Músicas
Você e você
Gilberto Gil
Divino é saber
O que distingue
Você de você
Você dos outros
Do outro você
Você do mundo
Do você do ser
Você num canto
Vive o espanto
Enquanto o outro você
Sai pra viver
Por aí
Tanto pranto, tanta dor
Seu irmão
Pede o seu amor
Diz o I Ching:
Divino é saber
São dois no ringue
Você e você
Você que ataca
Pra se defender
Que beija a lona
Pra poder vencer
Você num canto
Apanha tanto
Enquanto o outro você
Bate demais
Deus do céu
Quanto sangue pelo chão
Seu irmão
Pede o seu perdão
Gravações
Gal Costa – O sorriso do gato de Alice, 1994 – Sony Music
Gilberto Gil – It’s good to be alive (Anos 90), 2002 – Gege
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Comentário*
Essa pertence ao rol das minhas canções mais autorais, próprias, pessoais, confessionais (aqui, no sentido da transreligiosidade). Uma canção muito particular também porque recupera o sentido da confiabilidade oracular do I Ching, a que eu particularmente sempre me dediquei e em que sempre confiei (várias canções minhas estão relacionadas com o livro, e em pelo menos três discos aparecem, na capa ou no encarte, os hexagramas correspondentes a eles, obtidos em jogos na época — no Luar ele está na capa mesmo: as nuvens desenhadas constituem o hexagrama). Em “Você é você” temos a compaixão, contida na própria ideia da superação através da religião, na sujeição ao culto, como instrumento de autoeducação, de aprimoramento, de autoaperfeiçoamento; religião como elemento indutor da qualificação na formação dos indivíduos. A canção versa sobre a questão da renúncia, a questão dos desejos, a questão da violência, do confronto com o outro e sobre a ideia de que em cada um de nós se dá um diálogo constante entre um “ser da luz” e um “ser da sombra”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Você
Gilberto Gil
Só você conseguiu se tornar
Aquela coisa querida, sonhada, esperada
Que não queria chegar
Dos amores que eu tive
Só você conseguiu preencher
Certos vazios que eu tinha
De umas simples coisinhas
Que um grande amor deve ter
Em você encontrei a verdade
De um amor sem vaidade
De um amor sem paixão
Encontrei em você neste mundo
Algo belo e profundo
Para o meu coração
Não duvide, meu bem
Deste amor que lhe dou
Acredite, meu bem
Pois o tempo parou
Pra me dar a certeza
Da paz da beleza
De amar a você
Dos amores que eu tive na vida
Só você, querida
Tem razão de ser
© Gege Edições Musicais
Vitrines
Gilberto Gil
Sonhos guardados perdidos
Em claros cofres de vidro
Um astronauta risonho
Como um boneco falante
Numa pequena vitrine
De plástico transparente
Uma pequena vitrine
A escotilha da cabine
Mundo do lado de fora
Do lado de fora, a ilha
A ilha Terra distante
Pequena esfera rolante
A Terra bola azulada
Numa vitrine gigante
O cosmonauta, a vitrine
No cosmos de tudo e nada
De éter de eternidade
De qualquer forma vitrine
Tudo que seja ou que esteja
Dentro e fora da cabine
Eter-cosmo-nave-nauta
Acoplados no infinito
Uma vitrine gigante
Plataforma de vitrines
Eu penso nos olhos dela
Atrás das lentes azuis
Dos óculos encantados
Que ela viu numa vitrine
Óculos que eu dei a ela
Num dia de muita luz
Os óculos são vitrines
Seus olhos azuis, meu sonho
Meu sonho de amor perdido
Atrás de lentes azuis
Vitrines de luz, seus olhos
Infinitamente azuis
As vitrines são vitrines
Sonhos guardados perdidos
Em claros cofres de vidro
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil, 1969 – Philips
Comentário*
“Vitrines” tem um ingrediente romântico que vem do fato de eu ter namorado uma menina de olhos azuis na Espanha, para onde havíamos ido fazer o show da Rhodia, Momento 68: uma brasileira que tinha viajado com a gente pra lá e pra quem eu tinha comprado um par de óculos que tinham sido perdidos e achados de novo numa vitrine de uma outra cidade.
A visão dos olhos através dos óculos: a canção desenvolve uma ideia poética elaborada, de penetração nas profundidades de camadas sobrepostas ao ser, de caixas transparentes contendo corpos dentro de corpos, almas dentro de almas.
É engraçado hoje em dia eu me debruçar sobre essas coisas que eu não imaginava que pudessem ter o valor que a gente resgata agora, e que pra mim eram somente impulsos, assomos, e ver que de fato eram manifestações de alma poética, poesia já, reveladoras de um espírito de época, e das quais tudo o que eu vim a fazer depois parece carbono, cópia melhorada, desdobramento.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Viramundo
Gilberto Gil
Capinan
Nas rondas da maravilha
Cortando a faca e facão
Os desatinos da vida
Gritando para assustar
A coragem da inimiga
Pulando pra não ser preso
Pelas cadeias da intriga
Prefiro ter toda a vida
A vida como inimiga
A ter na morte da vida
Minha sorte decidida
Sou viramundo virado
Pelo mundo do sertão
Mas inda viro este mundo
Em festa, trabalho e pão
Virado será o mundo
E viramundo verão
O virador deste mundo
Astuto, mau e ladrão
Ser virado pelo mundo
Que virou com certidão
Ainda viro este mundo
Em festa, trabalho e pão
Violentidão
Gilberto Gil
Não é a mesma da televisão
Televisão é violenta
Lenta, lenta
Violentidão
Para o habitante do morro
Para o operário
Para o pequeno-burguês
Violência é só a violação das leis
A coisificação das consciências
Que os mass-media fazem
Todo o tempo
Toda a impaciência
Viola também
Mas tão lentamente
E com tanta ciência
Quem nem parece ser tão violenta
A violência que sofre o freguês
© Gege Edições Musicais
Violão que sabe mas não fala
Gilberto Gil
Se encontrava ao meu lado
Quando lhe conheci
Meu violão
Testemunha do amor
Que nasceu em mim
Meu companheiro que outrora
Chorava comigo
O tédio da solidão
Agora canta comigo
A beleza do amor
Que mora em meu coração
Eu só queria que ele
Pudesse dizer
Pra você
Tudo que eu sei que ele sabe
Mas você não sabe
Ou não quer saber
Vinte e seis
Gilberto Gil
Eu faço tudo igual todo dia vinte e seis
Como todos vocês
Eu passo bem ou mal todo dia vinte seis
É que só no meu caso especial
Por acaso, aqui, pra mais dois ou três
Vinte e seis virou dia de natal
E nesse caso junho foi o mês
Hoje, portanto, já que eu viajei
Esse tanto pra vir me apresentar
Entre tantas canções que eu vou cantar
Eu vou cantar parabéns pra vocês
(refrão)
Outros membros do clã do vinte e seis
Em setembro, eu me lembro, tem a Gal
Em outubro, o Bituca tem a vez
E o meu neto João comigo igual
Neste meu vinte e seis, não leve a mal
Já que é logo depois do São João
Diferente do parabéns normal
Eu vou cantar um parabéns baião
Gravação
Gilberto Gil – Fé na festa, 2010 – Gege
Comentário*
“Nasci com o dia, o dia nasceu comigo, vamos juntos até o fim”. O dia em que a gente nasce é uma espécie de marca de gado. O 26, no meu caso — e também no da Gal, do Bituca e do meu neto João, do mesmo dia que eu. “Vinte e seis” é pra brincar com o significado da força do calendário, o sentido sacralizado da data, da datação do dia, do mês, do ano. Com essa outra dimensão do tempo: o tempo número. Do dia 26, tinha também Belina [primeira mulher de Gil, mãe de Nara e Marília]. Foi uma omissão que eu considero relativamente grave não ter registrado na música. Só me ocorreu depois que já tinha feito a música. Ela era de 26 de maio.
Você é junino, mesmo. Cantando essas canções, está justificado. — Sou. Essa é mais uma daquelas canções minhas com um espírito bem gonzaguiano. No meu caso é impossível não ser assim. Ele é o primeiro.
A estrofe dos meses dos outros membros do clã é interessante também sonoramente, com suas rimas internas entre “membros”, “setembro” e “lembro”, porque “embro” não é uma terminação com grande incidência na língua. — Que proporcionam esse jogo de entrelaçamento, de partes externas com partes internas dos versos, terminações com sílabas do meio chamadas rimas internas, que enriquecem tanto o versejar.
E na mesma quadra, no terceiro verso, tem o fonema “tu” justo no meio de “outubro” e “Bituca”, o que, embora não constitua uma rima completa, produz uma reverberação sonora interessante. — “Em outubro, Bituca tem a vez”. É o bitu-bitubro-bitu-bituca, também proporcionado pela rítmica, pela força do zabumba de novo. Baião: pum-pum! Em outubro, Bituca; em outubro, Bituca [Gil pronuncia as palavras de modo rítmico, onomatopaico, de forma a imitar uma zabumba] Tu-pu- -tu-pu-cu, tu-pu-cu-tu-pu-cu. Esse batuque proporcionado pelas palavras, pelo silabar.
O João [neto de Gil] já tinha sido citado em “Refavela”, mas ali ele não existia ainda. Ainda viria a nascer treze anos depois. — Em 90. Na Copa de 90. Dois dias depois de o Brasil perder pra Argentina. Eu estava em Turim, numa mesa, num almoço com Carlos Alberto, Gérson, Paulo César Caju, uma turma. Aí chegou o telefonema da Nara, da família, pra mim, dizendo que o João tinha nascido.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Vida sem vida
Gilberto Gil
Felicidade fugiu
A minha vida sem vida ficou
Tudo belo sumiu
Dias de paz, de ternura, de amor
Tudo isso se foi
E o abandono me castiga
Meu amor já não me liga
Só saudade, saudade que dói
Meus dias de verão já não têm mais calor
Minha noite de luar já não tem poesia
E as flores do jardim já não têm cor
Pra mim já não existe a palavra “alegria”
© Gege Edições Musicais
Vi, ouvi
Gilberto Gil
Ou foi primeiro um cheiro que senti
Ou foi antes um frio
Ou foi antes o gosto
De sangue do seu peito que mordi
Vi, ouvi
Será que foi no dia em que nasci?
Será que já haveria
No escuro do seu ventre
Quem sabe alguma luzinha a luzir?
Será que já haveria
No oco do seu ventre
Quem sabe um eco que eu pudesse ouvir?
Vi, ouvi
Tenho ouvido tanto por aí, mãe
Visto e ouvido tanto por aí, mãe
Aí, mãe
Aí
O mundo continua sendo assim
As mães parindo, os filhos vindo
Vendo, ouvindo, indo
E outros nem bem, mãe
Vivendo pra saber
Vento de maio
Gilberto Gil
Torquato Neto
Caminhando há tanto tempo
Que vem de vida cansada
Carregada pelo vento
Oi você, que vem chegando
Vá entrando, tome assento
Desapeie dessa tristeza
Que eu lhe dou de garantia
A certeza mais segura
Que mais dia, menos dia
No peito de todo mundo
Vai bater a alegria
Oi, meu irmão, fique certo
Não demora e vai chegar
Aquele vento mais brando
E aquele claro luar
Que por dentro desta noite
Te ajudarão a voltar
Monte em seu cavalo baio
Que o vento já vai soprar
Vai romper o mês de maio
Não é hora de parar
Galopando na firmeza
Mais depressa vais chegar
Vem, menina
Gilberto Gil
Torquato Neto
Tô te esperando
Vem, que a roda
Tá começando
Vem depressa
Atrasa o samba, não
Vem, princesa
Da madrugada
Vem correndo
Não pensa em nada
Vem sambar até
Cair no chão
Olha que o samba é pra valer
Mas logo o dia vai nascer
Olha que tudo termina
Vem, não demora, menina
Quem não samba nunca vai saber
Que ainda é tão bom se viver
Gravação
Jair Rodrigues – O sorriso do Jair, 1966 – Philips
Vamos passear no astral
Gilberto Gil
Com o duplo etérico furado
Com você do meu lado, menina
Não vai ter problema nenhum
Vamos passear no astral
Com o intelecto pirado
Caetanaves do ano passado vão pintar
Pra levar todo mundo pelo espaço
Pra levar todo mundo pro planeta Carnaval
Pelo menos, menina, por um dia
Vamos passear no astral
Gravação
Gilberto Gil – Expresso 2222, 1999 – Universal Music
Comentário*
Essa canção também nasceu das conversas com Smetak sobre as categorias esotéricas; sobre o plano da fisicalidade transcendental, do mundo dos corpos sobrepostos — corpo físico, corpo astral, corpo etérico, corpo mental. O assim chamado duplo etérico seria a primeira camada, “furado” pelo uso das drogas, da maconha, do álcool, do sexo (só o sexo tântrico não causaria tais “furos”). “Vamos passear no astral” é sobre isso: na verdade, uma brincadeira com isso, porque a música é de Carnaval.
Caetanave era um novo trio elétrico, que tinha sido feito com base num avião, num Concord, num supersônico que o Osmar viu no folheto de um avião, ficando então com vontade de imitar uma nave, um foguete da época, e resolvendo fazer um trio elé- trico com aquele formato, ao qual ele deu o nome de Caetanave, em homenagem a Caetano. A canção é dessa época. Eu já estava no Brasil, de volta.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Vamos fugir
Gilberto Gil
Deste lugar, baby
Vamos fugir
Tô cansado de esperar
Que você me carregue
Vamos fugir
Proutro lugar, baby
Vamos fugir
Pronde quer que você vá
Que você me carregue
Pois diga que irá
Irajá, Irajá
Pronde eu só veja você
Você veja a mim só
Marajó, Marajó
Qualquer outro lugar comum
Outro lugar qualquer
Guaporé, Guaporé
Qualquer outro lugar ao sol
Outro lugar ao sul
Céu azul, céu azul
Onde haja só meu corpo nu
Junto ao seu corpo nu
Vamos fugir
Proutro lugar, baby
Vamos fugir
Pronde haja um tobogã
Onde a gente escorregue
Todo dia de manhã
Flores que a gente regue
Uma banda de maçã
Outra banda de reggae
Gravações
Gilberto Gil – Raça Humana, 1984 – Warner Music
Gilberto Gil – Kaya n’gan daya (Ao vivo), 2003 – Warner Music
Skank – Radiola, 2004 – Sony Music
Natiruts – Natiruts Reggae Brasil (Ao vivo) [Deluxe], 2016 – Zeropontodois Entretenimento sob licença de Sony Music
Comentário*
Uma versão para o reggae “Gimme Your Love”, que eu fiz originariamente em inglês e que assim gravei na Jamaica, sobre uma música do Liminha. E que também já veio com a forma pronta na qual eu tive que ir encaixando as palavras. Quando chegamos aqui, achamos que era interessante a canção sair em português, porque afinal era para um disco brasileiro; foi aí que eu fiz a versão dela. Aqui temos de novo um par romântico, um casal fugindo. A construção poética, no plano sonoro, é forjada a partir de uma associação, empregando palavras que contenham o fonema “reggae” [“carregue”, “escorregue”, “regue”].
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
TV Punk
Gilberto Gil
O feijão está pouco
E o muro, sem reboco
No canal B
O planeta está oco
E o presidente, louco
No canal C
O céu deu um pipoco
E Deus levou um soco
Só animais nos canais
D, E, F, G
Só anões nos canais
H, I, J, K
Nada de mais nos demais canais
Até o V
Só travestis
No canal X
O locutor está rouco
E a imagem, sem foco
No canal Z
Da sua TV Punk
Sadomasopunk
Gravação
Gilberto Gil – To Be Alive Is Good (Anos 80), 2002 – Gege
Comentário*
Sadomasopunk. 1982. Em plena vigência do punk. Parece ser um comentário metafórico sobre a realidade, aspectos dela. — Sobre a realidade, sobre o mass media, a grande confusão das telecomunicações, o papel da televisão nisso tudo. A letra é muito autoexplanatória. De desnecessária decifra- ção; é muito óbvia. É só contextualizá-la e pronto; o contexto dá a dimensão semântica de todas as partes.
Lembra de alguma coisa em especial que o tenha estimulado a compô-la? — Possivelmente uma dessas versões mondocane.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Tudo tem
Gilberto Gil
João Donato
Tem, tem, tem
Tem, tem, tem
Tem, tem, tem
Tem, tem, tem
Sempre tem
Tem, tem, tem
Jeito tem
Tem, tem, tem
Feito bem
Tem, tem, tem
Tudo tem
Tem, tem, tem
Sempre tem jeito, tem, tem
Feito bem, tudo tem, tem
Tudo tem, sempre tem, tem
Jeito tem
Tem, tem, tem
Gravação
João Donato – Lugar comum, 1975 – Philips
Trovoada
Gilberto Gil
Milton Nascimento
Estremece os corações
Nas capitais dos estados
Nos pequenos povoados
Lá pros lados dos sertões
Quando o tempo faz zoada
Na voz grave dos trovões
Eu acho que alguém já disse
Que é como então se abrisse
a jaula para os leões
Estremecem os corações
Acredite se quiser
Que o Cavaleiro das luas e das estrelas
Abriu o céu, desceu e me ofertou
Um livro aberto na página brilhante
Que nesse instante uma poeira iluminada
me assustou
Falava de Andrômeda,
A dona da constelação do Escorpião,
Falou da outra estrela na ponta do Cruzeiro,
Falou das quatro luas
A nova, a que cresce, a cheia e a que diminui
Que a primeira, quando se esconde na escuridão,
é de mentira, pra nos tomar o coração
Me ensinou coisas que vi
E que nem são daqui
E, de repente, acordei com o ronco…
Gravação
Gilberto Gil e Milton Nascimento – Gil & Milton, 2000 – Warner Music
Comentário*
No meu trabalho de composições em parceria com o Milton, a primeira coisa que eu fiz foi pedir a ele que fizesse uma letra; ele fez a de ‘Sebastian’, e eu fiz a música. Aí eu fiz uma música e pedi a ele que fizesse outra letra; ele fez a de ‘Duas sanfonas’. Aí eu lhe pedi: ‘Faça uma música’; ele fez ‘Dinamarca’; eu fiz a letra. Aí eu disse: ‘Vamos agora fazer uma coisa misturada: eu vou fazer, letra e música, um pedaço; e você completa, letra e música, outro pedaço’. ‘Trovoada’.
Todas elas sofreram processos de feitura muito distintos e muito apropriados, tendo o de ‘Trovoada’ sido o mais peculiar. As suas duas partes poderiam ser duas peças diferentes interligadas. A primeira é um baião. Um dia, quando eu já estava em Salvador, no verão, me reunindo com o Milton para fazer as músicas; sentando, conversando, escolhendo canções e discutindo conceitos do disco; uma tarde, deu uma trovoada enorme, eu estava deitado na cama e me lembrei do tempo de menino, quando os trovões me assustavam; cheguei a recuperar um pouco do susto da infância naquele momento, peguei e escrevi essa parte, e a dei a Milton: ‘Faça a outra parte’.
Dois ou três dias depois, ele está lá perto de casa, na casa de Sue, acontece outro temporal daqueles de novo, com outra trovoada. Ele vai e pega e faz a segunda parte.
Há, portanto, duas trovoadas nessa música, ambas ocorridas no verão de Salvador, naquele ano. Eu disse a ele depois que as partes da música são como as duas partes de uma mesma ampulheta, uma de boca para baixo, a outra de boca para cima. A minha trovoada é de boca para baixo, quer dizer, são os céus descendo à Terra; a trovoada encobrindo, como uma espécie de cúpula, ao ser humano, ao ser menino. Ela trata da percepção e da captação dos trovões pelos sentidos e pelo coração.
Ela dá a ideia dos povoados, das cidades, dos sertões, quer dizer, de todo o mundo terreno, se relacionando com a trovoada como um fenômeno dos céus.
Já o Milton passa por sobre o mundo atmosférico, de onde vem a trovoada, e vai para o cosmos, para as estrelas, faz o movimento inverso. É engraçado isso; eu comentei com ele: ‘Você levou a trovoada para além dos céus’.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Triste serenata
Gilberto Gil
Deslumbrante luar a pratear a rua
Maviosas palavras a enlevar corações
Brandos sons de estrelas, fluindo em borbotões
Doce ilusão na noite triste e nua!
Fala de amor o pobre seresteiro
Canta de dor o velho violão
E a noite de lua, noite de janeiro
Brinda almas felizes com sono fagueiro
Só não acalma meu triste coração
Ó noite fria que em meu peito agora vive
Por que vens trazer a doce luz da lua?
Por que não levas o vazio que me oprime
E envias a canção do amor que redime?
Por que não vais, ó noite fria e crua?
Um carro de boi dourado
Gilberto Gil
Francis Hime
Surgiu na estrada gemendo
Gemendo um doce gemido
Vozes lhe seguindo o som
Bois elegantes puxando
Rodas de luzes piscando
Um carro de boi neon
Um carro de boi neon
Um carro de boi neon
Um carro de boi dourado
Fluorescente, iluminado
Trazendo Touro Sentado
Sentado ao lado de Trom
Buda sorrindo calado
Admirando o machado
Empunhado por Xangô
Os anjos celestiais
Os campeões mundiais
Nobres de Roma e de Atenas
Escravas louras, morenas
Todos desfilando atrás
Soldados, sábios, mucamas
Alfarrábios, fliperamas
Tudo desfilando atrás
Atrás do carro de boi
Atrás do carro de boi
Como na escola de samba
O bamba e o super-herói
Como na escola de samba
O bamba e o super-herói
Um carro de boi dourado
Passou na estrada gemendo
Trazendo os deuses e o som
Um carro de boi neon
Um carro de boi neon
Gravações
Francis Hime – Essas parcerias, 1984 – Elenco/Opus
Gilberto Gil e Francis Hime – Duetos 2, 2008 – Warner Music
Comentário*
Uma canção que eu fiz com o Francis Hime. Ele me mandou uma música e eu fui pondo a letra. É engraçado porque é uma letra tão cheia de caminhos… Carnavalesca, num certo sentido. — Não sei em que sentido.
Por causa das imagens que ela lança. Que têm a ver com carros alegóricos. — Sim, tem esse lado. Parece que esse carro está num desfile, que poderia ser um desfile de Carnaval. Com as grandes sociedades… Com os trios elétricos bem ornamentais dos primeiros tempos.
Mas você não estava pensando nisso, ao compor? — Não. Mas qualquer coisa como a ideia de uma locação como num filme, como eu tinha com a Boca do Rio de “Domingo no parque”, é possível, sim, eu acho que eu tinha: de alguma maneira eu via esse carro de boi, ali, percorrendo as avenidas de Salvador. Você tem toda razão de lembrar do Carnaval. Um carro de boi neon. Tinha muito a ver com as aparições dos trios nas praças, nos lugares; das luzes estroboscópicas. Essas figuras, esses entes mitológicos. Todos eles lembrando um pouco os Filhos de Gandhy, os Cavaleiros de Bagdá, aqueles blocos todos que desfilavam com essas alegorias, e as escolas de samba também, esse lado do Carnaval já de New Orleans, o Carnaval já de Veneza, já de Nice, já de Antuérpia, de todas essas sedes carnavalescas, mesmo na Alemanha; os carros alegóricos com essas figuras: Tron, Xangô, Buda, Touro Sentado, entes mitológicos de várias culturas, várias procedências, várias origens.
É forte, imageticamente. — É bem interessante que tudo isso tenha dado liga poético-musical.
É um sonho, um delírio, como diria um sambista. — É uma epifania! Mas começa com uma imagem simples do carro de boi, gemendo na estrada. Ele vai se ampliando, ganhando dimensões e dimensões que vão se associando. Dimensões no tempo e dimensões no espaço que vão se associando até formar aquele carro de boi neon.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Nova
Gilberto Gil
Moreno Veloso
Um brilho no céu
Uma constelação
Bem longe daqui
Uma nova canção
De força maior
Pro universo habitar
Qual sempre a matriz
Supernova será
Água pra benzer
Ouro pra enfeitar
A bela visão
D’um neutrino a bailar
Mãe, ora yeiê
Sua bençao pra mim
Que sempre assim
Eu me lembre em você
© Gege Edições Musicais / © Uns (Warner/Chappell)
Trinca de Ases
Gilberto Gil
Pelos muros da cidade
Três ases num jogo duro
Uma moça e dois rapazes
Um dos rapazes maduro
Calejado pela idade
Joga o jogo mais seguro
Paciência e lealdade
O outro ainda menino
Impetuoso e viril
Mesmo quando joga a mil
É jogo elegante, fino
A moça que corre livre
Na defesa e no ataque
Faz a jogada de craque
Calma e precisa no drible
Três mosqueteiros se olhavam
Como se fossem guerreiros
Três patetas se pensarmos na graça, na luz do riso
Três poetas da canção
E o nome do jogo é cantar
Castram eles para dar a vida se for preciso
Trinca de Ases na mesa
Faça agora a sua aposta
Ganhar nunca foi certeza
Cantar é o que a gente gosta
Nos cartazes espalhados
Pelos muros da cidade
Três ases num jogo duro
Uma moça e dois rapazes
Um dos rapazes maduro…
Gravação
Gilberto Gil, Gal Costa e Nando Reis – Trinca de Ases (Ao Vivo), 2018 – Gege
Comentário*
Outra canção composta para Gil, Nando & Gal — trinca de ases. Gil conta que, quando houve a ideia do show, ele já veio com o título. — Propus, eles aceitaram, aí decidi: “Vou fazer uma canção-jingle”. Com as questões das diferenças de origem, de três artistas egressos de campos diferentes de gosto e interesse musical, embutidas no título. Aí, “Trinca de ases” [lembrando o Quatro Ases e um Curinga]: três artistas, três astros, três ases; três personagens — e as características de cada um. A associação com o jogo de futebol e o jogo de cartas. Futebol, um esporte muito caro ao Nando e a mim; daí a ideia dos artistas como um time entrando em campo, das habilidades de cada jogador: o mais velho, experiente; o mais novo, impetuoso. E o baralho, das cartas de ás.
Da ligação com os grupos vocais antigos. — O Quatro Ases e um Curinga foi um conjunto vocal importantíssimo, muito influente do João Gilberto. Eu fui muito ligado nos conjuntos vocais. Eles apareceram no pós-guerra, entre os anos 40 e 50, influenciados pelos americanos. O modo de harmonização vocal, uma coisa muito comum nos Estados Unidos, veio com a música americana. E aqui no Brasil seguidores extraordinários foram surgindo. Toda cidade, todo lugar tinha um conjunto vocal. Os mpb4 todos: o Quatro Ases e um Curinga, o Trio Irakitan… O Namorados da Lua foi o conjunto de que o João Gilberto fez parte.
Da referência aos mosqueteiros e aos Três Patetas. — São figuras associadas à ideia do jocoso, do brincalhão, do picaresco, da piada, da boutade. Os Três Mosqueteiros são perfilados. E os Três Patetas, figuras soltas, com as quais a associação feita segue critérios menos exigentes, menos claros, menos nítidos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Nossa
Gilberto Gil
Inteiramente ao nosso amor
Cantar nossa música
Agora é só decidir
Aonde queremos ir
Armar nossa tenda
Armar nossa tenda, já
Que a nossa varanda vai ser
A estrada da vida
Por onde o sol passará
E a lua também virá
Contar nossa lenda
E os tempos futuros vão
Saber como foi
Escrever nos muros vão
Nas pedras do chão
A história da nossa ilusão
A história da nossa ilusão
Gravação
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Comentário*
Canção importantíssima na minha vida. Porque é de quando Flora — depois de passar um tempo comigo aqui no Rio, os primeiros tempos juntos — é instada, é levada de volta a São Paulo pra resolver a questão da vida dela com a família, com o pai e com a mãe. Nesse ínterim, quando ela vai pra São Paulo, eu fico aqui sozinho, no Rio, no quarto do hotel, e faço essa canção. Pra ela, sobre ela, sobre nós, sobre nossa vida, “Nossa”, já vislumbrando a vida conjunta. Na verdade, desdobrando sensações, sentimentos e expectativas que já estavam na canção “Flora”, a primeira que eu fiz pra ela. “Nossa” era uma canção de expectativa, de aguardo: eu aguardando que ela, de São Paulo, me dissesse alguma coisa, se viria mesmo ficar comigo, viver comigo. É uma canção de desejo, de intenção propiciatória. Muito marcante pra mim. A segunda pra ela.
Sobre a reincidência da palavra “ilusão”, que finaliza a canção.
— Uma vez mais a palavra “ilusão”. Ela aparece muito em canções minhas num sentido menos comum. O José Miguel Wisnik [no texto escrito para este livro, não à toa intitulado “O dom da ilusão”] se refere a isso muito fortemente, sempre com o sentido expansivo da dimensão semântica. Ela cobre muitos aspectos desse cerne, dessa semente semântica. “Ilusão” não só no sentido do verbo “iludir” ou “se iludir”, mas, no caso do verso final dessa canção (“A história da nossa ilusão”), por exemplo, no sentido mais ibérico — de ilusión — do grande campo do fascínio, do encanto.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Treze de dezembro
Gilberto Gil
Luiz Gonzaga
Zé Dantas
Eu vi sapo saltitando e ao longe
Ouvi o ronco alegre do trovão
Alguma coisa forte pra valer
Estava pra acontecer na região
Quando o galo cantou
Que o dia raiou
Eu imaginei
É que hoje é treze de dezembro
E a treze de dezembro nasceu nosso rei
O nosso rei do baião
A maior voz do sertão
Filho do sonho de Dom Sebastião
Como fruto do matrimônio do cometa Januário
Com a estrela Sant’Ana
Ao romper da era do Aquário
No cenário rico das terras de Exu
O mensageiro nu dos orixás
É desse treze de dezembro que eu me lembrarei
E sei que não me esquecerei jamais
Gravação
Gilberto Gil – It’s Good To Be Alive (Anos 90), 2002 – Gege
Comentário*
Letra feita no dia 13 de dezembro de 1986, em cima da música [instrumental] ‘Treze de dezembro’, do Luiz Gonzaga, que tinha sido composta em 13 de dezembro de 1951, no dia do seu aniversário [Luiz Gonzaga nasceu em 13 de dezembro de 1913, em Exu, Pernambuco]. Ele tinha me contado: ‘Amanheci, era meu aniversário, aquele dia bonito de sol, peguei a sanfona e saí tocando.
Acabei de tocar aquilo, eu disse: isso aí é ‘Treze de dezembro’, esse dia.’ Aí deu o nome, ‘Treze de dezembro’, que era aquele dia, do aniversário dele, em 1951. Aí, 35 anos depois, no mesmo 13 de dezembro, eu também acordei – na casa dele em Exu – e disse: ‘Ah, vou escrever uma letra para ‘Treze de dezembro’.’ Eu estava com ele em Exu! Tinha ido para a festa dos seus 73 anos. Um bocado de gente estava lá com ele: Gereba, Dominguinhos, Marinês.
A letra – feita por um discípulo, um devoto – é uma homenagem a ele e ao próprio dia de seu aniversário. Nela eu descrevo a situação que vou associando à data e ao seu sentido especial, à figura dele e à origem dele – na véspera eu tinha visitado o lugarejo onde ele tinha nascido; ele tinha nos levado lá. E aí entram o pai, Januário, a mãe, Ana (Santana), e a cidade, Exu, nome que na verdade não está etimologicamente ligado à entidade mas aos índios da região, mas que eu associei à entidade – era quase irrecusável, tendo ele sido o grande Mercúrio, o grande mensageiro [atributo de Exu no candomblé, intermediário entre o mundo dos deuses e o dos homens] que foi, interligando regiões e mundos culturais, e sendo ele próprio um mestiço de índio com negro e branco, um representante do povo mestiço brasileiro.
Acordei com a ideia na cabeça, peguei um papel e escrevi a letra toda. Foi engraçado. Na hora do café da manhã, eu cheguei e disse: ‘Mestre, olha aqui’. Cantei para ele e as pessoas, que cantaram também.
‘Treze de dezembro’ na obra de Gonzaga – A música é um choro extraordinário.
Gonzaga, quando veio para o Rio, chegou com a sanfoninha dele e com aquelas coisas do Nordeste: as canções folclóricas, os fragmentos do cancioneiro da região, baiões, xotes, xaxados, composições do pai, dos amigos. Só que encontrou um ambiente urbano de uma efervescência musical diversa – com músicas regionais, tango, música americana. Ele, então, teve primeiro que se desenvolver como um músico, tocando no mangue vários outros estilos de música e interagindo com vários músicos. Até que uma hora sentiu a necessidade de cantar a sua terra, de voltar para as suas origens. Aí encontrou Humberto Teixeira e Zé Dantas, ambos também na situação de retirantes como ele que vieram vencer na vida no Sul, um cearense, outro pernambucano, um médico, outro advogado, poetas populares também, homens simples como ele, e pronto, surgiu a coisa toda dele.
‘Treze de dezembro’ foi uma decorrência do aprendizado que ele fez no campo da música, tocando os vários gêneros que aparecem fragmentariamente na sua obra, uma obra majoritariamente dedicada aos gêneros nordestinos, mas apresentando também tangos, valsas, polcas, choros.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Tradição
Gilberto Gil
Uma garota do barulho
Namorava um rapaz que era muito inteligente
Um rapaz muito diferente
Inteligente no jeito de pongar no bonde
E diferente pelo tipo
De camisa aberta e certa calça americana
Arranjada de contrabando
E sair do banco e, desbancando, despongar do bonde
Sempre rindo e sempre cantando
Sempre lindo e sempre, sempre, sempre, sempre, sempre
Sempre rindo e sempre cantando
Conheci essa garota que era do Barbalho
Essa garota do barulho
No tempo que Lessa era goleiro do Bahia
Um goleiro, uma garantia
No tempo que a turma ia procurar porrada
Na base da vã valentia
No tempo que preto não entrava no Bahiano
Nem pela porta da cozinha
Conheci essa garota que era do Barbalho
No lotação de Liberdade
Que passava pelo ponto dos Quinze Mistérios
Indo do bairro pra cidade
Pra cidade, quer dizer, pro Largo do Terreiro
Pra onde todo mundo ia
Todo dia, todo dia, todo santo dia
Eu, minha irmã e minha tia
No tempo quem governava era Antonio Balbino
No tempo que eu era menino
Menino que eu era e veja que eu já reparava
Numa garota do Barbalho
Reparava tanto que acabei já reparando
No rapaz que ela namorava
Reparei que o rapaz era muito inteligente
Um rapaz muito diferente
Inteligente no jeito de pongar no bonde
E diferente pelo tipo
De camisa aberta e certa calça americana
Arranjada de contrabando
E sair do banco e, desbancando, despongar do bonde
Sempre rindo e sempre cantando
Sempre lindo e sempre, sempre, sempre, sempre, sempre
Sempre rindo e sempre cantando
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Umeboshi, 1973 – Gege
Gilberto Gil – Cidade do Salvador, 1973 – Gege
Gilberto Gil – Realce, 1979 – Warner Music
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Tropicália 2, 1993 – Universal Music
Comentário*
Por que o título: justificativas. — Para dar um sentido aristocratizante a um tempo e espaço (Bahia, anos 50) da minha história social; uma qualificação nobilizadora a uma realidade, somente possível a posteriori, a partir de um olhar que se deslocou para um plano superior — “Tradição” é um título afastado, um sobrevoo —, elevando com ele o conceito do cotidiano relatado. (É como Caetano falando de Santo Amaro da Purificação em “Trilhos urbanos”; a ambição aristocrática é a mesma. Em “Tradição”, Lessa, o goleiro do Bahia, é um nobre.) “Tradição”, também, para dar a ideia de uma mentalidade de época; de um modo tradicional de um agrupamento social da cidade de Salvador que se pereniza ou que se transforma; para sugerir como uma célula cultural se reproduz num macroorganismo social; e “tradição”, ainda, no sentido da importância, na minha formação, de tudo o que a letra retrata — no sentido, portanto, do meu compromisso afetivo com aquilo. “Tradição” poderia ter se chamado “Garota do Barbalho”, “tranquilamente”. A definição do título só veio mais tarde, após essa elaboração aqui descrita.
Tradição e transformação. — No conjunto da obra do Caymmi, encontram-se relatos de uma outra tradição da Bahia, anterior à chegada do petróleo e ainda com o saveiro, as praias, as baianas, o acarajé. Minha música já faz a indicação de várias mudanças de tradição: a transformação do transporte urbano (os ônibus começando a circular), os navios, o contrabando, a cultura americana chegando…
Personagens reais. — O bairro do Barbalho ficava ao lado do meu, Santo Antônio. Eu e minha irmã éramos levados ao colégio pela minha tia. Todos os sábados, domingos e quartas-feiras eu ia assistir aos jogos de futebol. O rapaz era um playboy, um bon vivant; andava de lambreta, fumava maconha. A garota era do Barbalho, quer dizer, do caralho! (Dois coelhos numa só…) Eu tinha doze, treze anos; ela, uns dezoito — um amor impossível. Meu objeto do desejo sexual. E ele, meu objeto do desejo cultural.
Palavras censuradas. — [A primeira vez que “Tradição” foi registrada em disco (por Gil, em Realce, em 1979, seis anos depois de ter sido composta), onde se ouve hoje (e desde a sua gravação com Caetano, em Tropicália 2, em 1993) “procurar porrada” ouvia-se “só jogar pernada”. A atualização constituiu-se, na verdade, na retomada de uma expressão contida na elaboração original da letra e proibida pela censura na época.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Nós, por exemplo
Gilberto Gil
Nós somos apenas nós
Por exemplo
Apenas vozes da voz
Somos nós, por exemplo
Apenas vozes da voz
Nós somos apenas vozes
Ecos imprecisos do que for preciso
Impreciso agora
Impreciso tão preciso amanhã
Nós, por exemplo, já temos Iansã
Nós, por exemplo, já temos Iansã
Nós somos apenas vozes
Nós somos apenas
Nós, por exemplo
Apenas vozes da voz
Somos nós, por exemplo
Apenas vozes da voz
Nós somos apenas vozes
Do que quer que seja luz no cor-de-rosa
Cor na luz da brasa
Gás no que sustenta a asa no ar
Nós, por exemplo, queremos cantar
Nós, por exemplo, queremos cantar
Nós somos apenas vozes
Nós somos apenas nós
Por exemplo
Apenas vozes da voz
Somos nós, por exemplo
Apenas vozes da voz
Nós somos apenas vozes
Do que foi chamado de “a grande expansão”
Pé no chão da fé
Fé no céu aberto da imensidão
Nós, por exemplo, com muita paixão
Nós, por exemplo, com muita paixão
Nós somos apenas vozes
Nós somos apenas
Nós, por exemplo
Apenas vozes da voz
Somos nós, por exemplo
Apenas vozes da voz
Gravação
Doces Bárbaros – Doces Bárbaros, 1976 – Philips
Comentário*
Na época da feitura do repertório geral dos Doces Bárbaros, no espaço de sete dias eu fiz, numa sequência: ‘Nós, por exemplo’, ‘Esotérico’, ‘O seu amor’, ‘Rita Lee’, ‘Pé quente, cabeça fria’, ‘Chuck Berry fields forever’ e uma que a Bethânia gravou, ‘Balada do lado sem luz’, também dessa série. Eu estava fazendo shows (‘Refazenda’) com Dominguinhos, Momó e Chiquinho Azevedo, no teatro do Sesc, no Pelourinho, em Salvador. Toda noite eu chegava em casa depois da apresentação e fazia uma música; durante uma semana eu fiz isso, ficava até três quatro da manhã compondo. Nada era pré-pensado, nada; a não ser ‘Nós, por exemplo’, que eu compus em função do show que havíamos feito na Bahia em 64.
Na busca de atualizar a ideia contida no título do espetáculo, dado por Caetano na ocasião, eu o retomei, também para tentar expressar o que significaria ‘Nós, por exemplo’ ainda, doze anos depois. A canção tem uma certa complexidade, uma certa ambição de escopo.
‘Vozes da Voz’ – ‘Nós somos vozes da Voz’, quer dizer: nós somos a razão do cantar, cantamos o Canto – a Voz nesse sentido, maiúscula, a Voz da vida, a Voz do mundo, daquilo que é preciso cantar; a Voz do imprescindível, da necessidade básica de expressão como uma das fomes do homem, cantar como elemento nutritivo, como hábito de reconstituição. Nós já tínhamos nos tornado vozes individuais, cada um de nós uma voz da Voz, e agora, ao nos juntarmos de novo, nos reencontrando nos Doces Bárbaros, éramos de novo vozes da Voz. Por que cantamos? Por que o homem canta? Por que cantar? Por que a música? A voz como vocação. Nós éramos os reprodutores perpetuadores dessa vocação do homem. Nesse
sentido, ‘Nós, por exemplo’ foi mais um jingle meu.
Qualidade jinglística – Você tem que escolher o interlocutor, identificá-lo; identificado, imediatamente você passa a falar de alguma coisa com alguém, por alguma razão. O jingle é isso: tem um utilitarismo embutido; a visão pragmatico-utilitária é logo colocada em ação. A mensagem tem que ter utilidade, funcionalidade, servir a alguma coisa. As minhas canções para os Doces Bárbaros tiveram esse sentido jinglístico, panfletário, aforístico.
A maioria delas – a começar por ‘Nós, por exemplo’ – teve a função de expressar os elementos de coesão, os signos que estavam associados ao nosso encontro e ao nosso percurso histórico enquanto grupo, enquanto pessoas associadas; ao nosso associativismo; à Bahia como elemento de ligação entre nós quatro; às nossas inclinações estéticas; aos gostos e às coisas que abordamos de forma comum; àquilo que nos ocorreu que trouxe elementos importantes para as nossas vidas e que foram historicamente relevantes.
‘A grande expansão’ – A expressão faz referência a uma das várias formas de chamar o mundo. Eu, na verdade, estava pensando em Pietro Maria Baldi. Baldi, um italiano que viveu no Brasil e fez um trabalho ligado à ideia do Brasil como uma nova terra prometida, um Eldorado; às, digamos, grandes profecias sobre o papel diferenciado do Brasil e à coisa toda de Brasília e o Planalto Central, onde ele viveu muito tempo. Baldi escreveu vários livros, e eu cunhei a expressão ‘a grande expansão’, na letra, pensando em um deles, chamado ‘A Grande Síntese’. E também no big bang e na formação do universo tal como ele é conhecido, bem como no estágio por que passamos hoje, que é de expansão, como eco ainda da
explosão inicial.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Nos barracos da cidade (Barracos)
Gilberto Gil
Liminha
Ninguém mais tem ilusão
No poder da autoridade
De tomar a decisão
E o poder da autoridade
Se pode, não fez questão
Se faz questão, não consegue
Enfrentar o tubarão
Ô-ô-ô, ô-ô
Gente estúpida
Ô-ô-ô, ô-ô
Gente hipócrita
O governador promete
Mas o sistema diz não
Os lucros são muito grandes
Mas ninguém quer abrir mão
Mesmo uma pequena parte
Já seria a solução
Mas a usura dessa gente
Já virou um aleijão
Ô-ô-ô, ô-ô
Gente estúpida
Ô-ô-ô, ô-ô
Gente hipócrita
Gravações
Gilberto Gil – Dia dorim noite neon, 1985 – Warner Music
Gilberto Gil – Ao vivo em Tóquio, 1987 – Warner Music
Cidade Negra – Quanto Mais Curtido Melhor, 1998 – Sony Music
Kid Abelha – Um barzinho, um violão (Ao vivo no Rio de Janeiro, Vol. 1), 2001 – Universal Music
Gilberto Gil – Kaya N’Gan Daya, 2003 – Warner Music
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases (Ao vivo), 2018 – Gege
Gilberto Gil e BaianaSystem – Gil Baiana Ao Vivo em Salvador, 2020 – Gege e Máquina de Louco
Comentário*
‘Barracos’ é outra das canções minhas que nasceram de uma música que veio pronta e na qual eu tive que encaixar uma letra. E já veio com frases melódicas exigindo redondilhas maiores: com esse formato. Aí me ocorreu falar dos barracos das comunidades periféricas; do fenômeno da exclusão como uma distorção do sistema – um tema clássico entre os vários da canção popular, e que tinha caracterizado parte considerável de toda a música de protesto da fase de formação daquilo que veio a se chamar MPB, desse grande sistema chamado MPB; música de protesto da qual ‘Procissão’ foi bem um símbolo. ‘Barracos’ é uma nova ‘Procissão’.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Touche pas à mon pote
Gilberto Gil
Ça veut dire quoi?
Ça veut dire peut être
Que l’Être qui habite chez lui
C’est le même qui habite chez toi
Touche pas à mon pote
Ça veut dire quoi?
Ça veut dire que l’Être
Qui a fait Jean-Paul Sartre penser
Fait jouer Yannik Noah
Touche pas à mon pote
Il faut pas oublier que la France
A déjà eu la chance
De s’imposer sur la terre
Par la guerre
Les temps passés ont passé
Maintenant nous venons ici
Chercher les bras d’une mère
Bonne mère
Touche pas à mon pote
Touche pas à mon pote
Ça veut dire quoi?
Ça veut dire peut être
Que l’Être qui habite chez lui
C’est le même qui habite chez toi
Touche pas à mon pote
Ça veut dire quoi?
Ça veut dire que l’être
Qui a fait Jean-Paul Sartre penser
Fait jouer Yannik Noah
Il fait chanter Charles Aznavour
Il fait filmer Jean-Luc Goddard
Il fait jolie Brigitte Bardot
Il fait petit le plus grand Français
Et fait plus grand le petit Chinois
Touche pas à mon pote
Gravações
Gilberto Gil – Dia dorim noite neon, 1985 – Warner Music
Gilberto Gil – Em casa com os Gil, 2022 – Gege
Comentário*
Eu tinha ido ao evento do movimento SOS Racismo, na Place de la Concorde, em Paris, e, lá, sido convidado a (e aceitado) participar da edição do mesmo no ano seguinte, marcada para a praça da Bastilha. Ao voltar ao Brasil — com o slogan deles, o “Touche pas à mon pote” (“Não incomode meu chapa”), na cabeça —, resolvi fazer a canção.
O que faz o Sartre pensar faz o Yannik Noah jogar [Noah: jogador de tênis de origem africana, exemplo de imigrante bem-sucedido na França]. Ou: “Como é que vocês, povo da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, se deixam rebaixar por tamanha mesquinharia? Isso é coisa de Hitlers, não de vocês!”. É a exortação da canção à alma francesa, às suas grandes máximas cívicas — recorrendo particularmente ao truque de usar essa entidade tão importante que é o “ser”, que diz respeito profundamente à obra de Sartre —, para tocar na questão da intolerância racial.
Meu francês era limitado, mas ainda assim eu quis ousar fazer, e acabei me deparando com essas surpresas que o próprio desdobrar-se da manifestação da poesia acaba trazendo. Essa música é particularmente um típico exemplo de que as deficiências no domínio de uma língua podem ser superadas pela excelência da linguagem. A canção se tornou conhecida na França. Os franceses ficaram admirados de ver que um fenômeno interno deles pudesse ter sido revelado a partir de fora; vários jornalistas me disseram: “Mas como que é que você fez?”. “Eu fiz.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Noite de lua cheia
Gilberto Gil
O céu flutua na noite de lua cheia
O amor atua na noite de lua cheia
Ocupa a rua na noite de lua cheia
Calma, queda a alma
Clara a emoção
Branca e branda a chama
Tão morna a paixão
Longe leva a vista
Leve leva o ar
Luva veste a terra
Leite lava o mar
Love, love quase se vê
Move, move em mim, em você
Chove, chove prata sobre nós
Ouve, ouve, deve ser a lua, sua voz
É quando quero, quando espero um grande amigo
É quando vivo por um bom motivo – a lua
É quando sinto que não minto quando digo:
Não há perigo, tenho um grande abrigo – a rua
Torpedo
Gilberto Gil
Ana Carolina
Mombaça
O Bamba sempre usou
Variações inúmeras prá dar
Conta de tantas emoções
De todas as paixões
De todas as paisagens do lugar
Tantos personagens, dramas, ilusões
Tantas noites de agonia e de luar
Lares, bares, ruas, becos, ecos de trovões
Sempre, a cada dia, um samba, oh!
Meu amor, hoje eu mesma venho aqui passar por Bamba
Só me valer dessa longa tradição do “gran” compositor
Proclamando seu viver, dando à sua dor asas, pra voar
Desde que o samba começou
Alguém sempre sonhou
Hoje sou eu que venho aqui sonhar
Possa meu samba, minha dor, meu canto, meu amor
Chegar até você, lhe despertar!
Já nesse primeiro instante da manhã
Quando o dia finalmente clarear
Possa meu torpedo lhe atingir o coração!
Ao nascer do dia, um samba, oh!
Meu amor, hoje eu mesma venho aqui cantar meu samba
Só me valer dessa eterna possibilidade de alcançar
Pelas asas da canção, a distância
Não vai nos separar
Gravação
Ana Carolina e Gilberto Gil – Ana Car9lina + um, 2009 – Armazém
Comentário*
Os coautores, Ana Carolina e Mombaça, me mandaram uma música pronta pra eu pôr uma letra nela. Sem a sugestão ou a proposta de nenhum tema, nenhuma palavra. Era um samba pra um disco dela. Ele estava fazendo um disco também. Eles fizeram esse samba — somente harmonia, melodia e ritmo — e, na hora da letra, pensaram em mim. “Vamos mandar um samba pra você fazer uma letra”, disseram. Ela toca pandeiro muito bem, gosta muito de samba, faz sambas e convocou o Mombaça pra fazer esse samba com ela, um samba rasgado, e eu fiz uma letra relativa ao compromisso dela. É ela no meio dos sambistas, tirando uma. Ela se tornou um bamba, uma bamba. “Venho aqui passar por bamba.” [Um dado de interesse: Ana Carolina é mineira de Juiz de Fora, onde nasceu também Geraldo Pereira (1918–55), um dos mais inventivos criadores da história do samba.]
Ana Carolina: “Fiz um samba sem letra com Mombaça e demorei três meses pra ter coragem de pedir ao Gil que fizesse a letra. Ele fez em dois dias, muito rápido, e eu e Mombaça quase morremos de tanta emoção!”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Noite de amor
Gilberto Gil
Gravação
Gilberto Gil e Cazuza – Um Trem Para as Estrelas, 1987 – Som Livre
Tomorrow vai ser bacana
Gilberto Gil
To have a bath will be so fine
Pimenta it is too hot
To have a bit will be so fine
My mother, she will be sad
I send a letter it will be so fine
My doughter she will be crazy
She got herself it will be so fine
Tomorrow vai ser bacana
To have a rest vai ser bacana
Bacana, bacana, bacana, bacana
Mangueira, it is so high
A noite inteira it will be so fine
Favela it is so nice
Beco da fome, it will be so fine
John Lennon it´s got too long
Rock´n roll it will be so fine
Morena i am so glad
Because i love you it will be so fine
Tomorrow vai ser bacana
To have a rest vai ser bacana
Bacana, bacana, bacana, bacana
No quartel
Gilberto Gil
Gravação
“Brasil ano 2000”, vários, Forma/CIA 1969
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
Todo dia de manhã
Gilberto Gil
Todo dia de manhã, visitar a Cabana do Peji
Pedir pro orixá zelar pelo axé
Zelar pelo lar, pelo labor, pelo lazer de Iaô
De Iaô, de Iaô
Todo dia de manhã, obrigação de candomblé
Todo dia de manhã, deixar o dia amanhecer
Todo dia de manhã, quando no horizonte o sol subir
Lembrar que Tupã andou por aqui
Nosso deus tupi, tupinambá, nosso deus tupiniquim
Tupiniquim, tupiniquim
Todo dia de manhã, obrigação de ser assim
Todo dia de manhã, pensar no Cristo Redentor
Todo dia de manhã, meditar sobre a máquina a vapor
Que esse mundo atroz faz a sua cruz
Do pulsar veloz, veloz e luz
Do gerador, do gerador
Todo dia de manhã, obrigação de dar amor
Gravações
Gilberto Gil – To Be Alive Is Good (Anos 80), 2002 – Warner Music
Comentário*
A letra, dividida em três partes, é um poema mesmo, de bonita; a primeira se referindo à cultura religiosa negra, a segunda à cultura religiosa indígena, e a última à cultura religiosa branca. Uma parte para os orixás, outra para os deuses indígenas, e outra para o Cristo Redentor, a cruz e a máquina a vapor: a civilização cristã ocidental com a “veloz idade da luz”. E a “obrigação de dar amor”, como a exigência do mundo civilizado, implicando na formação de multidões, de grandes populações com as grandes dificuldades de convívio, de interação; o significado do amor como o elemento fundamental nos imensos aglomerados humanos. As duas primeiras estrofes são relativas à tradição da comunidade, dos grupos originários, da fase originária da civilização, enquanto na última já se assombra a fase mais terminal.
“Terminal”. Esse termo é interessante porque essa última parece depender hoje das outras duas para se salvar; da lição das outras duas depende uma salvação dessa civilização. — Exatamente. A aceleração da aceleração provocou possibilidade da capotagem. Eu acho que a canção transita nesse campo conceitual semântico.
De novo aqui, a divisão em três partes, algo caro a você; não? — As três partes, sempre… Na tradição do choro. Os choros clássicos têm sempre três partes; uma primeira, uma segunda e uma terceira. E há a associação também com a ideia do Tao, a ideia filosófica da tese, antítese e síntese. O três permeia fortemente os campos da hermenêutica sobre as decifrações das coisas.
Sobre a música. — Pra mim, a música trazia um pouco do mesmo sentimento de “Graça divina”. Quer dizer, a canção, a música, o batuque dela, o intricado rítmico, isso tudo é que era, é que dava, digamos, propriamente valor às palavras, ao texto.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Toda saudade
Gilberto Gil
Da ausência de alguém
De algum lugar
De algo enfim
Súbito o não
Toma forma de sim
Como se a escuridão
Se pusesse a luzir
Da própria ausência de luz
O clarão se produz
O sol na solidão
Toda saudade é um capuz
Transparente
Que veda
E ao mesmo tempo
Traz a visão
Do que não se pode ver
Porque se deixou pra trás
Mas que se guardou no coração
Gravação
Gilberto Gil – O eterno deus Mu dança, 1989 – Warner Music
Comentário*
Essa música é um mistério, começando pela definição que ela dá de saudade [remetendo a Guimarães Rosa, para quem a saudade é ‘a presença de quem não está’] como ‘a presença da ausência’. Eu gosto muito em particular nela da imagem da saudade como ‘um capuz transparente, que ao mesmo tempo veda e traz essa visão’. ‘Veda’, para materializar a faculdade da saudade de falar da distância; e ‘traz a visão’ porque ela reivindica para o instante presente o ‘que não se pode ver’: eis a função de duas faces da saudade, de admitir a ausência mas ao mesmo tempo instalar a presença. A propriedade especial da palavra está em substantivar o binômio, a dualidade entre ausência e presença; aí reside o que eu acho expressivo nela. Que a palavra ‘saudade’ tem uma força especial, não há dúvida, mas eu não acho que ela não tem correspondentes em outras línguas; há palavras com a mesma função de ‘saudade’; equivalentes, tentativas de aproximação pelo menos. ‘Saudade’ talvez seja mais bem realizada. O engraçado é que ela não tem etimologicamente nenhuma relação com outra que diga respeito exatamente ao seu significado.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
No Norte da saudade
Gilberto Gil
Moacyr Albuquerque
Perinho Santana
Pra não ter porém
Pra não ter noite passada
Pra não ter ninguém
Atrás
Mais ninguém
Vou pra quem
Vai me ver noutra cidade
No norte da saudade, que eu vou ver
meu bem
Meu bem, meu bem
Vai me ver noutra cidade
No norte da saudade, que eu vou ver
meu bem
Meu bem, meu bem
Gravações
Gilberto Gil – Refavela, 1977 – Philips
Gilberto Gil – Fé na festa, 2010 – Gege
Gilberto Gil e Flor Gil – De avô pra neta, 2020 – Gege
Comentário*
Ela começa a ser feita em Aracaju por mim, Momó [Moacyr Albuquerque] e Perinho. Seguimos dali pra Maceió, pra Natal, e em Fortaleza nós concluímos a composição, no meio da viagem. É por isso que ela tem o título de “No norte da saudade”: porque ela vai em direção a novos encontros, deixando rastro. “Logo cedo, pé na estrada/ Pra não ter porém”: esse “porém” aí já tem um tom de lamentação ao mesmo tempo que busca explicitar o sentido da liberdade, o sentido do livrar-se daqueles momentos e deixá-los para trás: deixar a menina vivendo a saudade dela, eu levando a saudade dela pra outro lugar, pra outro encontro, pra outro momento. É uma canção seminal muito importante, de alta voltagem poética, eu acho. Associada a questões factuais, a toda uma cultura do on the road, dos anos 70, do exercício das novas liberdades, dos novos costumes, das novas expressões do amor, dos encontros; da sexualidade. E que foi recuperada no show Refavela 40 [em 2017] e em seguida incorporada pela Flor [a neta cantora, que interpreta a canção também na sua versão em inglês, “Goodbye, My Girl”], se tornando uma das canções constituintes do repertório dela.
“No norte da saudade” tem musicalmente uma particularidade, porque é um reggae-xote com uma levada que o Momó fez no baixo e um momento reservado ao solo do Perinho na guitarra que é preenchido de uma forma magistral, na gravação. Essa canção é interessante pela música mesmo, não é só pela letra; pelo modo duradouro como ela foi registrada.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Toda menina baiana
Gilberto Gil
Toda menina baiana tem encanto, que Deus dá
Toda menina baiana tem um jeito, que Deus dá
Toda menina baiana tem defeito também que Deus dá
Que Deus deu
Que Deus dá
Que Deus entendeu de dar a primazia
Pro bem, pro mal, primeira mão na Bahia
Primeira missa, primeiro índio abatido também
Que Deus deu
Que Deus entendeu de dar toda magia
Pro bem, pro mal, primeiro chão na Bahia
Primeiro carnaval, primeiro pelourinho também
Que Deus deu
Que Deus deu
Que Deus dá
Gravações
Gilberto Gil – Realce, 1979 – Warner Music
Gilberto Gil – Ao vivo em Tóquio, 1982 – Warner Music
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Daniela Mercury – Elétrica, 1998 – Sony Music
Gilberto Gil – São João (Ao vivo), 2001 – Warner Music
Gilberto Gil, Ivete Sangalo e Caetano Veloso – Especial Ivete, Gil e Caetano, 2012 – TV Globo
Margareth Menezes – Voz Talismã (Ao vivo), 2014 – Estrela do Mar
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois Amigos, um Século de Música (Ao vivo), 2015 – Uns Produções e Gege
Silva – Bloco do Silva (Ao vivo), 2019 – Som Livre
Comentário*
Feita em Salvador, ao lado da Nara, minha filha mais velha, que estava na pré-adolescência, a música é pra ela e por causa dela. Fala do caráter fundador da Bahia e das virtudes e defeitos do homem. Por força da busca de compreensão do divino no humano, eu me empenhava em me desvencilhar do maniqueísmo, abarcando as ideias ligadas tanto ao bem quanto ao mal. De lá pra cá esse ficou sendo um tema básico de minhas canções. Quase todas exprimem a necessidade de reiterar o sentido da tolerância, do perdão, da compreensão de que o homem é permeado pelo bem e pelo mal e de que a superação de um implica a superação do outro; você não se livra do mal sem se livrar do bem. A promessa das religiões reside nisso: na superação transcendental de ambos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Tocarte
Gilberto Gil
Nando Reis
Como se toca música
Tangendo as cordas
Dedilhando as teclas
Metendo as mãos na pele do tambor
Tocar-te assim
Como se toca samba
A perna bamba
O pulso no compasso
E aquele abraço pra trazer calor
Tocar-te
No rosto, no nariz, no lábio
Com algum ressábio
Tocar-te no ventre
Que aí, já terei ido mais a frente
Talvez seja forçado a recuar
Tocar-te na perna
No braço, no seio
Com algum receio
Tocar-te no meio
Que aí, já foi tão longe o devaneio
Que o melhor talvez seja parar
Tocarte
A arte de tocar-te a partitura
Na altura que o amor possa alcançar
Tocarte
A arte de tocar-te o instrumento
Juntar num só momento o nosso par
Meu sentimento
E o teu consentimento
Meu querer
E o que queres me dar
Gravação
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases (Ao vivo), 2018 – Gege
Comentário*
Na época de escolha e realização do repertório de Gil, Nando & Gal — trinca de ases, a gente falou alguma coisa como “aqui eu faço a música, faça você a letra”, ou vice-versa, além das canções que viemos a propor, cada um de nós, de per si. Então eu preparei essa letra e mandei pra ele. O único reparo que ele fez foi [acrescentar] “o nosso par”. Eu tinha proposto uma outra coisa qualquer depois de “A arte de tocar-te o instrumento/ Juntar num só momento…”, e não rimava. Ele aí propôs “o nosso par” porque rima com “alcançar” e com “dar” — e o sentido geral da canção [com a sugestão da conjunção carnal] ficou reforçado.
Uma canção de amor original não apenas por sua mescla de romantismo e erotismo (em que o erótico é tratado de modo poético) mas por ser, simultaneamente, uma canção engajada, por conter um elemento de engajamento; por tocar numa questão dos nossos tempos, cara à mulher e ao feminismo, a do assédio. O reconhecimento por parte do homem, o cantor da canção, dos limites que se impõem à abordagem da mulher. — O limite entre o cortejar e o assediar. Essa fronteira entre a corte e o assédio. Uma tentativa de estabelecimento de demarcação. Demarcação já!
Eu acho que o início da canção [associando o corpo da mulher e o instrumento musical] a legitima. Depois, “a perna bamba” transmite o aspecto inebriante do desejo sexual. E daí segue-se toda a questão dos limites, de como isso se dá no sentido prático, no sentido do ato, das ações. A ideia da progressividade, de como o cortejar vai se intensificando, vai se concretizando, vai reclamando a aceitação do parceiro, da parceira, num jogo de aceitação e permissão, isso tudo em nome do respeito e da delicadeza. Até que [na alusão a “seio” e a “meio”], chega-se ao sexo propriamente. “… já foi tão longe o devaneio/ Que o melhor talvez seja parar”: quer dizer, aí é a hora da definição. Estamos juntos definitivamente ou não; os dois ganharam o jogo ou não; é uma partida que está ganha ou ainda não. Volta a questão da música: “A arte de tocar-te a partitura/ Na altura em que amor possa alcançar”, exigindo a qualificação do ato sexual com a dimensão amorável. Com o amor propriamente. “Sexo é amor, amor é sexo” é a reivindicação dessa canção. Por fim, “a arte de tocar-te o instrumento/ juntar num só momento o nosso par”, uma tradução para o coito.
O fecho com chave de ouro: o achado do “sentimento com consentimento”, vocábulos diferenciados apenas pelo prefixo “con”, que sugere justamente conjunção, comum decisão dos dois. — A comunhão.
Do termo “partitura” como metáfora. — O corpo da mulher como aquilo que tem que ser lido, decifrado, além de tocado. A partitura é para ler para tocar.
Do emprego de “ressábio”; de o termo estabelecer uma rima rara com “lábio”, por serem poucas as palavras finalizadas em “ábio”, e sobre (eu) não ter lembrança do seu uso em outra canção. — Eu também não. “Com algum ressábio/ Tocar-te no ventre”: será que eu posso? Devo?
Do título, contendo o termo “arte” embutido. — Mais uma palavra-valise. Me lembro que quando eu propus a letra, eu já propus como título “Tocarte”, numa palavra inteira, sem hífen.
Observável nessa letra e em outras suas nos últimos anos, mais acentuadamente do que em períodos anteriores da sua obra, é a ocorrência de decassílabos. Em “Tocarte” quase 90% dos versos são decassilábicos. Eu fico me perguntando, no caso das outras, se você escreveu a letra antes ou foi compondo junto letra e música. — No caso dessa, eu mandei a letra inteira. Ele foi adivinhando a melodia e a acentuação musical pra toda a acentuação poética proposta antes, presente na letra. Ele fez a música sobre a letra, e a música é fiel à letra. Ele não mudou uma frase, uma acentuação rítmica, nada, ele manteve tudo. Tipo adivinhou mesmo. Pôr uma música sobre uma letra já dada, já feita, é um pouco uma adivinhação. A canção popular dá essa noção, propõe esse conjunto. Uma coisa já vem um pouco junto com a outra; mesmo que elas sejam feitas separadamente, é como se já estivessem juntas. A letra revela a música, a música revela a letra. A canção popular tem isso, tem essa intenção. Ela intenta isso, ela tenta isso, ela quer isso.
Eu gosto muito dessa canção. O Nando também. Ele fez a música muito interessante.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Tiu ru ru
Gilberto Gil
Cat Stevens
Menina, veja você
O trem só anda por cima da linha
O que eu vou fazer, eu não sei
O certo mesmo é que você é minha
Menina, veja você
O trem só anda por cima da linha
O que eu vou fazer, eu não sei
O certo mesmo é que você é minha
Tiu ru ru…
Titicaca
Gilberto Gil
Sobrevieram chuvas para acomodar
Formar as poças maiores
Flores ao redor desses lugares, há
Hoje em dia, muitas flores
No lago Titicaca
Arredores milenares
No lago Titicaca
A ti, te escuto quieto, até vejo a vegetação
Até sentir o frio da noite, sinto, senão
Não, não seria nada lembrar de Titicaca
Lembrar-te assim sem ter te avistado ainda, ai de mim
Titicaca
Um claro raio de lua
A passarada a cada nascer do sol
O lago, uma índia nua
Um peixe prateado, a prata do anzol
Ainda hoje, muitas flores
No lago Titicaca
Arredores milenares
No lago Titicaca
A ti, te compreendo, até prendo a respiração
Andes, por onde andes, andará meu coração
Gente pacata, tez colorida, vida tão sã
Respirar claro, enxergar puro, cobrir com lã
Titicaca
Gravação
Boca Livre – Boca Livre, 1983 – PolyGram
Gilberto Gil – To Be Alive Is Good (Anos 80), 2002 – Warner Music
Comentário*
Eu não tinha estado lá. A canção trata de como comentar sobre um lugar aonde não se chegou a ir, como apreender uma visão sem ter visto, como compreender uma sensação sem ter sentido. Eu tinha ‘uma coisa’ com esse lago desde menino. Num determinado momento, eu não sei nem por que razão imediata, eu resolvi escrever uma canção sobre o Titicaca, um lugar-mito, um símbolo geográfico de uma região; decidi usá-lo como mote de uma música. Me veio um jorro de emoção sobre ele, e eu a compus. A canção descreve uma fantasia sobre a formação geológica do lago, trazendo elementos locais como a prata, o metal próprio do lugar. ‘Titicaca’ nasceu originalmente de informações remotas, de resíduos, fragmentos de lembranças das aulas de geografia e das fantasias que eu tinha ao pensar no lago e na região.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
The United States of my life
Gilberto Gil
I have to be beyond any highway
Tonight
I’ll still be beyond any starlight
Tomorrow
I’ll still be free from any pain or sorrow
I’ll still be high to the highest I can grow
I’ll still be here, there, now, and then
Tomorrow
I’ll still be far behind where the dark lies
Behind the darkness when I close my eyes
Before the Lord in fullness of a man
Forever
I’ll be protected whenever I fall
I’ll be together united in all
The united states of my life
The three mushrooms
Gilberto Gil
Jorge Mautner
Makes room for my mind
To get inside the magic room
Of Dionisius’ house
Time is over
War is over
I am safe and sound
I live and love
I drink and eat
I can leap and bound
Now I am dying all my life away
As well as I am being reborn
Day after day
The second mushroom
Makes room for my body
To get inside the tragic room
Of Dionisius’ house
Time is on
War is all
I am busy and sad
From mists of pain
I rise and fall
Like an endless rain
Now I am doing what I have to do
Fulfilling all my will of conquest
Moon after moon
The last mushroom
Makes room for the unknown
I get inside the secret room
Of an unthinkable house
In which I feel the grace
In which I get to be the space
From which I see the earth
Exploding into a light
That the last mushroom aroused
The last mushroom
Atomic mushroom
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil, 1971 – Philips
Comentário*
Jorge estava morando nos Estados Unidos e foi passar um tempo em Londres. Foi quando nos conhecemos e fizemos essa canção, a quatro mãos mesmo, eu e ele juntos inventando a música, imaginando versos; cortando, montando, fazendo colagem; escrevendo e retocando. A idéia surgiu das conversas com ele, sobre as relações complexas e difíceis entre filosofia e ciência, ciência e arte, arte e mitologia; sobre os grandes filósofos, os alemães, os modernos, sobre a filosofia nietzschiana e a heideggeriana, a escola de Nietzsche desembocando em Heidegger; sobre Sartre, o existencialismo; sobre as correntes mais modernas, americanas, a new left; sobre os hippies, os black panthers, as viagens psicodélicas, o campo dos estados alterados de consciência e as ligações disso com as velhas tradições orientais da yoga, do tantra, do taoísmo – todo esse panfleto neo-mitológico a que eu me refiro, ao falar de ‘Objeto sim, objeto não’.
As conversas com Mautner incluíam as grandes questões ligadas à filosofia, à política, ao futuro, à tecnologia – as grandes ameaças e as grandes promessas da tecnologia –, tudo que hoje é re-tematizado pelas discussões no campo da ecologia das quais Mautner foi precursor, naquela época. E ‘The three mushrooms’ apresenta, um pouco, um resumo disso tudo, abrangendo os temas da droga, da nova cultura, da bomba atômica, da hecatombe, do império moderno, das estratégias de dominação, de governo mundial.
Ao final, há uma cena apocalíptica, de hecatombe final, e a gente está do espaço vendo, e ao mesmo tempo o espaço sou eu mesmo: é tudo autocontido, esse eu é um eu abrangente, que envolve micro e macrouniverso, o chamado eu superior.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
No mundo do lua
Gilberto Gil
Se o milagre acontecesse de eu voltar
Este breu da inexistência ainda é melhor
Este céu da inexistência pelo menos
Pr’eu poder voltar na terra sem poder
O consolo nesse mundo onde sou não
Afinal de contas se ainda sou rei
Que vocês ainda possam me escutar
Gravação
Gilberto Gil – Gonzaga, de pai pra filho, 2012 (trilha sonora do filme) – Gege
Comentário*
[Outra homenagem de Gil a Luiz Gonzaga, depois de “13 de dezembro” (letra de Gil sobre música instrumental de Gonzaga), “No mundo do Lua” foi composta para o filme Gonzaga, de pai pra filho.]
Ele já desaparecido e, ao mesmo tempo, a presença ainda extraordinariamente forte da música dele: a letra acabou tratando disso, da manifestação do desencarnado; ele, desencarnado, falando do que poderia, do que teria que significar pra ele uma nova encarnação — que só interessaria se ele pudesse continuar a tocar sua sanfona, fazendo seu baião; que ele dispensaria o milagre de Deus fazê-lo voltar sem poder tocar e cantar por aí. Preferia não voltar. Lá onde ele está, quieto feito os anjos da igreja de Ituaçu, ele estaria melhor. É um jogo com o ente desencarnado, falando para o mundo da encarnação, que é o mundo terreno, o nosso mundo. Eu acho a letra interessantíssima, uma das mais interessantes que já fiz. Formada por sentenças, algumas delas muito bem encontradas, atribuídas a ele. Eu não lembro de outra canção cujo eu lí- rico é desencarnado, o que já imprime um caráter especial à letra. O que me fez ir por esse caminho foi mesmo a força da existência de uma figura como a dele e a força da existência após a inexistência. A ideia mesmo do legado histórico, artístico, de uma vida que se eterniza; da imortalidade tão evidentemente plausível em alguém como ele. O que diria esse alguém que deixa alguma coisa para o mundo: é o que quis dizer essa canção. Com um certo humor, uma jocosidade, uma coisa característica de muitos dos baiões, xaxados e xotes que formam a grande obra de Gonzaga. Do apelido de Gonzaga, por ele ter o rosto arredondado. — “Lua” ficou um dos apelidos mais conhecidos dele, mais adotados por todo o mundo. Luiz “Lua” Gonzaga.
Do título “No mundo do Lua” como paráfrase de “no mundo da Lua” (ou seja, “outro mundo”). — Exatamente. Tem esses achados interessantes essa canção.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
The green giant, part 1
Gilberto Gil
Robert Sadin
Ernie Watts
And the biggest Japanese country outside of Japan
In Brazil there are farms the size of Belgium
There are thirty million children in the streets of Brazil, more than the whole population of Canada
Brazil is my home
Gravação
Ernie Watts (feat Gilberto Gil) – Afoxé, 1991 – CTI
Sampa Milano
Gilberto Gil
Napoli Salvador
Roma e Rio
Sampa Milano
Napoli Salvador
Roma e Rio
Mestre Caymmi
o exemplo melhor
o melhor do que for
mescla Itália Brasil
Mestre Caymmi
canção do mundo inteiro cantar
canção da mãe rainha do mar
o mesmo mar daqui e de lá
o mesmo mar azul do Brasil
mediterrânea Itália
Sampa Milano
Napoli Salvador
Roma e Rio
Sampa Milano
Napoli Salvador
Roma con Rio
Mastro Caymmi
Il mondo intero canta già
Come la tua Regina del mar
Lo stesso mare aqui e di là
Lo stesso azurro del tuo Brazil
Mia Mediterranea Italia
Sampa Milano
Napoli Salvador
Roma e Rio
Sampa Milano
Napoli Salvador
Roma e Rio
Gravação
Gilberto Gil e Simona Molinari – Single, 2011 – Warner Music
Comentário*
[Canção com produção italiana para um evento que teve por intuito louvar uma união Itália-Brasil, assinalando pontos de contato entre as duas nações. Na letra, Gil propôs um jogo de afinidade associando três das principais cidades de cada país: Milão como São Paulo, Napoli como Salvador, Roma como Rio de Janeiro. “A ideia foi cantar as semelhanças entre as cidades São Paulo e Milão, Napoli e Salvador, Roma e Rio — capitais, metrópoles históricas que abraçam a ideia da completude nacional”, conta Gil. Estabelecendo o elo poético, a figura do compositor baiano Dorival Caymmi, de mãe negra e ascendência paterna italiana. “Mestre Caymmi. O avô dele teria sido um engenheiro que veio da Itália para construir o elevador Lacerda. Isso faz inaugurar a família Caymmi no Brasil”.
[Washington Olivetto informa: “O evento chamava Momento Brasil/Italia, uma iniciativa do embaixador da Itália, Gherardo de La Francesca, meu amigo. Dois anos antes tínhamos tido o ano França/Brasil, com o Gil ministro da Cultura. Sugeri ao Gherardo que utilizasse a palavra “momento” ao invés de “ano”, porque ela tem o mesmo significado nas duas línguas. Falei com o Gil, que gostou da ideia e fez a canção. O Sergio Affonso, que dirigia a Warner, fez a ponte com a Simona Molinari, que também era da Warner e fã do Gil.”]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Testamento do Padre Cícero
Gilberto Gil
Augusto Boal
Mas sei que num digo à toa
Padre Cícero é uma pessoa
Da Santíssima Trindade
Perdido no Ceará
Lá no meio do sertão
Existia um bom padre
Chamado Cícero Romão
Doença, miséria havia
Doutor nem tinha por lá
Nem remédio em Juazeiro
Só as coisas que Deus dá
Tinha erva pelo mato
Muita fé no coração
Pois isso já lhe bastava
Ao bom padre Cícero Romão
Muito doente sarou
Só de ouvir a pregação
Pelos conselhos o padre
Não cobrava nem tostão
Sua fama correu mundo
E vinham todos ouvir
Também em questões de terra
Cabia ao padre decidir
Era o padre homem de bem
Que a paz muito prezava
E os camponês armado
O padre sempre acalmava
Esse homem medicante
Que de graça trabalhava
Vivia da caridade
Daquilo que o povo dava
Finou-se um dia o velhinho
Foi grande a consternação
Juntou-se o povo sofrido
Na mais comprida oração
Piedoso testamento
Ouviu com todo respeito
Querendo saber do padre
Um pouco do seu direito
Fez-se leitura bem alta
Começando por fazenda
E cinco foram contadas
Que tinha ganho de prenda
Lá na rua de São Pedro
Possuía um quarteirão
Fora mais quinze sobrados
Esse bom Padre Romão
Trinta sítios bem cuidados
Era sua propriedade
Mais alguma casa ou lote
Também tinha na cidade
Muita vaca, boi e ave
Cabra, cavalo e carneiro
Que se perdeu logo a conta
Depois dos vinte milheiro
Essa estória vem provar
E o testamento também
Como sempre sai lucrando
Quem na vida faz o bem…
Gravação
Ary Toledo – Ao vivo, 1969 – RGE Premier
Samba louco
Gilberto Gil
Todo sem jeito
Samba feito
Em contramão
Todo quebrado
Desafinado
Isto não é samba, não
Samba desse jeito
Não se pode conceber
Que melodia
Que harmonia de doer
Mas como sou louco
Também fiz um samba louco
E esta loucura
Já não consigo entender
No dia que eu vim-me embora
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Minha mãe chorava em ai
Minha irmã chorava em ui
E eu nem olhava pra trás
No dia que eu vim-me embora
Não teve nada de mais
Mala de couro forrada
Com pano forte e brim cáqui
Minha vó já quase morta
Minha mãe até a porta
Minha irmã até a rua
E até o porto meu pai
O qual não disse palavra
Durante todo o caminho
E quando eu me vi sozinho
Vi que não entendia nada
Nem de pro que eu ia indo
Nem dos sonhos que eu sonhava
Sentia apenas que a mala
De couro que eu carregava
Embora estando forrada
Fedia, cheirava mal
Afora isso, ia indo
Atravessando, seguindo
Nem chorando, nem sorrindo
Sozinho pra capital
Nem chorando, nem sorrindo
Sozinho pra capital
Gravações
Caetano Veloso – Caetano Veloso, 1967 – Philips
Maria Alcina – Maria Alcina, 1973 – Warner Music
Dominguinhos – Oi, lá vou eu!, 1977 – Universal Music
Luiz Gonzaga – O canto jovem de Luiz Gonzaga, 1982 -RCA
Vinicius Cantuária – Sutis diferenças, 1984 – EMI Music
Vânia Bastos – Cantando Caetano, 1995 – Velas
Pena Branca e Xavantinho – O melhor de Pena Branca e Xavantinho, 1997 – Veleiro Produções Artísticas Musicais e Comércio Ltda.
Carmen Queiroz – Enquanto eu fizer canção, 2011 – Tratore
Guadalupe – Dedicado a você, 2016 – Canal 3 Distribuidora
Terra 90
Gilberto Gil
Não basta só pensar nela
Como uma bola no ar
A Terra é onde mora a vida
Onde os pés pisam o chão
Onde o ser toma medida
De entregar-se à encarnação
Apesar de linda
Não basta sonhá-la infinda
Ela pode se acabar
A Terra também respira
Pode faltar-lhe um pulmão
De repente o tempo vira
Partindo-lhe o coração
Apesar de tudo
O mar ainda não está mudo
Sempre há de haver salvação
O desafio da eterna salvação
Cheio, vazio, criação, descriação
Que fia o fio e desafia a razão
Que traz o cio que retorna à imensidão
Que traz o tio ter sido antes o irmão
Corre o rio, como vomita o vulcão
Há milhões, milhões de anos
Que ela sofre mas se agüenta
Só neste século XX vem de completar 90
Minha Terra 90, minha Terra 90
Apesar de tanta idade
Até que não aparenta
Terra firme, terra forte
Quem tanto te sustentou
Mais um tanto te sustenta
Terra firme, terra forte
Quem tanto te sustentou
Mais um tanto te sustenta
Gravação
Gilberto Gil – It’s Good To Be Alive (Anos 90), 2002 – Gege
Comentário*
Um samba que se nutre da tradição dos velhos mestres cariocas; do Batatinha e do Gordurinha, mestres baianos. Um samba blues. Em tom menor, que insinua melancolias, que insinua esse sentimento consternado, preocupado, com a Terra. No mais, os versos são muito explícitos.
Interessante a pertinência desses versos hoje (2022), quando são mais facilmente recebíveis, compreensíveis, do que há trinta anos. — A informação sobre os riscos e as ameaças é muito mais disseminada hoje, em que há muito mais consciência ecológica do que naquela época. Veja, por exemplo, a proliferação de ações, projetos, canções etc., no sentido da proteção aos povos originários, aos biomas originários. A Amazônia, por exemplo, é uma questão escancarada. Naquela época era bem menos. Foram exatamente as mobilizações que se sucederam, como a própria Eco 92, que desencadearam todo esse rosário de ações e de encontros; Paris, Estocolmo, Rio+20… Quando você canta uma canção dessa hoje, a apreensão, a capacidade de compreensão, está redobrada. Todo mundo vai saber imediatamente do que se trata.
Como mais uma canção de temática ambiental sua, essa contém ao mesmo tempo uma conotação espiritual, a Terra é “onde o ser toma medida/ De entregar-se à encarnação”. — Ah sim, claro!
“Pode faltar-lhe um pulmão/ De repente o tempo vira/ Partindo-lhe o coração”. — Essa ideia de movimento brusco, descuidado; da falta de cuidado com a Terra que vem provocando os eventos a que vimos assistindo.
“Terra 90”: a referência à idade do planeta, 90 milhões de anos, e ao fato de que haviam se completado 90 anos do século xx. — É; era o começo da década de 90; estávamos chegando ao final do século.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil