Músicas
Cantiga
Gilberto Gil
Torquato Neto
Eu te amo tanto, tanto
Que esta minha vida
Sem você
Seria para sempre triste
E eu nem sei se existe
Vida assim
Que alguém possa viver
Meu bem eu te amo tanto
Que vou te dizer
Daria minha vida
Pra não te perder
Cantiga de quem está só
Gilberto Gil
Quem ganhará nesta hora os teus abraços?
Meu pensamento rasteja o teu caminho
Minha saudade sem fim segue os teus passos
Ai, quem terá entre as mãos os teus cabelos?
Quem ouvirá dos teus lábios a frase louca?
No meu desejo de amor estou a vê-los
Chego a senti-los até em minha boca
A quem dirás “meu amor”
Com este jeito tão teu
Com este estranho calor
Que há tanto tempo foi meu?
Ai, quem será que tu vais mandar embora?
Quem chorará como eu, que choro agora?
Casinha feliz
Gilberto Gil
Toda casinha feliz
Ainda é vizinha de um riacho
Ainda tem seu pé de caramanchão
Onde resiste o sertão
Toda casinha feliz
Ainda cozinha no fogão de lenha
Ou fogareiro de carvão
De dia, Diadorim
De noite, estrela sem fim
É o Grande Sertão: Veredas
Reino da Jabuticaba
As minas de Guimarães Rosa
De ouro que não se acaba
Onde resiste o sertão
Toda casinha é feliz
Porque à tardinha tem Ave Maria
E o beijo da solidão
Outras gravações:
“Outro quilombo”, Renato Braz, Atração Music
“Dia dorim noite neon”, Gilberto Gil, Warner Music 1985
“Eu, tu, eles”, Gilberto gil, Warner Music 2000
“O poeta e o esfomeado”, Jorge Mautner e Gilberto Gil, Discobertas 2014
“Outro quilombo”, Renato Braz, Atração
Comentários*:
“A letra veio toda na cabeça, toda de cor, de coração total, quando eu a escrevi, em Curitiba, no hotel Mabu, sob uma tempestade de raios, relâmpagos e trovões, deitado no chão do quarto, com imagens de Ituaçu, da infância na cidade, na memória. ‘Casinha feliz’ começou com Guimarães mesmo, com Diadorim – o personagem do ‘Grande sertão: veredas’ –, com o sertão dele.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Cérebro eletrônico
Gilberto Gil
Faz quase tudo
Quase tudo
Mas ele é mudo
O cérebro eletrônico comanda
Manda e desmanda
Ele é quem manda
Mas ele não anda
Só eu posso pensar se Deus existe
Só eu
Só eu posso chorar quando estou triste
Só eu
Eu cá com meus botões de carne e osso
Hum, hum
Eu falo e ouço
Hum, hum
Eu penso e posso
Eu posso decidir se vivo ou morro
Porque
Porque sou vivo, vivo pra cachorro
E sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Em meu caminho inevitável para a morte
Porque sou vivo, ah, sou muito vivo
E sei
Que a morte é nosso impulso primitivo
E sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Com seus botões de ferro e seus olhos de vidro
“O fato de eu ter sido violentado na base de minha condição existencial – meu corpo – e me ver privado da liberdade da ação e do movimento, do domínio pleno de espaço-tempo, de vontade e de arbítrio, talvez tenha me levado a sonhar com substitutivos e a, inconscientemente, pensar nas extensões mentais e físicas do homem, as suas criações mecânicas; nos comandos tele-acionáveis que aumentam sua mobilidade e capacidade de agir e criar. Porque essas são idéias que perpassam as três canções.”
Outras gravações:
“Barulhinho bom”, Marisa Monte, EMI Music
“A arte de Gilberto Gil”, Polygram/Fontana 1985
“Multishow ao vivo – Caetano e Maria Gadú”, Caetano Veloso e Maria Gadú, Universal Music 2011
“Gilberto Gil revisitado”, Gilberto Gil, Dubas Music 2004
“Personalidade – vol. 2”, Gilberto Gil, 2 Novodisc Mídia Digital 2013
“Giluminoso”, Gilberto Gil, Biscoito Fino 2006
“UNB”, Gilberto Gil 1999
“Millennium”, Gilberto Gil, Universal Music 2004
“Gilberto Gil”, Gilberto Gil, Universal Music 2004
“Quilombo”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
“Quanta gente veio ver”, Gilberto Gil, Warner Music 1998
“It’s good to be alive – anos 90”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
“Barulinho bom”, Marisa Monte, EMI Music 2004
“Viver a vida”, Mylena, Som Livre 2009
“Tempos modernos”, Mylene, Som Livre 2009
Comentários*:
(…) Tinha já passado pela Vila Militar da Tijuca e de Deodoro; agora estava no Quartel dos Pára-quedistas, onde fiquei sozinho numa cela. Foi lá que, pela primeira vez, li uma reportagem sobre macrobiótica, e era com John Lennon e Yoko Ono. Pedi à Gizeuda – irmã de Turíbio Santos – e à Sandra, que naquela época era ainda minha namorada, para me trazerem livros sobre macrobiótica. Foi lá que tive as primeiras noções sobre isso e pedia ao pessoal da cozinha do quartel para me trazer aveia e banana, e comecei um vegetarianismo incipiente, possível naquela situação, mas com uma disposição muito grande. Li os primeiros livros de yoga que a Gizeuda me trouxe e comecei a fazer as primeiras posições de relaxamento e respiração.
– Sua verdadeira iniciação para um processo de liberdade interna começa na condição de prisioneiro.
Eu diria que passou a ter ali uma face mais visível a minha busca espiritual, a minha ânsia mística. Todo esse primeiro polimento, essa primeira retirada da poeira da superfície do meu ser foi feita ali dentro da prisão. "Cérebro eletrônico" é uma das músicas que retratam isso. Era uma época onde a cibernética estava começando a ser discutida publicamente. O computador começando, ainda incipientemente naquele momento, mas já se tornando uma realidade. A gente nem chamava ainda de computador, era cérebro eletrônico, aquele monstrengo, ainda nem um pouco miniaturizado como são os computadores hoje. Era um tempo com aquelas perspectivas de ficção científica, com “2001, uma odisséia no espaço”, de Arthur Clark, e as primeiras viagens espaciais se concretizando. (…)
(…) Era o mundo, esse mundo moderno dos homens e suas ciências e eu com a ciência de Deus, com o conhecimento da condição Divina que era tudo que me restava ali. Confinado, só tinha a mim mesmo, em si mesmo. A música “Cérebro eletrônico” reflete esse contraste, esse diálogo entre o mundo dos homens e seu poder, o mundo de Fausto e o mundo de Deus. Há uma frase fundamental dessa música: “Só eu posso pensar/ Se Deus existe/ Só eu/ Só eu posso chorar/ Quando estou triste”. Acho que esses dois versos são resumos daquela situação-limite, naquela fronteira entre a vida e a morte que, simbolicamente, se instalara naquela tensão máxima entre liberdade e prisão. Estava ali, trancafiado, mas com viagens astrais e mentais, as que me eram possíveis. “Vitrines”, por exemplo, foi uma música exatamente nesse sentido, saindo daquele microcosmo reducionista de prisão para acompanhar o vôo livre das naves espaciais. (do livro ‘GiLuminoso – A Po.Ética do Ser’, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999)
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Certeza (Mão na mão)
Gilberto Gil
Perinho Santana
Falarei de amor
A não ser
Que eu saiba sua cor
Sua dureza
Seu cheiro, seu sabor
Sua certeza
E a certeza que se tem do amor
Nasce exatamente do calor
Da mão na mão
Do fogo no coração
Que amassa a massa
E assa o pão
Que a fome
Come e passa
Chamada
Gilberto Gil
Outras gravações:
“Z”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Chão batido
Gilberto Gil
o lugarejo aqui não tinha
ensejo nem capacidade
nem caminhão aqui não vinha
não tinha estrada de verdade
o mais perto que se podia
pegar transporte pra cidade
era na verdade Luzia
o estirão de qualidade
São João, São João
São João em vez de chão batido a estrada
agora tá toda asfaltada
minha Toyota anda que anda
comprei novinha financiada
em vez de pé de serra a banda
agora vai tocar ciranda
com hip hop misturada
por exigência da moçada
a globalização que manda
São João, São João
São João vamo encontrar com tanta gente
a festa agora é diferente
que o mundo tá todo mudado
sobrou pouquinho do passado
uma pamonha um milho assado
uma quadrilha, uma quermesse
e o baião que permanece
a cada dia mais cotado
e o xaxado e o xaxado,
São João, São João
São João também tem outra novidade
a tal da eletricidade
seguida da telefonia
do celular estrela guia
de qualquer ponto a gente envia
mensagens se localizando
que tá pertim, que tá chegando,
já reservei pela Internet
ingressos para o show da Ivete
São João, São João
São João essa garota na carona
é manga-rosa temporona
que manga verde é muito dura
Chegada em Palmares
Gilberto Gil
Chewing gun with banana
Gilberto Gil
Only when your Uncle Sam allows me in
With my tambourine, my cuica and my zabumba
Only when he knows that a samba is not a rumba
So then, I will mix it all
Miami with Copacabana
Your chewing gun I’ll mix with my banana
And then my samba’s gonna hit your soul
Boroboroborobo, boptch-boptch-bop
Boroboroborobo, boptch-boptch-bop
Boroboroborobo, boptch-bop
What a great confusion in the hall
Boroboroborobo, boptch-boptch-bop
Boroboroborobo, boptch-boptch-bop
Boroboroborobo, boptch-bop
We are dancing samba-rock’n’roll
Yes, but on the other hand
We can feel the boogie-woogie trying hard to understand
How to do a brake and shake a tambourine
Joing my Brazilian jamboree
[ inédita – Chiclete com Banana, de Gordurinha e Almira Castilho ]
Chiquinho Azevedo
Gilberto Gil
Garoto de Ipanema
Já salvou um menino
Na praia do Recife
Nesse dia Momó também estava com a gente
Levou-se o menino
Pra uma clínica em frente
E o médico não quis
Vir atender à gente
Nessa hora nosso sangue ficou bem quente
Menino morrendo
Era aquela agonia
E o doutor só queria
Mediante dinheiro
Nessa hora vi quanto o mundo está doente
Discutiu-se muito
Ameaçou-se briga
Doze litros de água
Tiraram da barriga
Do menino que sobreviveu, finalmente
Chiquinho Azevedo
Teve muita coragem
Lá na Boa Viagem
Na praia do Recife
Nesse dia Momó também estava com a gente
Todo mundo me pergunta
Se essa história aconteceu
Aconteceu, minha gente
Quem está contando sou eu
Aconteceu e acontece
Todo dia por aí
Aconteceu e acontece
Que esse mundo é mesmo assim
“O episódio aconteceu durante a excursão do show Refazenda. Chiquinho, Momó (Moacir Albuquerque) e Dominguinhos tocavam comigo. Eu, Momó e Chiquinho – que viria depois a ser o baterista dos Doces Bárbaros – estávamos na praia, e, de repente, um menino se afogando, ele vai, se joga no mar, salva e traz o menino pra areia. O menino naquela agonia, inconsciente, bem defronte havia uma clínica; levamos o menino pra lá, o socorro era urgente, e aí, o médico: ‘Peraí, quem vai pagar, quem é o responsável, e não sei o quê.’ Aquela história. ‘Responsável, coisa nenhuma!’, a gente começou a gritar e xingar.”
Choro de criança
Gilberto Gil
Perinho Santana
Em casa quem não quiser choro de criança
Em casa quem não quiser choro de criança não casa
No caso quem não quiser choro de criança
Não casa porque quem casa tem que escutar
O choro de criança
O choro de criança é tudo
O choro de criança é tudo que se tem
O choro de criança é tudo que se tem em casa
O choro de criança é tudo que se tem em casa
Quando alguém se casa é choro de criança
O tudo que se tem
No caso quando alguém se casar
É choro de criança tudo
Que alguém terá de cantar
Pra consolar
O choro de criança
Chororô
Gilberto Gil
De quem chora tenho dó
Quando o choro de quem chora
Não é choro, é chororô
Quando uma pessoa chora seu choro baixinho
De lágrima a correr pelo cantinho do olhar
Não se pode duvidar
Da razão daquela dor
Não se pode atrapalhar
Sentindo seja o que for
Mas quando a pessoa chora o choro em desatino
Batendo pino como quem vai se arrebentar
Aí, penso que é melhor
Ajudar aquela dor
A encontrar o seu lugar
No meio do chororô
Chororô, chororô, chororô
É muita água, é magoa, é jeito bobo de chorar
Chororô, chororô, chororô
É mágoa, é muita água, a gente pode se afogar
Chororô, chororô, chororô
É muita água, é magoa, é jeito bobo de chorar
Chororô, chororô, chororô
É mágoa, é muita água, a gente pode se acabar
Outras gravações:
“10 de dezembro”, Cássia Eller, Universal Music
“Solar”, Elba Ramalho, BMG
“Coração brasileiro”, Elba Ramalho, Polygram Comércio
“Citação na faixa fiz o que pude All star – Cássia Eller interpreta Nando Reis”, Cássia Eller e Gilberto Gil, Universal Music 2005
“Solar”, Elba Ramalho, BMG 1999
“Coração brasileiro”, Elba Ramalho, Polygram Comércio 1991
“Elba Ramalho – mega hits”, Elba Ramalho, Sony Music 2014
“A arte de Elba Ramalho”, Elba Ramalho, Universal Music 2005
“Montreaux jazz festival”, Gilberto Gil 2006
“35 years of Montreux jazz festival”, Gilberto Gil, Picotin Records 2001
“Ao vivo”, Gilberto Gil, Warner Music 1993
“Ao vivo em Montreux”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
“Gilberto Gil – ao vivo – disco 1”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
“Re”, Gilberto Gil, Warner Music 1984
“Festival de Montreux – 50 anos”, Gilberto Gil, Warner Music 2017
“O melhor de…”, Gilberto Gil, Warner Music 1981
“Ao vivo”, Gilberto Gil, Warner Music 1978
“Graziela cruz”, Graziela Cruz, Graziela Aparecida Da Cruz 2002
Comentários*:
“‘Chororô’ foi feita no quarto de hotel em Montreux, uns dois dias antes do meu primeiro show no festival de jazz da cidade. ‘Não tenho uma canção nova para esse show; o que é que eu vou fazer? Vou fazer um xote’, eu disse. Aí peguei o violão e fui tocando. Ao pensar na necessidade de uma letra, por algum desvão qualquer, não lembro qual, como naquelas ribanceiras em que você escorrega de repente, eu caí no ‘chororô’. Eu comecei pelo refrão, caindo no ‘chororô, chororô, chororô’, e me perguntei: ‘O que é que eu vou dizer agora?’ Aí eu tive de inventar a história de um chorão, que não era estimulada por ninguém: o choro era de alguém idealizado na minha cabeça.
Na verdade, embora idealizado, o personagem é como se fosse, também, uma espécie de alterego meu, e a canção como se fosse eu falando para mim mesmo: para um lado piegas, sentimentalóide, existente em mim. Como se houvesse em mim a possibilidade de idealizar uma personalidade hipertrofiada com essa característica, que desse margem a uma crítica, não digo necessariamente a mim mesmo, mas a qualquer um. ‘Chororô’ é uma música anti-emocionalista. Uma reiteração, também, do já aprendido nas experiências ligadas à economia álmica, existencial, emocional.
A canção tem um espírito nordestino evidente. O linguajar, trazendo expressões bem próprias, apresenta um inegável traço étnico do modo de falar nordestino – para combinar com a linguagem musical do xote, para inclusive favorecer o fraseado, o modo de cantar, a adaptação da palavra à melodia. Porque a música nordestina possui uma propriedade muito particular, e as frases, a construção dos versos, têm todo um idiomatismo próprio do modo de falar nordestino, comparado aos outros modos mais urbanos, ao carioca, por exemplo.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Chuck Berry fields forever
Gilberto Gil
Tambor de tinto timbre tanto tonto tom tocou
E neve, garça branca, valsa do Danúbio Azul
Tonta de tanto embalo, num estalo desmaiou
Vertigem verga, a virgem branca tomba sob o sol
Rachado em mil raios pelo machado de Xangô
E assim gerados, a rumba, o mambo, o samba, o rhythm’n’blues
Tornaram-se os ancestrais, os pais do rock and roll
Rock é o nosso tempo, baby
Rock and roll é isso
Chuck Berry fields forever
Os quatro cavaleiros do após-calipso
O após-calipso
Rock and roll
Capítulo um
Versículo vinte
-Sículo vinte
Século vinte e um
Versículo vinte
-Sículo vinte
Século vinte e um
Chuck Berry fields forever
Gilberto Gil
A jungle drum was brought and got the white God to get in
A pagan dance until he had no other chance unless the sin
Of black-white day and night, soul and mind magic
The European Goddess fainted under jungle drum’s sound
She was fertilized by some afro God while on the ground
So the begotten sons as samba, mambo, rumba, rhythm’n’blues
Became the ancestrals of what today we call rock and roll
Rock and roll is magic
Rock and roll is mixture
Chuck Berry fields forever
The joyful English four knights of the post-calypso
In the post-calypso age
Rock and roll
The opening page
What is to come next
We don’t know the text
No one knows precisely
It’s on to progress
Into its funky fullness
Next century
Um exemplo: na transposição, a deusa européia transa com o deus africano; Gil: “Ela é literalmente comida, num estupro cósmico; ‘while on the ground’ é para dar bem a idéia de que ele a derrubou no chão e… Isso tinha que acontecer, até para reafirmar um arquétipo popular, que identifica a África com o masculino, a força física, a virilidade, a natureza de instinto básico, e a Europa com a racionalidade, a mediação do pensamento, a característica mesmo acética – embora, vistas por outro ângulo, a Europa possa até ser identificada com um sentido mais masculino e a África com um sentido mais feminino”.
Outro: impossibilitado de verter para o inglês o jogo sonoro entre os termos ‘versículo’ e ‘século’, Gil aproveitou os últimos versos para lançar um dado poético novo em relação ao texto de partida: a sugestão do funk como o gênero que, “depois do samba, mambo, rumba e rhythm and blues, e do rock and roll como a primeira página da época pós-calipso, viesse para – mais do que ser o descendente dos ‘begotten suns’ do deus bárbaro com a deusa ‘branca de neve’, pálida e frágil – se tornar a própria alma desse casamento e da música negra moderna”.
“No final, original e versão acabam se espelhando e se complementando.”
História e propaganda – “Chuck Berry Fields Forever dá uma visão dinástica do sincretismo religioso e cultural das Américas resultante da junção das culturas da Europa e da África, utilizando a música popular como fio condutor do processo e como um dos modos de apreendê-lo. As Américas são vistas a partir dos seus ritmos: o samba, brasileiro, o mambo e a rumba, centro-americanos, e o rhythm and blues, norte-americano, tudo isso desembocando no rock and roll, que seria assim a forma mais nova da linhagem e a mais representativa da época. Nesse aspecto, a canção não só faz uma apologia do gênero como uma propaganda da minha adesão a ele, o que só aconteceria de fato nos anos oitenta.”
Isomorfismo som-sentido – Os dez tês (num verso de catorze sílabas) de “Tambor de tinto timbre tanto tonto tom tocou”: ao colocar em prática este procedimento aliterativo a intenção do músico-poeta Gilberto Gil foi mimetizar “o tam-tam-tam dos tambores; a sonoridade inebriante – ‘tinto’ se refere a vinho -, o caratér alucinatório da batida reiterada dos tambores”; representar, em suma, “o transe através do som, como no candomblé.”
[ Chuck Berry Fields Forever, de Gilberto Gil ]
Outras gravações:
“Ana Cañas”, Ana Cañas, Sony Music
“O som do sim”, Celso Fonseca, Natasha
“Doces Bárbaros”, Doces Bárbaros, Biscoito Fino
“Hein?”, Ana Cañas, Sony Music 2010
“Doces bárbaros 1”, Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia, Universal Music 2011
“Raridades(1975/1981) caixa Caetano Veloso”, Caetano Veloso-Gal Costa-Gilberto Gil-Maria Bethânia, Universal Music 2006
“A arte de Gilberto Gil”, Doces Barbaros e Gilberto Gil, Universal Music 2005
“Serie sem limite – cd 1”, Gilberto Gil, Universal Music 2001
“O melhor de …”, Gilberto Gil, Warner Music 1981
“Ao vivo”, Gilberto Gil, Warner Music 1978
“La passion sereine”, Gilberto Gil, Works Editores 2005
“Com doces barbaros”, Gilberto Gil, Polygram Music 1998
“Satisfação”, Gilberto Gil e Doces Barbaros, Universal Music 2006
“Outros barbaros”, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Biscoito Fino 2003
Chuva miúda
Gilberto Gil
Não lava a calçada, não limpa o chão
Tal como o seu olhar
Não lê meu coração
Ai, meu Deus, chuva miúda
Se não muda o tempo e não abre o sol
Não vai dar pra brincar
Não vai dar meu cordão
Esse tempo que molha e não chove
Esse tempo
Esse papo que chove e não molha
Esse papo
Esse samba que eu fiz pra você
E você que nem me olha
E você que nem me olha
E você que nem me olha
Cibernética
Gilberto Gil
Solino sempre estava lá
Escrevendo: “Dai a César o que é de César”
César costumava dar
Me falou de cibernética
Achando que eu ia me interessar
Que eu já estava interessado
Pelo jeito de falar
Que eu já estivera estado interessado nela
Cibernética
Eu não sei quando será
Cibernética
Eu não sei quando será
Mas será quando a ciência
Estiver livre do poder
A consciência, livre do saber
E a paciência, morta de esperar
Aí então tudo todo o tempo
Será dado e dedicado a Deus
E a César dar adeus às armas caberá
Que a luta pela acumulação de bens materiais
Já não será preciso continuar
A luta pela acumulação de bens materiais
Já não será preciso continuar
Onde lia-se alfândega leia-se pândega
Onde lia-se lei leia-se lá-lá-lá
Cibernética
Eu não sei quando será
Cibernética
Eu não sei quando será
Outras gravações:
“Ao vivo”, Gilberto Gil, Polygram, 1998
Comentários*:
“Celestino, Solino, César e eu éramos colegas na Alfândega, em 62, 63; éramos fiscais. César era um entusiasta da cibernética e foi quem me falou de cibernética pela primeira vez; quem me deu o primeiro livro sobre o assunto – a obra clássica, de Norbert Wiener, o pai da cibernética. Cibernética era um dos temas que ele mais gostava de debater comigo.
César não era o que a gente poderia chamar classicamente, para os padrões da época – padrões de gente que vinha da universidade –, um comunista ou mesmo um simpatizante comunista, como muitos eram, como eu mesmo era e como eram tantos outros que pertenciam às linhas auxiliares, como eram definidos os que não eram comunistas, não pertenciam a uma daquelas agremiações clássicas de esquerda da vida universitária, da vida operária, mas que simpatizavam com a causa, tinham uma compreensão profunda pelos ideais socialistas, destes participando de alguma forma. O César talvez não fosse nem isso; ele talvez fosse mais um liberal até; mais, classicamente falando, um liberal. Mas ele tinha uma dificuldade muito grande com a idéia da acumulação dos bens materiais. Ele não compreendia bem isso, ele achava que isso não dá certo, que isso emperrava o mecanismo de desenvolvimento de evolução da humanidade.
No fundo era um comunista, o César Orrico – este era o sobrenome dele. ‘Onde lia-se alfândega leia-se pândega/ Onde lia-se lei leia-se lá-lá-lá’: isso é anarquismo libertário. Eu diria isso: César era talvez um liberal anarquista. Eu gostava muito dele. Ele era habitado pelo sentimento de que o avanço da ciência e da tecnologia traria benefícios espirituais para o homem; por isso ele me falou: ‘E a cibernética, você nunca leu? Eu disse: ‘Não; eu já ouvi falar, mas nunca li nada’. – ‘Tome aqui um livro’. Pronto. Me aplicou na cibernética.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Cidade do Salvador
Gilberto Gil
Tanta dor
A cruz
A dor
A dor
Adormeço
A dor mereço
Agora
A dor
A dor
A dormência
Do sono lunar
Sonho
Sonho
A terra
No sonho
A terra inteira
No sonho
Aterrador
Mar
O mar
O mar
O maremoto
remoto
remoto
motivo
Teria Deus
Pra nos salvar
Fé
A fé
A fé
Só a fé
A fé
A felicidade
Cidade do Salvador
dor
dor
Outras gravações:
“Cidade do Salvador – cd 2”, Gilberto Gil, Polygram Comércio 1998
“Umeboshi – ao vivo, 1973”, Gilberto Gil, Discobertas 2017
“Gilberto Gil ao vivo – USP (1973)”, Gilberto Gil, Discobertas) 2017
Comentários*:
“Uma música carregadíssima, de reflexão poética mesmo, de uso da poíesis, a música indo ao encontro do mundo idealizado da poesia e sendo o sonho de que fala somente busca de assunto para engendramento construtivista do muro poético que vai se erguendo com suas palavras-tijolos; música trazendo o sentido de condensar idéias inteiras em palavras-verbetes contendo toda a sua significação – procedimento de poesia concreta.
No plano musical, bem parecida com Milton Nascimento, com frases elásticas, prolongadas. Algo muito fora da minha tônica; em mim tudo é mais onomatopaico, rítmico, as divisões, fracionadas, e as palavras, funcionando como rolamentos, rolemãs. Aqui, não, as palavras são escorridas, estendidas como trilhos, sugerindo a imagem contínua dos trilhos que vão além do horizonte. Muito isso. Muito miltoniana, nesse sentido.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Cinema novo
Gilberto Gil
Caetano Veloso
A voz do morro rasgou a tela do cinema
E começaram a se configurar
Visões das coisas grandes e pequenas
Que nos formaram e estão a nos formar
Todas e muitas: Deus e o Diabo
Vidas Secas, Os Fuzis
Os Cafajestes, O Padre e a Moça, A Grande Feira,
O Desafio
Outras conversas, outras conversas
Sobre os jeitos do Brasil
Outras conversas sobre os jeitos do Brasil
A bossa-nova passou na prova
Nos salvou na dimensão da eternidade
Porém, aqui embaixo “a vida”
Mera “metade de nada”
Nem morria nem enfrentava o problema
Pedia soluções e explicações
E foi por isso que as imagens do país desse cinema
Entraram nas palavras das canções
Entraram nas palavras das canções
Primeiro, foram aquelas que explicavam
E a música parava pra pensar
Mas era tão bonito que parasse
Que a gente nem queria reclamar
Depois, foram as imagens que assombravam
E outras palavras já queriam se cantar
De ordem, de desordem, de loucura
De alma à meia-noite e de indústria
E a terra entrou em transe, ê
No sertão de Ipanema
Em transe, ê
No mar de Monte Santo
E a luz do nosso canto
E as vozes do poema
Necessitaram transformar-se tanto
Que o samba quis dizer
O samba quis dizer: “Eu sou cinema”
O samba quis dizer: “Eu sou cinema”
Aí o anjo nasceu
Veio o bandido meteorango
Hitler Terceiro Mundo
Sem Essa, Aranha, Fome de Amor
E o filme disse: “Eu quero ser poema”
Ou mais: “Quero ser filme, e filme-filme”
Acossado no limite da garganta do diabo
Voltar à Atlântida e ultrapassar o eclipse
Matar o ovo e ver a Vera Cruz
E o samba agora diz: “Eu sou a luz”
Da lira do delírio, da alforria de Xica
De toda a nudez de Índia
De flor de Macabéia, de Asa Branca
Meu nome é Stelinha, é Inocência
Meu nome é Orson Antônio Vieira Conselheiro de Pixote Super Outro
Quero ser velho, de novo eterno
Quero ser novo de novo
Quero ser Ganga Bruta e clara gema
Eu sou o samba, viva o cinema
Viva o Cinema Novo
Outras gravações:
“Uns Caetanos”, O Tao do Trio, CID
“Gil e Caetano em Cy”, Quarteto em Cy, CID
“Tropicalia 2”, Caetano Veloso e Gilberto Gil, Polygram Comércio 1996
“Caetano no cinema”, Gilberto gil e caetano veloso, Universal, 2007
Imusica, O tao trio, 2001
“Caetano em cy”, Quarteto em cy, Cid, 1995
“Gil e caetano em cy”, Quarteto em cy, Cid, 1999
Ciranda
Gilberto Gil
Moacir Santos
Esta ciranda
De tantas cores
Vem nos aliviar as dores
Os maus olhados
Os dissabores
Ó, cirandeiro, cirandeiro
Que faz ciranda o tempo inteiro
Só por folia
Só por amor
Vem de um lugar chamado Flores
Esta ciranda
De tantas cores
Vem nos falar dos trovadores
Dos bem-amados
Dos benfeitores
Ó, cirandeiro, cirandeiro
Que faz ciranda o tempo inteiro
E só por isso
Tem seu valor
Outras gravações:
“As canções de Moacir Santos”, Muiza Adnet
“Natal no palacio encantado”, Coral, In Brasil 2007
“Um natal feito criança”, Coral Brilho, Copa Music Gravações E Edições Musicais 2008
“Projeto especial HSBC”, Coral Infantil, Live Music 2006
“O sol de oslo”, Gilberto Gil, Pau Brasil 1998
“As canções de Moacir Santos”, Muiza Adnet, Maria Luiza Gonçalvs Adnet 2007
“Xaxados e perdidos”, Simone Rasslan, Simone Nogueira Rasslan 2012
Clichê do clichê
Gilberto Gil
Vinícius Cantuária
Meu destino contra o seu
Num filme piegas sem sal
Não vou chorar
Nem fingir que o amor morreu
Chega de drama banal
Que seja a dor
Nosso amor, nossos ardis
Teatro nô japonês
Onde o ator
É ao mesmo tempo atriz
Vestes da mesma nudez
Eu, Belmondo
Como um Pierrot, le fou
Só no cinema francês
Você, Bardot
Belo anúncio de shampoo
Só fica bem nas TVs
Melhor viver
Nosso papel bem normal
Que a vida nos reservou
Interpretar
Nosso bem e nosso mal
Sem texto e sem diretor
Chega de representar
O que nós não queremos ser
Não vamos nos transformar
Num casal clichê do clichê
Outras gravações:
“Nú Brasil”, Vinicius Cantuária, EMI Music
“Dia dorim noite neon”, Gilberto Gil, Warner Music 1985
“Para Gil e Caetano”, Margareth Menezes, Canal Brazil S/A 2014
“Brazil de a a z – nú Brasil”, Vinicius Cantuaria, EMI Music 2002
“2 em 1”, Vinicius Cantuária, EMI Music 2003
Comentários*:
“A letra – feita para uma música do Vinícius Cantuária, como um corpo para um vestido, ou um vestido para um corpo, como quiser; mas mais como um corpo para um vestido – foi desencadeada por uma daquelas indicações subliminares do ‘I ching’. Eu joguei para perguntar o que é que eu estava querendo falar, e, segundo o ‘I ching’, eu tinha que falar da questão da posse nas relações dos casais; de como se livrar do magnetismo de efeito colateral que as uniões dão: as pessoas se hipermagnetizam, o magnetismo mútuo cria uma hipertrofia da possessão, e elas não se concebem mais no exercício das suas liberdades para o mundo, as liberdades que transbordam a vida. A redução do casamento ao acasalamento: era isso que devia ser questionado, segundo a intuição que vinha no ‘I Ching’, e disso eu tratei na canção: do desacasalamento do casamento.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Com medo, com Pedro
Gilberto Gil
Tô com Pedro
Eu agora não tô mais com medo
Tô com Pedro
Eu agora já tô mais com Pedro
Do que com medo
Eu agora já tô mais com Pedro
Do que com medo
Deus me livre de ter medo agora
Depois que eu já me joguei no mundo
Deus me livre de ter medo agora
Depois que eu já pus os pés no fundo
Se você cair, não tenha medo
O mundo é fundo
Quem quiser no fundo encontra a porta
Do fim de tudo
Bem junto da porta está São Pedro
No fim do fundo
Findo
Fundo
Findo
Bem depois do fim de tudo o medo
Do fim do mundo
Bem depois do fim do mundo o medo
Do fim de tudo
Bem depois do fim do mundo o medo
Do fim do mundo
Bem depois do fim do mundo o medo
Do fim de tudo
Outras gravações:
“Gal”, Gal Costa, Polygram Comércio
Comentários*:
“Do mistério envolvendo os versos de uma canção falando sobre Pedro que foi composta em 69 e cuja data de edição é 7 de dezembro do mesmo ano, tendo Pedro, filho de Gil, nascido somente em 17 de maio do ano seguinte, mais de cinco meses após a edição da música, e cuja motivação o autor demonstra dificuldade em esclarecer, não podendo assegurar que, ao escrever o nome ‘Pedro’ na letra, ele estava pensando em um filho que pensava vir a ter e ao qual planejava dar esse nome; será que o Pedro ali é porque ele tinha uma afeição tão especial pelo nome que acabou dando-o ao filho que veio a ter em seguida? Afinal, que Pedro é o dessa canção? – Eu não posso precisar. A lembrança afetiva, cordial, que eu tenho é de que a canção foi feita para o Pedro; por alguma razão já era por ele, para ele, por causa dele. Eu não poderia ter naquele momento certeza de que ia ter um filho do sexo masculino; portanto não poderia ter com segurança dedicado a canção ao filho que eu sabia que já ia nascer, e que portanto seria homem, e a quem, portanto, eu teria a possibilidade de dar o nome de Pedro: não era isso. Talvez fosse um conjunto dessas coisas todas. E talvez esse Pedro fosse uma das emanações significantes das viagens de ácido que eu fazia na ocasião, uma das emanações que eu antropomorfizei, a que eu dei uma forma de pessoa, de filho, numa das catarses, a que as viagens psicodélicas podem levar, que tivessem me livrado de algum medo ou idealmente de alguma fobia, de algum recalque freudiano. ‘Eu agora não estou mais com medo, estou com Pedro’ – que talvez remontasse até mesmo à pedra fundamental da religião cristã, o Pedro fundador da Igreja do Cristo. Pode ter havido tudo isso, um conjunto holístico múltiplo de vários signos em rotação. E aí, com o nascimento do Pedro, obviamente a canção ficou sendo para ele; o nascimento dele deu encarnação a todos aqueles fantasminhas. Hoje essa é para mim a única explicação; a melhor que se pode dar. É a mais fiel; a mais verdadeira, portanto. Hoje é mais verdadeiro se referir àquele momento de criação dessa maneira, com essa complexidade. Então, relacionadas com a criação de ‘Com medo, com Pedro’, que aborda ainda a questão do fim do mundo e a da fundação do mundo, o mundo adâmico, há todas essas coisas – que, de resto, são o quê? São terra revolvida do aluvião que a descoberta do cosmos veio provocar na minha vida; o aluvião da descoberta cósmica, física e metafísica, daquela época.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Comunidá
Gilberto Gil
Celso Fonseca
E quem traz a bebida
E quem prepara o salão
Um troco do sindicato é o ouro
Uns cem do candidato
Uns dez da associação
Luz, pede pra prefeitura, é o ouro
Pede uma viatura
Com Cosme e Damião
Vê se esse novo bicheiro é o ouro
Pode ser o patrono
E acabar dando uma mão
Comunidá
Camaradagem, todas cores
Comunidá
Lavagem pra lavar nossas dores
Comunidá
Na hora da dificuldade, eu sei
Comunidá também
Na festa, na titica de felicidade, amém
Comunidária
Gilberto Gil
E você sabe
Ele, sim, sabe também
O que é sofrer
O que é chorar
O que é precisar de alguém
Eu sei
E você sabe
Se não sabe, há de saber
Quem nunca precisou de alguém
Ainda está pra nascer
E assim que nascer
Logo precisará
Da mãe, da mamadeira
Da enfermeira ou da babá
De braço em braço, berço em berço
E na hora de andar
De falar, de correr, de aprender a ler
De sonhar
Por todo esse caminho
De pequenino a doutor
Pra nunca precisar de alguém
Vai ter que já nascer robô
Sem alma, sem cabeça, sem amor, sem coração
E ainda assim precisará
De alguém pra lhe dar uma mão
Na hora de apertar o parafuso que soltou
Eu sei e você sabe
Quem não sabe não mamou
Eu sei e você sabe
Quem não sabe não mamou
Nem mamou
Outras gravações:
Gilberto Gil, Mec 2001
Copo vazio
Gilberto Gil
Que um copo vazio
Está cheio de ar
É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar
É sempre bom lembrar
Guardar de cor
Que o ar vazio de um rosto sombrio
Está cheio de dor
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho
Que o vinho busca ocupar o lugar da dor
Que a dor ocupa a metade da verdade
A verdadeira natureza interior
Uma metade cheia, uma metade vazia
Uma metade tristeza, uma metade alegria
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
“Eu estava em casa, sentado no sofá, já de madrugada. Tinha tomado um copo de vinho no jantar, e o copo tinha ficado na mesa. Pensando no que é que eu ia fazer pro Chico, eu de repente vi o copo vazio e concentrei o olhar nele para dali extrair emanações de imagens e significados, a princípio como se para nada obter, mas logo constatando: ‘O copo está vazio, mas tem ar dentro’. Disso me vieram idéias acerca das camadas de solidificação e rarefação que vão se sucedendo nas coisas – e disso, a música.
“A letra faz uma viagem ao mundo das coisas sutis, transcendentes, mas suas primeiras frases são muito significativas em termos do que estava acontecendo: regime de exceção, censura, o Chico privado de sua liberdade artística plena etc. Embora não fosse essa a intenção principal, as dificuldades da situação contingencial estavam necessariamente metaforizadas, e qualquer crítica à canção em termos de fuga da realidade esbarraria no fato de que, ao contrário, a letra parte da realidade e não foge dela; foge com ela, se for o caso…”
Outras gravações:
“Dez canções”, Adriana Maciel
“Lisboa-Rio”, Antonio Chainho, Movieplay
“Sinal fechado”, Chico Buarque, Universal Music
“As raras e assinadas”, Zizi Possi, Polygram Music
“A musica de Gilberto Gil”, Chico Buarque, Fontana/Polygram 1977
“Coleção Chico Buarque”, Chico Buarque, Sony Music 2010
“Historia da MPB”, Gilberto Gil, Abril Cultural 1982
“O rancho do novo dia”, Gilberto Gil, Philips 1981
“Ao vivo”, Gilberto Gil, Polygram Music 1998
“Giluminoso”, Gilberto Gil, Biscoito Fino 2006
“A arte de Gilberto Gil’, Gilberto Gil, Universal Music 2005
“Série gold”, Gilberto Gil, Universal Music 2002
“Ao vivo”, Gilberto Gil, Universal Music 2000
“O seu amor”, Gilberto Gil, Universal Music 2004
“Lugar comum”, Gilberto Gil, Universal Music 2008
“Rio Eu Te Amo – t.s”, Sony Music, Gilberto Gil e Chico Buarque 2014
“Gil na delas”, Zizi Possi, BMG 2005
“As raras e assinadas”, Zizi Possi, Polygram 1995
“T.s vidas em jogo”, Zizi possi, Record 2011
“Songbook Gilberto Gil – vol 3”, Zizi Possi e Helio Delmiro 2015
Corações a mil
Gilberto Gil
Dez corações de uma vez
Pra eu poder me apaixonar
Dez vezes a cada dia
Setenta a cada semana
Trezentas a cada mês
Isso, sem considerar
A provável rebeldia
De um desses corações gamar
Muitas vezes num só dia
Ou todos eles de uma vez
Todos dez
Desatarem a registrar
Toda gente fina
Toda perna grossa
Todo gato, toda gata
Toda coisa linda que passar
Meus dez mil corações a mil
Nem todo o Brasil vai dar
Outras gravações:
“Fernanda Porto ao vivo”, Fernanda Porto, EMI Music
“Pessoa”, Marina Lima, Universal Music
“Fernanda porto”, Emi Music 2006
“Luar – a gente precisa ver o luar”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
“It ‘s good to be alive-anos 80”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
“Obras”, Marina Lima, Polygram Music 1996
“Projeto especial Caralogo Hermes”, Marina, Polygram 1998
“Trilha sonora da novela Baila Comigo”, Marina, Sigla 2000
“Olhos felizes”, Marina, Universal Music 2003
“Eu te amo você”, Marina Lima, Universal Music 2004
“A arte de Marina Lima”, Marina Lima, Universal Music 2004
“A música de Gilberto Gil”, Marina Lima, Universal Muisc 2003
“Millennium”, Marina Lima, Universal Music 2004
“A arte de Marina Lima”, Marina Lima, Universal Music 2005
“Serie sem limite cd 1”, Marina Lima, Universal Music 2001
“Cantora”, Marina Lima, Universal Music 2009
“Marina Lima “pessoa””, Marina Lima, Universal Music 2009
Comentários*:
“Uma canção para comentar as relações abertas e a dimensão que o amor livre tinha então; uma música sobre a volúpia de namorar, de ter dez paixões simultâneas, para dar números a uma hipertrofia fenomenológica – como eu via, como muitos viam – em determinado período; para dar medida à multiplicação dos pães amorosos, uma obsessão naquele tempo: aquela era uma época em que se desejava uma multiplicação mesmo do amor, que o amor fosse múltiplo o tempo todo. Era uma característica ideológica da época. Nesse sentido, ‘Corações a mil’ é uma música de ideologia; um jingle – como boa parte das minhas composições são – ideológico; um panfleto da nova era. Marina, que a gravou, era uma pessoa disponível aos experimentos sentimentais do período, uma cobaia: alguém que se dava muito a esse papel.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Coragem pra suportar
Gilberto Gil
Coragem pra suportar
Tem que viver pra ter
Coragem pra suportar
E somente plantar
Coragem pra suportar
E somente colher
Coragem pra suportar
E mesmo quem não tem
Coragem pra suportar
Tem que arranjar também
Coragem pra suportar
Ou então
Vai embora
Vai pra longe
E deixa tudo
Tudo que é nada
Nada pra viver
Nada pra dar
Coragem pra suportar
Outras gravações:
“Roda & outras histórias”, Sérgio Aurélio De Oliveira Muniz 2009
Gilberto Gil, Polygram 1968
Comentários*:
“Uma coisa tosca, esculpida brutamente, bonita. É sobre o retirante, a decisão estóica, ou heroica, de viver e morrer com aquela carência, ou então se retirar, ir embora. ‘Coragem pra suportar’ é uma cantoria militante. O des-assistir do injustiçado homem do campo e, ao mesmo tempo, aquela coisa do Euclides da Cunha: ‘O sertanejo é antes de tudo um forte’ – uma fraqueza transfigurada em força, a força do homem fraco.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Cores vivas
Gilberto Gil
Na maré desse verão
Esperar
Pelo entardecer
Mergulhar
Na profunda sensação
De gozar
Desse bom viver
Bom viver
Graças ao calor do sol
Benfeitor
Dessa região
Natural
Da jangada, do coqueiral
Do pescador
De cor azul
Bela visão
Cartão postal
Sabor do mel, vigor do sal
Cores da pena de pavão
Cenas de uma vibração total
Cores vivas
Eu penso em nós
Pobres mortais
Quantos verões
Verão nossos
Olhares fãs
Fãs desses céus
Tão azuis
Outras gravações:
“Movimento, luz e cor”, Elisa Queiroga
“Projeto especia lradio Musical”, FM/SP 1995
“Elisa Queiroga”, Movimento, luz e cor, AQB Music 2003
“Colar de pérolas”, Emerson Uray, José Emerson Oliveira Silva 2008
“Grandes mestres da MPB – vol 2”, Gilberto Gil, Warner Music 1997
“Em concerto”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
“Luar”, Gilberto Gil, Warner Music
“Mestres da MPB”, Gilberto Gil, Warner Music 1992
“Les indispensables de Gilberto Gil”, Gilberto Gil, Warner Music 1989
“Lua brasileira”, Grupo Nimphas, Gramophone 1995
“O poeta e o esfomeado”, Jorge Mautner e Gilberto Gil, Discobertas 2014
“Cores vivas”, Vanessa Moreno e Fi Maróstica, Tratore Distribuição 2015
Comentários*:
“Outra canção composta de encomenda, para a trilha de uma novela [da Rede Globo]. Alguém me ligou e disse: ‘Olha, vai ter essa novela, vai se chamar ‘Água viva’, o tema é assim, assim, e vai precisar de uma canção, enfim’.
Um dia eu estava em Salvador, no verão, as pessoas todas tinham saído, eu fiquei em casa e comecei a canção. Eu me lembro que a primeira pessoa que chegou, com a canção já encaminhada, praticamente feita, foi Maria Helena Guimarães; eu estava cantando, ela entrou, sentou, ouviu e disse: ‘Ô, que canção linda’; eu disse: ‘Acabei de fazer’.
‘Cores vivas’ é sobre o encanto de viver e, de novo, como em ‘Luar’, sobre a sensorialidade; sobre os sentidos captando a beleza da manifestação da vida em todos os seus fenômenos. O Porto da Barra é a locação dela; é como se eu estivesse lá, naqueles fins de tarde em que a gente fica esperando a hora em que o sol se põe atrás da ilha de Itaparica.
O verso ‘Cenas de uma vibração total’ relaciona a música com a noção de maia, de ilusão da matéria, ilusão da forma, a noção de que não há forma, só há vibração – com o sentido vibrátil da manifestação da vida. Daí eu dizer em seguida, nas linhas finais: ‘Cores vivas/ Eu penso em nós/ Pobres mortais/ Quantos verões/ Verão nossos/ Olhares fãs…’.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Corintiá
Gilberto Gil
Que todo ano a gente vai sofrer
Se enrolar no pano da bandeira
E reclamar se o time não vencer
Mas de repente o ano é santo, a gente tá no céu
O time é forte, a sorte é grande, o axé tá com a Fiel
O axé tá com a Fiel
Voa suave o gavião
O axé tá com a Fiel
Bate na trave o coração
Ser corintiano é mergulhar
No oceano da ilusão que afoga
Não importa o plano do destino
Cada jogo é o coração que joga
Bate na trave a ilusão da gente, vai que vai
Chuta de novo que o coração entra e o grito sai:
É gol!
Corintiá
É gol!
Corintimão
Corisco
Gilberto Gil
Djavan
No mesmo instante um raio explode
Concomitante, um olho vê
Que a pedra do corisco pode
Pode se tornar o que for
E tudo o quanto é testemunha
Pode até mesmo ser a dor
Cravada à carne pela unha
Telefax, mandei
O mapa-múndi do meu penar
Ande, mande logo um telex
Me confirmando quando será
Que a necessidade de amor
Lhe trará num raio
A necessidade de amor
Num dia de chuva
E na tempestade você
Fará com que eu saia
No exato momento de ver
O céu se abrir ao comando de Iansã
Que seja o momento em que a luz
Registre meu desejo de ver
Você, meu amor, me traduz
No raio de Iansã, seu poder
Que seja pra mim, meu Xangô
Poder correr, correr meu risco
Quiçá ver nascer uma flor
Na lisa pedra do corisco
Telegrafite de Exu
Leia no muro do seu quintal
Pichada, fixada no azul
A frase diz o essencial
A necessidade de amor
Gritando na rua
A necessidade de amor
Uivando pra lua
Um lobo faminto de amor
A dor que acentua
A necessidade de ver
O céu se abrir ao comando de Iansã
Crazy pop rock
Gilberto Gil
Jorge Mautner
From the cars runs gasoline up in my veins
My blood intoxicated by twenty-seven trips
My eyes hallucinated by the Holy Ghost I met
When I talk
I cannot talk
I only gotta sing loud, loud
A crazy pop rock
From the city runs electricity in my brains
From the cars runs gasoline up in my veins
I’m part of the problem, I’ m not the solution
I’m really the product of city pollution
When I talk
I cannot talk
I only gotta sing loud, loud
A crazy pop rock
From the city runs electricity in my brains
From the cars runs gasoline up in my veins
Baby, baby, baby, I’m the electric man
Come and get a shock, I’m the electric man
When I talk
I cannot talk
I only gotta sing loud, loud
A crazy pop rock
Outras gravações:
“A arte de Gilberto Gil, Polygram /Fontana 1985
“As totalmente d+ mix 3.0 – Baixo Leblon on the rocks indie”, Gilberto Gil, Indie Records 2003
“Personalidade – vol. 2”, Gilberto Gil, Novodisc Mídia Digital 2013
“Gilberto Gil 1971”, Gilberto Gil, Polygram Music 1971
“Gilberto Gil – 2 lados”, Gilberto Gil, Universal Music 2010
“De pés no chão”, Márcia Castro, Deck Produções Artisticas 2011
“Cores”, Pôr Do Som Produções Artísticas, Rogério Rochlitz 2008
Cultura e civilização
Gilberto Gil
Elas que se danem
Ou não
Somente me interessam
Contanto que me deixem meu licor de genipapo
O papo
Das noites de São João
Somente me interessam
Contanto que me deixem meu cabelo belo
Meu cabelo belo
Como a juba de um leão
Contanto que me deixem
Ficar na minha
Contanto que me deixem
Ficar com minha vida na mão
Minha vida na mão
Minha vida
A cultura, a civilização
Elas que se danem
Ou não
Eu gosto mesmo
É de comer com coentro
Eu gosto mesmo
É de ficar por dentro
Como eu estive algum tempo
Na barriga de Claudina
Uma velha baiana
Cem por cento
Dança da água e da paz
Gilberto Gil
Lelo Nazário
Outras gravações:
“Z”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Dança das mulheres
Gilberto Gil
Rodolfo Stroeter
Outras gravações:
“Z”, Gilberto gil, Warner Music 2002
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Dança de Shiva
Gilberto Gil
Dança de Shiva
Repare a dança de Shiva
Enquanto a reta se curva
Cai chuva da nuvem de pó
Fraude do Thomas
Repare a fraude do Thomas
Os deuses todos em coma
Enquanto Exu não dá o nó
Nó se dá um só
Se dói de dó
Se mói na mó
Pulverizar
Se foi na avó
No neto irá
Não, não irá
Quiçá morrerão
Deuses em coma
Homens em vão
Pela ciência
Pela canção
Deuses do sim
Deuses do não
Quem me vir dançar
Verá que quem dança é Shiva
Quem dança, quem dança é Shiva
Quem me vir já não me verá
Verá no Thomas
Por trás da fraude do Thomas
Alguns verazes sintomas
De um passageiro mal-estar
© Gege Edições / Preta Music (EUA & Canada)
Outras gravações:
“Quanta”, Gilberto Gil, Warner Music 1997
“Projeto especial IBM”, Gilberto Gil, IBM 1997
Comentários*:
“O Thomas Green Morton é um mago a quem se atribuem muitos milagres, mas ao mesmo tempo se atribuem muitas fraudes; fica um dilaceramento entre autenticá-lo e desautorizá-lo, um jogo que na verdade reflete apenas a nossa própria instabilidade com relação aos campos da fé. Nessa música eu falo: ‘Repare a fraude do Thomas/ Os deuses todos em coma/ Enquanto Exu não dá o nó’, quer dizer: enquanto nós não temos capacidade de percepção completa da fenomenologia do sutil, do mistério que se dá de uma forma muito equívoca para a nossa percepção da fenomenologia do dia-a-dia, do campo material, dominado pelos sentidos; enquanto não temos a percepção da fenomenologia para além dos sentidos, a percepção que não é a corriqueira, a prosaica, a cotidiana, do campo do macromundo, mas a do campo do micromundo – que, no entanto, a ciência já aborda, exatamente a partir da relatividade, a partir dos quanta.
Então eu não vejo nenhum problema com o milagre. Mas, assim como ocorre com o milagre, a fenomenologia sub-atômica é questionada; as academias pintaram horrores com os homens da ciência sub-atômica, da mesma forma que os mágicos sofreram muito também. Eu gosto da associação possível, probabilística, entre os dois campos. ‘Dança de Shiva’ versa sobre isso; na verdade, ela é uma música em defesa do Thomas, apesar de muita gente perceber como uma reles acusação nquisitorial a referência a ele na letra. Ao contrário, a música está defendendo aquilo naquilo que aquilo é defensável; naquilo que aquilo é um mistério, uma manifestação de mistério – mistério para ele mesmo! Imagina alguém supor que aquilo é um campo dominado pelo Thomas; não é! Aquilo não é de domínio dele, aquilo é de domínio do domínio.
‘Dança de Shiva’ é hermética, sim, como os próprios campos que ela aborda. O campo da ciência sub-atômica é esoterismo puro; a prosa cotidiana da superfície dos fenômenos palpáveis de nosso dia-a-dia não dá conta desse mundo, como não dá conta do mundo dos mágicos. Há, nesse sentido, uma aproximação muito grande entre o mundo mágico e o mundo da hiper ou da hipo-ciência, dessas ciências modernas. São campos que se encontram, por serem, ambos, campos que aparentam dar
– e dão – a dimensão do milagre. Uma célula foto elétrica que abre uma porta à distância é um milagre!
Por que o controle remoto é admissível e as transmutações do ‘rá’ ficam como coisas que não devem ser trazidas para o terreno da compreensão, quer dizer, não devem ser incluídas, não devem ter o benefício da compreensão? Por que a ciência pode e a magia não pode? Eu não quero saber de anteparos muito rígidos nas fronteiras desses campos. Prefiro que eles se interpenetrem mais e que nós possamos entrar.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Dança dos homens
Gilberto Gil
Carlinhos Brown
Outras gravações:
“Z”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
Dandara, a flor do gravatá
Gilberto Gil
Waly Salomão
Dandara, Dandara, Dandara
Dando carinho, dor e flor, é dando
Dandara, Dandara, Dandara
É flor que brota em grota
Em greta, em grota, em gruta
Ingrata, o dedo espeta
E grita, berra, braba, forte, mata
Dandara
Bonita, bárbara, felina, flor do gravatá
Vibra o punhal de prata!
Vibra o punhal de prata!
Vibra o punhal de prata!
E ainda assim tão terna
Tão ternamente rara
A flor do gravatá
Medra na pedra
Na pedra se escancara
Dandara, Dandara, Dandara
Darlene Triste
Gilberto Gil
Outras gravações:
“CD you”, Heraldo Do Monte – viola nordestina, Eletrônica Digital 2001
“Viola nordestina”, Heraldo Do Monte, Kuarup
[ trilha do filme “Eu, Tu, Eles” ]
Das duas, uma
Gilberto Gil
Das duas, uma
Ou será pluma
Ou será pedra e pesará
Se forem hábeis e sábios e sãos
Serão amáveis e tempo terão
Pra fazer da vida a dois
Dois chumaços de algodão
E os frágeis cristais
Das aventuras
Encontrarão proteção e, quem sabe, quebrarão jamais.
Se porventura
A vida dura
Lhes for madrasta e voraz
Sejam capazes, audazes e bons
Façam das pazes noturnos bombons
E os percalços naturais
Farão parte da canção
Serão tropeços
E recomeços
Um a cada vez, cada mês
E vocês se acostumarão
© Gege Edições / Preta Music (EUA & Canada)
De Bob Dylan a Bob Marley – um samba-provocação
Gilberto Gil
Fez um disco de reggae por compensação
Abandonava o povo de Israel
E a ele retornava pela contramão
Quando os povos d’África chegaram aqui
Não tinham liberdade de religião
Adotaram Senhor do Bonfim:
Tanto resistência, quanto rendição
Quando, hoje, alguns preferem condenar
O sincretismo e a miscigenação
Parece que o fazem por ignorar
Os modos caprichosos da paixão
Paixão, que habita o coração da natureza-mãe
E que desloca a história em suas mutações
Que explica o fato da Branca de Neve amar
Não a um, mas a todos os sete anões
Eu cá me ponho a meditar
Pela mania da compreensão
Ainda hoje andei tentando decifrar
Algo que li que estava escrito numa pichação
Que agora eu resolvi cantar
Neste samba em forma de refrão:
“Bob Marley morreu
Porque além de negro era judeu
Michael Jackson ainda resiste
Porque além de branco ficou triste”
De leve (Get Back)
Gilberto Gil
Mas sabia que era não
Saiu de Pelotas, foi atrás da hera
Trepadeira de verão
De leve
De leve
De leve, que é na contramão
De leve
De leve
De leve, que é na contramão
Sweet Loreta Martinica da cuíca
Muito garotão curtiu
Juram que viram Loreta de cueca
Dizem minas lá no Rio
De leve
De leve
De leve, que é na contramão
De leve
De leve
De leve, que é na contramão
[ Get Back, de John Lennon e Paul McCartney ]
De ouro e marfim
Gilberto Gil
Aqui estamos reunidos
À beira-mar
Nesta noite de ano-novo
Nesta festa de Iemanjá
Pra prestar nossa homenagem
De coração
Ao grão-mestre dessa ordem
Venerável da canção
Brasileiro de Almeida
De ouro e marfim
Curumim da mata virgem
Antonio Carlos Jobim
Ê, babá, ê, babá, ê
Antonio Carlos Jobim
Ê, babá, ê, babá, ê
Antonio Carlos Jobim
© Gege Edições / Preta Music (EUA & Canada)
Outras gravações:
“Praia 31/12/95”, Cantada por Gilberto Gil, Show Copacabana1995
“Projeto especial IBM”, Gilberto Gil, Warner Music 1997
“Quanta gente veio ver”, Gilberto Gil, Warner Music
“Quanta”, Gilberto Gil, Warner Music
“Brasil branconegro”, Grupo Tom Da Terra, CPC Umes 2002
Comentários*:
“Era o dia em que iríamos cantar todos as músicas de Tom Jobim, homenageá-lo no show de ano novo: eu, Caetano, Gal, Chico, Milton, Paulinho. Aí, naquela manhã de 31 de dezembro de 1995, eu acordei me perguntando: ‘Mas será que você não tem que cantar uma canção especialmente surgida para a ocasião, relativa ao tema?’ O tema era Tom, claro. Aí me veio, ainda na cama mesmo, no travesseiro, a canção toda, verso após verso. Só na cabeça, mas já aprontando a música também, as duas coisas juntas.
E a letra veio muito na forma heráldica, digamos assim, de uma confraria, de uma escola com mestres e alunos, de uma ordem. Essas coisas também influenciaram o modo de fazer a canção: o fato de meu pai ter sido maçom – a maçonaria; e de a Ordem Terceira do Carmo e a Ordem Terceira de São Francisco terem sido entidades religiosas do mundo católico presentes na minha infância e adolescência.
‘De ouro e marfim’ foi ensaiada e apresentada no mesmo dia. E é interessantíssimo que, na gravação do show, se escuta claramente a multidão de Copacabana cantando: ‘Ê, babá, ê, babá, ê’. Na primeira vez em que foi cantada, o público já a recebeu cantando-a, instigado por essa forma clássica do canto popular, dos cantos de raiz, que estão enraizados na tradição, no caso a do candomblé, dos cantos que vêm dos terreiros. Porque parece um daqueles cantos de Filhos de Gandhi pelas ruas de Salvador: a resposta do público é pronta, como se aquela fosse uma velha poesia. Na verdade, um arquétipo estava sendo reiterado ali.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Deixar você
Gilberto Gil
Deixar você
Ir
Não vai ser bom
Não vai ser
Bom pra você
Nem melhor pra mim
Pensar que é
Só
Deixar de ver
E acabou
Vai acabar muito pior
Pra que mentir
E
Fingir que o horizonte
Termina ali defronte
E a ponte acaba aqui?
Vamos seguir
Reinventar o espaço
Juntos manter o passo
Não ter cansaço
Não crer no fim
O fim do amor
Oh, não
Alguma dor
Talvez sim
Que a luz nasce na escuridão
© Gege Edições / Preta Music (EUA & Canada)
Outras gravações:
“Songbook Gilberto Gil”, Angela Rô Rô, Lumiar
“MPB Collection – Gilberto Gil”, Arthur Moreira Lima, Sony Music
“On the road again – MPB”, Edmon, Polygram Music
“Meu bem querer”, Hannah Lima, Abril Music
“É com esse que eu vou”, Karla Sabah, LGK Music
“Ney Matogrosso”, Ney Matogrosso, Ariola
“Brazil night 1983 in Montreaux”, Ney Matogrosso, Universal
“Rosana”, Rosana, Natasha
“Alexandre pires – DNA musical”, Alexandre Pires, Som Livre 2016
“Cada tempo em seu lugar”, Cacala Carvalho e João Braga, Mills Records 2012
“Piano e voz”, Cesar Camargo Mariano & Pedro Mariano, Trama 2006
“On the road again – MPB”, Edmon, Polygram Music 1994
“Luar”, Gilberto Gil, Polygram Music 1998
“O seu amor”, Gilberto Gil, Universal Music 2004
“Um banda um”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
“A gente pecisa ver o luar”, Gilberto Gil 1990
“Gil + 10”, Gilberto Gil & Mart’nália, Som Livre 2011
Grupo Tom da Terra, Paulinas-comep 2000
“Intuitiva”, Hannah Lima, Abril Multimidia 1999
“Meu bem querer”, Hannah Lima, Abril Multimidia 2000
“É com esse que eu vou (drum ‘n bossa 2)”, Karka Sabah, LGK Music
“Duplo MPB – cd2”, Karla Sabah, LGK Music Produções Artísticas 2014
“É com esse que eu vou”, Karla Sabah, LGK Music Produções Artísticas 2011
“Para Gil e Caetano””, Margaret Menezes, Canal Brazil s/a 2014
“Brazil night 1983 in Montreaux”, Ney Matogrosso 2008
“Rosa passos ao vivo em carmelo”, “Rosa Passos, Biscoito Fino 2015
“Vende peixe-se”, Rosana, Natasha 1997
Comentários*:
“‘Deixar você’ é da mesma época de ‘Drão’, mas não teve nenhum personagem no qual eu tivesse me baseado. O personagem da letra é inventado e surge de uma decisão assim: ‘Vou fazer uma canção’. Na verdade, ‘Deixar você’ foi feita para imitar o Djavan; eu quis compor uma canção que se assemelhasse com o que eu achava que era o modo do Djavan fazer música. Eu fiquei fazendo umas seqüências melodico-harmônicas para mim parecidas com as dele, com alguns traços do estilo dele, e aí, música feita, pensei: ‘Bom, o que é que eu vou fazer com isso?’ Aí escrevi os versos, nos quais eu não tratava de uma situação real sobre a qual eu quisesse elaborar um pensamento.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Deixei recado
Gilberto Gil
João Donato
Falei do fogo
Falei da dor
Agora calo
Calço o chinelo
Reparo a flor
Batuqueiro, ê
Bate o couro, ê
Bate, bate com paixão
Com paixão por sim
Com paixão por não
Bate, bate, coração
Andei correndo
Andei sofrendo
Andei demais
Agora deito
Olho pro teto
Penso na paz
Batuqueiro, ê
Bate o couro, ê
Bate, bate com paixão
Com paixão por sim
Com paixão por não
Bate, bate, coração
Passei da conta
Passei da porta
Passei por lá
Deixei recado
Voltei cansado
Vou descansar
Outras gravações:
“Lugar comum”, João Donato, Dubas
“Millennium”, João Donato, Universal Music 2001
“Tropique 4”, João Donato 2007
Desafio do lixo
Gilberto Gil
as caixas de isopor
onde diabos vamos pôr
as nossas caixas de isopor
como nos livrar
das plásticas palavras
ditas á mesa do bar
palavras que vão dar no mar
poluir é ir juntando o que restade nós
após as refeições
nossos retos mortais
venenosas ilusões
milhões de garrafas vazias
cheias de alergias e aflições
onde vamos pôr
as caixas de isopor
a vida de mentira
a ira, do desamor
temos que encontrar o lugar
no deserto aberto
em nossos corações
Despedida de solteira
Gilberto Gil
Perguntei-lhe se haveria despedida de solteira
Ela me disse que a principio não
Pelo visto não
Certamente não
Porque não, eu insisti em perguntar
Ela disse que eu devia já estar pensando em besteira
Eu disse a ela que a princípio não
Pelo visto não
Certamente não
E assim nossa prosa prosseguiria
O assunto era instigante, o horizonte promissor
Excitante para um cabra tão galante
Intrigante para uma cabrita em flor
Tanta coisa que ali se discutia
Fidelidade, virgindade, orientação sexual
No final ela admitiria que faria
A despedida de solteira e coisa e tal
Festa na qual eu por sinal
Não entraria não
Nem eu nem qualquer um outro varão
Nossa cabrita, tão catita, tão bonita
Depois de tanta desdita havia feito uma opção
Se casaria com outra linda cabrita, hah!
Que até bem pouco namorara o meu irmão
O pau de arara do meu pai o que diria disso
Que ela me disse, disso que ela me disse…