições Musicais
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Gravações
Gilberto Gil – Expresso 2222, 1972 – Philips
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao Vivo na USP, 1973 – Discobertas
Gilberto Gil – O Viramundo Ao Vivo, vol. 1, 1976 – Polyrgram
Comentário*
“Ele” é Caetano, obviamente.
O Porto da Barra entra como símbolo dos grandes desafios, sendo o enclave da vida cosmopolita na Bahia, o grande ponto de confluência, o ponto das discussões, das modas e dos desvios. Já era tudo isso na época e continua sendo hoje. Uma ágora à beira d’água: ele substitui com funcionalidade as praças antigas de Salvador, onde tais tipos de encontro já não se dão, mas ali no Porto sim. Vão os poetas, os músicos, os artistas, os intelectuais, os pequenos agentes culturais e econômicos, as pessoas da moda, as emergentes. Como os cafés de Paris, esses lugares de cultura. A praça onde se discute tudo.
A “hora do Porto da Barra” é, então, a do exercício da função política, da dimensão citadina. E, nas grandes discussões da ágora, Caetano é a própria eletricidade. “Ele vive eletriconsumida, consumada ou mudamente/ Bem mais calmo”: ele é autocentrado, autorreferente, leonino. “Porque curte cada golpe do martelo/ Na bigorna do destino”: porque tem essa visão profunda do trágico, uma profunda vivência em acordo com o aqui e agora. “Porque espero pelo beijo arrependido/ Da serpente do começo”: porque sou religioso, guardo essa ideia da redenção, me projeto no campo da divindade, o que ele não faz — ele é autocentrado, no aqui e agora. Eu não: “E na hora do Porto da Barra fico aflito”. A canção é uma discussão sobre aspectos das nossas personalidades.
Ninguém se mete no meio da gente. Nada se interpõe a nós dois. Há uma aliança mesmo, como se houvera sido feita num plano anterior e posterior a nós próprios. Smetak se referia a nós como gêmeos espirituais. Ainda recentemente, numa entrevista que ele deu em Salvador [em janeiro de 2003], para um jornal, A Tarde — já quando eu tinha sido feito ministro, e o tema girava sobre isso —, Caetano reitera a ideia de uma amizade intransponível entre nós. “Gil acredita em Deus, e eu acredito em Gil”, disse ele uma vez, para se referir a uma forma oblíqua de acreditar em Deus, não acreditando; um crer-não-crer.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Fé na festa
Gilberto Gil
Tu, tua emoção
Nós, nós e o São João
Mais não pode, não
Não, mais ligeiro não pode
Que o vento sacode, atingimos a velocidade ideal
Se esporo mais nossa jega
A bichinha escorrega e a légua manda tudo pro matagal
Calma que a nossa lambreta
Jumenta porreta, já anda espoleta demais
São João carneirinho quer devagarinho
Mansinho vamos chegar em paz na festa
Festa, festa na fé
Fé, fé na festa
Da brisa fresca da noite
Sentimos o acoite, a baforada, aquele coice de ar
Próxima curva, segura,
Me agarre a cintura que a jeguinha pode até derrapar
Anda, motoca jumenta
Não fique ciumenta
Cê traz no guidom pendurado
Um frasquinho de água benta
Do santinho amado por nós
Nós vamos chegar em paz na festa
Festa, festa na fé
Fé, fé na festa
Gravações
Gilberto Gil – Fé na Festa, 2010 – Gege
Gilberto Gil – Fé na Festa (Ao Vivo), 2010 – Gege
Gilberto Gil – São João em Araras (Ao Vivo), 2021 – Gege
Comentário*
Outra canção que dá título a um álbum, mas essa, ao contrário do sentimento que eu tenho em relação a “Banda larga cordel”, é uma daquelas que dá conta da importância disso. A história toda é bem narrada. Tem a facilidade também de ser cordelesca, porque a história é narrada com o modo versejante nordestino.
Fé na festa. — Isso que é reiterado na música nordestina, está lá em Luiz Gonzaga o tempo todo, em Jackson do Pandeiro, em todos os grandes autores e intérpretes nordestinos: a importância extraordinária da festa junina com todos os derivativos devocionais entre os santos — São João, São Pedro, Santo Antônio (e aqui trata-se de novo de Santo Antônio: não está explicitado, mas é ele que está ali). A fé com seus signos católicos; a fé católica como elemento instrutor, informador da formação daquele povo, daquela região, a herança histórica propiciada pelo catolicismo do “padim” Ciço, esse tipo de coisa, esses entes, essas entidades todas.
De a canção conferir à festa um valor especial. — Um valor pra lá da crença. O valor da assunção, assumindo a realização da festa em si, em cada um deles, em cada um de nós.
De a canção tratar do estar indo para a festa. — A maioria das canções sobre festas dos grandes compositores nordestinos, pelo menos do que eu me lembre, fala de estar na festa, de fazer a festa, mas essa inclui o elemento do transporte, do deslocamento, da distância, da busca do atingimento de um alvo em direção ao qual você atira, você se atira. Eles estão se atirando para aquela festa, são os dois namoradinhos que estão indo pra festa, ele levando a menina dele, o seu amor. E a construção musical toda tem a ver com isso, com uma ligeireza, uma rapidez.
A motoca jumenta. — Ou seja, o que foi no passado o grande meio de transporte entre as pequenas cidades, entre os pequenos lugares do interior do Nordeste, hoje é a moto. É uma transposição semântica real, realista, factual. De fato existe uma jeguinha nova, a motoca jumenta.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ela e a lua
Gilberto Gil
É como um sopro de paz e ternura
É como um rasgo de afeto e doçura
Para uma alma tão triste e vazia
Traz à noite sublime enlevo e calma
Em seu fluxo pálido e brilhante
Vem com seu bálsamo leve, inebriante
Acariciar e confortar minha alma
E minha alma é tão triste e tão nua
Por causa dela, amor de minha vida
Por ela, sim, minha doce querida
Que era também tão bela como a lua!
Ela e a lua, poemas de carinhos
Cantos de afeto, de candura e paz
Eu e a saudade, companheira mordaz
Eu e a saudade, tristonhos, sozinhos
Fé menino
Gilberto Gil
Menino, felino, levado, feliz
Vou levando cada vez mais jeito
Bela menina, bela menina
Bela menina, minha sina, cada vez mais
Belo menino, meu destino, cada vez mais
Cada vez mais vou gostando, vou dando
Certo
Cada vez mais entendendo, chegando, chegando
Perto
King-Kong kung-fu
E tudo cada vez mais perto
King-Kong kung-fu
E nada resta como é
King-Kong kung-fu
E eu, ou três modos de Deus
Bem-querer menino
Bem-querer menina, ah
Vou levando, ô, ô, ô
Ô, ô, belo menino
Ah, ah, bela menina
Gravações
Ney Matogrosso – Feitiço, 1978 – WEA
Moisés Navarro – Aquele Abraço, Gilberto Gil, 2022 – Alves Madeira
Comentário*
Quanto às palavras (‘dando’, ‘entendendo’) que, ao que tudo indica, sugerem uma referência simpática à homossexualidade – Obviamente: ‘Fé menino’ é uma música de apologia à homossexualidade, de uma receptividade carinhosa à ideia da homossexualidade (como outras minhas – ‘Veado’, por exemplo). O homossexualismo já pertencia então ao repertório das questões libertárias, e é nesse sentido que a música é feita. Nós – eu, Caetano – contribuímos muito para a simpatia pelo traço libertário do movimento gay: nós defendemos muito isso.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ela Diz Que Me Ama
Gilberto Gil
E ela diz que me ama
Eu gosto tanto dela
E ela diz que me ama
As coisas começam simples e depois vão crescendo, ai ai
A gente vai vivendo, a gente vai se envolvendo
Até descobrir que está feliz ou sofrendo
Coração, coração
Aguenta mais essa, meu irmão
Quando ela diz que continua esperando por mim
A hora que eu chegar
A hora que eu puder ir
Ela diz que me ama
Ela diz que me ama
Coração, amor, razão, paixão
Paixão
Eu gosto tanto dela
É ombro, é colo, é cama
Será que ela sabe mesmo que o amor é chama
Acende quando é fogo, apaga quando venta
O amor é sempre aquilo que se tenta
Aquilo que se reinventa
O dia que reparte, a noite que inaugura
O prato de ternura com tempero de paixão e zelo
É hoje sim, mas amanhã só pra quem se agarrar bem firme ao fio do novelo
Ela diz que me ama
Eu gosto tanto dela
Ela diz que me ama
Eu gosto tanto dela
Ela diz que me ama
Eu gosto tanto dela
Ela diz que me ama
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
“É ombro, é colo, é cama/ Será que ela sabe mesmo que o amor é chama?” Eu peguei daí em diante. Eu comecei com isso e fui adiante.
Ah, eu achei mesmo que era a sua cara o que vem em seguida: a sequência de definições do amor. — É, não parece com o Jorge. Ele usaria outras palavras.
E o trecho que termina falando em fio de novelo combina com coisas que você tem escrito sobre casamento, sobre sua relação com Flora, no momento de maturidade e longevidade do próprio casamento de vocês. — Sim, isso. Tem todos esses elementos, e o verso “Ela diz que me ama” é um mote benjoriano total.
De como a canção veio a ser feita para Roberta Sá. — Nós estávamos um dia num jantar na casa de uns amigos, entre os quais eu, ela e Jorge, e ela pediu ao Jorge que fizesse uma música pra ela. Estávamos começando o trabalho do disco dela, o Giro. Aí dias depois o Jorge me mandou um esboço, uma boneca com “Ela diz que me ama”, à qual eu só acrescentei a segunda parte.
[Gil e Ben Jor não faziam uma parceria oficial desde quando compuseram “Sarro”, um tema instrumental que integrou Gil Jorge Ogum Xangô, o álbum de 1975 dividido pelos dois; antes, em 1968, haviam feito “Rei do maracatu”, gravada por Cyro Aguiar dois anos mais tarde. Gil, porém, agrega ao repertório de canções dos dois “Jurubeba” (assinada somente por Gil) e “Meu glorioso São Cristóvão” (oficialmente de Ben Jor), faixas de Gil Jorge Ogum Xangô. “Naquele disco várias das canções foram parcerias, se não propriamente operadas no fazer, mas pelo menos sugeridas, como o caso da canção sobre são Cristóvão. Eu achei um santinho de são Cristóvão no chão do estúdio, numa das gravações, e dei a ele, sugerindo que fizesse uma música”, explica.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ela
Gilberto Gil
Eu vivo o tempo todo com ela
Ela
Eu vivo o tempo todo pra ela
Minha música
Musa única, mulher
Mãe dos meus filhos, ilhas de amor
Cada ilha, um farol
No mar da procela, ela
Ela
Ela que me faz um navegador
Sobretudo ela
Ela que me faz um navegador
Gravações
Gilberto Gil – Refazenda, 1975 – Philips
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao vivo em Montreux), 1978 – Gege
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases (Ao Vivo), 2018 – Gege
Comentário*
Uma música sobre o princípio feminino, estimulado em mim pela música e pela mulher. Um tributo ao papel e à presença da música e da mulher em minha vida e na vida em geral, usando da associação entre as palavras ‘musa’ e ‘música’ no plano semântico, que eu acho que existe de alguma forma, e no plano da sonoridade, por causa das duas sílabas comuns a ambas.
‘Ella’, como título de uma das versões para o inglês da letra, é uma alusão a Ella Fitzgerald, ela própria uma musa-música: uma grande musa.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ela (Rap da Clara)
Gilberto Gil
Eu vivo o tempo todo com ela
Ela
Eu vivo o tempo todo pra ela
Minha música
Musa única, mulher
Mãe dos meus filhos, ilhas de amor
Cada ilha, um farol
No mar da procela, ela
Ela
Ela que me faz um navegador
Sobretudo ela
Ela que me faz um navegador
Carioca da gema
Geração 71
Vim do Rio de Janeiro
Batucada baticum
Bate o pé meu batuqueiro
Bate o pé meu sambador
Na Mangueira mora o samba
Na cadência do calor
Segue a orla de Ipanema
Do Leblon aos Dois Irmãos
Na Rocinha só tem bamba
Na Gamboa só tem bom
Gravação
Clara Moreno – Morena Bossa Nova, 2004 – YB Music
Edyth Cooper
Gilberto Gil
Bochechas de anjo barroco
Nádegas de anjo barroco
Bugigangas, velhos pincéis
Cem mil réis de carne com osso
Cem mil réis de queijo de prato
Cem mil réis de filó barato
Gesso, cola, tintas, telões
Abstrações, visões coloridas
Cena do balé dos anões
No ateliê da louca varrida
Dando, rindo, lendo Camões
Representações de cenas proibidas
Obcenas obsessões
No ateliê da louca varrida
Vivendo, varrendo os salões
Edyth Cooper, Edyth Cooper
Edyth Cooper, vem me consolar
Edyth Cooper, Edyth Cooper
Faz minha vassoura voar
Edyth Cooper, Edyth Cooper
Os morcegos vão me chupar – será?
Edyth Cooper, Edyth Cooper
Sem você eu vou me borrar de tinta
Eu vou me pintar de gesso
Eu vou me engessar de cola
Eu vou descolar de medo
Gravações
Gilberto Gil – Cidade do Salvador, Vol. 1, 1973 – Polygram
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao Vivo na USP, 1973 – Discobertas
Gilberto Gil – Umeboshi (Ao Vivo), 1973 – Discobertas
Edy Star – Sweet Edy, 1974 – Som Livre
Comentário*
Uma homenagem ao Edy Star [referido no comentário sobre a gênese de ‘Procissão’], um homossexual que em algumas situações se travestia: quando cantava, por exemplo, em boates, em Salvador e no Rio, para onde ele depois se mudou. Eu o conheci num lugar chamado Barroco, em Salvador – um lugar de pequenas exposições, um misto de galeria, bar e ponto de encontro que ele frequentava, que vários de nós frequentávamos. A canção sugere um ateliê, um estúdio, um lugar de arte, de artistas, uma galeria. O título é para fazer uma associação entre o universo dele – e o seu traço performático – e o do Alice Cooper, um roqueiro que se travestia também, mas que era posterior a ele: Edir é da nossa época, do início dos anos 60. Ele também tinha ligação com o teatro, e na sua performance incluía traços da acidez do rock’n’roll. Nunca chegou, porém, a ter uma banda; era mais um performático. Dos que vieram depois, quem se parece um pouco com ele é o Eduardo Dusek, de quem é um precursor – assim como do Ney Matogrosso.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ê, povo, ê
Gilberto Gil
A alegria estava então
Tão longe
O seu sorriso de verão
Eu sei
Quanto custou ter que esperar
Até
Seu precioso bom humor voltar
Ê, povo, ê, povo, ê
Desabafa o coração
Ê, povo, ê, povo, ê
Viver
É simplesmente um grande balão
Voar
Pro céu azul é a missão
Ê, povo, ê, povo, ê
Pelo amor de deus, cantar
Ê, povo, ê, povo, ê
Pelo bom humor, dançar
Ê, povo, ê, povo, ê
Pelo céu azul voar
Ê, povo, ê, povo, ê-ê
Gravação
Gilberto Gil – Refazenda, 1975 – Philips
Comentário*
“Ê, povo, ê” é exortativa. É uma exortação ao bom humor, à boa vontade, ao afeto generoso. É como se fosse um “Barato total” (“Quando a gente tá contente/ Tanto faz o quente/ Tanto faz o frio,/ Tanto faz”). É uma canção sobre estar bem — sobre o bem-estar.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
E lá poeira
Gilberto Gil
Celso Fonseca
Gerson Santos
Jorjão Barreto
Repolho
Rubens Sabino (Rubão)
Wilson Meirelles
Elá, poeira
Poeira, iaiá Maria
Poeira, que levantou
Por causa da ventania
Que o seu samba provocou
Você quando rodopia
É pior que um furacão
Ainda bem que vem da alegria
A poeira desse chão
Elá, poeira
Elá, poeira
Poeira, iaiá Maria
Leva um dia pra assentar
Por causa dessa magia
Que você deixa no ar
Você quando rodopia
É pior que um furacão
Ainda bem que é de alvenaria
Que é feito meu barracão
Duplo sentido
Gilberto Gil
Vim de casa porque estava insuportável pensar
Dessa esquina pelo menos posso perceber o duplo sentido
O duplo sentido do tráfego e não me incomodar
Dessa esquina pelo menos posso ver o movimento dos carros
Vim de casa porque estava insuportável falar
Por telefone (tão distante) com pessoas que eu não posso ver
Por telefone com pessoas que eu não posso pegar
Dessa esquina pelo menos posso perceber
O duplo sentido de tudo
Em todos que vão a diversos lugares
Primeiros, terceiros, oitavos andares
Vigésimos modos de andar
Dessa esquina pelo menos posso perceber
O duplo sentido de tudo
Na falta de unanimidade
Uns vêm pra cidade como eu
Outros voltam correndo pro lar
Vim de casa porque estava insuportável pensar
Na saudade, na saúde, na fé
Dessa esquina pelo menos posso ver como é
E não me incomodar
O duplo sentido na rua é tão claro
Não há que duvidar
O duplo sentido na rua é tão claro
O apito do guarda é que dá
Gravações
Tetê da Bahia – Tetê da Bahia, 1973 – Continental
Gilberto Gil – Cidade do Salvador Vol. 2, 1973 – Universal Music
Gilberto Gil – Ao Vivo na USP, 1973 – Gege
Gilberto Gil – Umeboshi – ao vivo, 1973 – Gege
Comentário*
Roberto Carlos tinha me pedido uma música naquele ano, e eu cheguei a pensar nele quando comecei a fazer ‘Duplo sentido’. Mas não a mandei para ele (as outras duas que fiz para ele, ‘Se eu quiser falar com Deus’ e ‘Nova era’, eu mandei): deve ter sido por falta de oportunidade; nessa época, eu não cuidava tanto assim do atendimento ao trabalho.
A canção faz uso da expressão que lhe dá título por causa das circunstâncias da época, dos interesses em desacordo, dos desencontros entre os sonhos de partes da sociedade brasileira, da contrariedade entre um projeto social sonhado, a constituição de uma república de perfil socialista, e o golpe, a ditadura.
Ao mesmo tempo, também por causa da situação física do tráfego, das duas mãos; o trânsito que vai, o trânsito que vem – essa ideia de destinos contrários conciliados o tempo todo, na cidade inteira; todos os trânsitos que vêm e que vão estão servindo à mesma causa de levar e trazer as pessoas aos lugares: todo mundo precisa da duplicidade do sentido das coisas, senão não funciona: uma mão única não funciona, ninguém vai a lugar nenhum, ou pelo menos todo mundo só pode ir a um lugar só, não pode voltar; somente o duplo sentido dá conta da complexidade mínima exigida pela vida. Então a música tem essa intenção, esse sentido de dar sentido ao duplo sentido das coisas como algo essencial.
De novo há a presença do yin-yang. De novo uma música minha é composta por causa do princípio único, da macrobiótica, do taoísmo; dessas coisas que eram objeto de interesse do meu trabalho. ‘Duplo sentido’ é mais uma canção minha sobre isso. É claro que cada uma tem suas características próprias; essa leva a ‘coisa’ para a cidade, para o trânsito, e eu estou postado numa esquina.
A canção passa a ideia de que a trama da cidade é auto explanatória e que explica a complexidade psicológica da vida humana nela; os ires e vires, o se perder por aí, a solidão.
‘Primeiros, terceiros, oitavos andares/ Vigésimos modos de andar’: ‘andares’ e ‘andar’: há jogos interessantes com palavras, bem no meu estilo, a poesia do jogo dos reflexos de espelhos, das palavras se espelhando. ‘Vim de casa porque estava insuportável pensar/ Na saudade, na saúde, na fé’: eu me lembro que um ou dois dias antes eu tinha tido um principiozinho de disenteria, e estava num estrito regime de arroz e umeboshi.
‘Duplo sentido’ foi composta em São Paulo. Eu estava num hotel, em que ficávamos muito, na avenida Ipiranga depois da avenida São João, na direção da Major Sertório.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Cultura e civilização
Gilberto Gil
Elas que se danem
Ou não
Somente me interessam
Contanto que me deixem meu licor de genipapo
O papo
Das noites de São João
Somente me interessam
Contanto que me deixem meu cabelo belo
Meu cabelo belo
Como a juba de um leão
Contanto que me deixem
Ficar na minha
Contanto que me deixem
Ficar com minha vida na mão
Minha vida na mão
Minha vida
A cultura, a civilização
Elas que se danem
Ou não
Eu gosto mesmo
É de comer com coentro
Eu gosto mesmo
É de ficar por dentro
Como eu estive algum tempo
Na barriga de Claudina
Uma velha baiana
Cem por cento
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1969), 1969 – Philips
Gal Costa – Gal Costa, 1969 – Universal Music
Gilberto Gil – Back in Bahia – ao vivo (1972), 2017 – Discobertas
Comentário*
Depois dos rebeldes com causa, os rebeldes sem causa: derrubando os muros e as prateleiras. A cultura e a civilização que se danem ou não, pouco importa; sou inaugural, seminal; ponto zero: aqui começa outra história. Essa a expressão do dístico, slogan de época, placa, palavra de ordem. Em seguida, a afirmação do particular, do eu indivíduo, baiano. Quero estar no turbilhão das ruas, no olho do furacão do meu tempo, mas também quero paz; viver o tempo histórico, mas trazer até ele a história do meu passado, os elementos formadores do meu cerne. Como mostra o jogo desses contrastes, não se trata de um mergulho irracional na rebeldia. O dístico é niilista, mas os versos seguintes, ao contrário de justificá-lo, são preservadores.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Crazy pop rock
Gilberto Gil
Jorge Mautner
From the cars runs gasoline up in my veins
My blood intoxicated by twenty-seven trips
My eyes hallucinated by the Holy Ghost I met
When I talk
I cannot talk
I only gotta sing loud, loud
A crazy pop rock
From the city runs electricity in my brains
From the cars runs gasoline up in my veins
I’m part of the problem, I’ m not the solution
I’m really the product of city pollution
When I talk
I cannot talk
I only gotta sing loud, loud
A crazy pop rock
From the city runs electricity in my brains
From the cars runs gasoline up in my veins
Baby, baby, baby, I’m the electric man
Come and get a shock, I’m the electric man
When I talk
I cannot talk
I only gotta sing loud, loud
A crazy pop rock
Duelo do garfo e da faca
Gilberto Gil
Gravação
Vários – Brasil Ano 2000 – Universal
[para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr.]
Duas sanfonas
Gilberto Gil
Milton Nascimento
É tanta volta que dá
Que sem esforço, nem nada
Vou descobrindo o que há
Velhas notas, canções novas
Vão renascendo meninas,
Vão renascendo meninos
pra garotada cantar
Quebram barreiras de idade
Juntam as vozes do povo
Trazem a felicidade
Haja alegria ou saudade
Dançam bem juntos, sozinhos
Vão espalhando carinho
Os sons são todos tão seus
Como um presente de Deus
Salve o sol dessas sanfonas
Que pra essa vida empurrou
A mim e a meu companheiro
Que o destino juntou
Corisco
Gilberto Gil
Djavan
No mesmo instante um raio explode
Concomitante, um olho vê
Que a pedra do corisco pode
Pode se tornar o que for
E tudo o quanto é testemunha
Pode até mesmo ser a dor
Cravada à carne pela unha
Telefax, mandei
O mapa-múndi do meu penar
Ande, mande logo um telex
Me confirmando quando será
Que a necessidade de amor
Lhe trará num raio
A necessidade de amor
Num dia de chuva
E na tempestade você
Fará com que eu saia
No exato momento de ver
O céu se abrir ao comando de Iansã
Que seja o momento em que a luz
Registre meu desejo de ver
Você, meu amor, me traduz
No raio de Iansã, seu poder
Que seja pra mim, meu Xangô
Poder correr, correr meu risco
Quiçá ver nascer uma flor
Na lisa pedra do corisco
Telegrafite de Exu
Leia no muro do seu quintal
Pichada, fixada no azul
A frase diz o essencial
A necessidade de amor
Gritando na rua
A necessidade de amor
Uivando pra lua
Um lobo faminto de amor
A dor que acentua
A necessidade de ver
O céu se abrir ao comando de Iansã
Gravações
Djavan – Djavan, 1989 – CBS
Djavan – Puzzle of hearts, 1990 – CBS
Comentário*
O Djavan me mandou uma daquelas músicas complexas dele, e eu pensei: “O que eu faço com isso?”. Aí veio a imagem de um corisco mesmo, do raio que penetra a terra, funde a matéria terra e a transforma em pedra, uma pedra que surge do fogo, da ardência elétrica do raio; essa pedra é o corisco.
Sobre “O céu se abrir ao comando de Iansã”. — O fenômeno natural; a fenomenologia na natureza. A necessidade da associação entre os deuses e a natureza. As entidades religiosas associadas aos fenômenos naturais, à força elemental do raio, da tempestade. “O céu se abrir ao comando de Iansã” remete a, e decorre de, “Iansã comanda os ventos/ E a força dos elementos” [de “As ayabás”, de Caetano e Gil]. O mesmo sentido: num verso, o verbo; no outro, o substantivo.
Sobre “Quiçá ver nascer uma flor/ Na lisa pedra do corisco” (lembrando a flor que “rompe o asfalto” de “A flor e a náusea”, de Drummond). — A imagem é uma retomada de “Tudo que brota, que vinga, que medra/ Rebento raro como flor na pedra” [de “Rebento”, de Gil]. A ideia radical do momento inusitado do vegetal ter origem mineral, como a flor nascer na superfície lisa de uma pedra, sem a intumescência do terreno fofo, ali, na pedra dura; a imagem do broto de vegetal saindo da pedra bruta: relações de ênfase poética.
Da complexidade da música de Djavan levando Gil a escrever uma letra que não tem uma fatura semanticamente simples.
— É muito djavaniana nesse sentido, com sua fragmentação semântica, seus semantemas.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Drão
Gilberto Gil
O amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar nalgum lugar
Ressuscitar no chão
Nossa semeadura
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer!
Nossa caminhadura
Dura caminhada
Pela estrada escura
Drão
Não pense na separação
Não despedace o coração
O verdadeiro amor é vão
Estende-se, infinito
Imenso monolito
Nossa arquitetura
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer!
Nossa caminha dura
Cama de tatame
Pela vida afora
Drão
Os meninos são todos sãos
Os pecados são todos meus
Deus sabe a minha confissão
Não há o que perdoar
Por isso mesmo é que há
De haver mais compaixão
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Se o amor é como um grão!
Morrenasce, trigo
Vivemorre, pão
Drão
Gravações
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Djavan – Songbook Gilberto Gil, Vol. 3, 1992 – Lumiar Discos
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Caetano Veloso – Prenda Minha Ao Vivo, 1998 – Universal Music
Gilberto Gil e Arthur Moreira Lima – MPB Piano Collection, 1999 – Sony Music
Armandinho – A voz do bandolim: Caetano & Gil, 2001 – Visom Digital
Jura Figueiredo – Sucessos de barzinho, vol. 1, 2003 – Somax
Djavan – Perfil, 2006 – Som Livre
Glaucia Nasser – Bem demais, 2007 – Tratore
Rafael Greyck – Luau 3, 2009 – JVR Produções
Preta Gil, Gilberto Gil e Fran – Noite Preta Ao Vivo, 2010 – Blacktape
Gilberto Gil, Ivete Sangalo e Caetano Veloso – Especial Ivete, Gil e Caetano, 2012 – TV Globo
The Voice Brasil/ Lui Medeiros – Drão (single), 2014 – TV Globo
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Dois Amigos, um Século de Música (Ao Vivo), 2015 – Gege e Uns Produções Artísticas
Chico Costa – Melody Sax, 2017 – Seven Music
Guinga, Lucila Manzoli, Vitoria Manzoli – Gilberto Gil Hoje, 2019 – Tratore
Orquestra Albatroz – Música Ambiente, Vol. 2, 2019 – Albatroz Brasil
Milton Nascimento – Drão (single), 2020 – Nascimento Música
Hamilton de Holanda e Mestrinho – Canto da Praya (Ao vivo), 2020 – Deck
Elza Soares e João de Aquino – Elza Soares & João de Aquino, 2021 – Deck
Gilberto Gil – Em casa com os Gil, 2022 – Gege
Comentário*
Há canções de maturação, que começam por uma pílula de criação – por uma gota que colore a água no jarro e vai decantando; um dia você pega aquele precipitado lá no fundo e trabalha nele. É um modo; Expresso 2222, por exemplo, foi feita assim. Mas há canções que demandam esforço concentrado por considerável período de tempo de realização intensiva. Drão está entre essas.
Sua criação apresentou altos graus de dificuldade porque ela lidava com um assunto denso – o amor e o desamor, o rompimento, o final de um casamento; porque era uma canção para Sandra [apelidada Drão – daí o título da música] – e para mim. ‘Como é que eu vou passar tanta coisa numa canção só?’, eu me perguntava. Além disso, havia a exigência de excelência, de que o versar tivesse capricho. Então demorou dias e dias de trabalho.
Eu me lembro de estar sentado no chão, anotando frases no caderno, com o violão do lado, e de repente sentir o sufoco do coágulo da criação, e ao mesmo tempo a iminência da explosão da via criativa, e não aguentar, saindo dali e indo para o quarto me deitar e deixar, então, aquele coágulo se dissolver, criando filetes que se encaminhavam pra aqui e pra ali… Aí o cérebro e o coração entumeciam, algumas ideias fluíam, e dois, três ou quatro versos saíam. Satisfeito, eu fechava o caderno e ia embora cuidar da vida. Saía, passava o dia fazendo outras coisas, chegava de noite eu retomava; ficava a madrugada toda de novo.
Outra exigência que eu me colocava era de não me precipitar. Eu queria que o fazer, a prática, o empirismo da realização fossem observados pelo meu ser ali à distância: eu tinha que contemplar o feitio da canção. Ao lado do esforço, da tensão concentrada, tinha que haver a descontração, o relaxamento concentrado – as duas coisas, e todas essas exigências sobrepostas determinando o modo de compor a canção.
Fazer música é uma loucura quando você se coloca tantos problemas.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Corintiá
Gilberto Gil
Que todo ano a gente vai sofrer
Se enrolar no pano da bandeira
E reclamar se o time não vencer
Mas de repente o ano é santo, a gente tá no céu
O time é forte, a sorte é grande, o axé tá com a Fiel
O axé tá com a Fiel
Voa suave o gavião
O axé tá com a Fiel
Bate na trave o coração
Ser corintiano é mergulhar
No oceano da ilusão que afoga
Não importa o plano do destino
Cada jogo é o coração que joga
Bate na trave a ilusão da gente, vai que vai
Chuta de novo que o coração entra e o grito sai:
É gol!
Corintiá
É gol!
Corintimão
Gravação
Tete da Bahia – Tete da Bahia ao vivo, 1994
Comentário*
Foi o Sócrates que me sugeriu que fizesse — no dia em que me encontrei com ele num show em São Paulo, no antigo Palace: “Você não tem uma música pro Corinthians? Faz uma música pro Corinthians”. Eu estava brincando com ele sobre o sofrimento, sobre aquela característica de sofredor do torcedor corintiano: a coisa dos vinte e três anos de jejum em que o Corinthians tinha ficado, até ganhar da Ponte Preta o Campeonato Paulista de 1977. Aí eu fiz “Corintiá”.
Sobre a posterior mudança de característica do torcedor corintiano. — É quando começa a haver a nacionalização dos grandes clubes cariocas e paulistas, no sentido pop, e que dá nas conquistas de campeonatos no Brasil e de torneios sul-americanos e até do Mundial, que o Corinthians acaba ganhando do Chelsea.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Cores vivas
Gilberto Gil
Na maré desse verão
Esperar
Pelo entardecer
Mergulhar
Na profunda sensação
De gozar
Desse bom viver
Bom viver
Graças ao calor do sol
Benfeitor
Dessa região
Natural
Da jangada, do coqueiral
Do pescador
De cor azul
Bela visão
Cartão postal
Sabor do mel, vigor do sal
Cores da pena de pavão
Cenas de uma vibração total
Cores vivas
Eu penso em nós
Pobres mortais
Quantos verões
Verão nossos
Olhares fãs
Fãs desses céus
Tão azuis
Gravações
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
Gilberto Gil – Em concerto, 1987 – Gege
Gilberto Gil – Em casa com os Gil, 2022 – Gege
Comentário*
Outra canção composta de encomenda, para a trilha de uma novela [da Rede Globo]. Alguém me ligou e disse: “Olha, vai ter essa novela, vai se chamar Água Viva, o tema é assim, assim, e vai precisar de uma canção, enfim”.
Um dia eu estava em Salvador, no verão, as pessoas todas tinham saído, eu fiquei em casa e comecei a canção. Eu me lembro que a primeira pessoa que chegou, com a canção já encaminhada, praticamente feita, foi Maria Helena Guimarães; eu estava cantando, ela entrou, sentou, ouviu e disse: “Ô, que canção linda”. E eu disse: “Acabei de fazer”.
“Cores vivas” é sobre o encanto de viver e, de novo, como em “Luar”, sobre a sensorialidade; sobre os sentidos captando a beleza da manifestação da vida em todos os seus fenômenos. O Porto da Barra é a sua locação; é como se eu estivesse lá, naqueles fins de tarde em que a gente fica esperando a hora em que o sol se põe atrás da ilha de Itaparica.
O verso “Cenas de uma vibração total” relaciona a música com a noção de maia, de ilusão da matéria, ilusão da forma, a noção de que não há forma, só há vibração — com o sentido vibrátil da manifestação da vida. Daí eu dizer em seguida, nas linhas finais: “Cores vivas/ Eu penso em nós/ Pobres mortais/ Quantos verões/ Verão nossos/Olhares fãs”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Dos pés à cabeça
Gilberto Gil
Meu corpo, onde estão os meus pés
Meus pés, onde está o chão
Ou então
Onde a cabeça
Com seu pensar em vão
Eu estou onde tudo esteja
Ou seja
Onde quer que esteja em mim
O céu, o chão, o não, o sim
A vontade de Deus
O meu corpo todo, eu acho
Vale quanto pesa e sente
Como pensa e é imenso
Como deve ser o vôo
Da terra pra lua
E a noite da lua
E a imensa viagem do dia do sol
E a continuação da imensidão
Pelo corredor da enfermaria
Daquele lugar aonde eu ia
Visitar meu namorado internado
Dado por louco
Por pouco, pouco, muito pouco
Pouco mesmo
Gravações
Maria Bethânia – A cena muda, 1974 – Philips
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao Vivo), 1974 – Gege
Comentário*
Interessante, na primeira estrofe, a ideia do corpo como habitat do eu, locus da pessoa – ‘corpo’ nessa acepção mais moderna, contemporânea, da palavra: o corpo como grande ente político –, e a inversão inesperada de sentido, dos pés para a cabeça, do físico para o mental.
E, no final, a súbita erupção de um personagem que surge para humanizar a canção, fazendo-a sair da referência auto subjetiva, mudando, assim, novamente, a direção da poesia: do abstracionismo cósmico para a concretude física, real, de um corredor, de um lugar da vida, do cotidiano, um corredor de uma enfermaria, um lugar de tratamento, de confinamento, de exclusão, de solidão: um hospício [internamentos, sobretudo por uso de droga, eram muito comuns na época].
No fecho, eu aludo a uma daquelas expressões marcantes do [locutor esportivo] Fiori Giglioti, que ficavam nos ouvidos dos aficionados do futebol: ‘Por pouco pouco, muito pouco, pouco, muito pouco, pouco mesmo’ (ele dava ainda mais uma voltinha, girava mais uma vez a expressão). Eu a usei. A música foi feita para Maria Bethânia.
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Coragem pra suportar
Gilberto Gil
Coragem pra suportar
Tem que viver pra ter
Coragem pra suportar
E somente plantar
Coragem pra suportar
E somente colher
Coragem pra suportar
E mesmo quem não tem
Coragem pra suportar
Tem que arranjar também
Coragem pra suportar
Ou então
Vai embora
Vai pra longe
E deixa tudo
Tudo que é nada
Nada pra viver
Nada pra dar
Coragem pra suportar
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1968), 1968 – Philips
Comentário*
Uma coisa tosca, esculpida brutamente, bonita. É sobre o retirante; a decisão estoica, ou heroica, de viver e morrer com aquela carência, ou então se retirar, ir embora. “Coragem pra suportar” é uma cantoria militante. O desassistir do injustiçado homem do campo e, ao mesmo tempo, aquela coisa do Euclides da Cunha: “O sertanejo é antes de tudo um forte” — uma fraqueza transfigurada em força, a força do homem fraco.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil