Músicas
No céu da vibração
Gilberto Gil
Todos os animais
Os vegetais também o são
Como será
Não ser assim?
Não precisar
O começo, o meio, o fim
A encarnação, Deus?
Como será
Não estar aqui nem lá
E tão somente andar ao léu
No céu da vibração?
Para os olhos, fez-se a cor
Para os ouvidos, o som
Para os corações, o fogo do amor
E para os puros, o que é bom
Só me resta agradecer
E aguardar a ocasião
De tão somente andar ao léu
No céu da vibração
Samba de Los Angeles
Gilberto Gil
Foi quebrando, foi
Foi quebrando, foi
Foi quebrar
Lá na beira do mar
Tanto que água mole
Em pedra dura bate, que fura
Da pedra rachar
Tanto que racha a rocha
Que relaxa, afrouxa, que vira
Areia do mar
Tanto que a areia arenga
Que a sereia canta pelo pé
Que areia pisar
Olha que o samba foi
Foi quebrando, foi
Foi quebrando, foi
Foi quebrar
Lá na beira do mar
Tempo só (Time will tell)
Gilberto Gil
Robert Nesta Marley (Bob Marley)
JAH would never give power to a baldhead
Run come crucify the dread
Time alone, oh! Time will tell
You think you’re in heaven, but you’re living in hell (3x)
Time alone, oh! Time will tell
You think you’re in heaven, but you’re living in hell
Back them up, oh not the brothers
But the ones, who set them up
Time alone, oh! Time will tell
You think you’re in heaven, but you’re living in hell (3x)
Time alone, oh! Time will tell
You think you’re in heaven, but you’re living in hell
Oh children weep no more
Oh my sycamore tree, saw the freedom tree
Saw you settle the score
Oh children weep no more
Weep no more, children weep no more
JAH jamais permitirá que as mãos do terror
Venham sufocar o amor
Somente o tempo, o tempo só
Dirá se irei luz ou permanecerei pó
Se encontrarei Deus ou permanecerei só
Se ainda hei de abraçar minha vó
Somente o tempo, o tempo só
Time alone, oh! Time will tell
Somente o tempo, o tempo só
Time alone, oh! Time will tell
You think you’re in heaven, but you’re living in hell
Tempo rei
Gilberto Gil
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo
Transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos
Pães de Açúcar
Corcovados
Fustigados pela chuva e pelo eterno vento
Água mole
Pedra dura
Tanto bate que não restará nem pensamento
Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei
Pensamento
Mesmo o fundamento singular do ser humano
De um momento
Para o outro
Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos
Mães zelosas
Pais corujas
Vejam como as águas de repente ficam sujas
Não se iludam
Não me iludo
Tudo agora mesmo pode estar por um segundo
Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei
Gravação
Gilberto Gil – Raça Humana, 1984 – Warner Music
Lobão – Songbook Gilberto Gil, Vol. 2, 1992 – Lumiar Discos
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Comentário*
“Tempo rei” é a minha versão para uma questão colocada em “Oração ao tempo”, em que a frase-chave para mim é: “E quando eu tiver saído/ Para fora do teu círculo/[…] Não serei nem terás sido” — quer dizer: o tempo desaparecerá, eu desaparecerei; o tempo e aquele que o inventa, o ego, estarão ambos desinventados, portanto. Na música do Caetano parece haver um niilismo essencial, um mergulho no nada absoluto e uma resignação plena, orgulhosa e altiva com a extinção. Na minha tem uma coisa mais cristã; uma, quem sabe, quimera; um vago desejo de permanência e de transformação.
Em todo o meu filosofar popular sobre o existente e o eterno, há sempre uma possível porta aberta pra algo pós. Para mim é muito difícil não crer no pós sem não crer no pré. Como me é absolutamente impossível anular a existência do anterior a mim, também me é muito difícil aceitar a inexistência do posterior; para mim são coisas iguais. Assim como eu “Não posso me esquecer que um dia/ Houve em que eu não estava aqui” (“Cada tempo em seu lugar”), um dia haverá em que eu não estarei aqui: mas esse dia haverá; haverá o ser das coisas que serão independentes de mim então. Eu não imagino a extinção de tudo com a extinção do meu ego. A morte de todas as pessoas que nós conhecemos até aqui não extinguiu o mundo — nem o que foi anterior a elas, nem o que lhes foi posterior; por que esse milagre aconteceria justo comigo? Eu levaria tudo comigo?
Aí reside para mim um problema do existencialismo. Aí, e só aí, eu esbarro um pouco em Sartre, apesar do meu grande amor por ele, e ele não me convence. Sartre morreu e o mundo está aí! Por isso a sua filosofia eu chamaria mais de individualismo do que existencialismo. Um existencialismo individualista, não algo universalizável.
[O provérbio “água mole em pedra dura etc.” fala da eficácia que as coisas acabam tendo ao durarem no tempo. Na letra, a omissão do final do ditado, “até que fura” (cujo significado é o da ação de interferência no mundo, dentro do plano do tempo “real”, cronológico), e a sua substituição pela expressão “que não restará nem pensamento”, além de servirem para romper a expectativa de enunciação completa de um dito conhecido, servem, segundo Gil, sobretudo ao seu propósito de sugerir a ideia de corte da dimensão do tempo enquanto duração para a dimensão do tempo “enquanto eternidade sorvedora de todas as suas dimensões, para a sua transdimensionalização”; de saída “do tempo-existência para o tempo-essência (o eterno)”; do tempo para o “atempo” — onde, nas palavras do compositor, “já nem pensar é possível”.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ninguém segura este país
Gilberto Gil
Que está por cima, meu bem, eu também acho
Segurando a barra dessa rima
Deve haver algum pernambucano por baixo
Um sergipano por fora
Um maranhense de lado
Um rio-grandense de toca
Um carioca pirado
Um paulista ocupado
Um mineiro calado
Um catarinense tímido
Um amazonense úmido
Cada qual no seu perfeito estado natural
Entra baiano, sai ano
Mais um carnaval
De lascar o cano
Gravação
Gilberto Gil – Satisfação (Raras e inéditas), 1999 – Universal Music
Comentário*
Essa foi feita para brincar com a concentração de importância que se fazia com a representação baiana, em parte criticando um pouco esse excesso de importância, em parte assumindo, de uma maneira vaidosa, a importância – e a imagem de que os baianos são interessantes, de que a Bahia tem um charme, a Bahia tem um jeito, os baianos estão na moda (para o bem, para o mal).
A letra sai comparando a Bahia com os outros estados, a começar com Pernambuco – me lembro que isso provocou o compositor Carlos Fernando, que fez uma música respondendo, devolvendo a provocação. Uma marchinha bem alegre, jocosa, como muitas marchas carnavalescas ou juninas, aproveitando para fazer um mapa brasileiro: na minha cabeça, quando eu estava compondo, me vinham os mapas brasileiros da infância, com todos os estados, cada um de uma cor.
A expressão do título, que nem figura na letra, era para mexer com o slogan da ditadura e para, simultaneamente, exprimir a ideia de que ninguém segura mesmo a força avassaladora da cultura popular brasileira e o grande mito do carnaval, as festas populares, os grandes rituais de agregação, de formação de unidade.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Samba
Gilberto Gil
Vem da sua amargura o meu viver
Vem da sua frieza o meu calor
Vem de tudo que é seu, vem de você
Seu olhar é triste, e mesmo assim
Faz, alegre, o meu coração saltar
O seu beijo é tão frio, mas enfim
Faz meu ser de amor queimar
Meu benzinho, deixe de chorar
Meu benzinho, deixe de sofrer
Meu benzinho, viva para amar
Pois a vida ainda tem
Belas coisas pra lhe dar
Sala do som
Gilberto Gil
Na sala do som
Só quem pode entrar
É Milton
Se ele resolver
Me acordar
Diga que é melhor
Me deixar dormir
E que é pra ele também
Se deitar
Na sala do som
Se ele descansar
Vai ser bom
Amanhã vai ser
De arrasar
Temos que fazer
Cinco ou seis horas de show
E a turma tem
Que deitar
E rolar no som
Temos que escolher
Qual o tom
Do samba que vai
Encerrar
E uns detalhes mais
Pra acertar
Diga ao Bituca pra ele entrar
Sem bater
Na sala do som
Gravações
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – Satisfação (raras e inéditas), 1999 – PolyGram
Comentário*
Uma música para Milton. Ele passava uns dias na casa do Caetano, na rua Delfim Moreira, no Leblon, no Rio, onde ficou uns cinco, seis dias, quase uma semana. Eu chegava e sempre o encontrava lá; aí conversávamos. Ele ficava num quarto que a gente chamava a “sala do som”. De repente eu resolvi fazer essa canção, que eu gravei para o Refavela, mas acabei não colocando no disco; ela ficou como sobra. Depois a música foi perdida, permanecendo sem paradeiro por muito tempo. Eu esqueci como ela era, já não sabia cantá-la. O único registro dela que eu sabia haver era a gravação que tinha sido feita para o Refavela, mas eu mandei procurar no arquivo da PolyGram [a gravadora que havia lançado o disco] e ela não foi encontrada. Eu cheguei a mencionar a existência e o sumiço dela para o Milton; ele brincou e disse: “Faça outra; você perdeu, faça outra”. E quando eu já estava pretendendo fazer o trabalho que eu vim a fazer com ele, o do disco e show Gil Milton, o [pesquisador] Marcelo Fróes a descobriu, e eu finalmente a recuperei, vindo a gravá-la no Quanta.
Eu admirava Milton desde sempre. Me comovia muito a voz dele, uma voz comovida e comovente: ele trabalha com o aspecto profundo da comoção, que a sua voz manifesta de imediato. Eu gostava muito disso e também da composição dele, da maneira como ele se movia no folclore mineiro, de como ele incorporava a negritude mineira, embora ele seja menos saltitante do que eu — apesar de a música dele, em muitos momentos (“Cravo e canela”, por exemplo), ser bastante percussiva, conter a matéria dos tambores de Minas e incorporar outras coisas. Ele é louco por Jorge Ben, de quem ele tem uma influência sutil. Eu fiquei muito contente de lhe fazer a homenagem especial que foi essa canção.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ninguém dá o que não tem
Gilberto Gil
João Augusto
Ninguém dá o que não tem pra dar
Mas se amor com amor alguém tem que pagar
É você que está devendo
Porque não quer dar
Ou porque não tem
Porque nunca me dá nada
E recebe tanto bem
Sim, eu sei
Quem espera sempre alcança
Mas espera também cansa
Estou cansado de esperar
Meu amor é como um pobre
Luta tanto pra viver
Quando nasce, não se cria
E se cria, é pra morrer
Nightingale
Gilberto Gil
Jorge Mautner
Caught it by the tail
When I held it in my hand
It was a nightingale
It was a nightingale
I was happy and took him home
He was hurt and so alone
Water, love and seeds
Those were all his needs
In about a week or so
He was fit to go
He sang a ting, ling, ling, ling, bird song
A swinging, ling, ling, ling, long melody
He sang a ting, ling, ling, ling rock song
A swinging, ling, ling, ling, long song for me
One day at daybreak
He said good-bye
He flew up and he was like
A comet in the sky
A comet in the sky
[ O Rouxinol, de Gilberto Gil e Jorge Mautner ]
Tartaruguê
Gilberto Gil
Anauê, tartaruga
Mera invenção
Hora de me iludir
Pura emoção
Afoxé, axé, axé, axé, axé
Sei que anauê
É uma saudação
Tartaruguê
Eu não sei, sei não, sei não,
sei não, sei não
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
Você pega um violão, começa a ensaiar um riff, uma levada, e aí vêm umas onomatopeias na cabeça; você começa a pronunciar frases, sílabas que vão se concatenando, criando uma sonoridade. Daí, “Anauê tartaruguê/ Anauê tartaruga”.
[Bem Gil, que participou da gravação da música, conta que, quando Gil lhe mostrou a canção — que acabou sendo dedicada a Dom, filho de Bem — no estúdio, ele imediatamente reagiu: “Que maneiro, Tartaruguê! O Dom vai gostar”. E ele falou: “É mesmo, o Dom!”. Segundo Bem, “não foi uma coisa consciente, de ele pensar na tartaruga porque o Dom curtia as Tartarugas Ninja. Deve ter sido algo inconsciente, porque quando eu falei aquilo, ele se surpreendeu, e decidiu: ‘Então essa música é pra ele’. Na hora, meio que deu um estalo nele, como se de fato a ideia da tartaruga tivesse vindo por algum motivo que ele só descobriu ali, quando eu lembrei a ele que o Dom curtia. E ele já sabia obviamente disso, porque o Dom vivia vestido de tartaruga e brincando com os bonecos”. Gil concorda:]
O Bem tem razão. “Anauê tartaruguê” foi um riff de violão que eu fiz com essa onomatopeia — tanto é que Caetano estranhou, inclusive, o anauê, que era uma saudação dos integralistas. Aí eu digo na letra que é uma saudação, já quando eu resolvo fazer desse mote uma cancioneta — e aí, sim, já para o Dom. Sou eu explicando a ele o que quer dizer tartaruguê e o que quer dizer anauê.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Table tennis table
Gilberto Gil
I and I
Play to show we are able
Not to die
Small and light white ball
Forth and forth
All is irie and irie is all
Love is worth
Don’t think I’m trying to make another I
One is enough
I’m just expanding to overstand a cry
As well as a laugh
Don’t think I’m lieing to fake another me
One is too much
I’m just extending the shores of my sea
Beyond any reach, beyond any touch
See, on the opposite side as if we look on a mirror
The other, the same
See, on the table tennis table I’m killing the killer
Is this me/we game
This me/we game
This me/we game
Oh! Me/we
Yes, me/we
The shortest poem in all poetry
Oh! Me/we
Yes, me/we
The poem Cassius Clay declamed
Like I and I
The same I and I
Identical to I and I
The pray that rastamen proclaimed
To say that we are never alone in this world
Me/we, I and I
To state that state of togetherness
The oness that means not to die
Table tennis table
Ping-pong, ping-pong, I and I
Play to show we are able
Not to die, not to die
Small and light white ball
Forth and forth and so forth
All is Irie, Irie is all
Love is worth, love is worth
Gravação
Gilberto Gil – Kaya N’ Gan Daya, 2002 – Warner Music
Comentário*
A respeito do pequeno poema, ‘me/we’ (de fatura oswaldiana, lembrando, de certo modo, o ‘amor/humor’, do poeta modernista Oswald de Andrade), incrustrado no meio da letra – É uma lembrança feita a mim pelo Jorge Mautner. Ele se referia ao episódio protagonizado pelo Cassius Clay, que, ao ser homenageado numa universidade americana, veio ao microfone para dar seu pronunciamento, no final da cerimônia, e disse apenas: ‘Me, we’. O Mautner é que destaca isso como sendo um poema, e como sendo o menor poema da história (expressão que eu aproveito na letra), atribuindo a isso um extraordinário valor. A música, na verdade, foi feita por causa dessa observação do Mautner; é para ele.
Quanto a ‘irie’ e ‘I and I’ – ‘Irie’ é uma expressão do dialeto rasta, que significa: ‘Tudo é bom, tudo é completo, tudo é limpo, tudo puro’, sendo também dos rastafari outra expressão próxima, ‘I tal”, que quer dizer ‘total’, integral’, ‘completo’. Esse i primeiro em ‘irie’ é o mesmo de I. E o ‘I and I’ é, exatamente, ‘nós’; é, na realidade, ‘eu e nós’ – daí eu tê-lo associado ao ‘me, we’ do Clay. E como se tratava de Cassius Clay, alguém com a mesma dimensão heróica e icônica do Bob Marley, ambos mais ou menos próximos em seus envolvimentos com religiosidade e com negritude, eu não hesitei em fazer a analogia.
Uma palavra e dois versos – O oness da letra deriva do one muito usado pelos rastas, estando presente inclusive numa canção, na forma de ‘one love’ (‘One love, one love…/ Let’s get together and feel all right’), e sendo uma saudação comum entre eles; por exemplo, no final de uma mensagem, de uma carta, eles dizem: ‘One love; one love Gil’.
‘The oness that means not to die’: unidade no sentido da integralidade, da totalidade, da unidade; no sentido mítico, místico, cósmico, maior; a unidade que implica um abraço, um congraçamento, uma unidade de vida/morte, quer dizer, o eterno maior que a vida, maior que a morte, o eterno transcendental.
‘I and I/ Play to show we are able/ Not to die’: embutida, a idéia mística, religiosa, da salvação, da vida eterna, do alcance da promessa de todas as religiões, isto é, ultrapassar a barreira da morte física: a unidade com o ser, o abraço, a idéia religiosa mesmo, profunda, de religação, o re-ligare religioso, presente em todas religiões, inclusive no neojudaísmo dos rastafari.
Dos estímulos à realização – Fiz essa música sentado no tatame, na sala da minha casa em Salvador. Tudo veio de uma vez, música e letra; eu fui fazendo, tocando, cantando, e em uma hora ela estava pronta. Foi impressionante. Mas tudo começou antes.
Eu estava saindo de Kingston, voltando para o Brasil após as gravações do Kaya n’gan daya previstas para a Jamaica, quando eu pensei que eu tinha que fazer uma música nova para o disco, e que de alguma maneira tinha de ser sobre Marley. Eu estava no avião, indo para Miami, e peguei uma revista de bordo, na qual, de repente, eu vi um anúncio de um resort – um desses hotéis fazenda – da Jamaica, com várias fotos ilustrando as dependências do lugar; uma delas trazia escrito ‘table tennis table, e eu achei essa expressão incrível, maravilhosa, pois ela própria é uma mesa de tênis de mesa!
Tinha piscina, um campo de futebol, um de golfe, e uma table tennis table. Eu disse: ‘Table tennis table!’ – e na mesma hora pensei em Marley, eu e ele, nós dois jogando ping-pong (e de fato a música, para mim, é isso) – e aí veio o ‘I and I’. Assim, já no avião comecei a pensar no tema geral da canção. Nesse ínterim, entre a minha chegada ao Rio, de volta da Jamaica, e o dia que eu fui para Salvador, eu estive com Mautner, e a gente falou muito do ‘me, we’ do Cassius Clay. Todos esses elementos foram se acumulando e, por isso, eu acho, quando eu sentei para fazer a música, ela saiu praticamente de uma vez.
A idéia da expressão-título repete a que eu tive, também vendo uma expressão numa revista, que veio dar a música ‘Mardi dix mars’, em francês, a partir de um mesmo jogo de palavras espelhadas. E table tennis table é a própria mesa e o próprio jogo de ping-pong: um lado e o outro; a rede de tênis no meio; a bolinha que vai e que vem. Por isso eu usei todos os elementos, obviamente propostos pela idéia. A idéia já veio com a sua decupagem toda.
Enfim, “Table tennis table’ não é poema de poeta; é poesia, ela própria, fazendo-se. Eu só fui um veículo, simples. Não há ‘eu’ nessa música, só ‘I and I’, mas eu mesmo não: o que há é o eu poético, o da poesia. É uma poesia de inspiração religiosa mesmo. Eu diria que é a minha melhor letra em inglês.”
*Extraído do livro Gilberto Gil – Todas as Letras
Neve na Bahia
Gilberto Gil
Bruxa
Ducha de água fria
No fogo do meu plexo solar
Loura
Moura
Neve na Bahia
Um furacão sem fúria no meu mar
Agri-
Doce
Tal um sal de fruta
Vós me agradais quanto vós me agredis
Onça
Garça
Inocente e astuta
Clareza absoluta e mil ardis
Gueixa disfarçada de boneca
Sudanesa travestida de alemã
Por que sois o mistério à luz do dia?
Por que sois sempre a noite de manhã?
Ainda bem que sois fruta no meu sonho
A eterna obviedade da maçã
Que escolho e colho e mordo na bochecha, Xuxa
E tendes travo e gosto de avelã
Vick
Vapor
Lenta anestesia
Pimenta na garrafa de isopor
Xuxa
Bruxa
Ouro de alquimia
Sois flecha de um cupido pós-amor
Gueixa disfarçada de boneca
Sudanesa travestida de alemã
Por que sois o mistério à luz do dia?
Por que sois sempre a noite de manhã?
Ainda bem que sois fruta no meu sonho
A eterna obviedade da maçã
Que escolho e colho e mordo na bochecha, Xuxa
E tendes travo e gosto de avelã
Gravação
Gilberto Gil – Parabolicamará, 1991 – Warner Music
Comentário*
Anos atrás, no meu gabinete na Câmara dos Vereadores, em Salvador, eu recebi um fax com o pedido que uma revista, que ia publicar uma reportagem sobre a Xuxa, fazia, para que eu escrevesse alguma coisa sobre ela. Eu escrevi um texto pequeno, que eu nunca vi publicado (nem sei se saiu), e que começava assim: ‘Xuxa bruxa, ducha de água fria, no fogo do meu plexo solar’. Um ano e meio depois, quando eu estava preparando o repertório de um novo disco, vindo numa viagem de Manaus para o Rio, eu peguei meu caderno e vi aquele texto anotado. Aí resolvi elaborá-lo, fazendo o resto.
Mantive aquele início, dei-lhe a forma de estrofe, e continuei a ideia.
O resultado foi um antijingle. Um elogio de algo que está encoberto, feito um pouco com pena do encobrimento, criado por uma fantasia da mídia e dos interesses do sucesso e do pragmatismo inerente à carreira dela. A música fala da sua sensualidade e dos disfarces que estão por trás: ‘Pimenta na garrafa de isopor’ é para dar o sentido camuflado do ardor e do caráter picante que ela tem; quer dizer: aquele calor, aquela fogueirinha, mas toda embalada numa coisa como se não fosse para isso, mas para um anti-clímax, no meio-termo do gesto, numa mediação constante entre a labareda e a brasa.
‘Neve na Bahia’ é um antiapologético e um apologético do anti. A canção engloba os conceitos tanto da publicidade quanto da propaganda – que, embora muito próximas, podem ser distinguidas, mas também aproveitadas num conceito único: é o caso do que ocorre aqui, em que se têm as duas coisas, pois a canção faz propaganda de uma anti-imagem e ao mesmo tempo entra no próprio espaço da publicidade que já está implicado no nome da Xuxa, da personalidade pública dela.
A letra traz implícita uma espécie de voyerismo, de alguém que fica vendo a televisão como se fosse um buraco de fechadura, tentando centrar o foco naquele personagem tão iluminado pelas luzes da superexposição, sem perder de vista as manipulações necessariamente implicadas naquele tipo de superexposição dirigida e instrumentalizada como a da Xuxa. Ao mesmo tempo, explicita tanto uma frieza que é típica da hiper-programação e dela própria, com os estereótipos de menina nórdica e racional, quanto os contrapontos: a esperteza, a leveza dela.
Algo que fica evidente também é um afeto especial dedicado em nome do coletivo, em nome do afeto coletivo, expresso na visão dela como fruta, no verso ‘a eterna obviedade da maçã’ – em referência ao que a programação dela utiliza e manipula, ou seja, à ideia do erótico embalado, cuidadoso, global, da programação infantil. A música, aliás, é uma marchinha bem suave, parecida com ela, com o tom infanto-juvenil dela. Uma homenagem com dois olhos, um que vê a frente e outro que vê atrás; um que vê um lado e outro que vê o outro.
Por que o ‘vós’ – Por causa de um artifício de adequação à rima [com ‘ardis’, daí o pronome, para corresponder à forma verbal ‘agredis’] e porque o ‘vós’ dava uma ideia de tom reverencial de quem está falando com alguém de uma representação da aristocracia do mundo da televisão – esse mundo-tela, distante –, uma espécie de princesa que ela é; para dar também uma ideia desse distanciamento.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Saci-Pererê
Gilberto Gil
Ê, ê, ê, ê, ê
Vou prestigiar
O neguinho deve ser da grande escola Pelé
É, é, é, é, é
Vou prestigiar
O moleque Saci-Pererê com uma perna só
Ó, ó, ó, ó, ó
Vai ver que é melhor
Do que muitos por aí com duas pernas-de-pau
Ah, ah, ah, ah, ah
Vai ver que é melhor
Entra um time novo, troca o time inteiro, mudo tudo
Tem jeito não
Falta alguma coisa tipo liberdade, profissão de fé
Devoção
Vou buscar a fantasia no conto da carochinha
Com a varinha
De condão
Moleque Saci
Vou prestigiar
Um gol Pererê
Pra gente vibrar
Moleque Saci
Saci-Pererê
Um gol de Pelé
Que é pra gente ver
Gravação
Banda Black Rio – Saci Pererê, 1980 – Sony Music
Roque Santeiro, O Rock
Gilberto Gil
Agora, o menino é tudo de novo no front
Outrora, só rebeldia
Agora, soberania na noite neon
Outrora, mera fumaça
Agora, fogo da raça, fogoso rapaz
Outrora, mera ameaça
Agora, exige o direito ao respeito dos pais
E tem mais, e tem mais, e tem mais
E tem mais, e tem mais
Outrora, arraia miúda
Agora, lobão de boca bem grande a gritar
Outrora, pirado e louco
Agora, poucos insistem em negar-lhe o lugar
Outrora, frágil autorama
Agora, três paralamas de grande carreta de som
Outrora, simples bermuda
Agora, ultravestido de elegante ultraje a rigor
E o amor, e o amor, e o amor, e o amor
E o amor, e o amor, e o amor
Só quem não amar os filhos
Vai querer dinamitar os trilhos da estrada
Onde passou passarada
Passa agora a garotada, destino ao futuro
Deixa ele tocar o rock
Deixa o choque da guitarra tocar o santeiro
Do barro do motocross
Quem sabe ele molde um novo santo padroeiro
Outrora, o seio materno
Agora, o meio da rua, na lua, nas novas manhãs
Outrora, o céu e o inferno
Agora, o saber eterno do velho sonho dos titãs
Outrora, o reino do Pai
Agora, o tempo do Filho com seu novo canto
Outrora, o Monte Sinai
Agora, sinais da nave do Espírito Santo
E o encanto, e o encanto, e o encanto, e o encanto
E o encanto, e o encanto, e o encanto, e o encanto
Gravação
Gilberto Gil – Dia Dorim Noite Neon, 1985 – Warner Music
Comentário*
O título faz referência à novela Roque Santeiro [da Rede Globo], que fez grande sucesso na época, seguindo o procedimento que, no meu trabalho, tinha o antecedente de “Super-Homem — A canção”, em referência ao filme — para dar ingredientes de coerência que vão criando ligações e colocando a obra em perspectiva de prateleira, de acumulação de volumes, como se fosse uma coleção de livros.
A música presta uma homenagem à nova geração do rock brasileiro, num momento em que se cria entre nós o público para ele, o sucedâneo nacional do rock se instala no rádio, e o rock brasileiro — a partir de Lulu Santos, Marina — passa a existir através de uma produção ampla e diversa, cobrindo várias tribos e modos diferentes de rock, do mais doce, suave e romântico, como o do Kid Abelha, ao mais cáustico, como o do Ultraje a Rigor. Alguns deles citados nominalmente pela música.
“Roque Santeiro — O rock” sou eu mesmo, como representante da geração anterior, me colocando, solidariamente, como uma ponte entre eles e a tradição. Como se dissesse: “Venham, passem, cruzem, pisem nas nossas costas, façam de nós um chão”. É por isso também que eu falo em não “dinamitar os trilhos da estrada”. Eu me lembrava do expediente, usado nas guerras, de bombardear as pontes para evitar a comunicação. A canção tem esse sentido funcional de combater o isolamento de gerações e contribuir para a construção de pontes entre elas.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Nêga (Photograph blues)
Gilberto Gil
Nega
You spent so blissfully
The last few days with me
Nega
I spent so nicely too
The last few days with you
When I met you, it was so fine
I didn’t talk a lot to you
I only mentioned your smooth hair
You made a speech about shampoo
We took many, many, many photographs
Downtown
As we passed through
Nega
You spent so blissfully
The last few days with me
Nega
I spent so nicely too
The last few days with you
You’ve been going just where I’ve gone
All my people you have seen
I’ve been doing just what you’ve done
Now I can dig your cup of mu tea
We let our moments become, become
What they really had to be
Nega
You spent so blissfully
The last few days with me
Nega
I spent so nicely too
The last few days with you
Develop our photographs
As simple dreams that will come true
Perhaps they will make you laugh
Or make you sure about we two
Develop, baby, our photographs
Perhaps they will make you sure
Perhaps they will show you nothing
Nothing, but a shade of blue
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil, 1971 – Philips
Gilberto Gil e Jorge Ben Jor – Gil e Jorge, 1975 – Philips
Comentário*
Na verdade, sou eu exercitando a capacidade narrativa no inglês de música popular; tentando versejar em inglês, transpondo ideias e sentimentos que poderiam ser expressos naturalmente em português brasileiro para o inglês rudimentar que eu estava começando a praticar. É uma música de treino poético na língua inglesa. É assim que eu considero. E eu uso o “nêga” pra dar também o imbricamento das línguas, das narrativas poético- -musicais populares nas duas línguas. É um experimentalismo autoral, poético-composicional. Essa expressão está em momentos vários do cancioneiro popular, o tempo todo. A nêga isso, a nêga aquilo, a nêga aquilo outro.
Mas eu tenho a impressão de que o termo “nêga/nêgo” passa a ter, nas canções da geração de vocês, uma aplicação mais ampla do que apenas a uma pessoa negra. — Passa a se aplicar ao campo afetivo mais geral em canções da minha turma, da minha época? É… “Ô, meu nêgo! Ô, minha nêga” é um tratamento carinhoso que se dá a qualquer pessoa. Uma expressão, um vocativo afetivo granjeado, franqueado a qualquer relacionamento; uma menção a qualquer ente, minimamente querido, valoroso, valioso. É nessa acepção que “nêga” entra nessa música em inglês.
O termo com essa associação a uma pessoa cativante, querida, interessante de alguma forma, com essa evocação racial, transcende completamente ao racialismo e ao racismo, a qualquer coisa desse tipo. É como eu vejo também a palavra “mulata”, que hoje em dia acabou cancelada, proscrita, mas que pra mim tem a mesma qualidade. “Mulata” também tem alguma coisa para além da cor da pele, para além do traço racial. [Gil a relaciona com “neguinha”, lembrando “‘Eu sou neguinha’, pra dar um exemplo”.]
Da referência ao chá mu, o “mu tea”. — Era uma bebida muito ingerida na casa e que fazia parte do dia a dia daquela época, de vivência com a macrobiótica.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Nascente poente
Gilberto Gil
John D’Andria
Não havia gente para ver
Não havia o nosso olhar
No primeiro sol nascente
Sobre a terra ardente
Sobre o infante mar
Nada pronto pra testemunhar
Pedra, planta, peixe vivo
Nada, nem um ser
Nem um ser
Deus sem ter a quem falar
Deus não podia ter
A quem mostrar a luz, o brilho, a cor
Eu digo: Deus como a gente crê
O Deus do jeito que a gente inventou
Até que um coração bateu
Inventando Seu amor
Derradeiro sol poente
Quando a noite eterna, enfim, descer
Que será do nosso olhar?
Derradeiro sol poente
Sobre a terra quente
Sobre o velho mar
Tudo pronto pra se desmanchar
Pedra, planta, peixe vivo
Tudo, cada ser
Cada ser
Deus começa a se calar
Deus tendo que extinguir
A nossa chama, a luz do Seu amor
O nosso Deus morrendo feliz
Logo após o pôr, o fim do sol
Do sol o pôr que Ele mesmo quis
Pôr que Ele mesmo matou
Gravação
Fafá de Belém – Aprendizes da esperança, 1985 – Som Livre
Comentário*
O nascer e o morrer do sol, no sentido literal, cosmológico, cosmogônico, e Deus relacionado com isso. O sentido profundo da precedência de Deus da procedência do homem da precedência de Deus: um dos filões filosofantes da minha obra. Aqui a história tem o primeiro sol nascente e o derradeiro sol poente.
A noção do Deus inventado pelo homem por você é de certa forma intrigante por você ser um homem de notória religiosidade.
— Mas com uma trajetória em que crer e descrer sempre se complementaram. No meu trabalho você tem isso. Eu comecei crendo em Deus, depois descri, depois voltei a crer, e hoje vivo uma síntese dessas idas e voltas. A noção do Deus incriado criador a um só tempo; a noção de que a valência do existir divino só passou a ser depois que o homem pensou em Deus, ou seja, de Deus como uma invenção do homem, observável aqui, em “Nascente poente”, também está presente na música “É” (“Pois eu sou e Deus é/E disso é que resulta toda a criação”). Esse vai e vem, essa ideia de precedência e procedência, uma precedência de Deus, uma procedência do homem, um homem a proceder de Deus, mas ao mesmo tempo um Deus procedente do homem, esse jogo aparece em versos, em estrofes, em momentos vá- rios de canções minhas. Em “Tempo rei”, “Aqui e agora”, você encontra esse gen binário homem-Deus, Deus-homem.
Tal sentido parece ser proveniente de um espírito abrangente e includente que religiões caracterizadas por um extremismo monoteísta não admitem. — Não admitem. São pequenas, são de baixa frequência. As religiões de alta frequência são politeístas. Monoteísmo é uma distorção, uma redução. Monoteísmo-reducionismo é o homem querendo reduzir tudo à sua…
Só um Deus único, homem, pai, todo-poderoso, sem deusa, mulher, mãe. — É muito pouco. Os monoteístas tiveram que fazer um esforço enorme através da retórica pra poderem se explicar, pra poderem se justificar.
Ao mesmo tempo religiões politeístas, como o candomblé, incluem o monoteísmo, incluem o Deus. — Mas é óbvio. O sincretismo todo que surgiu com as religiões africanas e o cristianismo; as figuras da adoção do monoteísmo católico pelo politeísmo africano e todos os desdobramentos que surgiram disso; toda essa abertura constitui uma oportunidade que só os politeísmos podem oferecer. Os monoteísmos são fechamentos, ensimesmamentos. Deus em si mesmo. Deus que não vai pra lugar nenhum, que só serve pra si mesmo; pra buscar a explicação de si próprio. O monoteísmo não é generoso, não abrange a criação do mundo, não se joga à grande fragmentação. É pequeno, não tem jeito.
É verdade. Mas assim como reconheço essa qualidade do politeísmo, reconheço o valor da religião em que quase não se tem Deus, como o budismo. — Claro. Aí é a contemplação do Incriado. Do Deus desconhecido. A noção de um Deus desconhecido nos aproxima do desapego do próprio ego, nos salva da hipertrofia do ego.
Gênese. — Foi a Fafá de Belém que trouxe a música dessa canção pra mim, cujos autores, americanos, me vieram através dela, que me pediu pra eu fazer a letra.
[Fafá conta que recebera quatro músicas do compositor Eric Bulling em estado bruto e que imaginou brasileiros fazendo letras pra elas. E na música em questão aqui ela viu versos de Gil. “Era muito Gilberto Gil. E ele mandou essa letra, que é fantástica”].
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Roda
Gilberto Gil
João Augusto
Na roda que eu te fiz
Quero mostrar a quem vem
Aquilo que o povo diz
Posso falar, pois eu sei
Eu tiro os outros por mim
Quando almoço, não janto
E quando canto é assim
Agora vou divertir
Agora vou começar
Quero ver quem vai sair
Quero ver quem vai ficar
Não é obrigado a me ouvir
Quem não quiser escutar
Quem tem dinheiro no mundo
Quanto mais tem, quer ganhar
E a gente que não tem nada
Fica pior do que está
Seu moço, tenha vergonha
Acabe a descaração
Deixe o dinheiro do pobre
E roube outro ladrão
Agora vou divertir
Agora vou prosseguir
Quero ver quem vai ficar
Quero ver quem vai sair
Não é obrigado a escutar
Quem não quiser me ouvir
Se morre o rico e o pobre
Enterre o rico e eu
Quero ver quem que separa
O pó do rico do meu
Se lá embaixo há igualdade
Aqui em cima há de haver
Quem quer ser mais do que é
Um dia há de sofrer
Agora vou divertir
Agora vou prosseguir
Quero ver quem vai ficar
Quero ver quem vai sair
Não é obrigado a escutar
Quem não quiser me ouvir
Seu moço, tenha cuidado
Com sua exploração
Se não lhe dou de presente
A sua cova no chão
Quero ver quem vai dizer
Quero ver quem vai mentir
Quero ver quem vai negar
Aquilo que eu disse aqui
Agora vou divertir
Agora vou terminar
Quero ver quem vai sair
Quero ver quem vai ficar
Não é obrigado a me ouvir
Quem não quiser escutar
Agora vou terminar
Agora vou discorrer
Quem sabe tudo e diz logo
Fica sem nada a dizer
Quero ver quem vai voltar
Quero ver quem vai fugir
Quero ver quem vai ficar
Quero ver quem vai trair
Por isso eu fecho essa roda
A roda que eu te fiz
A roda que é do povo
Onde se diz o que diz
Não tenho medo da vida
Gilberto Gil
Eis a loucura assumida, você há de imaginar
É que a vida atou-se a mim desde o dia em que eu nasci
Viver tornou-se, outrossim, o modo de desatar
Viver tornou-se o dever de me desembaraçar
A vida é somente um dom independente de quem
Seja capaz de gritar seu nome, alto e bom som
A vida seria um tom, uma altura a se atingir
Viver é saber subir, alcançar a nota lá
Lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar
Não tenho medo da vida, mas medo de viver, sim
A vida é um dado em si, mas viver é que é o nó
Toda vez que vejo um nó, sempre me assalta o temor
Saberei como afrouxá-lo, desatá-lo eu saberei?
A vida é simples, eu sei, mas viver traz tanta dor!
A dor na carne e na alma, a calma a se propagar
A durar dia após dia, a varar noite, a dormir
A ver o amor a vir a ser, a ter e a tornar
A amanhecer de novo e de novo um novo dia…
Isso às vezes me agonia, às vezes me faz chorar
Gravação
Gilberto Gil – Fé na festa, 2010 – Gege
Comentário*
[A canção tem sua gênese relacionada com Rogério Duarte e com um dia em que Gil e Caetano foram visitá-lo quando ele se encontrava doente, em Salvador. Rogério estava na cama, quando disse para Gil fazer uma canção que dialogasse com “Não tenho medo da morte”.]
Eu estava no quarto e presenciei quando o Rogério lhe sugeriu que fizesse “Não tenho medo da vida”. Eu tinha ido à Bahia para vê-lo, e todo dia ia visitá-lo. — Sim, você também é parte da história. Eu tinha feito “Não tenho medo da morte”, mostrei pra ele, e ele, provocativo como sempre, imediatamente disse: “Devia escrever ‘Não tenho medo da vida’ ”. Eu achei que aquilo era um desafio muito legítimo, muito profundo. Fui pra casa e logo em seguida, dois, três dias depois, a música já estava feita.
Ele estava muito doente, com câncer, se tratando, numa fase já muito dificultosa da vida quanto ao desempenho físico, à fala. E foi a reação provocativa natural dele. “‘Não tenho medo da vida’: fale sobre isso também.” Foi como se dissesse: “Dizer ‘não tenho medo da morte’ é fácil. Eu quero ver dizer que não tem medo da vida!”. Bem. Isso propiciou uma especulação razoavelmente exigente pra criar a canção, pra encontrar as palavras e os versos, o contexto narrativo. Eu me espelhei muito na música “Não tenho medo da morte”.
A estrutura é a mesma. Quatro estrofes de dez versos, dez redondilhas maiores. — A mesma. Com o verso “Você há de imaginar” no lugar de “Você há de perguntar”. Eu fui tecendo.
E onde tem “Não tenho medo da morte” na primeira, tem “Não tenho medo da vida” na segunda, abrindo tanto a primeira como a terceira estrofe. — Isso. Tudo pra dar esse sentido de espelhamento que estava muito claro na proposta do próprio Rogério no momento em que ele a fez.
Você se lembra de como é que você reagiu, em termos de como iria desenvolver o tema? — Isso veio, foi chegando. Quando você diz logo “Não tenho medo da vida/Mas sim medo de viver”, você já remete ao elemento deflagrador da própria música “Não tenho medo da morte”. A ideia de que a vida é maior que a vida. Assim como a morte é maior que a morte. Morrer é ato seu, de um eu. Enquanto viver é mais do que isso, transcende isso. Da mesma maneira que morrer é um ato seu, de um eu, enquanto a morte é muito mais que isso: é mais mistério, mais o não alcançável, mais o incompreensível, o impalpável; é mais ausente porque é depois. No caso da vida, também é mais do que a sua vida, do que a minha, do que a de alguém, do que a de algum ser. Vida quer ser tudo e nada. Viver é verbo, vida é substantivo, é substância.
A vida está atada na pessoa, no vivente. — Sim, sim, sim. Viver é um desenrolar. Um desatar.
Justo. E você vai falar de viver como um nó depois, na terceira estrofe. Mas na segunda é tão clara a diferenciação que você faz entre a vida como “um tom, uma altura a se atingir” e o viver como “subir” até alcançar a nota lá. — “A nota lá — lá no ponto de ferir, se preciso, até sangrar”: a ideia de que viver é sofrer, de que “tudo é sofrimento”, no sentido dos Upanixades [parte das escrituras hindus, consideradas como instruções religiosas, derivando dos Vedas, a base da filosofia do hinduísmo]. Viver é cada um por si. Viver em si, viver em um, viver num eu, viver em mim, viver em ti: esse viver pessoal.
“[…] Viver é que é o nó/Toda vez que vejo um nó, sempre me assalta o temor:/Saberei como afrouxá-lo, desatá-lo eu saberei?/A vida é simples, eu sei, mas viver traz tanta dor!” — O verbo “viver” sendo assumido como algo a ser processado em cada ser, em cada vivente, em cada um. Daí para o fecho com “A dor na carne e na alma/A calma a se propagar”, onde a ideia de um exaustivo decorrer dos dias e das horas, a calma, a calmaria da vida.
O final fala o que eu nunca vi ser dito por um compositor: da sequência dos dias da vida como uma agonia. E que eu acho que só poderia vir de você mesmo. — Acho que não. Eu acho que é um sentimento comum. Talvez rarefeito em uns, mais constante em outros, mas comum, todo mundo tem. A vida é agônica. A vida é uma passagem agônica. Dá agonia — agonia de viver.
Reconheço que é um sentimento comum. Mas, entre compositores, é difícil para mim imaginar outro dizendo a mesma coisa. O que, para mim, atesta uma vez mais a originalidade do seu tematizar a morte (porque é na necessária relação complementar com a morte que você tematiza a vida nessa canção).
— Sim, como ela nasceu da provocação do Rogério ao falar: “Dizer que tem medo da morte é fácil. Quero ver dizer que não tem medo da vida!”. A resposta é bem atenta à pergunta dele. “Como é ter medo da vida?”, ele perguntou. Eu dei atenção a isso. Aí tem um gosto [pelo tema]. E deu muito gosto fazer essa canção.
Que é uma das canções relacionadas com Rogério, e sendo o Rogério também alguém que sempre, de algum modo, tratou da questão da morte, da relação entre vida e morte, sendo ele um homem religioso também. — Um sannyasi, um renunciado com uma compenetração muito grande em relação a isso, ao sentido da entrega da vida nas mãos da morte. Morte como culminância da vida. Morte como salvação. O renunciado age assim, em nome disso, da transcendência, da superação do medo de viver. Superação daquela tal agonia. Encontro com a paz, a pacificação.
E isso está contido de alguma maneira nas primeiras criações suas em que o Rogério estava envolvido. — Sim. “Objeto semi-identificado”. “Diga lá, digo eu, diga você”, aquele diálogo [retomado depois no álbum Quanta, com “Objeto ainda menos identificado”].
Do ponto de vista musical, como você compara “Não tenho medo da vida” e “Não tenho medo da morte”? — “Não tenho medo da vida” tem mais brilho, mais luminosidade musical. É mais luminosa. Também nesse sentido tem valor o espelhamento, o contraste. “Não tenho medo da morte” é mais monótona, lúgubre, mais escura, correspondendo ao senso comum sobre a morte como escuridão, desaparecimento. “Não tenho medo da vida” é mais brilhante nas soluções melódicas, na variedade melódica, nas ideias de tonalidade. Ela “sobe” quando fala de erguer, alcançar a nota lá. “Não tenho medo da morte” tem notas mais graves, é toda construída com um melodiar mais soturno. “Não tenho medo da vida” é mais solar mesmo. Nesse sentido, o (não) medo da morte é noite, o (não) medo da vida é dia.
Essa dupla de canções se complementa mesmo. Como a própria vida e a própria morte. E é a nota lá mesmo que se canta no final do verso com essa palavra? — Não. Depende da tonalidade que você adotar, no sentido geral da música. Pode ser que, quando você escolhe uma tonalidade lá qualquer, essa nota pode coincidir com lá. No caso, acho que não coincidia não. Não tenho certeza, mas acho que não. E aí, por isso, é que fica o lá espacial, o lugar.
O “lá” atingido. — Eu nunca tive o sentimento de “Não tenho medo da vida” não ter dado conta da encomenda. Eu poderia ter tido, porque a dificuldade era enorme. A provocação foi de alta monta. Corresponder à expectativa do Rogério representava um grande desafio. Mas eu logo mergulhei na tarefa, fui pra casa e fiz a música, e logo fui mostrar pra ele. A canção não me deixou nenhuma sensação de vazio, de buraco, de não preenchimento, de não atingimento. Eu a acho bem atingida. Como a tal da nota lá [a que a letra se refere] a que a gente chega…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Rio eu te amo
Gilberto Gil
e associar a isto a minha dor
de onde quer que eu esteja, qual seja
longe ou perto o lugar
de pedra sobre a pedra ele luar
esta paisagem bela toda cor
da tela que tanto pintor pintou
basta avistar o Cristo e a isto
poder associar
amor e dor e amar e amar
Rio Rio Rio choro e rio rio e choro
Rio Rio Rio rio e choro choro e rio
Acompanhar-te os passos da paixão
tem sido em parte a arte da nação
tantos poetas tantos cantores traçando teus perfis
e olhos do mundo inteiro pro teu nariz
ontem nos deste um jeito de dançar
hoje eu trago no peito o teu penar
eta cidade imensa quem pensa poder te entender
x’que entenda e venha me dizer
Rio Rio Rio choro e rio rio e choro
Rio Rio Rio rio e choro choro e rio
Gravação
Gilberto Gil – Gilbertos samba (Ao Vivo), 2014 – Gege
Comentário*
Uma música que foi feita para um filme [homô- nimo] do Andrucha Waddington sobre o Rio de Janeiro. Daí a utilização do Cristo Redentor como símbolo da cidade, por sua presença, sua onipresença nela; sua capacidade de ser como um farol, que na verdade ele é, no topo de uma montanha irradiando a luz espiritual. Esse astral sobre toda a cidade. E aí, nessa luz simbólica se espalhando por ela, a própria ideia de redenção.
[Gil destaca o trecho da terceira estrofe, sobre a atração que a imagem do Cristo exerce no país e no mundo, bem como a influência da cidade na arte da nação inteira, como “um momento bem realizado da canção”, a que se refere como uma “oração”. E, desenvolvendo a ideia expressa no refrão, o jogo de sentidos complementares dos versos: “Ontem nos deste um jeito de dançar/ Hoje eu trago no peito o teu penar” — este, a exprimir “a ideia do Rio como um lugar dolorido, doloroso, em que veio se tornando cada vez mais”.]
O refrão salienta a contiguidade de rir e chorar, de felicidade e sofrimento. — Exatamente, fechando o sentido mais exigente da canção, que é esse. Rio, como substantivo e verbo no presente. O Rio em mim me faz rir e chorar, e eu traduzo o sentido de rir e chorar numa brincadeira com a palavra; muito comum, aliás, outros já a usaram com essa ambivalência. A canção é um lamento, é lamentosa. Uma prece com uma dor pungente.
Um samba interessante, meio bossa-novístico, mas também remetendo a modos mais antigos, tradicionais. Alguma coisa de Noel ali, uma fragrância. E o Rio [cantado desde “Aquele abraço”], uma vez mais entrando como tema inspirador.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Retrata
Gilberto Gil
“Brasil ano 2000”, vários, Universal
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
Retiros espirituais
Gilberto Gil
Descubro certas coisas tão normais
Como estar defronte de uma coisa e ficar
Horas a fio com ela
Bárbara, bela, tela de TV
Você há de achar gozado
Barbarela dita assim dessa maneira
Brincadeira sem nexo
Que gente maluca gosta de fazer
Eu diria mais, tudo não passa
Dos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo o que eu disse
Reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, ó
Luar tão cândido
Nos meus retiros espirituais
Descubro certas coisas anormais
Como alguns instantes vacilantes e só
Só com você e comigo
Pouco faltando, devendo chegar
Um momento novo
Vento devastando como um sonho
Sobre a destruição de tudo
Que gente maluca gosta de sonhar
Eu diria, sonhar com você jaz
Nos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo que eu disse
Reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, ó
Luar tão cândido
Nos meus retiros espirituais
Descubro certas coisas tão banais
Como ter problemas ser o mesmo que não
Resolver tê-los é ter
Resolver ignorá-los é ter
Você há de achar gozado
Ter que resolver de ambos os lados
De minha equação
Que gente maluca tem que resolver
Eu diria, o problema se reduz
Aos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo que eu disse
Reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, ó
Luar tão cândido
Gravações
Gilberto Gil – Refazenda, 1975 – Philips
Flavio Venturini – Songbook Gilberto Gil, Vol. 1, 1992 – Lumiar Discos sob licença da Sony Music
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases (Ao Vivo), 2018 – Gege
Comentário*
“Retiros espirituais” lança um olhar singelo, simplório, sobre a questão filosófica do ser e não ser; sobre o paradoxo do princípio da incerteza, do que é e não é. É uma das minhas músicas sobre o wu wei, a ação-não ação, a ideia de superação e alcance do ser, onde tudo é; sobre o fato de que o pensamento consciente, sob a égide da volição, ainda é o que se chamaria o estágio zen, o satori, o samadhi, o sat ananda indiano, onde arqueiro, arco e alvo se confundem e sujeito, ato e objeto são uma só coisa.
Talvez seja a minha obra-prima nesse sentido, porque a mais engenhosa do ponto de vista poemático; uma letra que transcende ao aspecto comum da letra de música, na verdade um poema musicado. No trato da sua criação, os versos não serviram apenas para preencher os vazios das caixas das frases sonoras. Quando eu sentei para escrever, já escrevi com o sentimento do poema, como se já houvesse algo sendo dito e o frasear fosse apenas uma explicação do que estava sendo dito. Como uma nuvem que fosse um poema cujos versos fossem a chuva: a chuva é depois da nuvem, dissolução em gotas, fragmentação do “denso-condenso” que é a nuvem: assim eram os versos em relação ao poema e vice-versa.
Eu estava sozinho na sala de jantar, uma hora da manhã, a família já recolhida, tendo ido dormir, após uma daquelas noites que eu tinha passado com todos sentado defronte da televisão vendo o jornal e a novela, e quis buscar e revelar através da escrita, numa espécie de poema-espírito, poema-situação, o que era estar ali diante do mistério da solidão, na meditação, no compartilhar do silêncio que substituía o ruído da vida, da casa, na madrugada, com a sua capacidade de assepsia, de filtragem do que tinha sido o dia. E a canção foi sendo feita, letra e música juntas.
É uma das músicas minhas que mais prezo, por ser das primeiras que dão uma radiografia da minha subjetividade e visceralidade interior, álmica. E é dividida em três partes para apresentar o movimento de tese-antítese-síntese de que gosto muito.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Retirante
Gilberto Gil
Eu tenho que voltar
Tenho que ver ainda o meu sertão
Que um dia eu deixei por lá
Eu tenho que voltar
Eu tenho que voltar
Pra ver se existe ainda
A esperança, ainda
Que eu deixei por lá
Eu tenho que voltar
Eu tenho que voltar
Tenho que ver se o tempo
Já mandou o mato verde
Que o sertão sempre esperou
Tanta esperança deram pro povo
Triste do meu sertão
Foi tanta oração, tanta procissão
Foi tanta gente pra dizer
Que dava de comer pro meu sertão
Mas eu não creio, não
Mas eu não creio, não
Do jeito que anda a vida
A esperança ainda de lutar se vê
Pro homem não morrer
Meu homem do sertão
[ inédita ]
Réquiem pra Mãe Menininha do Gantois
Gilberto Gil
Minha mãe se foi
Minha mãe se foi
Sem deixar de ser – ora, iêiê, ô
Dói
Minha alma ainda dói
Minha alma ainda dói
Sem deixar doer – ora, iêiê, ô
Foi
Tão boa pra nós
Tão boa pra nós
Não deixa de ser – ora, iêiê, ô
Mãe
Do orum, do céu
Do orum, do céu
Me ajuda a viver neste ilê aiê
Rara
Ouro
Guarda o tesouro pra nós
Riso
Puro
Porto Seguro pra nós
Vemos
Vivo
O brilho da tua luz
Iluminando nossos corações
Ouve nossa oração
Escuta a demanda de cada um
Manda teu doce axé
Recomenda ao santo o teu candomblé
Fala com cada um
Fala com cada um
Fala com cada filho fiel
Canta pra todos nós
Derrama sobre todos o teu mel
Foi
Minha mãe se foi
Minha mãe se foi
Sem deixar de ser a Rainha do Trono Dourado de Oxum
Sem deixar de ser
Mãe de cada um
Dos filhos pra quem eternamente sempre haverá
Mãe Menininha
Mãe Menininha
Mãe Menininha
Mãe Menininha
Mãe Menininha
Gravação
Gilberto Gil – O Eterno Deus Mu Dança, 1989 – Warner Music
Comentário*
A ideia de alguém que foi, tanto no sentido do verbo “ser” como do verbo “ir(-se)”; de alguém que foi, sem deixar de ser; alguém que foi, sem deixar de estar: a ideia da permanência, da herança, da memória, da sucessão, do eterno valor de alguém tão grande, tão significativo, tão importante para tanta gente; alguém que por força do próprio ofício teria que intuir, na dimensão da sua vida, a ideia do doar-se para o futuro; uma sacerdotisa que tinha que ser sucedida, depois do seu desaparecimento.
Ela havia morrido três anos antes da composição. Durante esse tempo eu não pensei em fazer-lhe uma canção. Foi de repente, em casa, de madrugada, no Rio, que isso aconteceu, e muito por causa da forma insinuada pelo violão que eu comecei a tocar; por causa do que musicalmente brotou. O arpejo, o riff insinuavam uma melancolia típica de um sentimento de ausência, de uma perda, lembrando formas musicais negras. Daí eu ter associado o que estava tocando à lembrança da Mãe Menininha. Além disso, a cadência, a sugestão de cantochão, alguma coisa acenava para uma identificação, uma aproximação com os réquiens clássicos, dos autores clássicos. Durante a composição, ia se engendrando a própria substancialização do tema, e eu fui achando que era um réquiem. E fui fazendo, letra e música juntamente, escrevendo e compondo.
É uma composição estranha, difícil, raríssima no modo de ocorrer, no meu caso: poucas vezes eu fiz composições como essa. É uma música à qual eu quero voltar para interpretar. Ela faz uma tal exigência quanto ao modo de tocar e cantar junto, que sua interpretação não é possível sem o violão, a não ser que alguém venha a propor uma outra versão orquestrada. Ela é orquestrada pelo arpejo, e eu não consigo vê-la com vida própria em outro contexto, respirando outra atmosfera de conceituação orquestral. É mesmo uma música muito própria.
Minha relação com Mãe Menininha era muito de amizade mesmo; visitei-a várias vezes, ela jogou [os búzios] para mim; eu estive com ela em particular e em muitas situações em grupo, com outras pessoas, nas festas em Gantois; durante anos eu tive aproximação com ela.
Na história do candomblé no Brasil ela é uma figura vultosa principalmente por dois fatores: por ela própria, por sua natureza, seu modo cativante, e pela projeção que o Gantois ganhou, não só por causa dela, mas também pela localização, pelo fato de ter se tornado um terreiro dos mais centrais da cidade de Salvador; um terreiro que acabou envolvido por toda uma população de classe média no entorno. A territorialidade teve uma função importante na emergência do Gantois — tudo isso, evidentemente, propiciado por uma personalidade extraordinária como a dela. As duas coisas andaram juntas.
Ela já tinha ganhado uma canção — de loa, de louvação — de Caymmi, em vida. Aí, teve de mim uma canção de réquiem.
“Foi/ minha mãe se foi/ […] Sem deixar de ser”: para exprimir a eternização dela, a permanência dela na memória afetiva e na própria memória institucional da casa do Gantois, ela entre tantas da linha de sucessão, da dinastia, digamos assim, do reino; ela como rainha — pelo traço dinástico da função e do papel que ela teve, e da estatura que ela adquiriu.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Sábio sabiá
Gilberto Gil
Eu sou sábio, sim
Eu sou sábio, sim, senhor
Meu pai é quem sabe
Eu sou sabiú
Pra poder ser sabiá
Eu sou sabiá
Minha mãe que tratou de me ensinar
Quem tratou de ensinar a ela foi Lidu
Minha avó, eu menino, agora Ituaçu
Eu me lembro
Eu sou sábio
Eu sou sábio, sim
Eu sou sábio, sim, senhor
Meu pai é quem sabe
Réquiem
Gilberto Gil
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Não tenho medo da morte
Gilberto Gil
mas sim medo de morrer
qual seria a diferença
você há de perguntar
é que a morte já é depois
que eu deixar de respirar
morrer ainda é aqui
na vida, no sol, no ar
ainda pode haver dor
ou vontade de mijar
A morte já é depois
já não haverá ninguém
como eu aqui agora
pensando sobre o além
já não haverá o além
o além já será então
não terei pé nem cabeça
nem fígado, nem pulmão
como poderei ter medo
se não terei coração?
Não tenho medo da morte
mas medo de morrer, sim
a morte é depois de mim
mas quem vai morrer sou eu
o derradeiro ato meu
e eu terei de estar presente
assim como um presidente
dando posse ao sucessor
terei que morrer vivendo
sabendo que já me vou
Então nesse instante sim
sofrerei quem sabe um choque
um piripaque, ou um baque
um calafrio ou um toque
coisas naturais da vida
como comer, caminhar
morrer de morte matada
morrer de morte morrida
quem sabe eu sinta saudade
como em qualquer despedida.
Gravação
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Gege
Gilberto Gil – Concerto de cordas e Máquinas de ritmo (Ao vivo), 2012 – Biscoito Fino
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Dois Amigos, Um Século de Música (Ao vivo), 2015 – Gege e Uns Produções
Gilberto Gil – Em casa com os Gils, 2022 – Gege
Comentário*
Eu estava em Sevilha com Antônio Damásio e com John Perry Barlow, o grande estudioso da questão do ciberespaço. Estávamos todos em reuniões, numa espécie de simpósio, de congresso que estava ocorrendo lá sobre internet e todas as questões novas suscitadas pelo ciberespaço. Num dia daqueles, depois dos encontros que tivemos pela manhã e pela tarde, fomos pro hotel eu e Flora, e Flora foi dormir, se recolheu, e eu não; por alguma razão não quis me deitar e fiquei na mesinha da sala onde estavam meus papéis e livros. E aí me veio essa história, de não ter medo da morte — ao tê-lo.
Diferenciando a morte do morrer. — Morrer como ato e a morte como um destino. Daí escrevi um poema inteiro. Veio em mais ou menos uma hora, uma hora e pouco. Fui me deitar e dormir um pouquinho depois. Quando eu cheguei de volta ao Brasil, disse ao Bem, meu filho: “Olha, escrevi uma coisa na Espanha quando eu estava com uns colegas discutindo temáticas contemporâneas e internacionais; me ocorreu esse poema”. Eu somente tinha escrito os versos então.
A tão popular medida das redondilhas maiores… Em quatro estrofes de dez versos… — Tão popular, tão clássica. “Vamos fazer um ritmo pra eu recitar esse poema”, eu disse ao Bem. E aí ele escreveu. Eu recitei o poema pra ele, e em cima daquele ritmo sintetizado, feito com máquina, eu comecei um fio melódico e fui levando adiante a composição toda, o canto todo dela, sobre a cama, o ritmo que o Bem tinha construído.
A canção é provocativa. São autoprovocações feitas em relação a mim mesmo. Desafios à minha condição humana e à minha — à nossa — condição extra ou transumana ou para-humana. É um dos temas também recorrentes no meu trabalho.
Já no seu álbum de 1969 (Gilberto Gil ), com canções compostas na prisão, duas faixas se referem a morte, a que abre e a que fecha o disco: “Cérebro eletrônico” e “Objeto semi-identificado” (com Rogério Duarte), respectivamente. Três anos antes você havia composto “Amor até o fim”, referindo-se de forma indireta ao assunto, e dois anos depois faria uma canção intitulada, afinal de contas, “A morte”. Enfim, é um tema que você encara há muito tempo. — Ah sim, sempre, desde a infância, com a perda permanente de pessoas; pessoas e animais que nasciam, morriam, nasciam, morriam. Nasciam, cresciam, morriam. Então não teve jeito. “A morte faz parte da vida,/E se vale a pena viver,/Então morrer vale a pena” [“Então vale a pena”, que é outra canção a respeito do tema; de 1978]. Porque, mesmo não sendo muito tematizado, trata-se de algo que encaramos o tempo todo. Eu e outras poesias, do Augusto dos Anjos, é isso o tempo todo: um jorro desse questionamento. A materialidade humana na incorporação de corpos materiais e a sua inutilidade final: não serve pra nada; só serve para o humano propriamente; não serve para a coisa das destinações, do “existirmos: a que será que se destina?”, da “Cajuína” do Caetano. Quer dizer: é um tema que todos nós encaramos. São bichinhos que nos fustigam a interioridade o tempo todo. Alguns com atitudes receosas, querendo se afastar, não querem levar essa conversa avante. Outros, pelo contrário, querem especular sobre isso. Eu sou um especulador. Eu gosto, tenho vários momentos de especulação sobre a questão.
Isso tem a ver com a sua religiosidade, com o aspecto religioso da sua personalidade, do homem que você é. — Religioso filosófico, eu diria. Filosofal, filosofante.
De todo modo, é um tema que a gente pode chamar de difícil. Pelo menos para o ocidental o é. Consequentemente vai ser um tema difícil de abordar também em arte, por um artista, tanto que são poucos os compositores como você que se dedicam a encará-lo. Nelson Cavaquinho fala de morte: às vezes o samba é sobre a Mangueira, e de repente no meio incide a ideia da morte. — Exato. E, associada a “Não tenho medo da morte”, tem “Se eu quiser falar com Deus”, que eu fiz para o Roberto Carlos e que apresenta uma excelência de filtragem dessa questão nos versos, no modo como eles decorrem e as palavras vão se associando, as rimas se conectando. Eu acho uma bela canção.
Ambas constituem daqueles pontos altos, luminosos, da arte da canção popular. A realização delas é determinante nisso, tendo a ver com o desenvolvimento do tema, do pensamento, da reflexão em cima do tema, e de como tudo se arredonda. — É a tarefa do escultor. Seu cinzel. Como é que o pintor ou o literato, o romancista ou o filósofo, o poeta também, vai quebrando a pedra pra dar forma à arte. Eu tenho essa verve, sou um poeta de formação basicamente simplista. Um descendente dos Gonçalves Dias, dos Olavos Bilacs, e só meio forçado pela vida, pelos encontros, é que eu amplio o meu leque de interesses sobre a poesia para fronteiras mais amplas. Mas basicamente eu sou um menino criado com poesia convencional, clássica, das lidas ginasianas, e a grande poesia popular nordestina, e que a partir dos instrumentais oferecidos por esses campos simples, que eu chamo de informação simplista, vai abordar coisas difíceis, digamos assim, entre aspas, “profundas”. E aí, do ponto de vista formal, eu vou ter meus flertes com poesia moderna, poesia concreta, com isso, com aquilo, com aquilo outro…
A letra de “Domingo no parque” já apresenta uma novidade no aspecto formal, que não guarda muita relação com o tipo de poesia mais tradicional, a que você se refere como parte importante da sua formação. Há nela uns procedimentos, como certas repetições vocabulares, que fazem pensar em cinema. Ali já é você aspirando a — e expressando — algo novo, apreendendo novidades do mundo da arte que estava em evolução. — Poéticas de várias origens, advindas de vários campos de percepção, de observação da expressividade, sobre a expressividade. Como expressar esse olhar circulante sobre as coisas todas? Assim, evidentemente, logo cedo, muito cedo, menino ainda, eu me interessei por música, e isso deu na poesia, deu na literatura, veio dar nesses outros atratores. Fui atraído por outros campos de expressividade e juntando fragmentos de tudo isso no meu trabalho, na minha lavra. Que é, ainda assim, eu diria, em última análise, uma lavra simplista, simplificadora.
Condizente com a arte popular… — Com esse desejo da comunicação popular; da música popular brasileira. É isso. Então tem a aderência a esse campo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Rep
Gilberto Gil
Mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O que não sabe, o que não saberia
O que não saboreia porque é só visão
E tão somente cores, a cor do veludo
Ludo, luz, brinquedo, ledo engano, tele
Teletecido à prova de tesoura
Que não corta, não costura, que não veste
Que resiste ao teste da pele, não rasga
Nunca sai da tela, nunca chega à sala
Que é pura fala, que é beleza pura
É a pura privação de outros sentidos tais
Como o olfato, o tato e seus outros sabores
Não apenas cores, mas saliva e sal
Veludo em carne viva, nutritiva
Não apenas realidade virtual
Veludo humano, pano em carne viva
Menos realce, mais vida real
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O que não sabe, o que não saberia
Porque morreria sem poder provar
Como provar a pilha com a ponta da língua
Receber o choque elétrico e saber
Poder matar a fome é pra quem come, é claro
Não apenas pra quem vê comer
Assim feito a criança pobre esfarrapada
Come feijoada que vê na TV
Essa criança quer o que não come
Quer o que não sabe, quer poder viver
Assim como viveu um Galileu, um Newton
E outros tantos muitos pais do amanhã
Esses que provam que a Terra é redonda
E a gravidade é a simples queda da maçã
Que dão ao povo os frutos da ciência
Sabores sem os quais a vida é vã
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
Gravação
Gilberto Gil – O Sol de Oslo, 1998 – Pau Brasil
Comentário*
Compus essa música num quarto de hotel em Turim, na Itália, onde eu estava de passagem. Eu tinha aceitado fazer parte do projeto do Rodolfo Stroeter com a Marlui Miranda — o projeto especial de um disco com a visão de um conjunto de músicos que se reuniriam para trabalhar elementos especiais das suas formações artísticas, um disco em que iam aparecer coisas diferentes das que comumente aparecem nos nossos discos de carreira.
Então, o repertório foi pintando com essa tônica de excepcionalidade, de lateralidade, de marginalidade, à margem do nosso trabalho regular; sem a perspectiva do mercado, sem os hábitos de realização do trabalho serem particularmente informados pelas questões colocadas por um mercado — como lidar com ele, o que ele quer, o que ele absorve, o que ele rejeita: o metabolismo mercadológico; sem levar em conta os seus atributos. Consequentemente, as canções foram aparecendo muito livres, muito soltas, resultantes de pequenos delírios de cada um ou de dois ou três de nós, quando nos juntávamos para fazer o trabalho.
“Rep” é assim, a começar pelo título, uma brincadeira com “rap” e com “repente”, uma forma nordestina de traço ibérico, provavelmente de origem medieval, remontando aos cantadores medievais, um universo que teve uma acolhida muito especial no Nordeste do Brasil, no mundo armonial de Ariano Suassuna e de Antonio Nóbrega, e no trabalho extraordinário dos cantadores nordestinos, criados em escolas e escolas e escolas que foram se desdobrando ao longo da história, nesses duzentos anos em que essa tradição existe no país.
“Rep” tem um refrão que é um dos dísticos mais bem construídos da minha história de compositor, e que na verdade foi uma frase do meu discurso de posse na presidência da Fundação Gregório de Matos, em Salvador, em 1987. O meu discurso começava justamente assim: “O povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”. Eu não tinha me esquecido dele, e finalmente o usei numa letra.
A canção vai tecendo e desatando uma série de pensamentos poéticos sobre a predominância do olhar como sentido pós-moderno; sobre uma hegemonia, uma tirania mesmo, exercida pelo olhar sobre os outros sentidos, sobre os subsentidos interiores; sobre o quase bloqueio que o olhar determina na manifestação dos hipos- sentidos, dos subsentidos, dos sentidos mais sutis, interiores; enfim, sobre a dominação do olhar, da qual o audiovisual moderno é um dos maiores símbolos, e a televisão, talvez o maior dentre eles todos. “Rep” é sobre isso.
Trata-se de uma peça interessante, difícil de cantar. Poética. E do ponto de vista do próprio rap, a composição apresenta interesse particular, por ter uma cadência ternária, algo raro no gênero, já que os raps são em geral basicamente binários e quaternários, múltiplos de dois, no mundo inteiro. Isso lhe dá um caráter estranho como forma rítmica.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Relógio do tempo
Gilberto Gil
“Brasil ano 2000”, vários, Universal
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
Não grude não
Gilberto Gil
Não grude não não grude
Não grude não, oxente, onde já se viu!
Não grude não, não grude
Não grude não, não grude
Não grude não, o disgrama, quiuspariu!
Não grude não, não grude
Não grude não, não grude
Não grude não, afasta, vai, sai pra lá!
Não grude não, não grude
Não grude não, não grude
Não grude não, basta, deixa eu respirar.
Não quero evitar você
Mas jurar amor não vou
Iaiá, o açude secou
Me ajude a me escafeder
Quem se escafede não fede
Quem se escafede não mede
Da liberdade não cede nem um tantim
Numa cidade, sodade
Noutra cidade, sodade
Quem se escafede se antecede ao fim do fim.
Não grude não, não grude
Não grude não, não grude
Não grude não, carrapicho de jardim!
Não grude não, não grude
Não grude não, não grude
Não grude não, carrapato, chato, assim!
Não grude não, não grude
Não grude não, não grude
Não grude não, faz um, faz um favozim!
Não grude não, não grude
Não grude não, não grude
Não grude não, alô, já vou, atchim!!!
Gravação
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Gege
Comentário*
“Não grude não” e “O oco do mundo” fizeram parte da trilha de O homem que desafiou o diabo, de Moacyr Góes, tendo sido criadas para o filme. E “não grude não” era o bordão que o personagem principal, Ojuara, feito pelo Marcos Palmeira, usava para dispensar abraços dos novos amigos e dos inimigos reconciliados. — Exatamente. Isso se encaixava bem num perfil de composição de que eu gosto e que me acompanha desde o início, que é a coisa de jingle. Tratar de personagens ou comentar sobre objetos e sobre personagens; traçar pequenos comentários a respeito das existências das coisas, do significado da existência delas. É um trabalho que tem sido ao longo da minha vida facilitado pelo gosto que eu tenho por retratar coisas. “Não grude não” é um xaxado nordestino, muito tributário da verve nordestina, na linguagem que é típica do versejar nordestino, porque o personagem estava ligado ao Nordeste.
No meio tem um verso que diz: “Quem se escafede se antecede ao fim do fim”. Não é só ao fim. É ao fim do fim. — A incorporação da ideia de transcendência. O mundo poético, o mundo do imaginário, diz respeito a esse gosto, essa necessidade, essa premência do transcender: do atingimento da dimensão transcendental pra lá de tudo, pra lá de vida ou morte, pra lá de começo e fim, pra lá… Essa ideia que povoa muitos aspectos das religiosidades e das filosofias e que também é um dos traços básicos das minhas canções. Em toda canção minha tem um pezinho nessa coisa; tem um jeitinho que eu dou sempre de colocar essas questões. Numa frase ou outra, num lugar ou outro, tem sempre um “tempo rei”… E nessa canção é justamente nesse verso. — É. Quem se escafede está investindo na liberdade, na libertação. E, portanto, quando se fala em última análise de libertação, se fala disso — de transcender. Libertar-se de tudo que é circunstancial humano. E “escafeder” é uma expressão nordestiníssima, né?
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Rei do maracatu
Gilberto Gil
Jorge Ben Jor
Pulou pra qui pulou pra lá
Mas não pediu licença pra sambar
Coitado do nego, o nego vai apanhar
Mas nego não precisa de licença
Pois nego é nego tu
O nego não vai apanhar
Pois nego é rei, rei, rei
É rei do maracatu
Toda vida trabalhando, se virando
E o capitão da mata procurando
Um jeito de evitar que o nego
Bote pra quebrar
Pois ele é nego tu
Pois ele é rei, rei, rei
É rei do maracatu
Gravação
Cyro Aguiar – Anticonvencional, 1970 – Continental
Não chore mais
Gilberto Gil
Da gente sentado ali
Na grama do aterro, sob o sol
Ob-observando hipócritas
Disfarçados, rodando ao redor
Amigos presos
Amigos sumindo assim
Pra nunca mais
Tais recordações
Retratos do mal em si
Melhor é deixar prá trás
Não, não chore mais
Não, não chore mais
Bem que eu me lembro
Da gente sentado ali
Na grama do aterro, sob o céu
Ob-observando estrelas
Junto à fogueirinha de papel
Quentar o frio
Requentar o pão
E comer com você
Os pés, de manhã, pisar o chão
Eu sei a barra de viver
Mas se Deus quiser
Tudo, tudo, tudo vai dar pé
Tudo, tudo, tudo vai dar pé
Tudo, tudo, tudo vai dar pé
Tudo, tudo, tudo vai dar pé
Não, não chore mais
Não, não chore mais
Gravações
Gilberto Gil – Realce, 1979 – Warner Music
Sandra de Sá – Um barzinho, um violão (Ao vivo no Rio de Janeiro, Vol. 1), 2001 – Universal Music
Gilberto Gil – Kaya N’Gan Daya, 2002 – Warner Music
Daniela Mercury – Balé Mulato (Ao vivo), 2006 – Páginas do mar
Natiruts – Natiruts Reggae Brasil (Ao vivo), 2016 – Zeropontodois Entretenimento Ltda. sob licença da Sony Music
Rodrigo Santos – A festa rock, Vol. 1, 2018 – Mins Música
Comentário*
Eu pensava na transposição de uma cena jamaicana para uma cena brasileira o mais similar possível nos aspectos físico, urbano e cultural. Emblemática do desejo de autonomia e originalidade das comunidades alternativas, “No Woman, No Cry” retratava o convívio diário de rastafáris no government yard (área governamental) em Trenchtown, e a perseguição policial, provavelmente ligada à questão da droga (maconha), que eles sofriam. Essa situação eu quis transportar para o parque do Aterro, no Rio de Janeiro, também um parque público, onde localizei policiais em vigília e hippies em rodinhas, tocando violão e puxando fumo, como eu costumava vê-los de noite na cidade. Coincidindo com o momento em que a abertura política estava começando, “Não chore mais” acabou por se referir a todo um período de repressão no Brasil.
“Não chore mais”. — Minha tradução para o refrão-nome foi uma escolha arbitrária, porque eu nunca entendi direito o que os autores queriam dizer com o proverbial “no woman, no cry”. Até procurei, mas não tive meios de saber. Alguns me disseram que a expressão significa “nenhuma mulher, nenhum problema”; eu pensei em “nenhuma mulher, nenhum choro”, um adágio local talvez. E também numa possível forma em inglês dialetado para o correto “no, woman, don’t cry”.
Optei por algo próximo disso inclusive porque, assim, eu me aproximava mais do sentido dos outros versos da música, uma espécie de lamento pela perda dos amigos e pela presença perturbadora da repressão que, na versão pelo menos, adquire um ar de canção de despedida, com o homem dizendo à mulher que está indo embora, mas que isso não é o fim do mundo, e que é pra ela se lembrar do tempo dos dois juntos etc. Uma instauração de um espaço afetivo que eu até hoje não sei se o original contém.
“Amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais”. — Eu não pensava em ninguém especificamente; a tradução vinha diretamente dos versos em inglês, com o detalhe do uso do termo “presos” — surgido naturalmente com a lembrança do modo de atuar da repressão, através das prisões, torturas e mortes de pessoas.
“Melhor é deixar pra trás”. — Há uma certa licenciosidade interpretativa aí. “You can’t forget your past” (“Você não pode esquecer o seu passado”), diz o original. Me referindo ao período que estava terminando no Brasil, eu digo: “Vamos passar a borracha nisso tudo. O passado tem um débito conosco, mas vamos dar um crédito ao futuro”. Uma posição típica da minha ideologia interna, do meu otimismo, do meu gosto pela conciliação, do traço tolerante da minha personalidade.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Regina de janeiro, fevereiro e março
Gilberto Gil
Arlindo Cruz
É tão gente fina que sabe chegar
Em qualquer esquina
Lá na cobertura, na laje ela está
É quem domina.
Porque tem a sina de ser popular… alô
Alôôôô rainha
Se vai ter churrasco, feijão, vatapá
Vai pra cozinha.
Tem coisa gostosa de todo lugar
Traz a farinha!
O camarão seco, o jambu eo fubá
E faaaaaaz verão
E hoje é domingo
Dia que o povão… agita!
Se liga, se encontra, faz conexão, twita
Ou pra se dar bem,
Ou pra botar alguém na fita.
Bateria arrebenta, todo mundo comenta,
Que feito pimenta, o programa domingo esquenta.
Regina de janeiro, fevereiro e março…
Alô, alô…
Gravação
Gilberto Gil e Arlindo Cruz – tema de abertura do programa Esquenta, apresentado por Regina Casé, da Rede Globo (2011)
Comentário*
[A canção foi uma homenagem à atriz e apresentadora Regina Casé, fazendo referência ao seu programa dominical na Globo, na época. O título, “Regina de janeiro, fevereiro e março”, uma paráfrase de um verso de “Aquele abraço”, de Gil, chegou a ser cogitado para nome do programa, que acabou se chamando Esquenta. Embora conste como sendo uma parceria com Arlindo Cruz, Gil não se lembra de ter participado efetivamente da composição, nem sabia que figurava como coautor.]
“É tudo dele, do Arlindo. Eles só usaram ‘Aquele abraço’.”
Aí lhe deram parceria. — Foi. Acho que sim.
Pode ter sido por isso então: “Regina de janeiro, fevereiro e março! Alô, alô!” “Vamos dar parceria ao Gil”. — Eu me lembro que me chamaram pra fazer, mas aí veio tudo feito; então, eu não tive o que fazer.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Namba, a gangamorada
Gilberto Gil
Olha nos olhos
Namba deita pa Ganga
Beija na boca
Namba deita pa Ganga
Pernas pros ares
Iaiá Namba é pa Ganga
Linda morada
Namorada de Ganga
Nambamorada
Nambamorada de Ganga
Nambamorada
[ inédita – para o filme Quilombo ]
Na Real
Gilberto Gil
Nada é real, você é
Nada é igual, você é
Nada é normal, você é, você é
Dito assim, você, você e mais você
Parece que eu não sei o que é o amor
Amor por tudo e todos, luz do bom viver
Que a palavra de Deus nos ensinou
Sendo assim, você, você e mais você
É como se eu não pudesse enxergar
As gotas de orvalho soltas sobre a flor
As gaivotas soltas sobre o mar
É que você, você, você e só você
É mais que o necessário para abrir
O armário cheio de ilusões dentro de mim
Para que tudo ali possa caber
Sendo assim, real, real é só você
De quem disponho além de um sonho em vão
Que nada em nada iguala, em nada o seu poder
De me fazer mais normal, puro e são
Gravação
Gilberto Gil – Ok Ok Ok, 2018 – Gege
Comentário*
Mais uma para a coleção de canções para a Flora, para a mulher. — O reconhecimento da companheira como símbolo de todo o humano, de toda a humanidade. A união, a unidade provocada pelo casamento exige que em sua redução seja todo o amor representado.
Sobre as primeiras estrofes. — Nada é real, só você é real: parece uma rejeição a todo o sentido amplo, universal, impessoal do amor. Porque como uma personalização absoluta do amor pode significar exatamente o extremo absolutamente impessoal desse mesmo amor? É que ali pode estar concentrado todo o amor por uma humanidade. É isso que dá sentido ao casamento. Por que ser casado? Por que continuar casado? Por que ser um casal? Por que ser um par? Por que ser uma coisa dois em um, um em dois? Aí vem a questão do Tao de novo. O Tao dá o um, o um dá o dois e o três dá tudo. De novo, a ideia que é o cerne da minha poética. Essa canção insiste nisso até ao fazer a apologia do amor a dois.
Não se trata evidentemente de uma canção de amor comum, porque ela tem um significado complexo pra uma canção de amor. A despeito da ênfase na grande importância do amor de dois, ele não implica um não amor por tudo e por todos.
— Pelo contrário. Só porque é um, é todos. Só porque é para um e de um, é de todos e para todos. A exigência da personificação: a pessoa personifica todas as pessoas. Nisso está embutida a ideia da paz também. A relação que pacifica todas as outras.
Não significando também que o amante não veja a beleza de outras coisas como o orvalho, as gaivotas… — “É como se eu não pudesse enxergar/ As gotas de orvalho soltar sobre a flor/ As gaivotas soltas sobre o mar”: é como se, mas não é.
Do final. — “Sendo assim real, real é só você”, quer dizer: real é o que está aqui, aquela que está ao meu lado. “De quem disponho além de um sonho em vão”: a disposição permanente, o encontro reiterado, inevitável, indissolúvel. “Que nada em nada iguale em nada o seu poder/ De me fazer mais normal, puro e são”: a ideia da sustentação da saúde; de eu envelhecer e ela ser o meu amparo. Nossa senhora do amparo. Minha senhora do amparo.
A canção apresenta interesse também por se tratar de um discurso do homem reconhecendo na mulher o poder de lhe proporcionar a normalidade e a lucidez. — A saúde e a sanidade. É isso o que a canção queria e é o que ela pôde fazer.
Um funk romântico suave de sabor retrô, por remeter no arranjo às ondas de metais dos anos de Earth, Wind & Fire? — Não só no arranjo: na composição mesmo; na melodia.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Refestança
Gilberto Gil
Rita Lee
Quem pode dançar
Refestança, canta, canta, canta, canta
Quem pode cantar
Na hora, aqui agora, quando a banda tocar
Senhoras e senhores, crianças, vamos voar
Voar, voar, podem desatar os cintos de segurança
Que a esperança é vontade
Que a bonança é verdade
Que a verdade é amar
Refestança, dança, dança, dança, dança
Quem pode dançar
Refestança, canta, canta, canta, canta
Quem pode cantar
Só não pode quem não quiser
Ver que o céu da terra é azul
Ver que o verde é verde
Que a vida viaja
E com a vida a gente vai, vai, vai, vai
Refestança, dança, dança, dança, dança
Quem pode dançar
Refestança, canta, canta, canta, canta
Quem pode cantar
Gravação
Gilberto Gil e Rita Lee – Refestança (Ao Vivo), 1977 – Som Livre
Comentário*
Essa é consequência da ideia que surgiu de um trabalho conjunto com a Rita Lee. Ela adora “Refazenda”, que ela reputa como uma das músicas mais interessantes minhas e de todas que ela conheceu; é completamente fã da Refazenda; então eu fiz homenageá-la com “Refestança”. Nós estávamos nos juntando pra fazer uma festa, uma celebração rock ‘n’ rollesca.
O termo, o sentido da “festa” estava no ar, na onda, na moda.
— E era bem o significado mesmo do nosso encontro. Fazer uma festa com as nossas tribos, que estavam então associadas, ligadas. Ela era mutante, tinha sido mutante, era egressa de um contexto próximo ao Tropicalismo. Era companheira de estrada. Estava co meçando a carreira solo. Aí, pronto, nos juntamos pra fazer “Refestança”. “Refestança dança, dança…” Eu me lembro de ter feito sozinho a letra, mas pode ter tido sim, aqui, ali, a participação dela. E o sentido era mesmo de fazer o trabalho conjunto. Bem natural que tenha sido uma parceria.
A canção tem algum ponto de contato, em termos de atmosfera, com “Ê, povo, ê”, porque fala: “Senhoras e senhores, crianças, vamos voar/Voar, voar” etc. — É que ela versa sobre bem viver, bem-estar. Pertence a esse conjunto sígnico.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Refazenda
Gilberto Gil
Acataremos teu ato
Nós também somos do mato
Como o pato e o leão
Aguardaremos
Brincaremos no regato
Até que nos tragam frutos
Teu amor, teu coração
Abacateiro
Teu recolhimento é justamente
O significado
Da palavra temporão
Enquanto o tempo
Não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate
E anoitecerá mamão
Abacateiro
Sabes ao que estou me referindo
Porque todo tamarindo tem
O seu agosto azedo
Cedo, antes que o janeiro
Doce manga venha ser também
Abacateiro
Serás meu parceiro solitário
Nesse itinerário
Da leveza pelo ar
Abacateiro
Saiba que na refazenda
Tu me ensina a fazer renda
Que eu te ensino a namorar
Refazendo tudo
Refazenda
Refazenda toda
Guariroba
Gravações
Gilberto Gil – Refazenda, 1975 – Philips
Os Paralamas do Sucesso – Songbook Gilberto Gil, Vol. 2, 1992 – Lumiar Discos
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Gilberto Gil – São João (Ao vivo), 2001 – Warner Music
Nação Zumbi – Radiola NZ, Vol. 1, 2017 – Babel Produções Artísticas Ltda.
Gilberto Gil e Flor Gil – Gil & Flor – de Avô para Neta, 2020 – Gege
Flor Gil – Refazenda (single), 2020 – Gege
Trio Nordestino – Canta Gilberto Gil, 2020 – Biscoito Fino
Comentário*
“Refazenda” resultou de uma justaposição de nonsenses. Começou com um brainstorm com sons: fui aleatoriamente escolhendo palavras que rimassem e cheguei a um embrião interessante — um desses troncos de árvores tronchas sobre os quais o cinzel dos artistas populares vai trabalhar para fazer esculturas loucas, à la Antônio Conselheiro, do Mário Cravo, nascida de um tronco com dois galhos de braços abertos. O esboço era maior e muito mais absurdo: não tinha sentido nenhum! Aos poucos fui criando sentidos parciais a certas frases, até desejar um sentido geral para todas.
Os versos foram feitos antes da música, obedecendo a um ritmo que eu tinha na cabeça. Para o primeiro, escolhi o alexandrino, um dos preferenciais do cantador nordestino, pois queria a priori uma canção com esse direcionamento country. [Na transcrição, acabamos optando por dividir o alexandrino, a que Gil se refere, em dois versos, sendo o segundo uma redondilha maior, também de largo uso nos gêneros de canção do Nordeste e na poesia popular da região.]
“Abacateiro, acataremos teu ato”. — Na época pensaram que eu me referia à ditadura militar (o verde da farda) e ao ato institucional, o que nem me passou pela cabeça. O que me veio mesmo foi a natureza em seu contexto doméstico, amansada, a serviço da fruição — daí a ideia de pomar e das estações. “Refazenda” é rememoração do interior, do convívio com a natureza; reiteração do diálogo com ela e do aprendizado do seu ritmo.
Linguagem transgressiva. — O período em que compus a canção é permeado pelo nonsense ou o que o tangenciasse; por um despudor audacioso de brincar com as palavras e as coisas; por um grau de permissibilidade, de descontração, de gosto pela transgressão do gosto. É uma fase muito ligada aos estados transformados de consciência, pelas drogas, e a consequente multiplicidade de sentidos e não sentidos.
Guariroba. — Nome de uma palmeira do Planalto Central, a palavra dava nome também a uma fazenda que um grupo de amigos (Roberto Pinho, Pontual e outros) tinha a uns cem quilômetros de Brasília. Chegou-se a pensar em criar lá uma comunidade alternativa, onde nos juntássemos todos com nossas famílias. Não deu certo, e a fazenda foi vendida.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Na imaginação
Gilberto Gil
Na imaginação
Eu já sei
Falta ao meu coração
Ser o rei
Ser o rei e ordenar
O prazer
Da emoção de amar
E viver
Cada respiração
Como for
Como for cada vez
A paixão
Cantar cada canção
Como for
Como for cada vez
Todo amor
© Gege Edições Musicais
Gravação
Guadalupe – Guadalupe, 1979 – CBS
Refavela
Gilberto Gil
A refavela
Revela aquela
Que desce o morro e vem transar
O ambiente
Efervescente
De uma cidade a cintilar
A refavela
Revela o salto
Que o preto pobre tenta dar
Quando se arranca
Do seu barraco
Prum bloco do BNH
A refavela, a refavela, ó
Como é tão bela, como é tão bela, ó
A refavela
Revela a escola
De samba paradoxal
Brasileirinho
Pelo sotaque
Mas de língua internacional
A refavela
Revela o passo
Com que caminha a geração
Do black jovem
Do black-Rio
Da nova dança no salão
Iaiá, kiriê, kiriê, iáiá
A refavela
Revela o choque
Entre a favela-inferno e o céu
Baby-blue-rock
Sobre a cabeça
De um povo-chocolate-e-mel
A refavela
Revela o sonho
De minha alma, meu coração
De minha gente
Minha semente
Preta Maria, Zé, João
A refavela, a refavela, ó
Como é tão bela, como é tão bela, ó
A refavela
Alegoria
Elegia, alegria e dor
Rico brinquedo
De samba-enredo
Sobre medo, segredo e amor
A refavela
Batuque puro
De samba duro de marfim
Marfim da costa
De uma Nigéria
Miséria, roupa de cetim
Iaiá, kiriê, kiriê, iáiá
Gravações
Gilberto Gil – Refavela, 1977 – Philips
Gilberto Gil – Quanta Gente Veio Ver (Ao Vivo), 1998 – Warner Music
Gilberto Gil – Bandadois (Ao Vivo), 2009 – Gege
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases (Ao Vivo), 2018 – Gege
Comentário*
Em 77, eu fui participar do Festac, festival de arte e cultura negra, em Lagos, na Nigéria, onde reencontrei uma paisagem suburbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas.
Para abrigar os 50 mil negros do mundo inteiro que para lá acorreram, tinha sido construída uma espécie de vila olímpica com pequenas casas feitas com material barato e um precário abastecimento de água e luz, que reavivou em mim a imagem física do grande conjunto habitacional pobre. “Refavela” foi estimulada por esse reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já houvesse o compromisso conceitual com o re para prefixar o título do novo trabalho, de motivação urbana, em contraposição a Refazenda, o anterior, de inspiração rural.
A esses fatores se somaram outros, locais: a mobilidade, por vezes difícil, outras vezes facilitada, dos negros cariocas na relação morro- -asfalto e o movimento da juventude black Rio, que se instalava propondo novos estilos de participação na questão da negritude no Brasil e no mundo, com mais atividade cultural e absorção de elementos do discurso e da luta negra da América e da África.
A dificuldade com que a história tem se defrontado para proporcionar o verdadeiro resgate da cultura e da natureza dos negros, exatamente pela manutenção reiterada da sua condição paupérrima; a coisa da “miséria roupa de cetim”, da “Belíndia” (Bélgica + Índia), esse binômio de disparidades — “Refavela” é sobre isso. A informação forte da música está nas duas primeiras estrofes; perto delas, o resto é ornamento.
“Preta Maria, Zé, João”. — “Preta Maria”: Preta Maria e Maria, as minhas filhas e da Sandra (Preta é de 74, Maria, de 76; era pequenininha na época). A música “antevê” José, meu filho, que nasceria em 91, e João, meu neto, em 90; “Zé, João”: brasileiros.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Refarm
Gilberto Gil
The Eternal Life is sending me
On the task of speaking to you
Words of paciency
I bring the lion
And the duck as country fellows
May they tell you many fairy tales
Avocato tree
Oh, avocato tree
The Eternal Life is knowing
How misleading technology
Has been to us, so far
We can see
Devastation in the forest
Desolation in the city
We can feel destruction in the air
Oh, avocato tree
Although the picture is so dark
And the blue sky is no longer blue
Oh, don’t be sad, and never
Let the dead leaves of Automn time
Be the only choice for you
Spring is coming
Somewhere in the future
In the Universal Vegetal Union
Avocato tree
Let our free wings
Fly together over lands
Of Rebirth in a Refarm
In a world of Fantasy
Refarm is a dream land
In Tennessee
Where they grow a dream
Avocato tree
[ inédita – Refazenda, de Gilberto Gil ]
Rebento
Gilberto Gil
O ato, a criação, o seu momento
Como uma estrela nova e o seu barato
Que só Deus sabe lá no firmamento
Rebento, tudo que nasce é rebento
Tudo que brota, que vinga, que medra
Rebento raro como flor na pedra
Rebento farto como trigo ao vento
Outras vezes rebento simplesmente
No presente do indicativo
Como a corrente de um cão furioso
Como as mãos de um lavrador ativo
Às vezes mesmo perigosamente
Como acidente em forno radioativo
Às vezes, só porque fico nervoso
Às vezes, somente porque eu estou vivo
Rebento, a reação imediata
A cada sensação de abatimento
Rebento, o coração dizendo: “Bata”
A cada bofetão do sofrimento
Rebento, esse trovão dentro da mata
E a imensidão do som
E a imensidão do som
E a imensidão do som desse momento
Gravações
Gilberto Gil – Realce, 1979 – Warner Music
Elis Regina – Elis, 1980 – EMI
Comentário*
Eu queria tratar da contemporaneidade, da sociedade pós-moderna. “Realce” era mais adequadamente sociológica para o título que eu buscava, como as canções-título de Refazenda e Refavela; eu queria uma canção-título que desse um dos perfis possíveis da sociedade em que vivemos. “Rebento” não dava conta disso. Era muito abstrata; sua reflexão era muito pessoal, sobre um tema muito poético.
Mas a letra apresenta alguns momentos em que eu penso que a aragem poética bate para mim com uma certa generosidade; fico mais poeta do que eu normalmente sou, ou mesmo do que gostaria de ser. Nesses momentos eu fico mais poeta, por força do próprio exercício; de tanto se estudar, aprende-se a poesia… Essa música me dá uma sensação de que o mundo poético me é acessível às vezes, de que eu posso alcançá-lo.
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999. “Já tinha feito Refazenda e Refavela e queria um terceiro ‘Re’. E a primeira opção que meio veio foi ‘Rebento’. Cheguei a pensar em chamar o disco assim, porque a ideia do rebento está muito bem descrita ali. Pelo menos, a que quis passar: a flor que medra da pedra; a força do cão enfurecido que arrebenta a corrente; o ser novo que nasce no vagido da nova criança; tudo que arrebenta e, mais ainda, que está contido na parte que mais me identifico: ‘Rebento, o coração dizendo: ‘Bata’/ A cada bofetão do sofrimento’. Quer dizer, a resignação: o ‘Let it Bleed’ dos Rolling Stones, no ‘deixa o coração sangrar’ do Caetano. O corte está ali e, mais do que tudo, está a realidade. A vida lhe cortou, lhe feriu e lhe esbofeteou, o sofrimento lhe trouxe a dor, seu coração e seu corpo doem ou seja lá o que for. ‘Mas espere resignado, espere e espere pela transmutação; pois toda dor se transmuta em prazer. Mas olhe, todo prazer se transmuta também em dor. Saiba que é dentro e é no eixo dessa polaridade que você balança, não tem jeito, está na condição do dual. Está na condição do humano, do seu corpo físico, e na condição dos sentidos e sentimentos e em todas as suas exigências existenciais’. ‘Rebento’ era para falar disso, desse ímpeto furioso do ser e da força irrecusável e irresistível da Luz. E para dizer de todo o nascimento e de tudo que está em todo nascimento e também no nascer da tragédia. Era por isso que eu queria que ‘Rebento’ fosse, no primeiro momento, o nome de um disco. Mas achei demasiadamente exigente pro movimento que queria dar, no sentido de ‘rua’, no sentido da mensagem que se dá ali na praça. E Realce acabou sendo um título mais adequado, pela qualidade do ‘ferir da luz’. ‘Realce’ podia substituir, com vantagens, a mensagem que ‘Rebento’ trazia. Mas, na verdade, elas são pares, gêmeas.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Realce
Gilberto Gil
O que a gente pode, pode
O que a gente não pode, explodirá
A força é bruta
E a fonte da força é neutra
E de repente a gente poderá
Realce, realce
Quanto mais purpurina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo
De real teor de beleza
Não se impaciente
O que a gente sente, sente
Ainda que não se tente, afetará
O afeto é fogo
E o modo do fogo é quente
E de repente a gente queimará
Realce, realce
Quanto mais parafina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo
De real teor de beleza
Não desespere
Quando a vida fere, fere
E nenhum mágico interferirá
Se a vida fere
Como a sensação do brilho
De repente a gente brilhará
Realce, realce
Quanto mais serpentina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo
De real teor de beleza
Gravações
Gilberto Gil – Realce, 1979 – Warner Music
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Gilberto Gil – Em Casa Com os Gil, 2022 – Gege
Gilberto Gil – Mundo Bita, 2023 – Mr. Plot – Mundo Bita
Comentário*
Por causa dos questionamentos com relação ao seu significado — a imputação de uma minoridade que ela teria dentro de minha obra, já que representaria uma escorregadela na facilidade do efeito pop —, a necessidade, que eu sinto, de fazer a defesa de uma canção que tem para mim um sentido profundo no meu trabalho e no processo de aprendizado que eu coloco como dado essencial da minha relação com o fato de fazer canções — de dizer coisas através de canções populares —, e que diz muito sobre quem eu sou como compositor e sobre o grau de exigência que me imponho para que minhas canções exprimam alguma coisa importante na minha vida.
“Realce” é de uma época em que eu me introduzira no campo da meditação, entendida como uma arte mais formal e rigorosa de pensar-se e refletir-se, e estava interessado em possíveis traduções da filosofia oriental para o idioma da canção, tendo resultado num dos concentrados das meditações que eu então fazia e sido resultado de um processo profundo e ruminante, um longo trabalho de elaboração e meditação, sendo ela mesma uma canção sobre o wu wei, termo chinês que significa “ação da não ação”, ou a impotência que se torna potência, ou o esgotamento dos contrários nas suas polaridades (um polo se esgota e inicia o que está contido no seu oposto) etc.
É nesse sentido uma canção ambiciosa e carregada de significados embutidos que vão sendo descobertos, como, na cebola, as camadas por debaixo das camadas.
A letra parte de um escopo geral que é falar do que, à época, eu chamava de “salário mínimo de cintilância a que têm direito todos os anônimos” nos terminais de metrô, nas arquibancadas dos estádios, nas discotecas. Esse lado Saturday Night Fever está propositalmente explicitado nos três pseudorrefrões, que funcionam para reiterar a macdonaldização da vida cotidiana nas grandes cidades, mas também para dar-lhe uma qualificação de profundidade que necessariamente também existe nessas coisas tão associadas à superficialidade. Por outro lado, cada uma das estrofes que antecedem os “refrões” remonta ao sentido de potência contido no wu wei.
Estrofe I; versos 1, 2 e 3. — Há uma ideia da força que remete às mudanças geológicas; a um revolver da natureza que se dá por si só. As grandes catástrofes das idades do universo passam como um trator por sobre a condição humana. Ao mesmo tempo, a fonte da força também está à disposição do que chamamos consciência, inteligência, vontade: Homo sapiens. Versos 4, 5 e 6. — O homem como combustível e energia do motor da natureza, parte e partí- cipe do moto-contínuo, cíclico-recorrente (o eterno retorno), de criação e destruição, anulação e afirmação, operado pela natureza na história e pela história na natureza. A relação dinâmica entre ambas e o homem como o corte.
II; 1, 2 e 3. — O interstício sutil entre a vontade e o resultado, o fazer e o não fazer. O fato de que tudo está “afeto”; de que, do ponto de vista quântico, digamos, a mínima partícula de emanação pensátil está “afeta”; de que o afeto pertence à totalidade do pulsar existencial das coisas, à dança de Shiva; e mesmo o sentir quieto ali naquele canto pode estar afetando uma estrutura qualquer de uma parte qualquer do universo. 4, 5 e 6. — O afeto, portanto, é fogo; portanto, se cuide — mas se descuide, também, do seu sentir; pois de todo modo ele é pleno, dono de si; ele trabalha no campo onde as bactérias se criam, os átomos se criam e os eventos se dão; e, mesmo entre as partículas, o que não é visível nem palpável ainda assim é e pertence ao intercâmbio das afeições amplas, universais.
III; 1, 2 e 3. — A autonomia plena da vida sobre nós e o imperativo da fatalidade de ter nascido e ter que morrer; ter que viver esse “alfômega” nascimento-morte, a grande questão colocada para nós. 4, 5 e 6. — De como a vida entra pelos olhos e é o ferir incondicional do brilho neles. Sob o Sol ou sob a Lua, a esteira de luz estendida sobre a superfície do mar será irremediavelmente captada pelos olhos abertos. A irredutibilidade do fenomenológico. O ser sendo ferido pelos estímulos externos aos quais os seus sentidos, todos, dão sentido; a natureza se fazendo linguagem através do homem.
A simples exposição dos versos pode não remeter de imediato a significados tão vastos, múltiplos e profundos, que, no entanto, estão engastados na intenção processual da canção; no porquê de ela ter sido feita. Eu não posso exigir de todo mundo a apreensão de todos esses sentidos, mas não posso aceitar a negação deles. Minha impressão é a de que, no âmbito das pessoas cultas e inteligentes, afeitas ao dimensionamento cultural encarregador das leituras, “Realce” não é tão hermética; lida sua letra com o mínimo de atenção, muitos dos seus significados logo se insinuam, e as portas para outras digressões possíveis se abrem.
Era o momento auge da música disco — aquela linfa, aquela liquefação pop depois da época rock, da época hippie, conceitualmente mais densa. Iniciando o processo de expansão geográfica das minhas atividades e vivenciando o cotidiano das pessoas comuns de vários lugares do mundo, eu desejava conciliar os lugares-comuns das pessoas desses lugares e trazer os elementos da cultura de massa contemporânea internacional em sua complexidade.
Por ter em mim os traços nítidos do criador marcado pelo compromisso com a banalidade, egresso de uma tradição cultural média brasileira, a da canção popular, eu me sentia parte integrante daquele fenômeno, a que vim a me referir como a “superfície do profundo” — onde o profundo não é captado como tal e só pode ser captado como superficial porque só está na superficialidade.
E é disso que falam “Realce” e outras canções minhas da época. Utilizando-se de elementos fáceis e flácidos, mas remetendo também aos sentimentos de elevação que cada simples ser pode e deve ter, elas trabalhavam para uma conciliação do conceito de sofisticado com o conceito de banal, contra o reducionismo cataloguista dos cânones clássico e popular e contra a ideia do estanque prevalecendo sobre a do osmótico e interpenetrante.
Diziam: “Ah, o brilho! Está se referindo à cocaína!”. Nunca me passou cocaína pela cabeça, mas é evidente que, no campo da abrangência da canção, você tinha coisas como Saturday Night Fever como elementos, e que a cocaína também estava ali; tudo estava: sexo, drogas e rock ‘n’ roll, o prazer do hedonismo — assim como o prazer do ascetismo. Cortes muito claros entre os dois lados; Ocidente-Oriente.
“Realce” custou muito tempo e aflição para ser feita pelas muitas funções sobrepostas com as quais ela se comprometeu de antemão, a começar pela de fecho da trilogia dos re — que tinha em Refazenda o primeiro e em Refavela o segundo ponto —, em substituição a “Rebento”, samba que fiz antes e que acabou estando no mesmo álbum, mas que não dava conta do conceito do álbum, que incluía a maré rasa da efervescência disco e o poço fundo da contemplação espiritual. (Minhas músicas têm quase sempre um estímulo conceitual, que é também quase sempre o do disco de que fazem parte.)
Eram muito apriorísticas as proposições e o alcance de “Realce”. Sentidos novos iam sendo exigidos e agregados ao longo do tempo da sua realização, e a cada dia a música ficava mais difícil. Começada aqui, onde anotei as primeiras ideias, soltas, ela tomou umas dez páginas de esboços, e eu só a terminei após dois meses de excursão pelos Estados Unidos, quando já estava gravando o disco, lá.
A expressão título surgiu por causa da Lita Cerqueira, fotógrafa, negra, baiana, vinda de Santo Antônio, meu bairro, frequentadora da minha casa e da casa de Caetano, pessoa das nossas relações íntimas e com muitos interesses comuns a nós na época. Ela falava muito em “realce”, “realçar”…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Rancho da Rosa Encarnada
Gilberto Gil
Torquato Neto
Geraldo Vandré
Nas cantigas mais antigas
Que o meu Rancho da Rosa Encarnada escolheu pra cantar
Pelas calçadas enfeitadas se vê
Tanta gente pra nos receber
Somos cantores
Cantamos as flores
Cantamos amores
Trazemos também
A notícia da grande alegria que vem
Pra durar mais que um dia
E ficar como antigas cantigas
Que não morrem
Que não passam jamais
Como passam sempre os carnavais
Rancho da Boa Vinda
Gilberto Gil
Torquato Neto
De dizer por que é que vem
Se é de paz e se é de amor
Pode entrar, que eu sou também
Se a tristeza já deixou
Bem pra lá do meu portão
Pode entrar, pode dispor
Faça o rancho do meu coração
Tanto amor tenho pra dar
Só que não achei pra quem
Se você vem pra passar
E traz tristezas também
Melhor então nem entrar
Melhor seguir seu caminho
Que de triste neste mundo
Já me basto a mim sozinho
Quilombo, o eldorado negro
Gilberto Gil
Waly Salomão
Um eldorado negro no Brasil
Existiu
Como o clarão que o sol da liberdade produziu
Refletiu
A luz da divindade, o fogo santo de Olorum
Reviveu
A utopia um por todos e todos por um
Quilombo
Que todos fizeram com todos os santos zelando
Quilombo
Que todos regaram com todas as águas do pranto
Quilombo
Que todos tiveram de tombar amando e lutando
Quilombo
Que todos nós ainda hoje desejamos tanto
Existiu
Um eldorado negro no Brasil
Existiu
Viveu, lutou, tombou, morreu, de novo ressurgiu
Ressurgiu
Pavão de tantas cores, carnaval do sonho meu
Renasceu
Quilombo, agora, sim, você e eu
Quilombo
Quilombo
Quilombo
Quilombo
Questão de ordem
Gilberto Gil
Você fica, eu vou
Daqui por diante
Fica decidido
Quem ficar, vigia
Quem sair, demora
Quem sair, demora
Quanto for preciso
Em nome do amor
Você vai, eu fico
Você fica, eu vou
Se eu ficar em casa
Fico preparando
Palavras de ordem
Para os companheiros
Que esperam nas ruas
Pelo mundo inteiro
Em nome do amor
Você vai, eu fico
Você fica, eu vou
Por uma questão de ordem
Por uma questão de desordem
Se eu sair, demoro
Não mais que o bastante
Pra falar com todos
Pra deixar as ordens
Pra deixar as ordens
Que eu sou comandante
Em nome do amor
Você vai, eu fico
Você fica, eu vou
Os que estão comigo
Muitos são distantes
Se eu sair agora
Pode haver demora
Demora tão grande
Que eu nunca mais volte
Em nome do amor
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1968) – Universal Music
Comentário*
O teor é mais anarquista do que subversivo, porque a ideia geral da música, mesmo o aparelhamento cênico para a sua locação, se refere muito mais às ruas de Paris do que às de São Paulo da época. Os aparelhos subversivos, a guerrilha urbana, ainda estavam por vir para o Brasil, vindo a chegar aqui na década de 70. Então a referência direta são as ruas parisienses conflagradas: maio de 68.
Por que o estribilho: “Em nome do amor”. — Para dizer quais eram as nossas armas. Para dizer do nosso compromisso com as armas não violentas. A paz como arma, o pacifismo como elemento de luta: eram essas coisas já se insinuando. Nós acreditávamos no amor como arma, como força. Na crítica social que buscávamos fazer com nosso conjunto de atitudes e canções, o amor, como argamassa de toda a construção social, era exatamente o que teria faltado à burguesia, às elites, aos colonizadores no programa da civilização; daí os olhos grossos feitos às grandes injustiças, daí o “farinha pouca, meu pirão primeiro” do processo de acumulação capitalista. Com a introdução do amor, dizíamos: “Somos guerreiros de uma guerra não violenta, onde a grande arma é a solidariedade humana”. Essa metáfora afetiva entrou não só como atenuadora da carga agressiva, transgressora, violenta, da letra, mas também para dizer que nosso ideário incluía uma dimensão que teria sido rejeitada, descartada. “Questão de ordem” é tropicalista e já é contracultural. Da fase tardia do Tropicalismo. Ela e “Divino, maravilhoso” inauguram essa fase; ambas são o Tropicalismo já incorporando maio de 68 e o mundo hippie. O que é maio de 68 senão imbricamento de esquerda com hippismo, de militância clássica com militância contracultural? Maio de 68 é exatamente essa fronteira. E essas duas canções são maio de 68.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Queremos saber
Gilberto Gil
O que vão fazer
Com as novas invenções
Queremos notícia mais séria
Sobre a descoberta da antimatéria
E suas implicações
Na emancipação do homem
Das grandes populações
Homens pobres das cidades
Das estepes, dos sertões
Queremos saber
Quando vamos ter
Raio laser mais barato
Queremos de fato um relato
Retrato mais sério
Do mistério da luz
Luz do disco voador
Pra iluminação do homem
Tão carente e sofredor
Tão perdido na distância
Da morada do Senhor
Queremos saber
Queremos viver
Confiantes no futuro
Por isso se faz necessário
Prever qual o itinerário da ilusão
A ilusão do poder
Pois se foi permitido ao homem
Tantas coisas conhecer
É melhor que todos saibam
O que pode acontecer
Queremos saber
Queremos saber
Todos queremos saber
Gravações
Erasmo Carlos – Banda dos contentes, 1976 – Polydor
Gilberto Gil – O Viramundo (Ao Vivo), 1999 – Universal Music
Cássia Eller – Acústico (Ao Vivo), 2001 – Universal Music
Gilberto Gil – Em Casa Com os Gil, 2022 – Gege
Comentário
Da necessidade da popularização, da democratização da informação, do conhecimento, das conquistas da ciência: é disso que trata a canção. Uma reação ao esoterismo científico, tecnocientífico. A exigência da tradução dos mistérios da ciência em termos fáceis, absorvíveis, compreensíveis. A popularização no sentido da democratização também dos benefícios; do valor científico. Uma música, toda ela, sobre a distribuição de renda tecnológica e da riqueza existencial. Igualitarização: o sentido igualitário da interação entre as vidas humanas; entre as vidas humanas e as outras vidas. É uma das manias recorrentes em minha obra, onde você encontra um oroboro, um aprisionamento da minha poética.
Sobre a “luz do disco voador”. — Uma luz associada diretamente, essencialmente, ao mistério. Não se sabe o que é a luz do disco voador até hoje. Especula-se de tantas maneiras. A evanescência da luminosidade que aparece aqui e desaparece logo em seguida e reaparece acolá. O disco voador é o objeto mais essencialmente associado ao sentido quântico, evanescente, pulsante, da luz. A luz do disco voador é a mais misteriosa que continua existindo pra nós todos.
“Tão perdido na distância/ Da morada do senhor”. — O pensamento de que, por alguma razão, o ser humano se afastou da divindade; a ideia da queda, do pecado original. Isso está embutido na noção da distância da morada do Senhor, como se a materialidade, a encarnação fosse compulsoriamente uma queda — o espírito caindo com a matéria, a matéria caindo na matéria —, em contrapartida à ideia religiosa do religare, a retomada, o reencontro, a religação com a essência original da divindade.
De como a canção condensa esses aspectos que permeiam a poesia de Gil, convergindo o esotérico e o científico, a tecnologia e o homem, este pensado como um ser a evoluir. — Um ser a reencontrar-se consigo mesmo, esse “si mesmo” sendo Deus ou a ideia que se faça de Deus, da divindade. A ideia do “de onde viemos, para onde vamos”, com a esperança de que “de onde viemos” seja também “para onde vamos”. Do alfa-ômega: o cumprimento do percurso entre o nascimento e a morte; a morte como reintrodução de um mundo do qual o nascimento nos sequestrou e que ela há de nos restituir.
Sobre saber “o que pode acontecer”. — “Pois se foi permitido ao homem tanta coisa conhecer, é melhor que todos saibam o que pode acontecer”: a ideia da mínima pré-visibilidade das consequências do ato humano; da responsabilidade; do “princípio da precaução”, como dizem os ecologistas. Enfim: sabermos o que será, para nos precavermos. Vem uma tempestade: como podemos nos proteger dela? O que fazer pra mitigar seus efeitos? Uma questão de mitigação, exatamente.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Quero ser teu funk
Gilberto Gil
Liminha
Dé
Já sou teu fã número um
Agora quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Agora quero ser teu funk
Já – já que sou teu fã número um
Funk do teu samba
Funk do teu choro
Funk do teu primeiro amor
Rio de Janeiro
Bela Guanabara
Quem te viu primeiro, pirou
Chefe Araribóia, que andava
De Araruama a Itaipava
Não cansava de te adorar
Depois te fizeram cidade
Te fizeram tanta maldade
E um Cristo pra te guardar
Quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Agora quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Agora quero ser teu funk
Já – já que sou teu fã número um
Funk do teu morro
Funk do socorro
Que o pivete espera de alguém
Rio de Janeiro
Sou teu companheiro
Mesmo que não fique ninguém
Mesmo que São Paulo te xingue
Porque te cobiça o suingue
O mar, a preguiça, o calor
Lembra da Bahia, que um dia
Já mandou Ciata, a tia
Te ensinar kizomba nagô
Quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Agora quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Quero ser teu funk
Já sou teu fã número um
Agora quero ser teu funk
Já – já que sou teu fã número um
Funk da madruga
Funk qualquer hora
Funk do teu eterno fã
Funk do portuga
Que te amava outrora – e agora
Funk da turista alemã
Rio de Janeiro, Rocinha
Sempre a te zelar, Pixinguinha
Jamelão, Vadico e Noel
Funk são teus arcos da Lapa
Funk é tua foto na capa
Da revista Amiga do céu
Gravação
Gilberto Gil – Parabolicamará, 1991 – Warner Music
Comentário*
Há anos alguém pichou isto num muro em Salvador: “Gil, quero ser teu funk”. Tempos depois, o Dé, baixista, comentando comigo sobre a frase — “é maravilhosa” —, disse que eu devia fazer uma música com ela. “Está bem, eu vou fazer.” Mas eu não queria fazer uma canção autoatribuída e por isso pensei no Rio: numa canção de amor e solidariedade à cidade e aos bailes funk, à nova geração voltada para o funkismo nos subúrbios cariocas, espécie de reciclagem da juventude black-Rio.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Quem puder ser bom que seja
Gilberto Gil
Que seja sempre cada vez melhor
Pra que todo mundo veja
A luz bailando alegre ao seu redor
Luz ferina, luz entrante
Luzente no fundo da escuridão
Iluminando num instante
O espírito da gente, o coração
Quem puder ser bom que seja feliz
A vida lhe quis assim
Deu-lhe uma, duas, três vezes mais
Paz pra espalhar por aí
Quem puder ser bom que seja
Que a inveja não lhe faça desistir
Quem é bom já está na igreja
Já está no céu, já tem porque sorrir
Quem é bom, é bom
Faz o bem, é bom
Faz o amor, é bom
Quanto mais, tanto melhor
Quem é bom, é bom
Faz o bem, é bom
Faz o amor, é bom
Sua paz é um tiro só
Gravação
Daniela Mercury – Sou De Qualquer Lugar, 2001 – Sony Music
Comentário*
Um xote um pouco sobre a minha definição de mim mesmo; sobre almejar que eu seja um bondoso radical [em “Quem puder ser bom que seja”, outro tema tipicamente gilbertogiliano, o da bondade]. “Que a inveja não lhe faça desistir”, quer dizer: não abrir mão de ser bom. Que o mal é sedutor, então você pode invejá-lo.
A luz da bondade na pessoa iluminando o espírito de quem observa a luminosidade dela. — A bondade como contágio. Como virose. Com capacidade de infectar. Porque é preciso acreditar nisso porque essa crença, essa ideia de força contagiosa, está muito associada ao mal. É como se o mal tivesse esse poder, e o bem não tivesse tanto. O bem como virose, sim, pois a gente tem dificuldade de associar o bem ao mal. Mas é só nesse plano, nessa altura, que se pode ter a compreensão do mal e do perdão. Só quem é bom pode entender o mal: é isso. O que faz o mal alienadamente, quer dizer, apartado da dimensão, do sentimento profundo da bondade, não sabe o que está fazendo, se perde, se despe dos vértices da integralidade em si, não se integra, não se entrega. Exclui. É nesse sentido que às vezes me refiro a mim mesmo como um bondoso radical. Estou sempre puxando a brasa pra sardinha do bem.
“Sua paz é um tiro só”. — É fulminante a qualidade da integralidade do ser; o ser fulmina tudo. É a ideia por trás de uma canção como essa.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil