Músicas
Cérebro eletrônico
Gilberto Gil
Faz quase tudo
Quase tudo
Mas ele é mudo
O cérebro eletrônico comanda
Manda e desmanda
Ele é quem manda
Mas ele não anda
Só eu posso pensar se Deus existe
Só eu
Só eu posso chorar quando estou triste
Só eu
Eu cá com meus botões de carne e osso
Hum, hum
Eu falo e ouço
Hum, hum
Eu penso e posso
Eu posso decidir se vivo ou morro
Porque
Porque sou vivo, vivo pra cachorro
E sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Em meu caminho inevitável para a morte
Porque sou vivo, ah, sou muito vivo
E sei
Que a morte é nosso impulso primitivo
E sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Com seus botões de ferro e seus olhos de vidro
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1969), 1969 – Philips
Marisa Monte – Barulhinho Bom, 1996 – Phonomotor
Gilberto Gil – Quanta gente veio ver (Ao Vivo), 1998 – Gege
Gilberto Gil – It’s good to be alive – anos 90, 2002 – Warner Music
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Biscoito Fino
Comentário*
Eu estava preso havia umas três semanas, quando o sargento Juarez me perguntou se eu não queria um violão.
Eu disse: “Quero”. E ele me trouxe um, com a permissão do comandante do quartel. O violão ficou comigo uns quinze dias. Aí, eu, que até então não tinha tido estímulo para compor (faltava a “voz” da música, o instrumento), fiz “Cérebro eletrônico”, “Vitrines” e “Futurível”, além de uma outra, também sob esse enfoque,
ou delírio, científico-esotérico, que possivelmente ficou apenas no esboço e eu esqueci.
O fato de eu ter sido violentado na base de minha condição existencial — meu corpo — e me ver privado da liberdade da ação e do movimento, do domínio pleno de espaço-tempo, de vontade
e de arbítrio, talvez tenha me levado a sonhar com substitutivos e a, inconscientemente, pensar nas extensões mentais e físicas do homem, as suas criações mecânicas; nos comandos teleacionáveis que aumentam sua mobilidade e capacidade de agir e criar. Porque essas são ideias que perpassam as três canções.
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999. “Tinha já passado pela Vila Militar da Tijuca e de Deodoro; agora estava no Quartel dos Paraquedistas, onde fiquei sozinho numa cela. Foi lá que, pela primeira vez, li uma reportagem sobre macrobiótica, e era com John Lennon e Yoko Ono. Pedi à Gizeuda — irmã de Turíbio
Santos — e à Sandra, que naquela época era ainda minha namorada, para me trazerem livros sobre macrobiótica. Foi lá que tive as primeiras noções sobre isso e pedia ao pessoal da cozinha
do quartel para me trazer aveia e banana, e comecei um vegetarianismo incipiente, possível naquela situação, mas com uma disposição muito grande. Li os primeiros livros de ioga que a
Gizeuda me trouxe e comecei a fazer as primeiras posições de relaxamento e respiração.
“Sua verdadeira iniciação para um processo de liberdade interna começa na condição de prisioneiro. — Eu diria que passou a ter ali uma face mais visível a minha busca espiritual, a minha ânsia mística. Todo esse primeiro polimento, essa primeira retirada da poeira da superfície do meu ser foi feita ali dentro da prisão. ‘Cérebro eletrônico’ é uma das músicas que retratam isso. Era uma época onde a cibernética estava começando a ser discutida publicamente. O computador começando, ainda incipientemente naquele momento, mas já se tornando uma realidade. A gente nem chamava
ainda de computador, era cérebro eletrônico, aquele monstrengo, ainda nem um pouco miniaturizado como são os computadores
hoje. Era um tempo com aquelas perspectivas de ficção científica, com 2001: Uma odisseia no espaço, de Arthur Clarke, e as primeiras viagens espaciais se concretizando.
[…]
“Era o mundo, esse mundo moderno dos homens e suas ciências e eu com a ciência de Deus, com o conhecimento da condição Divina que era tudo que me restava ali. Confinado, só tinha a mim mesmo, em si mesmo. A música ‘Cérebro eletrônico’ reflete esse contraste, esse diálogo entre o mundo dos homens e seu poder, o mundo de Fausto e o mundo de Deus. Há uma frase
fundamental dessa música: ‘Só eu posso pensar se Deus existe/Só eu/ Só eu posso chorar quando estou triste’. Acho que esses versos são resumos daquela situação-limite, naquela fronteira entre a
vida e a morte que, simbolicamente, se instalara naquela tensão máxima entre liberdade e prisão. Estava ali, trancafiado, mas com viagens astrais e mentais, as que me eram possíveis. ‘Vitrines’,
por exemplo, foi uma música exatamente nesse sentido, saindo daquele microcosmo reducionista de prisão para acompanhar o voo livre das naves espaciais.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Casinha feliz
Gilberto Gil
Toda casinha feliz
Ainda é vizinha de um riacho
Ainda tem seu pé de caramanchão
Onde resiste o sertão
Toda casinha feliz
Ainda cozinha no fogão de lenha
Ou fogareiro de carvão
De dia, Diadorim
De noite, estrela sem fim
É o Grande Sertão: Veredas
Reino da Jabuticaba
As minas de Guimarães Rosa
De ouro que não se acaba
Onde resiste o sertão
Toda casinha é feliz
Porque à tardinha tem Ave Maria
E o beijo da solidão
Gravações
Gilberto Gil – Dia dorim noite neon, 1985 – Warner Music
Gilberto Gil – As canções de Eu, Tu, Eles, 2000 – Warner Music
Renato Braz – Outro quilombo, 2002 – Atração Music
Comentário*
A letra veio toda na cabeça, toda de cor, de coração total, quando eu a escrevi, em Curitiba, no hotel Mabu, sob uma tempestade de raios, relâmpagos e trovões, deitado no chão do quarto, com imagens de Ituaçu, da infância na cidade, na memória. ‘Casinha feliz’ começou com Guimarães mesmo, com Diadorim – o personagem do ‘Grande sertão: veredas’ –, com o sertão dele.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Cantiga de quem está só
Gilberto Gil
Quem ganhará nesta hora os teus abraços?
Meu pensamento rasteja o teu caminho
Minha saudade sem fim segue os teus passos
Ai, quem terá entre as mãos os teus cabelos?
Quem ouvirá dos teus lábios a frase louca?
No meu desejo de amor estou a vê-los
Chego a senti-los até em minha boca
A quem dirás “meu amor”
Com este jeito tão teu
Com este estranho calor
Que há tanto tempo foi meu?
Ai, quem será que tu vais mandar embora?
Quem chorará como eu, que choro agora?
Cantiga
Gilberto Gil
Torquato Neto
Eu te amo tanto, tanto
Que esta minha vida
Sem você
Seria para sempre triste
E eu nem sei se existe
Vida assim
Que alguém possa viver
Meu bem eu te amo tanto
Que vou te dizer
Daria minha vida
Pra não te perder
Cantando as Horas
Gilberto Gil
O tempo todo eu fico a procurar
Cá no meu peito tá acesa a chama
Minha boca chama a sua sem parar
Sou passarinho e bem devagarinho
Eu vou cantando as horas pra poder voar
Pra nossa casa
Pro nosso ninho
E no teu carinho me aconchegar
Nossos lençóis bordados, nossa cama
Quando a gente ama
Só pensa em ficar
Mas a saudade tem a sua trama
E é por ir embora que eu posso voltar
Eita que a saudade faz milagre
Abre a nossa porta depois de fechar
Eita que a espera não altera
Um amor maior que o tamanho do mar
Amanhã bem cedo estou na estrada
Nada que a demora avexe o coração
Se a saudade for muito apertada
Sei que largo tudo e pego um avião
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
Essa foi feita a partir de um fragmento de canção,
já com letra e tudo, que a Roberta me mandou pra que eu continuasse, terminasse. Eu só entrei no verso “Eita que a saudade faz milagre”, daí em diante é que é minha. Eu só entrei nessa pequena segunda parte, pra dar um fecho na canção. Mas toda a ideia, toda a temática, os elementos constituintes da canção, foi ela que estabeleceu.
Aí você pega o tema da saudade que é caro a você, assim como o da estrada. — É. Essa ideia de voltar pra casa, um sentimento bem nordestino também. Do retirante sempre saudoso, ansioso,
esperançoso de voltar pro seu torrão natal. Tem muito isso na música nordestina. E, como ela já veio com a canção proposta como um xote mesmo, foi natural que esse sentimento nordestino viesse também na música e nos versos que eu coloquei.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Canô
Gilberto Gil
da época do trem motriz
do auge dos canaviais
tens vivido a semear a luz
a paz e o amor que tem raiz
na índia dos teus ancestrais
vida cheia de momentos raros
nesta cara santo amaro
terra de doces paixões
zeca e todas as meninas
e os meninos, quantos sinos
quantos hinos, quantas orações
has de ouvir de nós
sempre essa voz
sempre essa voz
sempre em tom de louvor
nossa emoção, canô
nesta canção, canô
nossa emoção, nesta canção
parabéns pra você, canô
cem anos com você, canô
parabéns pra você, canô
cem anos com você, canô
Gravação
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Gege
Comentário*
Uma música em homenagem a Canô [a mãe de
Caetano Veloso e Maria Bethânia] fazendo cem anos. Aí, as reminiscências, as rememorações no tempo. “Desde o tempo do carro de boi/Da época do trem motriz”, que foi uma novidade extraordinária no transporte no Recôncavo da Bahia; o trem motriz que levava Salvador pra Santo Amaro. Canô, a personagem tão vivida e tão vívida naquela comunidade extraordinária. Primeira mulher a dirigir um carro naquela pequena cidade de Santo Amaro. Pioneira em tantos sentidos. E eu ousei associá-la, no ponto de vista de descendência, aos indianos. É que vieram alguns deles pra região, trazendo o gado nelore e zebu, do século XVIII pro século XIX.
A propósito dos traços indianos de Dona Canô. — Não só dela, mas do próprio marido, Zeca, também. E de todos os descendentes. Me brotou assim a ideia de que ela pudesse ter sido mesmo descendente de um daqueles indianos que estiveram por ali, naquela época.
A canção vai juntando essas coisas e, evidentemente, os filhos, a família. O carinho e a amizade profunda [entre as famílias de Caetano e de Gil]. Ela, Claudionor, e minha mãe, Claudina. Ele, José, e meu pai, também José. Muitas sintonias. Esse aspecto sintônico, sincrônico, da nossa união, eu e Caetano. E ela, sendo assumida como mãe minha também.
Havia vários campos de extração das pepitas, que iam aparecendo ali, nos vários campos do grande campo afetivo das nossas vidas. E eram cem anos, coisa rara. Como eu vim a fazer “Jacintho”,
depois, pra celebrar um centenário. Um outro centenário de um conhecido em São Paulo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Canção da moça
Gilberto Gil
Capinan
Que um dia possa ter um lugar
Um lugar que seja meu, que seja meu
Um luar, um luar sobre o caminho
Um amor a quem dê flores
Nuvens no céu, conchas no mar
Amor a quem ensine o amor
Que aprendi ao caminhar
Vou andando, vou sonhando, vou sorrindo
Teu sorriso, sonho antigo em minha dor
Axé, babá
Gilberto Gil
Dá-nos a luz do teu dia
De noite a estrela-guia
Da tua paz
Dentro de nós
Meu pai Oxalá
Dá-nos a felicidade
O pão da vitalidade
Do teu axé
Do teu amor
Do teu axé
Do teu amor
Ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô
Axé, babá
Ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô
Axé, babá
Ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô
Axé, babá
Ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô
Gravação
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
Comentário*
Mais uma canção cuja música existia antes, na qual eu tive que encaixar a poesia, desbastando a madeira e quebrando a pedra, para colocá-la numa fôrma previamente estabelecida. E aí me veio a ideia de fazer uma letra sobre Oxalá, para Oxalá. A canção é um afoxé ao estilo dos Filhos de Gandhi, com quem eu tinha iniciado uma relação havia um tempo (fazia uns seis anos que eu saía no bloco) – daí, ‘Axé, babá’.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Cálice
Gilberto Gil
Chico Buarque
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
© Gege Edições Musicais / © Cara Nova Editora Musical LTDA.
Gravações
Chico Buarque e Milton Nascimento – Chico Buarque, 1978 – Philips
Maria Bethânia – Álibi, 1978 – Philips
MPB 4 – Bons Tempos, Hein?, 1979 – Universal Music
Gabriel O Pensador – Gabriel O Pensador, 1993 – Sony Music
Chico Buarque – Perfil, 1997 – Polygram
Meninos de São Caetano – Banda Sinfônica do Agreste, 1997 – Velas
Sérgio Ricardo – Songbook Chico Buarque – Vol. 3, 1999 – Lumiar Discos
Chico Buarque e Milton Nascimento – Millenium, 2004 – Universal Music
Gilberto Gil e Chico Buarque – Gil & Chico sound + vision / Phono 73, 2004 -Universal Music
Miucha e Bebel – Gil na delas, 2005 – BMG
Maria Bethânia – Bethânia Canta Chico {cd 2}, 2005 – Universal Music
Chico Buarque e Milton Nascimento – Gilberto Gil – 2 lados, 2010 – Universal Music
Chico César – Cantos e encontros de uns tempos pra cá, 2011 – Biscoito Fino
Pitty e Indireto- Single, 2011 – Pacific Records
João Fenix – De volta ao começo, 2016 – Biscoito Fino
Daniela Mercury – O axé, a voz, o violão, 2016 – Biscoito Fino
Antônio Zambujo – Até pensei que fosse minha, 2016 – Som Livre
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao Vivo na USP (1973), 2017 – Discobertas
Milton Nascimento e Chico Buarque – Os Dias Eram Assim (trilha sonora), 2017 – Som Livre
Comentário*
A Polygram queria fazer um grande evento com todos os seus artistas no formato de encontros, e foi dada a mim e ao Chico a tarefa de compor e cantar uma música em dupla.
Era semana santa e nós marcamos um encontro no sábado no apartamento dele, na Rodrigo de Freitas (a lagoa referida, aliás, por ele na letra). Eu pensei em levar alguma proposta e, um dia antes, no fim da tarde, me sentei no tatame, onde eu dormia na época, e me pus a esvaziar os pensamentos circulantes para me concentrar. Como era sexta-feira da Paixão, a ideia do calvário e do cálice de Cristo me seduziu, e eu compus o refrão incorporando o pedido de Jesus no momento da agonia. Em seguida escrevi a primeira estrofe, que eu comecei me lembrando de uma bebida amarga chamada Fernet, italiana, de que o Chico gostava e que ele me oferecia sempre que eu ia a sua casa.
No sábado não foi diferente: ele me trouxe um pouco da bebida, e eu já lhe mostrei o que tinha feito. Quando, cantando o refrão, eu cheguei ao ‘cálice’, no ato ele percebeu a ambiguidade que a palavra, cantada, adquiria, e a associou com ‘cale-se’, introduzindo na canção o sentido da censura. Depois, como eu tinha trazido só o refrão melodizado, trabalhamos na musicalização da estrofe a partir de ideias que ele apresentou. E combinamos um novo encontro.
Ele acabou fazendo outras duas estrofes e eu mais uma, quatro no total, todas em oito decassílabos. Dois ou três dias depois nos revimos e definimos a sequência. Eu achei que devíamos intercalar nossas estrofes, porque elas não apresentavam um encadeamento linear entre si. Ele concordou, e a ordem ficou esta: a primeira, minha, a segunda, dele; a terceira, minha, e a última, dele.
Na terceira, o quarto verso e os dois finais já foram influenciados pela ideia do Chico de usar o tema do silêncio. O termo, aliás, já aparecia na outra estrofe minha, anterior: ‘silêncio na cidade não se escuta’, quer dizer: no barulho da cidade, não é possível escutar o silêncio; quer dizer: não adianta querer silêncio porque não há silêncio, ou seja: não há censura, a censura é uma quimera; além do mais, ‘mesmo calada a boca, resta o peito’ e ‘mesmo calado o peito, resta a cuca’: se cortam uma coisa, aparece outra.
Aí, no dia em que nós fomos apresentar a música no show, desligaram o microfone logo depois de termos começado a cantá-la. Tenho a impressão de que ela tinha sido apresentada à censura, tendo-nos sido recomendado que não a cantássemos, mas nós fizemos uma desobediência civil e quisemos cantá-la.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Cada tempo em seu lugar
Gilberto Gil
Preciso refrear um pouco o meu desejo de ajudar
Não vou mudar um mundo louco dando socos para o ar
Não posso me esquecer que a pressa
É a inimiga da perfeição
Se eu ando o tempo todo a jato, ao menos
Aprendi a ser o último a sair do avião
Preciso me livrar do ofício de ter que ser sempre bom
Bondade pode ser um vício, levar a lugar nenhum
Não posso me esquecer que o açoite
Também foi usado por Jesus
Se eu ando o tempo todo aflito, ao menos
Aprendi a dar meu grito e a carregar a minha cruz
Ô-ô, ô-ô
Cada coisa em seu lugar
Ô-ô, ô-ô
A bondade, quando for bom ser bom
A justiça, quando for melhor
O perdão:
Se for preciso perdoar
Agora deve estar chegando a hora de ir descansar
Um velho sábio na Bahia recomendou: “Devagar”
Não posso me esquecer que um dia
Houve em que eu nem estava aqui
Se eu ando por aí correndo, ao menos
Eu vou aprendendo o jeito de não ter mais aonde ir
Ô-ô, ô-ô
Cada tempo em seu lugar
Ô-ô, ô-ô
A velocidade, quando for bom
A saudade, quando for melhor
Solidão:
Quando a desilusão chegar
Gravação
Gilberto Gil – O eterno deus Mu dança, 1989 – Warner Music
Comentário*
Um autorretrato autocrítico.
O começo versa sobre a atuação política no mundo; a ilusão de que a transformação pode ser feita segundo o seu lema, sua imagem; de que ela não é um processo lento, contraditório, cheio de altos e baixos e de vaivéns, ao invés de um escorrer no tempo; e o fato de que muitas vezes ela é imperceptível, misteriosa, e o afã humano de que ela seja algo dominável é uma panaceia, coisa das ideologias. Muito a ver com eu ter ido para a política, tentar dar uma contribuição, como gratificação egoísta de desejo.
Eu tinha passado pela Secretaria de Cultura, tentado a Prefeitura, vivido dois anos intensamente conflituosos da vida política em Salvador. Estava na Câmara, quando compus a música. Há nela um tom de lamento de The Fool on The Hill: o homem solitário, na montanha, apreciando o mundo louco; louco, também, de vê-lo e ser parte dele.
Na segunda estrofe, outra autocrítica: à mania de bondade. E na última, à irracionalidade do ímpeto como algo de eficácia indiscutível; à pretensão de que do impulso decorra tudo que se quer (ali, também, uma referência oculta a Caymmi: ‘Um velho sábio na Bahia’).
‘Cada tempo em seu lugar’: pra passar mais uma vez essa ideia de indissociabilidade do tempo-espaço, de que eu gosto muito.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Autorretratinho
Gilberto Gil
Revelam meu sorriso azulejado
Emoldurado por lábios salientes
Certamente ardentes se beijados
A fronte suavemente projetada
Como nas estátuas primitivas
A testa de feição mais alongada
Como nas estirpes mais antigas
Me atenho aqui a descrever meu rosto
Que o resto só com os olhos de um pintor
Suficientemente hábil e de bom gosto
Pra retratrar-me toda em toda cor
Apenas cito a mais as minhas pernas
Raramente expostas por inteiro
Qual montanhas sob neves eternas
Encobertas janeiro a janeiro
Talvez a breve referência aos dentes
E ao meu sorriso aberto azulejado
Já seja tão ou mais que o suficiente
Para explicar as fadas do meu fado
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
Um retrato físico e álmico da mulher na persona dela, para ela, Roberta Sá, cantar. — “Os dentes levemente mais à frente”, porque ela tem uma protuberância na arcada dentária que lhe dá um charme grande, muito a embeleza. O sorriso “emoldurado por lábios salientes/Certamente ardentes se beijados” — aí já é a minha fantasia em relação a ela, condição feminina profunda, atraente dela. A descrição da fronte e da testa é mais neandertálica, ligada àquele Homo sapiens mais antigo: tem algo nela que me produz essa impressão. A referência às pernas se deve ao hábito frequente de usar calças e saias longas. Não me lembro de uma oportunidade que a tenha visto de saias curtas ou algo assim. Ela estava sempre, pelo menos pra mim, na maior parte das oportunidades em que a encontrei, com as pernas encobertas — enfim, ela dizendo isso. “As fadas”, no verso final, são para explicar o aspecto das entidades que a circundam, que estão ali ao entorno dela: entes, duendes, fadas, esse mundo de fantasias, esse mundo mágico; e “do meu fado”, porque é como se ela fosse uma fadista; não é? A última estrofe tem mesmo um elemento lusitano no próprio desdobrar dos versos; poderia ter sido escrita por um poeta português.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Atrás do trio
Gilberto Gil
Tou atrás do fio pra ligar
O pavio dessa minha bomba H
Tou atrás há três
Horas atrozes sem poder lhe ver
Será que eu vou ter
De atravessar três dias?
Será que eu vou ter
De atravessar três dias
Sem poder, sem poder
Explodir a bomba H maiúsculo
Relaxar a fibra desse músculo
Já cansado de trombar
De dar encontrão
Na esperança de lhe encontrar
Na contramão
Tou atrás do trio
Tou tão apressado
Tou tão por um fio
Tou tão precisado
De lhe encontrar
De ver você se dependurar em mim
Me fazer de trapézio, de trampolim
Gravação
Dodô e Osmar – Ligação, 1978 – Continental
Comentário*
Estar atrás do trio é um pretexto para estar atrás da menina, já que ela estava lá, e a única maneira de alcançá-la seria me meter naquele fuzuê, enfrentar cotoveladas, encontrões, bordoadas de todo tipo.
Por exemplo, Caetano não cantaria, não falaria essas coisas.
— Não, ele ia, ele gostava. Ele fez várias canções saudando essa “pauleira Hendrix”, como diriam os meninos da Bahia. Já o Gil é um pífio carnavalesco. Estava só de olho nela, na menina. É por ela que ele está enfrentando… — Aquela tormenta.
O que para outros é ótimo, uma maravilha… — Pra mim era uma tempestade.
Muito bom! [risos] Não é à toa que, pra sair no Carnaval, você se identificou mesmo foi com os Filhos de Gandhy. — É claro. Atrás do trio elétrico é trincheira de guerra.
“Atriz atroz atrás há três”. — A canção contém uma citação a uma tirada muito conhecida, atribuída a Emílio de Menezes, que era um satirista [jornalista e poeta parnasiano, imortal da Academia Brasileira de Letras; segundo Glauco Mattoso, o maior poeta satirista brasileiro após Gregório de Matos]. Ele estaria na plateia de um teatro, e atrás, nas filas, estariam fazendo comentários, barulhos. Ele teria então se referido à atriz ao lado dele dizendo essa frase: “Atriz atroz atrás há três”. Não se sabe exatamente a quem ele estava se referindo, mas ele costumava criar frases de efeito dessa. Na hora me ocorreu essa boutade, que eu fiquei sabendo depois que seria do Emílio de Menezes.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Átimo de pó
Gilberto Gil
Carlos Rennó
O germe e Perseu
O quark e a Via-Láctea
A bactéria e a galáxia
Entre agora e o eon
O íon e Órion
A lua e o magnéton
Entre a estrela e o elétron
Entre o glóbulo e o globo blue
Eu, um cosmos em mim só
Um átimo de pó
Assim: do yang ao yin
Eu e o nada, nada não
O vasto, vasto vão
Do espaço até o spin
Do sem-fim além de mim
Ao sem-fim aquém de mim
Den de mim
Assimétrica
Gilberto Gil
Quer dizer sem você
Prefiro assim, assimetricamente
Viver com você
Assimetricamente nós dois
Assim como um mais um são três
Algo não se encaixa mas quem acha
Que dá certo somos nós
Nós e nós e nós e nós e nós
Todos desatados de uma vez
Quando nos atamos e amamos
Debaixo dos nosso lençóis
Muitos torcem, rezam, fazem ebó
Só pra ver você longe de mim
Só porque cismaram e inventaram que assim
Seria melhor
Só porque preferem me ver só
Só pra que só eles possam enfim
Ver-me, ter-me, beber-me, comer-me
Tomar-me pra eles
E só pra eles só
Assim, sim
Gilberto Gil
Diz pra mim que assim, não
Se eu chegar mansin
Diz pra mim que assim, sim
Se eu descer a mão
Diz pra mim que assim, não
Se eu fizer carin
Diz pra mim que assim, sim
Me diz assim, não, quando eu chego reclamando, resmungando, espinafrando, nega
Espinafre cru
Me diz assim, sim, quando eu chego
calmamente, docemente, simplesmente, nega
Suflê de chuchu (ou caruru)
Ocê vai me comer, vai me saborear…
Me diz assim, não, quando eu chego muito cedo, meio amargo, meio azedo, nega
Casca de limão
Me diz assim, sim, quando eu chego muito tarde, amolecido, já com ar de bobo
Creme de mamão (que tentação)
Ocê vai me comer, vai me saborear…
Gravação
Gilberto Gil – Fé na festa, 2010 – Gege Produções Artísticas
Comentário*
Também um forró. Uma tentativa de solução da atitude machista, da condicionante cultural etc. que impõe ao homem a figura varonil; da atitude de agressividade, violência. Evidentemente o ponto de vista da canção é o ponto de vista a partir das démarches feministas, das proposições feministas de mudanças, de transmutação, de transformação do macho. Na verdade o personagem masculino já é basicamente um convertido ou em processo de conversão para um adoçamento. Ele vai sendo adoçado. Ele próprio é quem fala; é ele a primeira pessoa falando para todos, abrindo mão disso que está associado à violência doméstica, à coisa toda do macho, senhor do terreno, dono da história, imperial, dominante: “Se eu vier dessa maneira, não. Se eu chegar ‘mansin’, sim. Se eu descer a mão, não. Se eu fizer ‘carin’, sim”. “Carin’”, em vez de “carinho” — uma contração muito popular que se faz em várias partes do Brasil, nos contextos mais interioranos. A ideia dos alimentos é para associar com a ideia do banquete sexual do refrão; pretexto para, na volta pra casa e no encontro com a parceira, seu amor, ele, o personagem, dizer: “Você vai me comer, vai me saborear”. E aí proporcionar musicalmente a ênfase da zabumbada, tum tum! Você vai me comer, tum!, vai me saborear, tum! Pum-pum-pá, pum-pum-pá! Aproveitar esse mote para um refrão musical também; o refrão não é só de letra, mas de música também. Refrão de gênero baião. Porque a música é um baião.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
As pegadas do amor
Gilberto Gil
Nem um bé
Uma cabra a esperniar
Um baé
Um porquinho, um bezerrinho
Uma pomba, uma preá
Animal de sangue quente
Atacado a sangue frio
Só prá ver sangue jorrar
Nem um pouco de pesar
De pavor
Nem um cabra a me implorar
Por favor
Nem um corpo a estrebuchar
Ao tremor das minhas mãos
Nem uma marca de horror
No chão do meu coração
Só as pegadas do amor
Gravações
Gilberto Gil – As canções de Eu, tu, eles, 2000 – Warner Music
Comentário*
Possivelmente algum momento do filme, alguma imagem despertou a ideia; a narrativa provocou a necessidade de tocar no tema do sacrifício animal. [Andrucha Waddington: “No filme não tem sacrifício animal. Gil criou as canções a partir das sensações que o filme lhe causou; ele conhecia o roteiro, mas compôs depois de ver o filme montado ainda sem trilha sonora, que é toda dele”.]
Toda essa coisa do sacrifício animal para a nutrição do homem. Os animais sacrificados para o alimento do homem levando à reflexão até das situações extremas como os grandes matadouros de aves. Aqui [em “As pegadas do amor”] não temos uma situação extrema; aqui é uma situação em que ainda há, digamos assim, um grau de equilíbrio razoável, sem a hipertrofia da larga produção em escala industrial. Mas a reflexão vai até lá.
A assimilação do ato de matar para comer pela execução do ato de matar para punir, do assassino; essas relações possíveis. Daí “Nem um cabra a me implorar:/ “Por favor”/ Nem um corpo a estrebuchar/ Ao tremor das minhas mãos”. A ideia de que é quase forçosa a alienação do fato de matar pra que se justifique a necessidade de comer. Todo esse jogo psicológico.
“Nem um pouco de pesar”: a frieza para o ato.
No final, nada, “só as pegadas do amor”. O redimir-se da agressão, da violência contra os animais.
Eu me lembro que era muito comum o fato de que se matavam animais no nosso quintal. Logo na infância nós éramos expostos ao ato de pegar a galinha, o porco, pra sangrar; lá em casa sangravam-se esses bichos. A memória do sangue jorrando, do animal estrebuchando. A naturalização muito cedo dessas coisas por força do hábito, da necessidade, da cultura do sacrifício animal para a alimentação do homem. E a associação disso com a violência, as facadas, os assassinatos cruéis muito típicos e comuns no Nordeste; os capangas sangrando os homens, matando-os por encomenda. Isso alimentando, realimentando a violência dos jagunços, dos patrões, dos senhores contra os escravos. A violência humana, o crime que advém de tudo isso. Acho que tem todas essas coisas em suspensão ali na — e pra — construção da canção. E sobre os ingredientes todos dela este trecho resume muito bem a perversidade humana envolvida no simples ato de matar para comer corrompido pelo desejo de matar para matar: “Animal de sangue quente/Atacado a sangue-frio/ Só pra ver sangue jorrar”.
Uma coisa do homem mais do que dos outros animais, que matam pra viver, enquanto o prazer de matar é tipicamente humano. — Exatamente. “Nem um pouco de pesar”. A malvadeza do ato.
Baé é um sinônimo de porco, de leitão; é um porquinho. “Uma cabra a espernear”: aí, cabra no feminino. “Nem um cabra a me implorar:” no masculino. No começo, um animal, a cabra; depois, um rapaz, o cabra. No mesmo ponto da melodia, da música.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
As coisas
Gilberto Gil
Arnaldo Antunes
Peso, massa, volume
Tamanho, tempo
Forma, cor
Posição
Textura, duração
Densidade
Cheiro
Valor
Consistência
Profundidade, contorno
Temperatura, função
Aparência
Preço, destino, idade
Sentido
As coisas não têm paz
As coisas
As camélias do quilombo do Leblon
Gilberto Gil
Caetano Veloso
As camélias do Quilombo do Leblon
As camélias do Quilombo do Leblon
As Camélias
As camélias do Quilombo do Leblon
As camélias do Quilombo do Leblon
As camélias do Quilombo do Leblon
Nas lapelas
Vimos as tristes colinas logo ao sul de Hebron
Rimos com as doces meninas sem sair do tom
O que fazer
Chegando aqui?
As camélias do Quilombo do Leblon
Brandir
Somos a Guarda Negra da Redentora
Somos a Guarda Negra da Redentora
Somos a Guarda Negra da Redentora
As camélias da Segunda Abolição
As camélias da Segunda Abolição
As camélias da Segunda Abolição
As Camélias?
As camélias da Segunda Abolição
As camélias da Segunda Abolição
As camélias da Segunda Abolição
Cadê elas?
Somos assim, capoeiras das ruas do Rio
Será sem fim o sofrer do povo do Brasil?
Nele e em mim
Vive o refrão
As camélias da Segunda Abolição
Virão.
Gravação
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois amigos, um século de música, 2015 – Gege Produções Artísticas e Uns Produções Artísticas (Sony Music)
Comentário*
A música foi deflagrada na nossa visita à região da Faixa de Gaza. Eu e Caetano estávamos em Israel fazendo shows e recebemos um convite pra visitarmos a Faixa de Gaza, conhecermos o local e as lideranças no movimento; as dificuldades físicas de alojamento, nas casas, a invasão das terras, tudo. Foi o que despertou em Caetano a associação com o movimento abolicionista brasileiro. Eu participei com uma palavrinha ou outra. Eu tenho a impressão que a complementação de frase “cadê elas?” fui eu que pus. A palavra “virão” também foi uma sugestão minha.
[Como se trata de uma letra sobretudo de Caetano, com a visão dele da questão, e como já houve questões que foram tocadas em canções por Gil e por Caetano, naturalmente, de uma perspectiva diferente — caso, por exemplo, do tema abordado por “Tempo rei” e “Oração ao tempo” —, e como Caetano adota uma posição de valorização da Abolição da escravatura no Brasil, mas sentindo a necessidade do que ele chama de Segunda Abolição; e como, ao mesmo tempo, há tempos vemos da parte de vertentes dos movimentos negros a disseminação do pensamento de que, na verdade, não houve Abolição, de que ainda é preciso haver a Abolição de fato, pergunto a Gil qual a sua posição a respeito disso. Que é esta:]
Eu sou partidário do sentimento do Caetano, que coincide com o de Joaquim Nabuco e tantos outros, e que reitera uma Segunda Abolição. Ou seja, uma complementação, uma completude. Eu acho muito importante o episódio da Abolição, o próprio envolvimento da princesa Isabel e o modo como aquilo tocou, numa certa forma, o tecido social; como aquilo vibrou na população, nas classes médias brasileiras, no próprio povo negro pobre, com comemorações prolongadas durante semanas, com festas no Rio de Janeiro, em Salvador, em vários lugares. [Caetano tematiza reverberações disso em “13 de maio”, falando de Santo Amaro da Purificação.] Que de uma certa forma inauguraram a ideia de capacidade de intervenção em bloco da população negra na formação da festa popular do Brasil. A semana da Abolição teve um papel extraordinário nesse sentido. Os negros todos foram pra rua celebrar uma coisa, pela primeira vez, acolhidos integralmente pelos brancos, pelos senhores e tudo mais. A festa negra é adotada na sua integridade pela primeira vez naquele momento. Essas são coisas importantes. O sentido cultural da Abolição. Não é só o sentido político, mas o cultural. A Abolição teve um sentido cultural profundo. Além da questão propriamente política, como, aliás, a canção coloca, com o envolvimento dos abolicionistas e a aproximação entre o universo dos homens políticos e a casa real. Esse diálogo, essa mútua autorização que o símbolo das camélias exatamente revela, é importante; tudo isso importa muito e precisa ser considerado pelos movimentos negros, queiram eles o que venham a querer.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
As ayabás
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Pra que todo mundo ouça
Eu agora vou cantar
Para todas as moças
Eu agora vou bater
Para todas as moças
Eu agora vou dançar
Para todas as moças
Para todas ayabás
Para todas elas
Iansã comanda os ventos
E a força dos elementos
Na ponta do seu florim
É uma menina bonita
Quando o céu se precipita
Sempre o princípio e o fim
Obá
Não tem homem que enfrente
Obá
A guerreira mais valente
Obá
Não sei se me deixo mudo
Obá
Numa mão, rédeas, escudo
Obá
Não sei se canto ou se não
Obá
A espada na outra mão
Obá
Não sei se canto ou se calo
Obá
De pé sobre o seu cavalo
Euá, Euá
É uma moça cismada que se esconde na mata
E não tem medo de nada
Euá, Euá
Não tem medo de nada
O chão, os bichos, as folhas, o céu
Euá, Euá
Virgem da mata virgem
Da mata virgem, dos lábios de mel
Oxum
Oxum
Doce mãe dessa gente morena
Oxum
Oxum
Água dourada, lagoa serena
Oxum
Oxum
Beleza da força da beleza da força da beleza
Oxum
Oxum
Aroma
Gilberto Gil
A-a-a-a-aroma
Vem pelo vento
Aroma
Fragrância, odor
Vem da pitanga
Da manga
Perfume da flor
Vem do estrume
Cheiro do gado
Vem do pecado (aroma-amor)
Do corpo dela (aroma-amor)
Todo molhado
Aroma
Um cheiro de suor
Ah, ah, ah, ah, aroma
Ah, ah, ah, ah, aroma
Vem pelas ventas
Aroma
Do pobre ou rico
Embriagado
Tu ficas
Eu também fico
Vem da macela
Da graviola
Vem do pé de manjericão
Todo o planeta
Aroma
De planta do sertão
Todo o planeta (que cheirinho gostoso)
Aroma (de capim cheiroso)
De planta do sertão
Aqui e agora
Gilberto Gil
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Aqui, onde indefinido
Agora, que é quase quando
Quando ser leve ou pesado
Deixa de fazer sentido
Aqui, onde o olho mira
Agora, que o ouvido escuta
O tempo, que a voz não fala
Mas que o coração tributa
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Aqui, onde a cor é clara
Agora, que é tudo escuro
Viver em Guadalajara
Dentro de um figo maduro
Aqui, longe, em Nova Deli
Agora, sete, oito ou nove
Sentir é questão de pele
Amor é tudo que move
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Aqui perto passa um rio
Agora eu vi um lagarto
Morrer deve ser tão frio
Quanto na hora do parto
Aqui, fora de perigo
Agora, dentro de instantes
Depois de tudo que eu digo
Muito embora muito antes
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
O melhor lugar do mundo é aqui
E agora
Gravações
Gilberto Gil – Refavela, 1977 – Philips
Gilberto Gil – Giluminoso, 1999 – Gege Produções Artísticas
Carla Visi – Carla visita Gilberto Gil, 2001 – MZA Music
Comentário*
“O ‘aqui e agora’ reivindicado pelos místicos: a situação confortável, que deveria ser buscada e atingida pelo homem, de integridade na vivência de cada momento, de cada centímetro de espaço ocupado; o ethos, no sentido mais absoluto e profundo da palavra.
“Aqui e Agora é de uma sensorialidade tanto física quanto álmica, quer dizer, fala de como ver, ouvir, tocar as superfícies do que é sólido e do que é etéreo, denso e sutil; de uma visão voltada para dentro, o farol dos olhos iluminando a visão interior.
“A letra é uma colagem de fragmentos de manifestações mentais não necessariamente associáveis: dissociadas. Como, na estrutura subatômica, a dinâmica das partículas: vagalumes apagando e acendendo em lugares inusitados – estando aqui, e já ali; estando sim, e já não…”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Aquele abraço
Gilberto Gil
O Rio de Janeiro continua sendo
O Rio de Janeiro, fevereiro e março
Alô, alô, Realengo – aquele abraço!
Alô, torcida do Flamengo – aquele abraço!
Chacrinha continua balançando a pança
E buzinando a moça e comandando a massa
E continua dando as ordens no terreiro
Alô, alô, seu Chacrinha – velho guerreiro
Alô, alô, Terezinha, Rio de Janeiro
Alô, alô, seu Chacrinha – velho palhaço
Alô, alô, Terezinha – aquele abraço!
Alô, moça da favela – aquele abraço!
Todo mundo da Portela – aquele abraço!
Todo mês de fevereiro – aquele passo!
Alô, Banda de Ipanema – aquele abraço!
Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço
A Bahia já me deu régua e compasso
Quem sabe de mim sou eu – aquele abraço!
Pra você que meu esqueceu – aquele abraço!
Alô, Rio de Janeiro – aquele abraço!
Todo o povo brasileiro – aquele abraço!
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil, 1969 – Philips
Elis Regina e Miele – Show Elis e Miele, 1970 – Philips
Gal Costa e Gilberto Gil – Live in London 71, 1971 – Gege/Discobertas
Gilberto Gil – Back in Bahia – ao vivo, 1972 – Gege/Discobertas
Gilberto Gil – Ao vivo em Tóquio, 1986 – Warner Music
Gilberto Gil – Soy loco por ti America, 1987 – Warner Music
Tim Maia – Songbook Gilberto Gil, 1992 – Lumiar Discos
Gilberto Gil – Unplugged, 2002 – Warner Music
Gilberto Gil – Eletracústico, 2004 – Warner Music
Alexandre Pires – Show da Paz – Cristo Redentor 80 anos, 2011 – Emi Music
Eliane Elias – Light my fire, 2011 – Concord Music
Angelique Kidjo, Forro In The Dark – Red Hot + Rio 2, 2011 – Red Hot Organization
Gilberto Gil – Gilbertos Samba ao vivo, 2014 – Sony Music
Diogo Nogueira – Samba de verão – Lua, 2021 – Dig Nog Produções
Gilberto Gil & Família – Single 2023 – Gege
Comentário*
“Meses depois de solto, eu vim ao Rio tratar da questão da saída do Brasil com o Exército. Na manhã do dia da minha volta para Salvador, fui visitar Mariah Costa, mãe de Gal; ali, na casa dela, eu ideei e comecei Aquele Abraço. Finalmente eu ia poder ir embora do país e tinha que dizer ‘bye bye’; sumarizar o episódio todo que estava vivendo, e o que ele representava, numa catarse. Que outra coisa para um compositor fazer uma catarse senão numa canção?
“No avião mesmo eu terminei a música, escrevendo a letra num papel qualquer, um guardanapo, e mentalizando a melodia. Tanto que é uma melodia muito simples, quase de blues; como eu não dispunha de instrumento, tive que recorrer a uma estrutura fácil para guardar na memória. Quando cheguei à Bahia, eu só peguei o violão e toquei; já estava comprometido afetivamente com a canção.”
“Aquele abraço, Gil!” – “Era assim que os soldados me saudavam no quartel, com a expressão usada no programa do Lilico, humorista em voga na época, que tinha esse bordão. Ele até ficou aborrecido com a música; achou que deveria ter direito à canção. Mas eu aprendi a saudação com os soldados. Eu não tinha televisão na prisão, evidentemente, mas eles assistiam o programa; eu só vim a ver depois, quando saí.”
Retificação ratificada – Não foi no quartel de Realengo que Gil e Caetano ficaram presos, e sim no de Marechal Deodoro. “De todo modo”, diz Gil, “a ideia em Aquele Abraço era citar um local qualquer da zona norte do Rio (onde ficamos), um daqueles beira-estrada-de-ferro (Beira Central, Beira Leopoldina), e Realengo é um deles. Uma associação inexata, feita por aproximação; eu nem queria me referir ao lugar certo onde havia ficado preso.”
Uma canção de quarta-feira de cinzas – “O reencontrar a cidade do Rio na manhã em que nós saímos da prisão e revimos a avenida Getúlio Vargas ainda com a decoração de carnaval foi o pano de fundo da canção. Na minha cabeça, Aquele Abraço se passa numa quarta-feira de cinzas; é quando o ‘filme’ da música é em mim mentalmente locado.”
The three tops – “Aquele Abraço é uma das músicas minhas mais populares, a mais tocada e o segundo mais vendido dos meus discos (compactos). Uma das três gravações minhas que ficaram em primeiro lugar nas paradas de sucesso durante maior tempo (dois meses; eu já estava na Europa). As outras são Xodó (três meses, em 73), da autoria do Dominguinhos e Anastácia, e Não Chore Mais (cinco, em 78), versão que fiz para uma música cantada pelo Bob Marley. Foram as três mais vendidas também.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Antigamente
Gilberto Gil
Não conheço, na verdade
Passado meu que me desse o que sofrer
Só pode ser de mim mesmo essa saudade
Do meu tempo em que a brincar corria
Sem nada saber de amor
Sem nada saber de dor
Sem ter que chorar por não ter nem saudade
De um bem pra chorar
Andar com fé
Gilberto Gil
Que a fé não costuma faiá
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Que a fé tá na mulher
A fé tá na cobra coral
Ô-ô
Num pedaço de pão
A fé tá na maré
Na lâmina de um punhal
Ô-ô
Na luz, na escuridão
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
A fé tá na manhã
A fé tá no anoitecer
Ô-ô
No calor do verão
A fé tá viva e sã
A fé também tá pra morrer
Ô-ô
Triste na solidão
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Certo ou errado até
A fé vai onde quer que eu vá
Ô-ô
A pé ou de avião
Mesmo a quem não tem fé
A fé costuma acompanhar
Ô-ô
Pelo sim, pelo não
Gravações
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Jorge Mautner e Nelson Jacobina – Songbook Gilberto Gil, Vol. 3, 1992 – Lumiar Discos
Ney Matogrosso – Sangue Latino: o melhor de Ney Matogrosso, 1997 – Universal Music
Estevão Teixeira – Flauta brasileira, 1998 – CID
Carla Visi – Carla visita Gilberto Gil, 2001 – MZA Music
Leila Pinheiro – Mais coisas do Brasil (Ao vivo), 2001 – Universal Music
João Bosco – Malabaristas do Sinal Vermelho, 2002 – Sony Music
Gilberto Gil – Eletroacustico (Ao vivo), 2004 – Warner Music
Rappin’ Hood – Sujeito Homem 2, 2005 – Trama
Rastapé – Tudo é Forró, 2006 – EMI Music
Gilberto Gil e Preta Gil – Gil + 10, 2011 – Pedra da Gávea
Gilberto Gil – Concerto de cordas e máquinas de ritmo, 2012 – Biscoito Fino
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Dois Amigos, um Século de Música (Ao Vivo), 2015 – Gege e Uns Produções Artísticas
Margareth Menezes – Para Gil & Caetano, 2015 – Estrela do Mar
Menina do Céu – Festa no céu, 2015 – Sony Music
Skank – Rock in Rio 30 anos, 2015 – Musickeria
Lucy Alves – Lucy Alves (single), 2020 – Lucy Alves
Gilberto Gil – Em casa com os Gil, 2022 – Gege
Mundo Bita – Andar com fé (single), 2023 – Mr. Plot – Mundo Bita
Comentário*
A fé e a “faia”. — O uso do “faiá” é assumido com a intenção de legitimar uma forma popular contra a hegemonia do bem falar das elites. É uma homenagem ao linguajar caipira, ao modo popular mineiro, paulista, baiano — brasileiro, enfim — de falar “falhar” no interior. É quase como se a frase da canção não pudesse ser verdade se o verbo fosse pronunciado corretamente — o que seria um erro… Outro dia cometeram esse “deslize” na Bahia, ao utilizarem a expressão na promoção de uma campanha de cinto de segurança. Nos outdoors, saiu: “A fé não costuma falhar” (a propaganda associava o cinto à fitinha do Senhor do Bonfim). Eu deixei, mas achei a correção desnecessária.
“Faiá” é coração, “falhar” é cabeça, e fé é coração. — É isso aí. “A fé não costuma faiá”: é pra quem fala assim que ela não costuma “faiá”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Amor até o fim
Gilberto Gil
Eu quero e sei que vou ficar
Até o fim eu vou te amar
Até que a vida em mim resolva se apagar
O amor é como a rosa no jardim
A gente cuida, a gente olha
A gente deixa o sol bater
Pra crescer, pra crescer
A rosa do amor tem sempre que crescer
A rosa do amor não vai despetalar
Pra quem cuida bem da rosa
Pra quem sabe cultivar
Amor não tem que se acabar
Até o fim da minha vida eu vou te amar
Eu sei que o amor não tem que se apagar
Até o fim da minha vida eu vou te amar
Gravações
Elis Regina e Jair Rodrigues – 2 Na Bossa, 1966 – Universal Music
Os Cariocas – Passaporte, 1966 – Universal Music
Elis Regina – Elis, 1974 – Universal Music
Emílio Santiago – Songbook Gilberto Gil, Vol. 1, 1992 – Lumiar Discos
Wanda Sá e Bossa Três – Wanda Sá & Bossa Três, 2001 – Deckdisc
Daniela Mercury – Acústico, 2005 – Páginas do Mar
Gilberto Gil e Maria Rita – Duetos 2, 2008 – Warner Music
Henrique Lissovsky – Solo, 2008 – Henrique Lissovsky [dist. Tratore]
Gilberto Gil – Bandadois (Ao vivo), 2009 – Gege
Trovadores Urbanos – Amor até o fim, 2010 – Dabliú Discos [dist. Tratore]
Mário Eugênio – Contramão, 2011 – Tratore Distribuição
Gilberto Gil, Ivete Sangalo e Caetano Veloso – Especial Ivete, Gil e Caetano, 2012 – TV Globo
Katia Rocha – Hoje o samba saiu, 2012 – Tratore Distribuição
Orquestra de Sopros da Pro Arte e Flautistas da Pro Arte – Ituaçú – Gilberto Gil, 2012 – Geringonça Filmes
Rosa Passos – Azul, 2013 – Galeão
Fernando Lauria – Fernando Lauria, 2013 – Fernando Lauria
Deborah Vasconcellos – Casa arrumada, 2013
Diogo Nogueira – Elis Por Eles (Ao vivo), 2014 – LAB 344
Grupo Instrumental Brasilidade Geral – Brasilidade Geral e Bob Mintzer Live, 2014 – Luiz Renato da Silva Rocha
Raquel Saraceni – O tempo me guarda você, 2015 – Raquel Saraceni
Mauro Senise – Amor até o fim, Mauro Senise toca Gilberto Gil, 2016 – Fina Flor
Alexandre Pires – DNA Musical, 2017 – Som Livre
Arranco de Varsóvia – Quem é de sambar, 2017 – Mills Records
Trio Corrente – Tem que ser azul, 2019 – Abeat
Comentário*
“Amor até o fim” foi feita logo após minha primeira separação. Quanto ao fato de a canção, que explora o tema do amor como algo infindo, ter se originado justamente de um sentimento tido ao final de um casamento, isso não constitui um fato único: “Drão” também é assim. Eis uma recorrência: exatamente quando uma relação está terminando, vem uma canção tratando da infinitude do amor.
Aqui entra a necessidade de manifestar minha visão particular, de ser pessoal, próprio; o momento confessional exigindo que a sinceridade prevaleça, que eu seja sincero e diga aquilo que realmente eu acho. É um desses momentos especiais na minha obra em que eu realmente sou único, sou original, sou autoral, dizendo que o amor não tem que se acabar quando uma relação está se acabando.
Ao mesmo tempo, em “Amor até o fim” já há sinais das questões filosóficas que vão ocupar espaço mais tarde em minha obra, como a do eterno retorno e a ideia taoista do tempo. A canção antecipa a ideia do amor como campo da existência total, dentro de uma visão ecológica dos sentimentos humanos, que vai depois aparecer em canções seminais da minha fase filosófica. Já é um pouco isso: a filosofia do amor.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Amor de carnaval
Gilberto Gil
Por causa de um amor qualquer
Minha dor tem que acabar
No carnaval, se Deus quiser
Faz um ano deste amor
Esperei até cansar
Carnaval me trouxe a dor
Carnaval tem que levar
outro título: “Decisão”
Gravações
Gilberto Gil – Retirante, 1961 – Gege
Zimbo Trio – Zimbo Trio + Cordas, Vol. 2, 1968 – Som Livre
Gilberto Gil – Salvador, 1961 – 1963, 2002 – Warner Music
Daniela Mercury e Gilberto Gil – Carnaval Eletrônico, 2004 – BMG
Elizeth Cardoso – Eu sou o samba, 2004 – EMI Records
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Warner Music
Gilberto Gil – Retirante, 2010 – Discobertas
Comentário*
Gosto muito da concisão desse samba. Puro e simples. Um pouco na linha dos velhos sambas de Carnaval. É bem uma homenagem àquele tipo de sambas carnavalescos curtinhos, fáceis de cantar, com letras pequenas e ideias concisas do ponto de vista da mensagem. Com uma edição de frases típicas do samba de rua, montadas em quatro, oito versos, duas quadras, bem assim; uma edição muito exigente, no sentido da concisão. E as ideias também embutidas nas frases de forma muito fácil, de percepção muito imediata do que está se querendo dizer. Uma narrativa bem fraterna, no sentido do entendimento imediato.
Você veio a revisitá-lo muito tempo depois. — E a Daniela Mercury o gravou [em 2004], depois de mais de cinquenta anos da existência dele. Eu o regravei porque gosto muito desse samba, porque é muito exemplar de um gênero de samba de Carnaval.
Você chegou a me dizer uma vez que o Carnaval trazia recordações tristes pra você. — Melancolia. Está associado a uma melancolia. Eu nunca fui folião. Nem nos momentos mais foliões eu era folião. O Carnaval tinha lembranças românticas, no sentido clássico, no sentido Romeu e Julieta, das tragédias amorosas, dos encontros inviáveis, impossíveis, irrealizáveis, esboçados mas frustrados, e sempre foi isso. Essa música “Decisão” é exatamente isso. “Carnaval me trouxe a dor,/ Carnaval tem que levar”: quer dizer, a gente brinca porque brincando a gente quem sabe faz com que as águas do Carnaval limpem aqueles resíduos de dor, de penar. Eu lembrava das festas nos salões, dos esboços de namoro que não se concretizavam, que não passavam do dibujo para um desenho nítido. E aquilo: as Quartas-Feiras de Cinzas eram sempre, quase sempre, muito doloridas. Cinzentas mesmo. Essa canção diz isso. Duas pequenas estrofes e pronto. Com aquela concisão dos velhos sambas de Carnaval.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Amo tanto viver
Gilberto Gil
Transfigurado na luz
Nos raios mágicos de um refletor
Na cor que o instante produz
Todas as vezes que eu canto é a dor
Todos os fios da voz
Todos os rios que o pranto chorou
Na vida de todos nós
Tudo que eu sei aprendi
Olhando o mundo dali
Do patamar da canção
Que deixa descortinar
O cenário da paixão
Aonde vejo a vagar meu coração
Tudo que eu canto é a fé, é o que é
É o que há de criar mais beleza
Beleza que é presa do tempo
E, a um só tempo, eterna no ser
A beleza que é presa do tempo
E eterna no ser
Todas as vezes que eu canto
Amo tanto viver
Gravação
Maria Bethânia – Talismã, 1980 – Polygram
Comentário*
“‘Amo tanto viver’ faz uma das leituras interpretativas do cantar de Maria Bethânia e do seu significado. Representa ainda uma tentativa de recuperar memórias que eu tinha de como eu a via desde que a conheci; de como eu entendia a vocação dela, o gosto dela pelo canto, o porquê do canto dela; o sentido profundo, trágico, que ela gosta, quer e reivindica como incorporação para o canto dela. É uma maneira de lê-la, a ela, Bethânia, através e por dentro do seu próprio canto. A letra diz bem – para mim e eu sei que para muita gente – o que ela passa e que constitui uma das características unânimes do significado do seu cantar: a coisa de viver as dores e os prazeres do mundo, de ser totalizante, a intencionalidade de ser totalizante: ela é convincente nisso, e assim tem sido ao longo da carreira e ao longo da vida de artista, quer dizer, ela tem nos convencido seguidamente da força e da abrangência que o seu canto tem, dessa qualidade trágica, grega – que eu não tenho tanto. A música é sobre isso.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Amiga dos ventos
Gilberto Gil
Sou amante dos mares
Sou bem-vinda nos lugares
Aonde vou
Sou a força da terra
Sou a luz dos luares
Sou a chama nos altares
Do amor
Não que algo aconteça
De especial comigo
Que eu possua mil poderes
Celestiais
Nem que eu seja dotada
De um saber feiticeiro
Protegida dos potentados
Astrais
O que eu trago é mais simples
É banal como a chuva
Natural como uma uva
Ter sabor
Vem da vida o mistério
Dessa facilidade
De ser tudo e nada disso
Ter valor
Gravação
Maria Bethânia – Alteza, 1981 – Polygram
Comentário*
Não tenho certeza se a canção foi feita a pedido dela, nem mesmo que eu tenha feito pensando nela. Mas tenho a impressão de que os elementos da construção denotam essa filiação, esse pertencimento, essa afinidade com ela. É que acontecia muito com a Bethânia de, de vez em quando, ela dizer: “E aí? Me mande umas músicas pra eu ouvir, pra eu escolher”. E aí eu mandava três, quatro, cinco músicas; ela escolhia uma ou duas. Não sei se foi num desses processos que saiu “Amiga dos ventos”, que eu não sei se foi mais efetivamente dirigida, endereçada a ela. Mas a julgar pelo primeiro verso [e título], em alusão a Iansã, é bem possível que tenha sido. A letra trata de desapego. Possivelmente eu estava pensando mesmo nela, na Bethânia, tentando fazer uma tradução da imagética, do sentimento que eu nutria por ela, do que ela representava ser para mim, do que ela representa.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Amarra o teu arado a uma estrela
Gilberto Gil
Ainda não são
Tão doces e polpudos quanto as peras
Da tua ilusão
Amarra o teu arado a uma estrela
E os tempos darão
Safras e safras de sonhos
Quilos e quilos de amor
Noutros planetas risonhos
Outras espécies de dor
Se os campos cultivados neste mundo
São duros demais
E os solos assolados pela guerra
Não produzem a paz
Amarra o teu arado a uma estrela
E aí tu serás
O lavrador louco dos astros
O camponês solto nos céus
E quanto mais longe da terra
Tanto mais longe de Deus
Gravações
Gilberto Gil – Em Concerto, 1987 – Gege
Gilberto Gil – O salvador da pátria (trilha sonora), 1988
Gilberto Gil – O eterno Deus Mu Dança, 1989 – Warner Music
Comentário*
Participando de uma gincana escolar do Isba (Instituto Social da Bahia), onde cursava a oitava série, Fátima Giordano, irmã de Flora Gil e cunhada de Gilberto Gil, recebeu a tarefa de levar, no dia seguinte, gravada, uma canção sob o tema: “Amarra o teu arado a uma estrela”. O compositor achou a frase “estranha, provocativa”, e fez a música, que venceu o concurso.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Buda nagô
Gilberto Gil
Dorival é ímpar
Dorival é par
Dorival é terra
Dorival é mar
Dorival tá no pé
Dorival tá na mão
Dorival tá no céu
Dorival tá no chão
Dorival é belo
Dorival é bom
Dorival é tudo
Que estiver no tom
Dorival vai cantar
Dorival em CD
Dorival vai sambar
Dorival na TV
Dorival é um Buda nagô
Filho da casa real da inspiração
Como príncipe, principiou
A nova idade de ouro da canção
Mas um dia Xangô
Deu-lhe a iluminação
Lá na beira do mar (foi?)
Na praia de Armação (foi não)
Lá no Jardim de Alá (foi?)
Lá no alto sertão (foi não)
Lá na mesa de um bar (foi?)
Dentro do coração
Dorival é Eva
Dorival Adão
Dorival é lima
Dorival limão
Dorival é a mãe
Dorival é o pai
Dorival é o peão
Balança, mas não cai
Dorival é um monge chinês
Nascido na Roma negra, Salvador
Se é que ele fez fortuna, ele a fez
Apostando tudo na carta do amor
Ases, damas e reis
Ele teve e passou (iaiá)
Teve o mundo aos seus pés (ioiô)
Ele viu, nem ligou (iaiá)
Seguidores fiéis (ioiô)
E ele se adiantou (iaiá)
Só levou seus pincéis (ioiô)
A viola e uma flor
Dorival é índio
Desse que anda nu
Que bebe garapa
Que come beiju
Dorival no Japão
Dorival samurai
Dorival é a nação
Balança, mas não cai
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil e Nana Caymmi – Parabolicamará, 1991 – Warner Music
Gilberto Gil – It’s Good To Be Alive (Anos 90), 2002 – Gege
Gilberto Gil – Som Brasil canta Caymmi, 2004 – Som Livre
Gilberto Gil – The very best of Gilberto Gil the soul of Brazil, 2005 – Warner Music
Clécia Queiroz – Chegar à Bahia, 2010 – Mauricio World Music
Nana Caymmi e Gilberto Gil – Caixa Nana Caymmi (CD eu sei que vou te amar – cd2), 2011 – EMI Music
Margareth Menezes – Para Gil & Caetano, 2015 – Estrela do Mar
Comentário*
A música, sem a letra – e sem nada pensado para ela -, nasceu em Roma, no hotel, depois de um show da família Marley (mãe, mulher e filhos), do qual eu havia participado. Na volta ao Brasil, eu já sabia que seria para Caymmi. Fui listando, experimentalmente: ‘Dorival é isso’, ‘Dorival é aquilo’ etc. etc. etc.; algumas coisas ficaram, muitas não. Até que me ocorreu: ‘Dorival é ímpar’ – e eu me tranquilizei: ali estava um começo, sem dúvida; pois em seguida veio “Dorival é par’ e, de par em par, todo o texto de contrastes.
O sagrado no profano – As semelhanças, por mim engendradas, e dessemelhanças entre as trajetórias do Buda e do Caymmi, o nosso Buda, ocidental, atual, transpreto e transreligioso. Um, abandonando o palácio e a vida principesca para iniciar sua peregrinação acética de abdicações e mortificações, até sentar-se cansado, como conta a lenda, debaixo de uma árvore e, aí, se iluminar. E o outro, obtendo a, segundo o meu ponto de vista, iluminação – a elevação de espírito que ele demonstra ter -, no percurso de uma vida mundana, de um roteiro que passa por lugares comuns.
Mais exatamente: pela praia de Armação, perto do Jardim de Alá, onde há muitos anos se concentravam as grandes comunidades de pescadores de Salvador; pelo sertão de Olho D’Água, Lagoinha e outras citadas por ele na música Fiz Uma Viagem, onde o personagem vai de uma cidade pra outra do interior; e pelas famosas mesas dos bares de Copacabana, onde Estela, sua mulher, ia buscá-lo, ele tomando seu conhaque.
A iluminação de um homem comum e a desnecessidade da visão sacralizante de um espaço especialmente ungido para obtê-la. Esses os sentidos de Buda Nagô.
Last but not least – Eu tinha me dado por satisfeito com a canção, quando dias depois senti que a parte B merecia uma replicação, e o conceito do ‘Buda nagô’, outra carga explicatória. Então, a partir de mais uma conjunção de imagens contrastantes, a do monge chinês nascido na Roma baiana, eu criei a estrofe em que faço a descrição da renúncia na vida de Caymmi – o que teria levado, nele, à limpeza do terreno interior -, com as referências às cartas de jogo aparecendo para dar a ideia dos tempos do Cassino da Urca, no Rio.
Enumeração pedagógica – ‘Dorival é o quê?’ ‘Dorival é isso.’ ‘Dorival é o quê?’ ‘Dorival é aquilo.’ ‘E o que mais?’ ‘Aquilo outro.’ Como se numa sala de aula se fizesse com as crianças um jogo de elucidação com o objetivo de se imiscuir nelas, de modo simples, o conhecimento de algo. Buda Nagô seria a resposta em série à proposta de revelar Caymmi num jogo desse. Seu pedagogismo infantil é para trazer a dimensão da inocência – que, enfim, se confunde com a iluminação.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Altos e… Baixos
Gilberto Gil
Aquela ave que voa, pequenina
Na imensidão do céu azul, tão grande!
Agora olha, olha pra mim aqui embaixo
Repara bem o estado em que me acho
Nesta miséria que o meu ser expande
Brincar pra valer
Gilberto Gil
Se você quer brincar pra valer
Se você quer botar pra quebrar
Vem comigo, que eu vou com você
Na patota mais quente que há
Eu já disse pra toda a moçada aprender
Dançar frevo, sambar, comemorar
Quero ver todo mundo comigo
E você, meu irmão
Na puxada do refrão
Nas quebradas da vida
No sol da subida
Na ida e na volta legal
Eu faço o que posso
Na verdade eu mando e não peço
Eu sou o progresso
Na bandeira nacional
Brazil Very Happy Band
Gilberto Gil
A gente tem que ser assim
A gente tem que ser assim
A gente tem que ser assim
Que a gente é assim
Brazil Very Happy Band
Brazil Very Happy Band
Um bando de gente cantando e dançando
Umbanda de gente
© Gege Edições Musicais
Algum dia
Gilberto Gil
Você julga que eu também brinco com o amor
Você pensa que é mentira o meu imenso querer
E tem medo que eu lhe traga mais uma mágoa, mais uma dor
Você pensa, vá pensando, não importo
Pois a vida é sempre a vida, viver é amar
Não me ame, ame a vida, goste do mundo enfim
E algum dia eu serei seu mundo
E algum dia eu serei sua vida
E neste dia você gostará de mim
Alfômega
Gilberto Gil
Somatopsicopneumático
Que também significa
Que eu não sei de nada sobre a morte
Que também significa
Tanto faz no sul como no norte
Que também significa
Deus é quem decide a minha sorte
Gravação
Caetano Veloso – Caetano Veloso, 1969 – Universal Music
Pato Fu – Incidental em a necrofilia da arte, 1998 – BMG
Caetano Veloso – Durval discos (trilha sonora), 2003
Comentário*
“O ‘analfomegabetismo’ – o analfabetismo cósmico, a nossa profunda ignorância acerca do universo aberto, vasto e vago do esoterismo; o mistério sobre isso. E ‘somatopsicopneumático’ – a trindade, a soma de: soma, corpo, carma, encarnação do homem; psique, alma; e neuma (do grego ‘sopro’), espírito. A consciência disso.
“Os termos vêm do procedimento concretista de ligar palavras e inventar neologismos compostos. Começando a estudar religiões orientais e ciências ocultas, eu convivia com palavras não popularmente difundidas, algumas de cujo significado até então eu não sabia (como ‘neuma’, ‘neumático’; ‘soma’ eu já conhecia dos rudimentos de anatomia dados no ginásio) e que eram novidade para mim.
“Fiz a música na Bahia, depois do episódio da prisão, quando encontro o Rogério Duarte e o Walter Smetak, e se dá a transposição desses interesses intelectuais e espirituais em minha música.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Alapala (The myth of Shango)
Gilberto Gil
Carol Rogers
Alapala, Alapala, Alapala
Shango, Aganju
A little boy, the age of three
He asked about his family tree:
“Oh, father, who is my grand papa?”
The father said: “My boy, grandpa is dead
And right before he died
He told me who was my grandpapa
“My grandpapa, your grandpapa’s
Daddy was born in Africa
A king, a tribal king Yoruba
“So you, my boy, you’ve got to be
Yourself a little new Shango”
Oh, Aganju, baba Alapala
Aganju, Shango
Alapala, Alapala, Alapala
Shango, Aganju
Alapala, egun, spirit of the family man
Ancestral soul of our tribe until this day
The tribe of Aganju-Shango, an axe is in his hand
His lightning axe could strike the sky above
And make the sound of crashing thunders threaten God
And that is why Shango became a God himself
And that is why you should be proud, my boy
[ Babá Alapalá, de Gilberto Gil ]
Água de meninos
Gilberto Gil
Capinan
Entre o mar e a poesia
Tem um porto, Salvador
As ladeiras da cidade
Descem das nuvens pro mar
E num tempo que passou
Toda a cidade descia
Vinha pra feira comprar
Água de Meninos
Quero morar
Quero rede e tangerina
Quero peixe desse mar
Quero vento dessa praia
Quero azul, quero ficar
Com a moça que chegou
Vestida de rendas, ô
Vinda de Taperoá
Por cima da feira, as nuvens
Atrás da feira, a cidade
Na frente da feira, o mar
Atrás do mar, a marinha
Atrás da marinha, o moinho
Atrás do moinho, o governo
Que quis a feira acabar
Dentro da feira, o povo
Dentro do povo, a moça
Dentro da moça, a noiva
Vestida de rendas, ô
Abre a roda pra sambar
Moinho da Bahia queimou
Queimou, deixa queimar
Abre a roda pra sambar
A feira nem bem sabia
Se ia pro mar ou sumia
E nem o povo queria
Escolher outro lugar
Enquanto a feira não via
A hora de se mudar
Tocaram fogo na feira
Ah, me diga, minha sinhá
Pra onde correu o povo
Pra onde correu a moça
Vinda de Taperoá
Água de Meninos chorou
Caranguejo correu pra lama
Saveiro ficou na costa
A moringa rebentou
Dos olhos do barraqueiro
Muita água derramou
Água de Meninos acabou
Quem ficou foi a saudade
Da noiva dentro da moça
Vinda de Taperoá
Vestida de rendas, ô
Abre a roda pra sambar
Moinho da Bahia queimou
Queimou, deixa queimar
Abre a roda pra sambar
Brand new dream
Gilberto Gil
Cut that out!
Forget it all, baby
Going crazy, feeling sad
About an impossible love
Is so bad
Gimme your hand and come together
Around the corner we can find a shop
That I know has got
A brand new dream
Above on the shelf
Maybe you like
That dream on the shelf above
Tomorrow maybe
I can call you my love
Cut that out!
Bit my bit
Inch by inch
Inch by inch
Inch by inch
Inch by inch
Till you can breath and get peace in your heart
© Gege Edições Musicais
Agonia de Drime
Gilberto Gil
© Gege Edições Musicais
Água benta
Gilberto Gil
Contaminou o bebê
A medicina e o seu doutor
Nada puderam fazer
O desespero se apoderou
Do padre, do pai, da mãe
Foi quando então alguém se lembrou
De um feiticeiro de Ossãin
Um simples banho de folhas fez
O que não se esperava mais
Depois, depois muitos muitos anos depois
Rapaz, aquele menino já então rapaz
Se fez um rei entre os grandes babalaôs
Dos tais, dos tais como já não se fazem mais
A água benta que ao bel prazer
Se desmagnetizou
Desconectada do seu poder
Por um capricho do amor
Amor condutor do élan vital
Que o chinês chama de ch’i
Que Dom Juan chama de nagual
Que não circulava ali
Ali na grã pia batismal
O amor deixara de fluir
Talvez por mero defeito na ligação
Sutil entre a essência e a representação
Verbal que tem que fazer todo coração
Mortal ao balbuciar sua oração
A água benta que o bom cristão
Contaminou sem querer
A fonte suja que o sacristão
Utilizou sem saber
A força neutra que move a mão
Do assassino o punhal
E o bisturi do cirurgião
O todo total do Tao
Lâmina quântica do querer
Que o feiticeiro o sabe ler
Fractal, de olho na fresta da imensidão
Sinal, do mistério na cauda do pavão
Igual, ao mistério na juba do leão
Igual, ao mistério na presa do narval
Gravações
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – Projeto especial IBM, 1997 – Warner Music
Comentário*
“A água contaminada da pia batismal, a despeito da água benta, contamina o moleque, que vai ser curado no curandeiro. O poder milagroso da água benta não estava imune à contaminação do campo material da água, quer dizer, os micróbios estavam na água benta e acabaram, de alguma forma, naquele caso, contaminando o bebê; ou seja, o poder milagroso da água benta não prevaleceu diante da força da contaminação física da água, que estava cheia de micróbios. Mas esse mesmo poder milagroso vai ser restaurado pelo pai de santo, que através das instâncias milagrosas vai curar o menino contaminado pela água da pia batismal. É de um grau de delírio incrível essa canção. Mas ao mesmo tempo é uma reiteração do sentido do eterno retorno, quer dizer, ali onde a negação negou a negação, a afirmação vai restaurar o poder afirmativo da afirmação negada. E há ainda a reivindicação do sentido do amor como o grande detergente universal, o que limpa tudo, assim como a água é o grande solvente universal.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Bom dia
Gilberto Gil
Nana Caymmi
Madrugou
Madrugou
A mancha branca do sol
Acordou
O dia
E o dia já levantou
Acorda
Meu amor
A usina já tocou
Acorda
É hora
De trabalhar, meu amor
Acorda
É hora
O dia veio roubar
Teu sono
Cansado
É hora de trabalhar
O dia
Te exige
O suor e o braço
Pra usina
Do dono
Do teu cansaço
Acorda
Meu amor
É hora de trabalhar
O dia
Já raiou
É hora de trabalhar
Madrugou
Madrugou
A mancha branca do sol
Acordou
O dia
E o dia já levantou
Ele sai
Ele vai
A usina já tocou
Bom-dia
Bom-dia
Até logo, meu amor
© Gege Edições Musicais / © Editora Musical Arlequim LTDA.
Gravações
Nana Caymmi – III Festival da Música Popular Brasileira, 1967 – RGE
Agostinho dos Santos – Música Nossa, 1968 – Ritmos
Gilberto Gil e Milton Nascimento – Gil & Milton, 2000 – Warner Music
Gal Costa – Gal Costa 40 anos, 2005 – Universal Music
Vésper – Na Lida, 2012 – Por do Som Produções Artísticas
Cida Moreira – Soledade, 2015 – Joia Moderna [dist. Tratore]
Mônica Salmaso – Caipira, 2017 – Biscoito Fino
Comentário*
A cena da música, da mulher acordando o marido para ir trabalhar, tem a ver com o fato de ela ter sido composta por mim e pela Nana Caymmi no tempo em que estivemos casados. Era a projeção, inconsciente, de uma imagem de nós dois; uma homenagem a nós dois. Os substratos informacionais latentes, virtuais, acabaram se tornando atuais: se atualizaram na canção.
Nós projetávamos ali o casal modelo das classes operárias. A temática social é uma característica da música popular da época, especialmente das canções de festival [“Bom Dia” concorreu no III Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record]. Na ocasião, os festivais eram momentos especiais em que as canções de protesto apareciam com mais ênfase; era quase que recomendável que essa fosse uma das temáticas essenciais floradas.
A ideia poética da apropriação, pelo patrão, do próprio cansaço do operário, é muito interessante. De uma certa forma, ela alegoriza a leitura economicista ou puramente cientificista da divisão do trabalho, da divisão de classes; ela acrescenta uma acidez poética ao sentido já ácido da apropriação da força de trabalho do outro. Não se trata de um discurso meramente político ou científico, mas de um poema cantado.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Africaner brother bound
Gilberto Gil
Henrique Hermeto
Jean Pierre
Quanto tempo ainda mais
Já durou até demais
O que não devia ser jamais
Poeta calou por um dia ou dois
Bandeira arriada pra descansar
O batuque ficou pra depois
Que o coração desenfrear
Africaner brother bound
Quanto tempo ainda mais
Já durou até demais
O que não devia ser jamais
Quem é que no mundo pode impedir
O sol de nascer e de brilhar
A palmeira, de crescer, crescer
A noite na mata, de clarear
Do lado da gente, nós e nós e nós
Na luta feroz até o fim
A vitória deixará pra trás
Um tempo de guerra, tempo ruim
Africaner brother bound
Quanto tempo ainda mais
Já durou até demais
O que não devia ser jamais
Gravação
Obina Shok – Obina Shok, 1986 – RCA
Comentário*
Uma canção com os meninos do Obina Shok, africanos, senegaleses. Meninos da classe média, da burguesia urbana africana, filhos de diplomatas que vieram pro Brasil e aqui se juntaram em Brasília, e fizeram esse grupo, na época em que surgem os grupos de rock brasileiros. Eles são dessa fornada e trazem todo o engajamento deles com a questão das várias vertentes de luta na África. Naquele momento havia as partidarizações muito variadas e contraditórias na África do Sul. Mandela preso ainda. É um momento culminante da luta antiapartheid que vai se completar com a volta do Mandela à liberdade, e aí a África do Sul resolve se juntar pra se configurar um novo momento, e é este momento o da canção. Os meninos do Obina estavam engajados nisso. “Africaner Brother Bound” era uma corrente apartheidiana.
[Gil conta que fez a letra inspirado neles, no que eles viviam. Que não se lembra se se tratava de um poeta específico o referido nos versos; considera que “poeta” ali pode ter tido o sentido de “uma figura geral como o guia, o porta-voz”. E sobre ninguém no mundo poder impedir o sol de brilhar, a palmeira, de crescer etc.? “Era um processo que estava já em curso, irreversível — tinha que dar no que deu”, diz ele, concluindo: “Era a oração pela libertação da África do Sul”, numa referência à canção que havia composto um ano antes. Eu lembro então de “A mão da limpeza” — de mais um ano antes, de 1984. Por fim, sobre os versos da última estrofe (“A vitória deixará pra trás/ Um tempo de guerra, tempo ruim”), ele comenta: “A antevisão da alvorada, do sol brilhar, raiar um novo dia”.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Blind faith
Gilberto Gil
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Copacabana mon amour, 1999 – Polygram Music
Afoxé é
Gilberto Gil
Ê-ô, ê-ô
É bom pra ioiô
É bom pra iaiá
O afoxé é da gente
Foi de quem quis
É de quem quiser
Sair do Pé do Caboclo
Até a Praça da Sé
O afoxé é semente
Plantou quem quis
Planta quem quiser
Tem que botar fé no bloco
Tem que gostar de andar a pé
Tem que aguentar sol a pino
Tem que passar no terreiro
E carregar o menino, oh, oh
Tem que tomar aguaceiro
Tem que saber cada hino
E cantar o tempo inteiro, oh
O afoxé, seu caminho
Sempre se fez
Sempre se fará
Por onde estiver o povo
Esperando pra dançar
O afoxé vai seguindo
Sempre seguiu
Sempre seguirá
Com a devoção do negro
E a bênção de Oxalá
Gravação
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Comentário*
O afoxé como uma forma, celebradíssima, de candomblé de rua — lúdica, em vez de religiosa. Todo o ritual que se reconstitui em torno do desfile. Os requisitos necessários para se poder participar do bloco; o estoicismo requerido: o pai que faz o percurso inteiro (saindo da praça da Sé até o Campo Grande e voltando: como no desfile dos Filhos de Gandhy, no Carnaval da Bahia) carregando o filho nas costas, para iniciá-lo na tradição.
“Afoxé é” se refere a uma mandala da coesão comunitária; trata-se de uma evocação do gregário, uma convocação à participação. A canção fala não do ser individual, mas do ser social e suas implicações. Quer dizer: do sacrifício que um indivíduo faz para ser um partícipe; de em que grau o coletivo se sobrepõe ao individual com qualidade, valor e vantagens; de quando é melhor, no sentido de necessário, deixar de ser um para ser muitos. Daí, remeter para o ritual, a celebração grupal; para arquétipos cívico religiosos.
Não é, contudo, o objeto da crença — não é Deus — que é comentado na canção, ou o que nela comove, mas o humano, demasiadamente humano; o compromisso do homem com a comunidade. A Revolução Francesa inaugurou a fase popular da história e trouxe os humanismos todos que desembocaram no sentido democrático, aquilo que o Nietzsche, por um lado, critica muito: a fraqueza do homem moderno — é essa nossa fraqueza que nos comove. Somos código genético programado pra viver essa fase da história, essa coisa Spartacus; tudo que diz respeito às libertações, às ações em nome da igualdade, às ideias de socialismo, nos são comoventes. Toda vez que a comuna é reunida, há comoção.
Sobre o caráter peculiar da rima “Caboclo/ bloco” e sua relação com o conteúdo geral da música. — Uma rima longínqua: uma telerrima à distância. Gosto dessas rimas que explodem lá adiante; quando você ouve o segundo termo, este remete àquela palavra que já passou muito tempo antes. No caso de “Caboclo/ bloco” em “Afoxé é”, isso fica especialmente bonito porque a rima contém em si o sentido da canção, que trata de algo que já é movimento em bloco. A ideia de percorrimento de um trajeto é reiterada na ocorrência da rima, que só acontece depois de você percorrer certo espaço da canção.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Afogamento
Gilberto Gil
Sob o peso da insensatez
Já sem poder boiar
Estarei com alguém, nariz contra nariz,
O afogamento por um triz,
Tentarei me salvar
Sempre assim,
Sempre que o amor vaza a maré
Vou parar bem longe, aonde não dá pé, difícil de nadar
Outro dia o fato aconteceu enfim
Um golfinho-anjo, um boto-serafim
Chegou pra me ajudar
Me agarrei
Aquele corpo liso e me deixei levar
Ao lado o seu sorriso aberto a me guiar
Então eu relaxei
E me entreguei completamente ao mar
Gravação
Gravada por Gilberto Gil e Roberta Sá em single para a novela Segundo sol, de João Emanuel Carneiro, Rede Globo (Gege Produções Artísticas, 2018).
Comentário*
Uma parceria sui generis essa, porque a contribuição do parceiro — o Jorge Bastos Moreno — é o personagem, uns dos personagens da canção: o boto, assim referido em alusão ao boto amazônico, a figura mitológica. Que era um dos amigos sempre presente nos nossos encontros, nas nossas reuniões à época, e que suscitou um caso de amor com uma das jovens frequentadoras da nossa turma, do nosso meio. Então eu tomei os dois personagens, ela e ele. Ela, como o eu lírico da canção, vai falando, desenvolvendo uma metáfora do sentimento amoroso, da paixão, do envolvimento, do risco de se afogar no mar do amor. Há essa locação aquática, esse lugar na água e a luta para boiar, para se sustentar na água; a dificuldade enfrentada para evitar o afogamento, a submersão. A ideia de nadar já estava presente, sim, em “Exotérico”, só que lá o eu lírico sou eu mesmo falando pra ela, dizendo a ela: “Não adianta…”. Aqui é ela falando dele, e ele aparece como golfinho, como anjo, como alguém que vai socorrê-la. É mais misterioso ainda, porque é como se o afogamento dela fosse uma coisa ligada a uma abstração de um ente amoroso distante, inatingível, inalcançável. Só que um possível afogamento aí é consequência de uma carência, de um vazio, um grande vácuo, a grande falta do amor. E ele, o boto, é o salvador, que chega pra dizer: “Aqui estou! Aqui estamos”. Pra dizer: “Você pode encontrar a concretude do amor, da paixão, e isso salva. Isso evitará que você submerja, isso vai lhe manter na superfície, você vai boiar, vai se livrar do risco de se afogar de vez”. O mar do final é o campo do afeto, do amor, ao qual ela se entrega já sustentada pela companhia do parceiro, pelo encontro com aquele boto salvador. E é como se ele fosse trazendo-a de volta à praia depois de ela ter desgarrado para bem longe, onde não dava mais pé. Na praia então ela relaxa e se entrega ao mar que ela pode avistar já sem os riscos de ter que nele se debater ou nadar. Um mar contemplado por quem está na beira dele; o mar à beira dele. Não mais o mar perigoso, mas o mar absolutamente metafórico do amor, da paixão, da entrega, com todos os aspectos redentores que isso tem. É a salvação.
Sobre a participação, na história da canção, de Roberta Sá, que não só a gravou, mas, antes, a motivou. — Ela é o personagem feminino da canção. É ela que corria o risco de se afogar naquela determinada circunstância. A canção, que eu não fiz pensando que seria pra que ela cantasse propriamente, canta sobre ela, ela como o par romântico do boto, que era, como ela — e como Maria e Andreia [da canção “Lia e Deia”] —, um dos frequentadores da casa do Moreno. Ela tinha ido de férias passear em Fernando de Noronha, e o Moreno, num dos telefonemas pra ela, brincou: “Cuidado com os botos, com os golfinhos aí na ilha!”.
Sobre Jorge Bastos Moreno, que faleceu pouco depois de feita a canção. — Foi um amigo tardio na minha vida que se tornou muito próximo. Nos frequentamos durante uns dois, três anos de uma forma muito intensa. Eu ia muito à casa dele, ele ia muito à minha, nós saíamos pra almoçar, jantar em restaurantes. Ele reunia toda uma turma: jornalistas, amigos, colegas dele, atrizes, atores, músicos, gente de cinema, político; todo um mundo amplo diverso do campo de relacionamento dele. E eu acabei sendo uma daquelas pessoas do círculo relacional dele. Ele era muito amável, muito bem-humorado, muito inteligente, muito perspicaz, muito agudo na coisa do cortejar as meninas, tendo algumas das minhas canções da época sido suscitadas pelo modo romantizado dele.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil