Músicas
Oslodum
Gilberto Gil
Eu vou pra Oslo
Pra sair no Oslodum
O bloco astro
Da terra do bacalhau
Que todo ano
Caia neve ou faça sol
Vai pra a avenida
No dia de carnaval
Eu vou, eu vou
Eu vou pra Oslo
Pra sair no Oslodum
O bloco astro
Da terra do bacalhau
Que todo ano
Caia neve ou faça sol
Vai pra a avenida
No dia de carnaval
Eu vou pra Oslo pra ver
A turma do pelô
Do pelourinho, pelourinha, pelourão
Eu vou pra Oslo aprender
Um canto pra Xangô
Que lá chama Thor
O filho do Trovão
Eu vou pra Oslo cantar
Eu vou pra Oslo encantar
Aquela moça, a mais bonita do lugar
No pelourinho lourinho
Da cabecinha lourinha
Do coração igual ao nosso
A palpitar
Gravação
Gilberto Gil – O sol de Oslo, 1998 – Pau Brasil
Comentário*
“Oslodum” é o Olodum de Oslo. Eu estava indo pra Oslo e ia gravar um disco com o Rodolfo Stroeter, o Trilok Gurtu, o Toninho Ferragutti e a Marlui Miranda — uma turma muito interessante. Naquela época era meio irrecusável a temática dos blocos afro, que tinha “afrorado”. Daí esse encaixe de palavra- -valise, como concentração temática. Resumidamente é isso.
“Asfro” foi um neologismo inventado pelo meio musical, pra designar alguma coisa fake, alguma coisa que não é, alguma coisa falsa. Alguma coisa errada: uma nota, uma execução, uma acentuação “resvalante” num ritmo; qualquer coisa desse tipo. E, no caso da canção, a expressão é usada pra exatamente designar um Olodum fake: um Olodum loiro.
O machado de Xangô é o mesmo machado de Thor. A letra tinha então de fazer essa associação cultural-religiosa afro-nórdica, que se tornou irrecusável por causa de o símbolo ser o mesmo pros dois deuses, pras duas entidades: o mesmo machado com duas hastes, machado duplo.
“No pé lourinho lourinho/ Da cabecinha lourinha/ Do coração igual ao nosso a palpitar” tem a ambição de concertação racial, a noção de que somos todos acima das raças; de que acima das raças está a raça humana. Raça humana como mãe de todas as raças.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Mr. Sganzela
Gilberto Gil
Mr. Sganzerla
Keep going, keep going
Foi a descoberta do brasil
Foi a paralisia infantil
Foi a delinquencia juvenil
He could say life is a joke
Loughing at you, he could
Early in the morning he could
Wake you up just to talk about
He would discuss it over and over
The way filmakers usually do
He would discuss it so long
Until mistreating you
Until mis cheafing you
Until mis leading you
Until the afternoon
Move along with me
Gilberto Gil
Seems to be what the river says
Move along with me
Sings the water spring as it sprays
Move along with me
Plays the sea
Its roaring symphony always
Move along with me
From the tree, the free bird commands
Move along with me
Says the day, as the sun descends
Move along with me
Calls the bell
Spreading gospel in the winds
Here I am, in my groove
Simply following natural streams
On the trends of true love
To the lands of those impossible dreams
Here I am, on the move
There is always beyond to be
Since all the stars above
Move along with me
Gravação
Gilberto Gil – Nightingale, 1978 – Elektra
Comentário*
“Move Along with Me” foi composta para um disco americano, feito e lançado nos Estados Unidos. É do Nightingale. — É boa; eu gosto muito dessa canção. Com aliterações (como entre “trends” e “true”) e várias rimas internas, “Move Along with Me” tem uma letra muito bem armada em seu sistema rítmico, em que prevalecem rimas perfeitas, consoantes, mas com algumas quase consoantes, quase toantes (como a de “commands” com “descends” e “winds”, entre os finais “ands”/“ends”/“inds”), lembrando de certo modo as rimas toantes da poesia inglesa moderna, do século XX, que influencia João Cabral de Melo Neto, que as introduz no contexto da poesia brasileira. — Essa mesmo, uma quase rima, com um som tonalmente próximo de uma rima perfeita. Bem inglesa. A letra é bem inglesa, denota já uma proximidade maior e mais efetiva com a língua; tem uma riqueza, uma exigência, um bom manejo da linguagem.
A carga poética é maior. — O patamar é mais alto. Dá pra gente lê-la na página. — É autossustentável.
A canção é meio williamblackiana, falando da natureza. — De fenômenos naturais. “Mova-se comigo”, diz o mar na sua eterna, na sua permanente sinfonia. É bonito. “Mova-se comigo”, diz o sino, espalhando evangelho nos ventos… Depois, aqui estou eu no movimento, na movida. Simplesmente seguindo fluxos naturais, a correnteza. No final, sempre há o além do além, desde que as estrelas no alto se movam junto comigo. É interessante essa sujeição astronômica, astrológica. E volta-se ao “move along with me”.
O verso-título é o primeiro e o último da letra. Circularidade.
— De construção poética clássica.
Ao tempo da canção estamos vivendo ainda o florescimento da contracultura, com sua valorização dos elementos que compõem a natureza e inspiram poesia. — O senso da solidariedade, do ser solidário: eu me mexo desde que tudo (a árvore, o pássaro, o Sol, a luz, o som, a água — todo esse campo) se mexa comigo. A exigência do movimento. O movimento como captação da imagem mesmo da natureza. O natural é aquilo. “Amor é tudo que move”, de novo. Essa é a ideia. Eu gosto muito dessa canção.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Morte de Drime
Gilberto Gil
Gravação
Gilberto Gil – Um trem para as estrelas (filme de Cacá Diegues, 1987) – Globo/Som Livre
Morena
Gilberto Gil
Cassiano
Morena
Mundo menino pequenino
Não tem cabeça pra pensar
Leva qualquer proposta a perder
Ah, morena, se o mundo cresce, tudo ok, morena
Cresce a esperança, sobe a maré
Mon Tiers Monde
Gilberto Gil
Plus que la mort
La mort des hommes dans la merde
Mon Tiers Monde s’engage dans la vie
Du fond même de mon coeur
Du fond même de mon coeur
C’est la chaleur, c’est chaleur
Le bonheur de la pluie
Pour le momment ça marche
Ça en fait rien
Rien la réalité sauvage
Mon Tiers Monde s’engage dans la vie
Du fond même d’un sommeil
Du fond même d’un sommeil
J’ai le soleil, j’ai le soleil
Comme mon meilleur ami
Notre jours est consacré
A un Pan universel
Soient les étoiles de mer
Soient les oiseaux du ciel
Soient les choses inanimées
Comme la pierre et l’océan
Soient les nombreaux nommes de Dieu
Comme Oxalá, comme Tupan
Gravação
Gilberto Gil – O Eterno Deus Mu Dança, 1989 – Warner Music
Comentário*
Embora eu conheça mais e domine melhor a fala da língua inglesa, minhas canções em francês não deixam a desejar num cotejo com as que compus originalmente em inglês (e com as versões que criei para esta língua): a profundidade com que desejo tratar os seus temas, elas assumem na forma. Isso tem se dado também porque, por serem complexos, seus conteúdos acabam exigindo um tratamento sofisticado e uma performance inevitavelmente boa. A rigor eu não me sentia capaz de fazê-las, e fazê-las representou uma aventura que, pelos resultados, razoáveis, me gratificou.
Compor em francês, “a língua dos escritores”: isso também dava ao desafio um sabor especial, e eu comecei a enfrentá-lo como um preito de gratidão a um público com o qual eu desenvolvia uma intensa relação afetiva. Até agora fiz “Touche pas à mon pote”, “Mardi dix mars” (assim chamada porque foi numa terça-feira, 10 de março, que eu a compus, depois de me deparar com a data na folhinha e me sentir estimulado pelo espelhamento das palavras) e “Mon Tiers Monde” (que é como se fôssemos nós mesmos falando um francês créole, mas correto), além de uma quarta, “La lune de Gorée”, escrita mais recentemente, com Capinan.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Miserere Nobis
Gilberto Gil
Capinan
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
Já não somos como na chegada
Calados e magros, esperando o jantar
Na borda do prato se limita a janta
As espinhas do peixe de volta pro mar
Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
Tomara que um dia de um dia seja
Para todos e sempre a mesma cerveja
Tomara que um dia de um dia não
Para todos e sempre metade do pão
Tomara que um dia de um dia seja
Que seja de linho a toalha da mesa
Tomara que um dia de um dia não
Na mesa da gente tem banana e feijão
Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
Já não somos como na chegada
O sol já é claro nas águas quietas do mangue
Derramemos vinho no linho da mesa
Molhada de vinho e manchada de sangue
Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
Bê, rê, a – Bra
Zê, i, lê – zil
Fê, u – fu
Zê, i, lê – zil
Cê, a – ca
Nê, agá, a, o, til – ão
Ora pro nobis
Minimistério
Gilberto Gil
Vire e mexa
Talvez no embrulho
Você ache o que precisa
Compre, olhe
Vire e mexa
Não custa nada
Só lhe custa a vida
Só lhe custa a vida
Só lhe custa a vida
Ande por onde andam
Aquelas minas
Aquela velha gama
E aquela nova
Aquela nova minimina, flor do ministério
Quero dizer, do mistério
(Que mistério tem Clarice?)
Procure conhecer melhor
Seu minimistério interior
Procure conhecer melhor
O cemitério do Caju
Procure conhecer melhor
Sobre a Santíssima Trindade
Procure conhecer melhor
Becos da tristíssima cidade
Procure compreender melhor
Filmes de suspense e de terror
Ande, olhe
Vire e mexa
Não se incomode
Com esta falta de assunto
Ande muito
Veja tudo
Não diga nada
Além de dois minutos
Além de dois minutos
Gravação
Gal Costa – Legal, 1970 – Philips
Comentário*
As explorações do mundo esotérico costumam ser objeto de desprezo. O que prevalece na grande linguagem social é o mundo das ciências, o mundo matemático, das formas reconhecíveis, palpáveis. O mundo esotérico não é assunto para ambientes corriqueiros. Daí eu, ao final da letra, me desculpar por “essa falta de assunto”, ou seja, por essa lista de fragmentos indecifráveis, de coisas que não querem dizer nada, a que aludo na letra… Quando digo: “Não se incomode/ Com esta falta de assunto”, é porque esoterismo é falta de assunto para as rodas prosaicas, as rodas científicas. Quer dizer: “Desculpe não estar tratando aqui de coisas do interesse das pessoas, mas dessa arrumação atabalhoada de fragmentos: a Santíssima Trindade, os minimistérios…”.
“Não custa nada/ Só lhe custa a vida”, quer dizer, um mergulho profundo no mundo do mistério custa a vida; quem quer descobrir a pedra filosofal, o Santo Graal ou qualquer uma dessas coisas que simbolizam o grande mistério, tem que abdicar da vida. A mensagem aqui é uma mensagem esotérica em si.
“Aquela velha gama”, gama, de gamação, de gamar. E “flor do ministério”, porque no nosso círculo — especialmente entre nós, ou entre pessoas muito próximas de nós, baianos —, “ministério” era um eufemismo de lesbianismo, de Lesbos, de ilha de Lesbos, paraíso dos sapatões, das homossexuais. Nós nos referíamos às meninas que tinham prática homossexual como pertencentes ao “ministério”: “Aquela ali é do ministério…”.
“Caju” faz alusão ao mundo dos mortos, da inexistência; o cemitério como símbolo da impermanência da matéria, ou do sentido transicional, da passagem pelos corpos; a visão da vida para além dos corpos, a vida nas mônadas do campo espiritual, do campo mental, do campo existencial para além do corpo. A canção é sobre o mistério mesmo; é autorreferente ao campo de exploração esotérico. Poucas pessoas, na verdade, poderiam ter ideia do que eu estava falando: Caetano; Rogério, que compartilhava muito comigo essas discussões; Smetak — a turma de pessoas aproximadas dessa temática na época.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Os pais
Gilberto Gil
Jorge Mautner
Estão preocupados demais
Com medo que seus filhos caiam nas mãos dos narco-marginais
Ou então na mão dos molestadores sexuais
E no entanto ao mesmo tempo são a favor das liberdades atuais!
Por isso não acham nada demais
Na semi-nudez de todos os carnavais
Na beleza estonteante e tão natural
Da moça que expressa no andar provocante
A força ondulante da sua moral
Amor flutuante acima do bem e do mal
Os pais, os pais
Estão preocupados demais
Com medo que seus filhos caiam nas mãos dos narco-marginais
Ou então na mão dos molestadores sexuais
E no entanto ao mesmo tempo são a favor das liberdades atuais
Por isso não podem fugir do problema
Maior liberdade ou maior repressão
Dilema central dessa tal de civilização
Aqui no Brasil, sob o sol de Ipanema
Na tela do cinema transcendental
Mantem-se a moral por um fio
Um fio dental!
Gravação
Jorge Mautner – Revirão, 2006 – Gege e Warner Music
Comentário*
Fizemos letra e música juntos com ideias sugeridas pelo Jorge. O início foi todo dele. Aí a gente foi complementando com uma palavra aqui, uma mudança ali, uma frase a mais… Mas “Os pais” tem a verve mautneriana em plena vigência. Ao longo da feitura da música, conforme as frases melódicas iam surgindo, se sucedendo, a gente foi estabelecendo as estrofes, os tamanhos, as medidas. Aí foram surgindo também variações, complementações das ideias sugeridas uma ou duas frases antes, e assim a gente fez a música toda. A partir dos motes principais propostos pelo Jorge, nós, a quatro mãos, fizemos tudo.
Interessante a correlação que a canção estabelece entre o dilema dos pais e a própria civilização. — A canção é sobre o que a gente poderia, num certo reducionismo, considerar como sendo a classe média mundial, toda ela comprometida com avanços, transformações, revoluções, visões positivas sobre o desenrolar das coisas, e ao mesmo tempo tendo uma reação, uma resistência natural à transformação. A polaridade transformação/ conservadorismo fica ali em diálogo permanente. A música é sobre isso. Pega um recorte recente, atual, do processo civilizatório e, dentro desse recorte, apresenta a tensão sobre deixar rolar e segurar ao mesmo tempo. Afrouxar os laços e ao mesmo tempo fortalecê-los. É sobre isso. E é interessante que o modo como Jorge coloca as coisas é muito interessante e muito divertido, muito atraente, pra fazer uma canção.
O fato de vocês, mas mais particularmente o Jorge, que deu início à letra, morarem no Rio de Janeiro colaborou de algum modo para provocar o impulso de escrever uma canção dessa? — Eu tenho a impressão que sim. Pelo fato mesmo de que as questões abordadas pela canção têm, a partir do Rio de Janeiro, um ponto de apoio para difusão nacional. O Rio é um lugar informador da questão dos costumes. Concentra uma generalidade brasileira. Está falando do Rio, está falando um pouco do Brasil inteiro. É uma cidade exemplar nos vários momentos da história; o Rio sempre teve um papel importante, sempre teve pioneirismos de atitudes. Então o fato de ele morar no Rio, de ser carioca, é muito importante nessa canção.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Oriente
Gilberto Gil
Pela constelação do Cruzeiro do Sul
Se oriente, rapaz
Pela constatação de que a aranha
Vive do que tece
Vê se não se esquece
Pela simples razão de que tudo merece
Consideração
Considere, rapaz
A possibilidade de ir pro Japão
Num cargueiro do Lloyd lavando o porão
Pela curiosidade de ver
Onde o sol se esconde
Vê se compreende
Pela simples razão de que tudo depende
De determinação
Determine, rapaz
Onde vai ser seu curso de pós-graduação
Se oriente, rapaz
Pela rotação da Terra em torno do Sol
Sorridente, rapaz
Pela continuidade do sonho de Adão
Gravação
Gilberto Gil – Expresso 2222, 1972 – Philips
Comentário*
A “voz”. — Eu e Sandra [Sandra Gadelha, a terceira mulher de Gil] estávamos em Ibiza, na Espanha, numa casinha que tínhamos alugado num bosque de eucalipto. Era um fim de tarde de verão; tínhamos ido à praia e tomado orchata de chufa. Eu estava sentado à porta do chalé, fitando a transição do céu azul para o céu noturno; começavam a surgir as primeiras estrelas. Sandra lá dentro, preparando alguma coisa, e eu ali, quieto. De repente eu vi uma estrela cadente e aquilo me deu interiormente a sensação de uma voz. “Se oriente!” — surgiu essa voz. “Se oriente, rapaz.” Aí eu entrei, peguei papel e lápis, e…
De como os sentimentos e as reflexões foram nutrindo a inspiração poética e a composição se transformando numa condensação de símbolos. — Da saudade do sul, do hemisfério Sul, veio a ideia do Cruzeiro como orientação, como se eu tivesse de me lançar ao mar em busca da redescoberta da minha terra (Cabral, as três caravelas, as navegações: tudo isso vinha à cabeça), desencadeando-se a seguir a meditação sobre a minha situação no exílio, com uma autojustificação da necessidade da viagem e uma metáfora para o sacrifício da aventura forçada (os navios negreiros, o trabalho escravo no porão dos negreiros; tudo vinha à cabeça e os pensamentos iam sendo sintetizados nos versos).
O fato de eu ter feito o projeto da família, a faculdade; de ter recusado uma pós-graduação na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, para assumir o trabalho na Gessy Lever e ficar em São Paulo, perto de Caetano, de Bethânia, de Gal, do projeto pessoal, a música; e de o trabalho na Gessy Lever ter sido uma espécie de pós-graduação também, assim como a situação do exílio tinha para mim um significado de pós-graduação… Por tudo isso “Oriente” é a música minha que eu considero mais pessoal e autossolidária, mais solitária. Não sou eu em relação a uma mulher ou a uma cidade; sou eu em relação a mim mesmo, a um momento de vida. “Back in Bahia” também é autorreferente; ela e “Oriente” são complementares. Minhas músicas da época são assim. Expresso 2222 é meu disco mais elaborado no sentido de relatar um período.
Atmosfera oriental. — O “sorridente” foi lembrança remota e inconsciente dos versos de Rogério Duarte comigo em “Objeto semi-identificado”: “sorridente” contém “oriente”. (O uso do termo ali dá também um alívio em relação ao tom de cobrança de antes: “se oriente”, “considere”, “determine”.) O clima do Oriente estava no ar: os hare-krishna, os tarôs, os I Chings. E eu estava num ambiente propício para a referência adâmica do final; Ibiza era o paraíso da contracultura, refúgio de hippies de todo o mundo: europeus, americanos, brasileiros, indianos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Minha senhora
Gilberto Gil
Torquato Neto
Onde é que você mora?
Em que parte desse mundo?
Em que cidade escondida?
Dizei-me, que sem demora
Lá também quero morar
Onde fica essa morada?
Em que reino, qual parada?
Dizei-me por qual estrada
É que eu devo caminhar
Minha senhora
Onde é que você mora?
Venho da beira da praia
Tantas prendas que eu lhe trago
Pulseira, sandália e saia
Sem saber como entregar
Quero chegar sem demora
Nesta cidade encantada
Dizei-me logo, senhora
Que essa chegança me agrada
Quero chegar sem demora
Nesta cidade encantada
Dizei-me logo, senhora
Que essa chegança me agrada
Gravações
Gilberto Gil – Retirante, Vol. 2, 1962 – Discobertas
Caetano Veloso e Gal Costa – Domingo, 1967 – Universal Music
Gilberto Gil – Louvação, 1967 – Philips
Francis Hime – Songbook Gilberto Gil 3, 1992 – Lumiar Discos
Orquestra de Sopros da Pro Arte e Flautistas da Pro Arte – Ituaçú – Gilberto Gil, 2012 – Geringonça Filmes 2012
Orgia subterrânea
Gilberto Gil
Gravação
“Brasil ano 2000”, vários, Universal
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
Minha princesa cordel
Gilberto Gil
Quanta beleza coube a ti
Minha princesa
Quanta tristeza coube a mim
Na profundeza
Que o amor cavou
Que o amor furou
Fundo no chão
No coração do meu sertão
No meu torrão natal
Meu berço natural
Meu ponto cardeal
Meu açúcar, meu sal
Oh, meu guerreiro
O teu braseiro me queimou
Oh, meu guerreiro
Meu travesseiro é teu amor
Meu cangaceiro
Que me pegou
Me carregou
Que me plantou no seu quintal
Me devolveu
Minha casa real
Minh’alma original
Meu vaso de cristal
E o meu ponto final
Nossos destinos
Desde meninos dão-se as mãos
Nossos destinos
Já pequeninos eram irmãos
E os desatinos
Também tivemos que vivê-los
Bem juntinhos,
E os caminhos
Nos trouxeram para este lugar
Aqui vamos ficar
Amar, viver, lutar
Até tudo acabar
Gravação
Gilberto Gil e Roberta Sá – Cordel Encantado (tema de abertura da novela da Rede Globo), 2011 – Som Livre
Comentário*
Essa foi a canção que ensejou minha aproximação com a Roberta Sá. Eu a chamei pra gravá-la comigo e foi aí que a conheci. Eu não a conhecia pessoalmente, nessa gravação foi que nós nos conhecemos. A canção era pra uma novela da qual foi tema de abertura, que fez muito sucesso. A canção impressionava muito as pessoas e funcionou muito bem na novela. É uma toada lamentosa. A temática era nordestina, com uma história — de realismo mágico, daí a canção ter esse tom — localizada no Nordeste.
Eu gosto de “Nossos destinos/Desde meninos dão-se as mãos”. Meio confuso pra decifrar a que corresponde. A ideia de se eu estou falando dos destinos ou dos meninos que dão-se as mãos — o sentido duplo de destinos e meninos. “Nossos destinos/ De pequeninos, eram irmãos”.
No final — “Aqui vamos ficar/ Amar viver lutar/ Até tudo acabar” —, a ideia do fim, do partir. Alfa, ômega. Tudo que tem começo tem um fim. Princípio único. Unificação de destinos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Minha ideologia, minha religião
Gilberto Gil
E minha religião é a luz na escuridão
Gravação
Gilberto Gil – Dia Dorim Noite Neon, 1985 – Warner Music
Comentário*
Uma canção-dístico para dar conta da minha inserção no campo transideológico e transreligioso; além e para além, mas só através das configurações ideológicas atuais, e também além, mas só através das religiões. Pós-ideológica e pós-religiosa, mas trans: através do mito; através de formas e ideias-força que possam dar conta dessa condensação para além da ideologia e para além da religião. Eu acho o nascer de cada dia um bom substituto ideológico, um bom generalizador para além da segmentação ideológica, e a luz de cada dia também uma boa substituição para Deus ou deuses. São ambas imagens vitais, naturais, ligadas à vida, à natureza.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Milho verde
Gilberto Gil
Ah, milho verde, milho verde
Ah, milho verde, maçaroca
À sombra do milho verde
Ah, à sombra do milho verde
Ah, namorei uma cachopa
Milho verde, milho verde
Ah, milho verde, milho verde
Ah, milho verde miudinho
À sombra do milho verde
Ah, à sombra do milho verde
Ah, namorei um rapazinho
Milho verde, milho verde
Ah, milho verde, milho verde
Ah, milho verde, folha larga
Milho verde, milho verde
Ah, milho verde, milho verde
Ah, namorei uma casada
Mondadeiras do meu filho
Ah, mondadeiras do meu filho
Ah, mondai o meu milho
Não olhai para o caminho
Ah, não olhai para o caminho
Ah, que a merenda já vem vindo
Meu luar, minhas canções
Gilberto Gil
Doces canções de amor e paz
Lembro a ventura de um viver
A candura de um ser
Lembro tudo em minha voz
Dores, rancores e mágoas
Não turvaram as águas
Do meu rio de recordações
Esqueço o triste
Sei que ainda existe
Meu luar, minhas doces canções
Madrugadas tão bonitas trazem inspiração
Lembram toda a maravilha de amar
E apesar de ter comigo a saudade
A saudade não me faz chorar
Gravações
Gilberto Gil – Retirante, Vol. 1, 1962 – Discobertas
Gilberto Gil – Salvador, 1962 – 1963, 2002 – Warner Music
Plantão Musical – Canta Gil Doce Bárbaro (ao vivo), 2023 – PMP Audio Estúdio
Comentário*
Minhas composições iniciais absorviam a substância do cancioneiro, mimetizando várias canções. As quatro canções (três toadas, um samba) reunidas no compacto duplo Meu luar, minhas canções refletem isso. Eu não tinha nenhuma veleidade de querer dizer coisas pessoais em canções. Não me tornei compositor para falar de coisas minhas, mas para expressar como a música rebatia na minha pessoa. Eu como filtro, vitrais. A luz da música se irradiava, atravessava esses vitrais, e eu absorvia suas cores. Eu era esses próprios vitrais, esse próprio filtro. Não queria ser autoral. Na verdade eu nunca quis, até hoje… A partir de um momento, a complexidade da vida, as paixões, as grandes dúvidas, os grandes questionamentos existenciais passaram a ser temas das canções, surgindo em mim a exigência de me explicar diante das interrogações da vida. Mas também nisso minhas canções refletem parte substancial do cancioneiro geral, anterior, pois são muitas as canções que falam dessas coisas — dos desamores, das dores de cotovelo, das grandes dúvidas da existência, do medo da morte. Em “Saudade da Bahia”, de Dorival Caymmi, por exemplo, tem-se essa dimensão temática maior. Assim, eu acabei tendo também o que dizer, mas muito pouco intencionalmente. E, no início, minhas canções eram colchas de retalhos, feitas de frases recorrentes das canções em geral, ligadas à diluição típica do romantismo do cancioneiro popular.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Oração pela libertação da África do Sul
Gilberto Gil
Se o rei Zulu já não pode andar nu
Salve a batina do bispo Tutu
Salve a batina do bispo Tutu
Ó, Deus do céu da África do Sul
Do céu azul da África do Sul
Tornai vermelho todo sangue azul
Tornai vermelho todo sangue azul
Já que vermelho tem sido todo sangue derramado
Todo corpo, todo irmão chicoteado – iô
Senhor da selva africana, irmã da selva americana
Nossa selva brasileira de Tupã
Senhor, irmão de Tupã, fazei
Com que o chicote seja por fim pendurado
Revogai da intolerância a lei
Devolvei o chão a quem no chão foi criado
Ó, Cristo Rei, branco de Oxalufã
Ó, Cristo Rei, branco de Oxalufã
Zelai por nossa negra flor pagã
Zelai por nossa negra flor pagã
Sabei que o papa já pediu perdão
Sabei que o papa já pediu perdão
Varrei do mapa toda escravidão
Varrei do mapa toda escravidão
Gravação
Gilberto Gil – Dia dorim noite neon, 1985 – Warner Music
Comentário*
Sermão dos sul-africanos. — Se já perdemos a inocência dos gentios silvícolas, os homens puros do sonho rousseauniano, e temos que carregar a cruz dos colonizadores, imposta violentamente às Américas e às Áfricas todas, e isso, mais do que esboço, já é inserção na história, um corpo em crescimento, não mais um parto; se já são, desde as Cruzadas, quase mil anos, então, não há o que recusar: é uma pena ter que trocar a beleza luminosa daqueles exuberantes corpos negros, nus pelas estepes, por uma batina mofada de suor de um catequizador, ele mesmo um índio domesticado, mas se isso constrange por um lado, por outro ele agora está a serviço dessa nova obra a que é preciso dar consistência, solidificar, e é essa a questão básica da África do Sul: a civilização, o mundo ocidental está lá, a vida tribal não se sustenta mais lá, então vamos sanear, fazer disso uma atmosfera respirável, dar saúde a esse novo organismo, resolver o problema o mais rápido possível, e ele está aqui para isso, em nome disso, ele é o trem da história, ele agencia isso, ele, muito mais do que a pessoa dele, ele, o bispo Tutu.
De encomenda. — “Oração pela libertação da África do Sul” foi feita para atender a um pedido explícito do físico Mário Schenberg, que queria uma música para, sobre a África do Sul. Eu ainda disse: “Nós temos feito protestos, manifestações, assinado manifestos contra o apartheid e tal”. E ele: “Mas não é suficiente; é preciso uma canção”. Fiz a canção e a dediquei a ele.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Oração
Gilberto Gil
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Meu coração
Gilberto Gil
Pepeu Gomes
Nada no futuro
Ele só quer pra já
Já que está maduro
No que o momento dá
Meu coração pega
No que você mandar
Meu amor navega
Vai chegar
Antes
Melhor que antes
Junto
Vai chegar junto
Meu choro pra você
Gilberto Gil
Torquato Neto
Ninguém pra mim, pra me dar tanto amor
Como o amor que perdi
Tanto tempo perdi
Procurando encontrar outro alguém por aí
Por onde andei, cansei de procurar
Vê, não encontrei você, não encontrei
Mais ninguém
Quem amou demais nunca mais vai poder amar
O amor que a gente perde um dia
Nunca mais na vida
De novo se tem
Ah, escute bem e saiba logo de uma vez
Que nunca ninguém neste mundo me fará feliz
Como você me fez
Ah, meu amor
Opachorô
Gilberto Gil
Oxalá, tomara
Haja uma maneira
Deste meu Brasil melhorar
Santa Clara queira
Queira Santa Clara
Falte uma besteira
Presse céu de anil clarear
Oxalá paz
Opachorô
Haja bem mais
Opachorô
Oxalá nós
Opachorô
Nos banhemos de luz
De luz de luz
De Todos os Santos
E da Guanabara
Tantos mares, tantos
Que as baías possam guardar
Todos os encantos
Tanta coisa rara
Pra enxugar os prantos
Santa Clara clareia o sol
Clarão do sol
Queira Deus, Oxalá
Gravação
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Comentário*
Uma oração propiciatória para o Brasil. Onde “Oxalá” aparece nas duas acepções [como substantivo próprio e como interjeição; no segundo sentido, o termo na última frase, “Oxalá tomara”, soa explicativo, como “numa aula gramatical”, diz Gil]. Me lembro que na hora que eu fiz a canção, lembrava da música do Jorge Ben Jor, “Santa Clara clareou” (“Santa Clara clareou/Ô, ô/E aqui quando chegar, vai clarear”). O “opachorô” entrou no meio da canção musicalmente, no sentido de cumprimento da função musical da letra, como ornamento. Ao mesmo tempo, no entanto, ele é o grande símbolo de Oxalá, porque é o cajado, a arma de Oxalá. Cada orixá tem sua arma; tem o arco, tem o machado. E Oxalá tem o opachorô. Assim, “opachorô” acabou sendo promovido a título da canção por isso — por ser o emblema de Oxalá —, numa recuperação importante de uma palavra nagô.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
One o’clock last morning, 20th april, 1970
Gilberto Gil
I came when it was coming up to one
I mean I came when the midnight was past
I mean I came when the middle age was gone
I mean I came when it was coming up to one
Yes my oneness
At one o’clock last morning
I saw him tão triste
I told him he was alive and he could cry
I mean I saw him so sad that I said a thing
I told him he was a bird and he could fly
I mean I saw him when it was coming up to become
Such a sadness
At one o’clock last morning
Meu amigo, meu herói
Gilberto Gil
Ó, como dói
Saber que a ti também corrói
A dor da solidão
Ó, meu amado, minha luz
Descansa a tua mão cansada sobre a minha
Sobre a minha mão
A força do universo não te deixará
O lume das estrelas te alumiará
Na casa do meu coração pequeno
No quarto do meu coração menino
No canto do meu coração espero
Agasalhar-te a ilusão
Ó, meu amigo, meu herói
Ó, como dói
Ó, como dói
Ó, como dói
Gravações
Zizi Possi – Zizi Possi, 1980 – Philips
Arthur Moreira Lima – MPB Piano Collection, 1999 – Sony Music
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases, 2018 – Gege
Oswaldo Montenegro – Canto uma canção bonita, 2019 – Albatroz Brasil
Comentário*
Essa foi uma música feita de encomenda para uma peça infantil, se não me engano chamada ‘Ferrabrás’ [e que acabou não sendo montada na época]. Me foi pedido que eu escrevesse uma canção sobre um dos personagens, e eu o fiz. A fita com a música foi parar nas mãos do José Possi Neto [diretor teatral – irmão da cantora Zizi Possi –, a quem a fita foi mostrada por um dos atores da peça, Marquinhos Rebu]. Depois de ouvi-la, ele disse para a Zizi: ‘Tem uma música aqui que Gil fez para uma peça que eu achei bonita; eu acho que você devia ouvir’. Ela gravou, e foi um grande sucesso. É sobre amizade.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Meteorum
Gilberto Gil
oio
oio cum
oio cuma
oio cuma eí
oio cuma eio auma
oio cuma eio auma auma oio
)
oio cuma eio
auma auma
oio cuma eio
auma auma
(
meteorum
)
meteorum aieô
meteô
meteorum aieô
meteô
eô eô eô ê
(
eô eô eô eô
)
Gravação
Gilberto Gil – Ballet Z, 2002 – Warner Music
Metáfora
Gilberto Gil
Mas quando o poeta diz: “Lata”
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: “Meta”
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora
Gravações
Gilberto Gil – Um Banda Um, 1982 – Warner Music
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Comentário*
“Metáfora” é metalinguística: o poeta falando sobre a poesia: sobre a própria linguagem poética a se desvelar, se dizer o que é, se revelar.
Uma canção que transcende ao propósito genérico da minha obra que é ser uma obra de compositor, como se houvesse um ligeiro deslocamento do ser poético para cima do ser musical, ou talvez para o lado; de todo modo, um deslocamento qualquer que lhe dá distinção.
Metáfora: uma palavra com contundência sonora, traduzida diretamente do grego.
Inspiração durante a elaboração. — Só um ano, ou mais, depois de escrever o primeiro terceto num caderno e deixá-lo de lado, eu retornei à letra. Desde o início eu queria falar do significado da poesia — poetar o poetar —, mas até ali a palavra “metáfora” ainda não tinha me ocorrido. Foi somente quando, ao começar o segundo terceto, surgiu a ideia de “meta”, que o termo me veio, e com ele a consciência de que, dali em diante, eu passaria a construir a letra para chegar à palavra “metáfora” no fim — para culminar com ela e com ela titular a canção.
Dúvidas de percurso. — Enquanto escrevia, eu relutei em usar “tudo-nada” [aqui, tal como o composto foi grafado no encarte do disco com a música] como uma palavra só, mas resolvi mantê-la assim para marcar a ideia da condensação dos sentidos, por mais opostos, num mesmo e único termo; só faltou radicalizar tirando o hífen e deixando “tudonada”, grafia [sugerida pelo organizador deste livro] que passo a adotar. Outra relutância foi em admitir a brincadeira contida no verso “deixe a sua meta fora da disputa” — o desmembramento da palavra antes de ela aparecer. Pareceu-me de início gratuito, mas acabei achando engenhoso.
À patrulha ideológica. — Eu queria responder às cobranças, que nos eram feitas na época, de conteúdos mais dirigidamente político- -sociais, e falar da independência do poeta; do fato de a poesia e a arte em geral pertencerem ao mundo da indeterminação, da incerteza, da imprevisibilidade, da liberdade, do paradoxo. O poeta Haroldo de Campos se identificou com a canção, que de fato é sobre — e para — todos nós: eles, os concretistas, que foram atacados pelos conteudistas, e nós, os baianos, que abraçamos a causa deles.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Menina goiaba
Gilberto Gil
Conquistei o seu amor
Meninada
Menina goiaba, goiabada Cascão
Andei também muito goiaba
E o disco que eu prometi
Não foi gravado, não
Não foi gravado, não
Que eu não soube lembrar
Seu nome que era o nome da canção
Não foi gravado, não
Que eu não pude cantar
Saudade de você cortou meu coração
Vamos ao show, que tá na hora
E o disco que eu prometi
Fica pro São João
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao Vivo, 1974 – Philips
Comentário*
Meninas goiabas eram as meninas do interior de São Paulo. A motivação da música veio nos circuitos universitários, naqueles anos de 72, 73, quando eu voltei do exílio e comecei a fazer excursões pelas cidades do interior, especialmente por São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, estados mais organizados, com maior número de universidades minimamente estruturadas, com centros acadêmicos que promoviam atividades culturais permanentes, regulares, principalmente música. Havia naquela época um interesse muito grande por música popular, então os artistas estavam sempre circulando por cidades daqueles estados mais progressistas. Muitas vezes, as meninas apareciam nos shows com aquele encantamento, havia aquela troca, aqueles jogos de sedução entre os artistas e o público, e eu fiz essa música sobre isso e para elas, aproveitando a expressão “goiabada cascão”, que era um símbolo muito forte da vida do interior, para cunhar a expressão da música, “menina goiaba”, quer dizer menina maluca, menina gostosa, menina doce.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Menina do sonho
Gilberto Gil
Quem sabe até tenha vindo e eu não soube sonhar
Quem sabe até tenha tentado me descobrir
Em meio ao sono pesado a dormir, a dormir
Quem sabe até tenha vindo visitar meu sono
E quem sabe era só o abandono da alma dormida na vida
O que havia no fundo de mim pra se ver
Que ela, menina do sonho, ficou comovida
E não fez nada mais que sorrir
Partindo logo em seguida a buscar por aí
Outra morada pro sonho, por ser ela fada
Fadada a viver, com seu corpo no nada
O instante, o espaço, o abraço real da ilusão de existir
Quem terá tido essa noite
O sonhar visitado por ela ou por um querubim
Já que a menina do sonho não veio pra mim?
Gravação
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Comentário*
Como “Toda menina baiana” eu fiz do lado da Nara, “Menina do sonho” eu fiz do lado da Preta [Nara e Preta, filhas de Gil], eu e ela sozinhos em casa, os dois brincando na cama, eu com o violão e ela em torno. A ideia da canção veio de vê-la, ali na hora, molecota. “Menina do sonho” versa sobre o mundo onírico mesmo, sobre os personagens confinados a ele.
Em momentos de criação, às vezes você está impregnado de uma situação, de uma paisagem, de um fato, de uma ideia comum, coletiva, e fala precisamente disso, do que você precisa falar. Nesses momentos, você quer objetividade pura. Outras vezes, o que você quer é o passeio despropositado pela subjetividade; o mundo livre, solto, absurdo, da poesia. Nesse caso se inclui “Menina do sonho”, que é exatamente uma canção falando do sonhar como se se estivesse acordado, como se fosse possível a consciência desperta no estado onírico.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Meio-de-campo
Gilberto Gil
Eu continuo aqui mesmo
Aperfeiçoando o imperfeito
Dando um tempo, dando um jeito
Desprezando a perfeição
Que a perfeição é uma meta
Defendida pelo goleiro
Que joga na seleção
E eu não sou Pelé nem nada
Se muito for, eu sou um Tostão
Fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão
Gravações
Gilberto Gil – Cidade do Salvador, Vol. 1, 1973 – Gege
Elis Regina – Elis, 1973 – Universal Music
Pedro Lima – Futebol Musical Brasileiro Social Clube, 2009 – Saladesom Records
Gilberto Gil – Gilbertos Samba (Ao vivo), 2014 – Gege
Fi Maróstica e Vanessa Moreno – Cores Vivas: Canções de Gilberto Gil, 2016 – Vanessa Moreno & Fi Maróstica [dist. Tratore]
Gilberto Gil – Umeboshi – ao vivo, 1973, 2017 – Discobertas
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao Vivo na USP (1973), 2017 – Discobertas
Comentário*
Eu tinha conhecido Afonsinho [jogador de futebol que se destacou no Botafogo, do Rio, num time formado, entre outros, pelos tricampeões mundiais pela seleção Jairzinho, Paulo César e Roberto] na época. Ele tinha se tornado amigo meu, por força de amizades comuns.
Era um jogador de comportamento diferente, tido como rebelde, meio hippie, que frequentava os locais – as praias – que a gente frequentava no Rio e que fazia uma reivindicação de autonomia, de auto-gestão, até então inédita: ele antecipou, no plano individual, pessoal, aquilo que veio a ser coletivamente a democracia corintiana, no início dos anos oitenta.
Fiz a música em sua homenagem para dizer um pouco dessa dimensão que eu via nele: do homem fiel, generoso; o que abdica do trono; o que não brilha como os reis, mas é um sábio de cajado na mão; o sábio que vem visitar o palácio a convite do soberano: vem trazer novidades, impressões, vem para dizer coisas importantes, interessantes; para trazer luz, sabedoria. Isso tudo associado à imagem do hippie, do drop-out, do cara que jogou para cima as convenções.
‘Aperfeiçoando o imperfeito e desprezando a perfeição’: as ideias do despojamento e do cultivo permanente da autoeducação como uma coisa importante, personificadas por ele, pelo significado da vida dele como jogador, como ícone de massa diferente dos outros, com toda a vocação para ser príncipe e nunca rei.
Eu continuo sendo, sempre, o Gilberto Gil autodefinido em ‘Meio-de-campo’: sou receptivo, feminino, o número dois; Tostão, não Pelé: o que faz as assistências ao número um. Afonsinho ficou meu amigo – um grande amigo – até hoje. Paulista de Jaú – a família dele vive lá –, ele mora no Rio, onde é médico.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Medo de avião nº 2
Gilberto Gil
Belchior
Que eu segurei pela primeira vez a tua mão
Um gole de conhaque, um toque em teu cetim
(Que coisa adolescente – James Dean!)
Foi emoção comum
Daquela que arrepia a pele
E leva as mãos, há pouco indiferentes
A correr pelas sedas, pelos cílios
Pelos belos pelos virgens
De lâminas e pentes
(Brilham teus grandes lábios e teus dentes!)
Foi por medo de avião
Que eu segurei pela primeira vez a tua mão
Não fico mais nervoso e você já não grita
(E a aeromoça sexifica mais bonita)
Não foi a força bruta da beleza
Nem o vigor cruel da mocidade
E, sim, dois animais em paz com a natureza
E, sim, dois corpos, objetos sensuais
Contra a lei da gravidade
(Nós nem pensamos na felicidade)
Foi por medo de avião
Que eu segurei pela primeira vez a tua mão
Agora ficou fácil, todo mundo entende
Aquele toque Beatle:
“I wanna hold your hand”
Onde o xaxado tá
Gilberto Gil
Por onde anda meu xaxado
Já que o rock é tão falado
E o xaxado nem se ouviu?
Ando todo aperreado
Pra dançar o tal xaxado
Se não tiver xaxado
Vou-me embora do Brasil
Cumadre disse
Cumadre falou que sabe
Por favor, diga, cumadre
Onde é que o xaxado vai ser
Sou brasileiro
Quase fui seminarista
Cumadre, me dê a pista
Pr’eu xaxá até morrer
O xaxado tá
Na sandália do safado
Na espingarda do soldado
Na ordem do delegado
Na origem do sistema
No escurinho do cinema
Na comida da jurema
No canto da siriema
Onde o xaxado tá
Sacoleja toda gente
Coroinha padre e crente
Deputado renitente
Osório Duque Estrada
Dom Pedro um e dois
Villa-Lobos, Pixinguinha
Deixa o resto pra depois
Cumadre minha tinha filho e mamadeira
Criou mais de dez menina
Todas elas xaxadeira
Xaxa xaxa, xaxadeira
Chama o macho pro xaxado
Que xaxá sem ter um macho
Nunca deu bom resultado
Onde o xaxado tá
Tem uns hôme isquisito
Uns são pobre, outros são rico
Uns são calmo, outros aflito
Uns tem zóio pro futuro
Outros nunca viram isso
Uns pronto pra dar sumiço
Outros firme pra cantá
Onde o xaxado tá
No sertão de Pernambuco
No mundão do Ceará
Onde o xaxado tá
Onde houver uma cabocla
Me tirando pra dançá
Meditação
Gilberto Gil
Mesmo que lá fora
Fora de si mesmo
Mesmo que distante
E assim por diante
De si mesmo, ad infinitum
Tudo de si mesmo
Mesmo que pra nada
Nada pra si mesmo
Mesmo porque tudo
Sempre acaba sendo
O que era de se esperar
Gravações
Gilberto Gil – Cidade do Salvador, Vol. 2, 1973 – Gege
Gilberto Gil – Refazenda, 1975 – Philips
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Comentário*
Uma canção sobre meditação que é uma canção que é uma meditação (uma canção-meditação), fruto de um processo de meditação e realizada em estado de meditação.
“Dentro de mim mesmo.” — “Meditação” é uma busca dos extratos rarefeitos do pensar e do sentir, do olhar sobre o sujeito e o objeto, sobre o si e o em si, e sobre o ser. A letra resultou de horas e horas de dias e dias de meditação sobre a música. Eu estava terminando o repertório de Refazenda e queria usá-la como um fecho minimal que emblematizasse a ideia reflexiva, introspectiva, do disco. Havia um compromisso com os espaços das frases sonoras: eu não podia escrever o que quisesse (para construir a letra de uma música que já está feita, a gente já parte com esse dado limitador — não no sentido qualitativo, de expressão, mas no quantitativo). Por isso eu precisava de instrumentos muito precisos que me levassem aos lugares onde as palavras estivessem; de anzóis muitos afiados e linhas de comprimento muito bem medido para poder fazer a pescaria das palavras que expressariam numa suma o que eu sentia. E precisava da confirmação temporal do significado da meditação — de que ela trouxesse para o sujeito, que era eu, a sensação que a palavra “meditação” traz, de escorrer no tempo…
Em momentos bem prosaicos, de manhã, de tarde, de noite, eu andava pela casa pensando naquela melodia — com ela dentro de mim mesmo —, mas sem escrever nada, nem tentar, apenas me deixando tomar pelo sentimento oceânico da envolvência. Numa madrugada eu me recolhi, tomei um chá, sentei na posição de ló- tus, e saiu! — uma parte inteira. Dormi aquele sono pleno, apaziguado, e no dia seguinte fui tocá-la no violão. Frustração absoluta: me deparei com uma segunda parte que, embora do ponto de vista métrico seja basicamente a mesma coisa, tem um finalzinho que é um apêndice (a última frase melódica). “Meu Deus do céu! Pensei que estivesse pronta”, eu disse. “Quantos dias mais vou ter eu que ficar rodando pela casa para fazer esse resto de música?” Mas não é que, já estimulado pelas ideias da primeira estrofe, na noite seguinte fui para a mesma situação, me recolhi etc., e veio a segunda?!
Do início… — Durante aqueles dias de viagens meditativas (acompanhadas de muita maconha, evidentemente; na época eu fumava bastante e fazia mergulhos abissais…), eu havia regado tanto a planta autorreferencial que, quando me ocorreu algo, me ocorreu o óbvio: “Dentro de si mesmo” — como se para reiterar o silêncio, ou seja, para dizer: “Disso não se diz nada, porque isso é indizível; não adianta, você vai ficar dias e dias aí e não vai dizer nada!”. E em seguida, num movimento da interioridade para a exterioridade, veio: “Mesmo que lá fora” — os dois versos em mútuo espelhamento projetando suas imagens significantes para adiante, nos versos subsequentes. A letra é muito visual mesmo, hologrâmica: um fracionamento lisérgico da imagem oculta, com partes essenciais ao todo e com o todo presente nas partes.
… ao fim… — O futuro como desdobramento de uma perspectiva colocada por um ser no presente (projeção); como o que era de se esperar: não só no sentido de vir a corresponder a uma expectativa ou a realizar um desejo que se tenha em relação a ele; mas também no sentido de que deve haver uma espera, uma passividade, uma ação da não ação em relação ao que se espera dele; uma desarticulação do desejo, o não desejo; o princípio da incerteza, em termos de que, mesmo que seja o inesperado, é na espera disso que o futuro ocorre — e aí, a inclusão da perspectiva do abismo, da tempestade, do desconhecido, da morte.
… um parto. — “Meditação” levou uns dez dias em estado de gestação. Muitas outras canções minhas tiveram processos parcialmente similares, mas é dessa que eu tenho a sensação mais nítida de uma fecundação por um corpúsculo invisível que, apesar disso, você sabe que está ali e que um dia nasce. A canção parece ter sido projetada para ter uma gravidez, um crescimento de embrião e seu momento de nascimento. E eu me lembro da comoção profunda que eu tive quando a terminei — no exato momento em que senti o casamento do verso “o que era de se esperar” com a frase musical correspondente.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Onda azul
Gilberto Gil
Bené Fonteles
parte mar / parte sol / parte Deus
água azul / água dia / água ardente
céu / luar / sofrer
parte nuvem / parte noite / parte só
água branca / água fria / água ausente
palma / viola / onda
parte seiva / parte forte / parte ser
água verde / água sã / água estar
peixe / morte / azul
parte sangue / parte oca / parte ter
água vermelha / água vã / água dar
[ inédita ]
Comentário*
[Atendendo a um pedido de Bené Fonteles, de uma contribuição para uma campanha em defesa das nascentes, “Artistas pela natureza”, projeto que ele coordenava, Gil lhe enviou o poema visual, originalmente escrito não propriamente para ser musicado e cantado. Bené ia de início recitá-lo num espetáculo no Teatro Nacional, em Brasília, mas o musicou. A canção resultante acabou se tornando um hino da fundação ambiental Onda Azul.]
Fragmentos de frases que vão se justapondo. Como se fossem assim quase haicais. A cara do Bené!
É uma série de doze haicaizinhos; haicais radicais, porque seus versos são ainda mais curtos do que costumam ser os haicais em português. — Pois é, exatamente, por isso que estou dizendo “quase”. Quase haicais.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Me diga, moço
Gilberto Gil
Como é que eu faço pra não chorar
Se a vida é comprida
E eu não tenho nem comida pra travessar
Seu moço, venha me dizer
Como é que eu faço pra sustentar
Família tão grande
Mesmo quem pode não pode mais criar
Seu moço, venha me dizer
Como é que eu faço pra não morrer
Se eu morro de fome
Deixo com fome meus filhos pra morrer
Seu moço, venha me dizer
Como é que eu faço pra terminar
Com esse castigo
Diga, que eu brigo, diga, que eu vou lutar
Marmundo
Gilberto Gil
Manda o mundo se limpar
O mar do mundo secou
Manda o mundo se molhar
O mar do mundo entornou
Manda o mundo se fechar
O mar do mundo acabou
Manda o mundo se acabar
O mar do mundo ficou
Um mar imundo demais
Se a barra mundo pesou
O mundo sabe o que faz
Sabe que o mar leva e traz
Sabe quem mata o rapaz
Sabe do filme em cartaz
Sabe da soja em Goiás
Sabe que o amor é fugaz
Sabe amar os animais
Sabe que a gula é voraz
Sabe que paga o que faz
Gravação
Gilberto Gil – Fé na festa, 2010 – Gege
Comentário*
Quando eu estava fazendo essa música, não sei se por um estímulo imediato daquele momento, daquele tempo, ou apenas por um sentimento difuso, distante, eu pensava muito na Marina Silva. É uma canção pra ela, por ela. É como se ela estivesse elencando uma série de questões sobre o meio ambiente, sobre o mar do mundo. A mentalidade, o espírito ecológico, a solidariedade, a ideia de limpar o mundo, guardá-lo sempre o mais limpo possível.
O gosto que você tem pela composição de palavras, como em “Batmakumba”, em “Parabolicamará”, em “Banda larga cordel”, comparece aqui em “Marmundo”, dando conta da grandeza do mundo e da grandeza do que o homem está fazendo de ruim no mundo. — Exatamente. A imensidão da dívida a ser paga; a cobrança, imensa. Haja conta no banco. O jogo [da feitura da canção] era esse, com o desafio da concentração da frase curta. As palavras amontoadas e as palavras-valises, de sentidos sintetizados. Aqui, “marmundo”. “Mundo” já estava em “Viramundo” [parceria de Gil com Capinan, de 1965]. É uma palavra muito fortemente associada à poética popular, especialmente na música popular. Mundo, mundão, mundaréu. A ideia de coisa imensa.
Uma palavra bastante presente na obra do Drummond. — É, dos poetas em geral. O mundo é uma coisa irrecusável, inevitável.
Os pares de versos da primeira parte da canção (“O mar do mundo sujou/ Manda o mundo se limpar”) me remetem a “Água de Meninos” (outra parceria com Capinan, de 1966): “Moinho da Bahia queimou/Queimou, deixa queimar”. Um tipo de expressão que puxa a outra, similar, e que tem origem no linguajar popular. — Nos gêneros musicais ligados à canção de roda, às rodas de dança, às rodas de samba, ao samba de roda. É um dos aspectos muito presentes também na obra do Caymmi.
Às vezes as canções se realizam mais bem sucedidamente ou não. Sempre podemos achar que elas podem ser melhores. Eu sempre acho que essa canção poderia ser melhor se tivesse tido uma finalização mais auspiciosa. A ideia de engavetar ideias e palavras em fusões muito apertadas talvez dê a sensação de não atingimento, de que a canção poderia ser melhor, um pouco como em “Banda larga cordel”. Mas é isto: a canção sempre pode ser melhor.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Maria tristeza
Gilberto Gil
Não tem mais o riso das flores da serra
Não tem mais os olhos mais lindos da terra
Não tem mais o céu de ilusões pra sonhar
Maria Tristeza
Não vê mais beleza nas coisas da vida
Seu mundo de agora é um lar sem comida
Que o João coitado, tão pobre, coitado
Não pode aguentar
João Pobreza
Não tem mais vontade de ter alegria
Sentindo a miséria matar todo dia
Seu corpo cansado de não descansar
João Pobreza
Não tem mais coragem de ter esperança
Quem vive ao seu lado é a triste lembrança
Da mesa vazia da pobre Maria
Querendo chorar, querendo chorar, querendo chorar
Olho nu
Gilberto Gil
Devo expor o meu ponto de vista
Daqui de onde estou
A cidade oferece uma pista
Posso aterrissar
Meu olhar no Outeiro da Glória
E da Glória descortinar
A cidade na minha memória
Cristo Redentor
Consolador, domina a paisagem
Todo o meu fervor
Me acompanha nessa viagem
Que já vem do amor
Que já vem desde cedo comigo
Que da Glória vai me levar
Adiante, na estrada que eu sigo
Na Ásia, na África
Na Oceania
Na intergaláctica
No céu da Bahia
Sem nenhum pudor
A memória pertence ao futuro
Daqui de onde estou
A cidade é um lugar seguro
Posso até supor
Tanta calma nas ruas de Copa
E no Cristo pós-Redentor
Novas luzes ligadas da Europa
Na Ásia, na África
Na Oceania
Na intergaláctica
No céu da Bahia
Maria (Me perdoe, Maria)
Gilberto Gil
Me perdoe, Maria
Por não ver em seu riso
O sorriso das flores
E um céu todo azul
Maria
Me perdoe, Maria
Por só ver em seus olhos
A tristeza cinzenta
Das tardes sem sol
Maria
Não se zangue, Maria
E aprenda uma coisa
Uma coisa tão simples
Que vou lhe dizer
Nem todas as flores são flores
Nem toda beleza são cores
Você não sorri como a flor
Mas nem sei se na flor
Há o amor
Que existe em você
Maria
Gravação
Gilberto Gil – Louvação, 1967 – Philips
Maria Bethânia – Maria Bethânia Ao Vivo, 1970 – EMI Music
Emilio Santiago – Feito pra ouvir, 1977 – Universal Music
Gilberto Gil – Retirante Vol. 2, 2010- Discobertas
Comentário*
É um samba-canção. Tem aquele ar meio Dick Farney, dos cantores dos anos 50, como o Dick e o Lúcio Alves; de todo aquele campo dos intérpretes pré-João, da pré-Bossa Nova, com vozes suficientemente impostadas mas suficientemente suaves também. O texto é um elogio ao modo romântico de percepção do amor, das relações amorosas. É o pedido de perdão por uma certa cegueira, uma certa miopia, certa obstrução da visão por não ter capacidade de ver na pessoa celebrada ali todas as características adequadas ao gesto da inclinação. É um samba pedindo desculpas. Eu o acho encaixado no universo do samba-canção. Ele poderia ser um samba que tivesse sido cantado em épocas anteriores por um dos intérpretes que eu citei; o pessoal que circulava por Copacabana, nas noites de Copacabana, e os que vieram depois, com Tito Madi.
O nome Maria já aparece em “Maria Tristeza”, de dois anos antes, 1963. — “Maria Tristeza”, feita ainda na Bahia, da mesma É um samba-canção. Tem aquele ar meio Dick Farney, dos cantores dos anos 50, como o Dick e o Lúcio Alves; de todo aquele campo dos intérpretes pré-João, da pré-Bossa Nova, com vozes suficientemente impostadas mas suficientemente suaves também. O texto é um elogio ao modo romântico de percepção do amor, das relações amorosas. É o pedido de perdão por uma certa cegueira, uma certa miopia, certa obstrução da visão por não ter capacidade de ver na pessoa celebrada ali todas as características adequadas ao gesto da inclinação. É um samba pedindo desculpas. Eu o acho encaixado no universo do samba-canção. Ele poderia ser um samba que tivesse sido cantado em épocas anteriores por um dos intérpretes que eu citei; o pessoal que circulava por Copacabana, nas noites de Copacabana, e os que vieram depois, com Tito Madi.
O nome Maria já aparece em “Maria Tristeza”, de dois anos antes, 1963. — “Maria Tristeza”, feita ainda na Bahia, da mesma.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Olho mágico
Gilberto Gil
Você quer ver um piolho
No pêlo da minha púbis
No pêlo da minha púbis
Que olho, que olho
Você pensa que tem olho
Você pensa que tem olho
Que tem olho de olho mágico
Você quer me ver vivendo
Algo patético ou trágico
Você pensa que eu estou no big brother
Você pensa que eu seria um grande irmão
Você pensa que eu estou fora de moda
Porque ainda considero a solidão
Que molho, que molho
Quer ver o dente de alho
Quer ver o dente de alho
Refogando o meu repolho
Quer alho, quer alho,
Quer pimenta malagueta
Quer que eu chupe uma chupeta
Quer que eu imite um zarolho
Quer meu álbum de retratos
Remexer minha gaveta
Arrumar o meu armário
Refazer meu guarda-roupa
Andar na minha lambreta
Você quer a rima fácil
Como se eu fosse um poeta
De proveta ou de prancheta
Que saco, que saco
Como se isso fosse um naco
Como se isso fosse a nesga
Como se isso fosse a fresta
Que saco, que saco
Como se isso fosse um jeito
De você bisbilhotar o meu silêncio ou minha festa
Eu estou lhe dando tudo
Eu estou me dando todo
O meu celular me cola
inteirinho em seu roteiro
Não precisa me editar
Filmei tudo o tempo inteiro
Quero ver quem vê primeiro
Até onde eu vou chegar
Primeiro, primeiro
Quero ver quem vê primeiro
Até onde eu vou chegar
Até onde eu vou chegar
Meu retrato celular
Retrato celular
Gravação
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Gege
Comentário*
Essa foi encomenda, direta mesmo, feita pelo Andrucha Waddington. Andrucha chegou um dia em casa e disse assim: “Eu estou fazendo um filme só com celular. É tudo tomada de, é todo do celular. Queria que você fizesse uma música pra ilustrar isso”. Eu, como estava na época envolvido com aquela coisa toda — ciberespaço, internet, novas tecnologias de comunicação etc. —, aceitei o desafio. Disse: “Tá legal, vou tentar”. Por onde é que eu vou começar? Olho mágico era o nome do filme, o nome do projeto que Andrucha queria; já chamava Olho mágico. Olho, piolho…: começa por aí e segue por coisas que tinham a ver com os enredos variados dos personagens, com os elementos de coisas que ele estava focalizando.
“Você pensa que estou fora de moda/Porque ainda considero a solidão”. — Prenunciava-se ali a chegada da rede social com esse panteísmo das individualidades, cada uma delas um deus na rede social, e “eu, ainda considerando a solidão”, me afastando, reivindicando minha individualidade por comparação a essa desindividualização, ou extrema individualização que vai dar na desindividualização da rede social. É uma canção sobre isso.
E tem as brincadeiras [das estrofes quinta à sétima]. As sugestões todas dadas pela câmera do celular e a ideia da câmera do celular como um olho mágico, que já era da ideia originária do próprio Andrucha. E aí vai, com a roteirização da narrativa através de personagens do Olho mágico dele.
Retrato Celular era o nome da série; uma proposta do Andrucha de fazer retratos celulares com vários personagens. Um pouco a coisa dos roteiros domésticos que na quarentena alguns artistas revisitaram; dos filmezinhos feitos em casa com um ou dois personagens: essa narrativa que o Retrato Celular do Andrucha propôs anos atrás e que ficou vigente na pandemia, popularizou-se na abordagem microcinematográfica da pandemia.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
OK OK OK
Gilberto Gil
Já sei que querem a minha opinião
Um papo reto sobre o que eu pensei
Como interpreto a tal, a vil situação
Penúria, fúria, clamor, desencanto
Substantivos duros de roer
Enquanto os ratos roem o poder
Os corações da multidão aos prantos
Alguns sugerem que eu saia no grito
Outros que eu me quede quieto e mudo
E eis que alguém me pede “encarne o mito”
“Seja nosso herói”, “resolva tudo”
Dos tantos que me preferem calado
Poucos deles falam em meu favor
A maior parte adere ao coro irado
Dos que me ferem com ódio e terror
Já para os que me querem mais ativo
Mais solidário com o sofrer do pobre
Espero que minha alma seja nobre
O sufi ciente enquanto eu estiver vivo
OK, OK, OK, OK, OK, OK
Ainda querem a minha opinião
Um papo reto sobre o que eu pensei
Como interpreto a tal, a vil situação
Que o nobre, nobre mesmo, amava os seus
Prezava mais o zelo e a compaixão
Tratava seu vassalo com afeição
A mesma que pelo cão e o cavalo
Então não falo, músico e poeta,
Me calo sobre as certezas e os fins
Meu papo reto sai sobre patins
A deslizar sobre os alvos e as metas
OK, OK, OK, OK, OK, OK
Sei que não dei nenhuma opinião
É que eu pensei, pensei, pensei, pensei
Palavras dizem sim, os fatos dizem não
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
É como se fosse um reconciliar-se com as pragas da canção “Praga”, que eu fiz pra Preta; queixosa, reclamando dos ataques que ela sofreu nas redes sociais. “ok ok ok” sou eu dizendo: “Tudo bem, já sei que é assim mesmo, isso agora veio pra ficar”. Daí essa indisposição relativa permanente entre o agente cultural, o artista, e o seu público, seus seguidores e seus detratores. Essa relação com os que o apreciam e os que o depreciam.
“Já sei que querem a minha opinião”. — O jogo da mitologia popular, os seus agentes. O lado opinativo, permanentemente exigido. A dimensão da opinião vinda do artista popular, essa politização que data basicamente dos anos 60, da época da ditadura. Os movimentos todos: a mpb e a Tropicália; a Jovem Guarda com seus resguardos. Uns, mais resguardados, outros mais atiçados, atirados, com a ideia de movimento e militância que desperta a ideia de opinião, de tribuna ou púlpito de onde se fazem os discursos políticos. O “já sei que querem a minha opinião” é bem isso. Já sei que a gente é dessa praia. “ok ok ok” é uma canção pra dar conta disso, pra falar dessas questões. Eu acho uma canção bem realizada.
As solicitações de opiniões de artistas sobre a realidade na música brasileira começam com o surgimento de vocês, uma geração de cantores e compositores que exercem também um papel intelectual. — Todos egressos dos movimentos estudantis, universitários, que já tinham a função dupla de atitude intelectualizada e militância operária. Foi a época do surgimento da ideologização, do posicionamento em relação à esquerda ou à direita. É legítimo atribuir à nossa geração a gênese disso.
Dois quartetos no miolo da canção apresentam sua visão de nobreza de alma. Na disposição solidária para com o sofrimento do pobre e nas menções a sentimentos pelos seres vivos, você cita humanos e animais. — Aí está o cerne, o encontro com a natureza da minha poética, que é toda ela associada ao sentimento universalista, do congraçamento da comunidade universal. A reivindicação da noção de nobreza, em contraposição à vulgarização burguesa, é um aspecto que eu defendo muito nessa canção, que faz a defesa do resgate da essencialidade humanista e humanitária. Porque era a compreensão da necessidade da relação de igual pra igual com os outros seres todos que enobrecia o homem. Era isso que dava a ele o caráter de nobreza. Aí eu invoco não os falsos nobres, mas aqueles que eram realmente detentores da nobreza. Um pouco reclamando da pulverização da vulgaridade pela internet, nas redes sociais; do descuramento, da diluição final da dimensão burguesa nessa vulgarização, já que descaracteriza completamente a burguesia como classe social. Nem isso a burguesia pode mais reivindicar: ser uma classe social. São esses comentários embutidos sobre política e ideologia que estão nas entrelinhas, nos recantos da canção, e só o autor é que sabe. Agora a gente dá um pouco de explicação.
É uma canção rica, densa, que condensa várias coisas. — Muitas. Não é à toa que ela é emblema do álbum, dá o título.
Sobre as duas últimas quadras, sobre não cobrar do artista certezas e fins absolutos. — A reserva de solidão que eu exijo no final. A necessidade de preservar esse território, defender esse exílio. A reivindicação da dimensão do artista, do poeta, dizendo o que é ainda necessário dizer para fazer-se compreender. Ou: a vida real não é feita de certezas, de definições. A vida real é essa flutuação permanente entre opostos. É dinamismo. Não é enrijecimento. Essa foi a canção que acabou dando título ao disco também porque era muito confessional nesse sentido.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Objeto sim, objeto não
Gilberto Gil
Um objeto não
Como Rômulo e Remo
Rômulo e Remo aparecerão
No mesmo dia, na mesma cidade
No mesmo clarão
Um surgindo do céu
Outro vindo do chão
Um objeto sim
Um objeto não
Eubioticamente atraídos
Pela luz do Planalto Central
Das Tordesilhas
Fundarão o seu reinado
Dos ossos de Brasília
Das últimas paisagens
Depois do fim do mundo
É o reinado de ouro
Depois do fim do mundo
O reino de Eldorado
Depois do fim do mundo virão
O objeto sim, o objeto não
Os ilumencarnados seres
Que esta terra habitarão
O identifi Si
O identudo Gui
O identido Ni
O identipo Fi
O identado Ka
E mais uma porção
Dos identifisignificados
Novos seres que virão
Do fundo do céu
Do alto do chão
Gravação
Gal Costa – Gal Costa, 1969 – Philips
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – O Viramundo, 1999 – Universal
Comentário*
Rômulo e Remo, porque eram fundadores de uma cidade; por serem dessas grandes figuras mitológicas a que mais se refere a fundação de uma cidade. Coincidentemente, tempos depois eu fui saber que Rômulo, Remo e a loba estão numa estátua em frente ao Palácio do Buriti, presente de Roma a Brasília quando da sua fundação. O que, de uma certa forma, explica a associação que eu fiz entre a fundação de Roma e a fundação de Brasília: Brasília era de novo, milênios depois, uma cidade fundada, fundada por alguém, com os registros da sua fundação: assim como Roma teve, através de uma narrativa mitológica, uma fundação, Brasília também, através das narrativas históricas de hoje: foi planejada, Dom Bosco idealizou, Juscelino Kubitschek fez, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer desenharam, enfim… A associação com Rômulo e Remo vinha, portanto, do fato de Brasília ter sido uma cidade que teve também uma fundação, da qual a gente tinha conhecimento e que tinha se dado no nosso tempo. Tudo isso fazia palpitante a associação com Roma, Rômulo e Remo.
Quanto aos discos voadores, bem, naquele momento, todos os discos passavam por Brasília… (assim como todos os caminhos levavam a Brasília, como dizia o slogan do Juscelino); todos tinham alguma coisa a ver com a cidade, o grande locus das seitas esotéricas (por causa do Vale do Amanhecer, de tantos bruxos mais ou menos conhecidos, íntimos ou não; enfim…). E havia também a indução poética dada por Caetano, ao aludir à inauguração do ‘monumento no Planalto Central do país’, em ‘Tropicália’.
Os ‘seres’ que a letra cita vinham das sílabas da palavra ‘significado’ – entre eles o ‘identudo’ Gui, o mais próximo de um antropóide e o único identificado de fato, já que é o Gui, o Guilherme Araújo, sendo os outros não identificados. Todos descem pela rampa da nave-mãe e, desfilando, entram pela cidade: uma turma de desconhecidos em que o único que eu conheço é o Guilherme… Isso reproduz um pouco a cena do ‘Contatos imediatos’, que, quando eu vi, eu me lembrei imediatamente da canção: vendo os extra-terrestres saindo da nave no filme, eu ficava me perguntando: cadê o Guilherme?…
Os últimos versos têm a ver com as inversões presentes em muitas das descrições esotéricas – de Shambala e Agharta, cidades do centro da Terra – e com uma teoria de que os discos voadores vêm não do céu, mas do fundo da terra, um pouco como no ‘Planeta dos Macacos’. Enfim, não só os cineastas, mas os músicos também se nutrem desse liquidificador panfletário neo-mitológico. ‘Objeto sim, objeto não’ é um panfleto neo-mitológico, assim como ‘Um índio’, de Caetano; ambas são canções que refundam a aliança da ciência com o mito reivindicada pelo mundo pós-moderno ou, em parte, uma reação ao pós-modernismo que vem com os hippies e os esotéricos. Todos os produtos desse campo são panfletos da nova era.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Objeto semi-identificado
Gilberto Gil
Rogério Duarte
Rogério Duprat
– Digo eu.
– Diga você.
– E línguas como que de fogo tornaram-se invisíveis.
E línguas como que de fogo tornaram-se invisíveis. E se distribuíram e sobre cada um deles assentou-se uma. E todos eles ficaram cheios de espírito santo e principiaram a falar em línguas diferentes.
– Eu gosto mesmo é de comer com coentro. Uma moqueca, uma salada, cultura, feijoada, lucidez, loucura. Eu gosto mesmo é de ficar por dentro, como eu estive na barriga de Claudina, uma velha baiana cem por cento.
– Tudo é número. O amor é o conhecimento do número e nada é infinito. Ou seja: será que ele cabe aqui no espaço beijo da fome? Não. Ele é o que existe, mais o que falta.
– O invasor me contou todos os lances de todos os lugares onde andou. Com um sorriso nos lábios ele disse: “A eternidade é a mulher do homem. Portanto, a eternidade é seu amor”.
Compre, olhe, vire, mexa. Talvez no embrulho você ache o que precisa. Pare, ouça, ande, veja. Não custa nada. Só lhe custa a vida.
– Entre a palavra e o ato, desce a sombra. O objeto identificado, o encoberto, o disco-voador, a semente astral.
– A cultura, a civilização só me interessam enquanto sirvam de alimento, enquanto sarro, prato suculento, dica, pala, informação.
– A loucura, os óculos, a pasta de dentes, a diferença entre o 3 e o 7. Eu crio.
A morte, o casamento do feitiço com o feiticeiro. A morte é a única liberdade, a única herança deixada pelo Deus desconhecido, o encoberto, o objeto semi-identificado, o desobjeto, o Deus-objeto.
– O número 8 é o infinito, o infinito em pé, o infinito vivo, como a minha consciência agora.
– Cada diferença abolida pelo sangue que escorre das folhas da árvore da morte. Eu sou quem descria o mundo a cada nova descoberta. Ou apenas este espetáculo é mais um capítulo da novela “Deus e o Diabo etc. etc. etc.”
– O número 8 dividido é o infinito pela metade. O meu objetivo agora é o meu infinito. Ou seja: a metade do infinito, da qual metade sou eu, e outra metade é o além de mim.
– E fim de papo.
– Tá legal.
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1969), 1969 – Philips
Comentário*
Uma leitura de pequenos excertos dos nossos cadernos de anotações – meu e de Rogério Duarte -, fruto das longas conversas que tivemos durante os três meses [após a prisão no Rio] em que convivemos então em Salvador; das nossas especulações sobre sobrenaturalidade e hiper-realidade; das nossas leituras sobre yoga; das elaborações que fiz de minhas meditações na prisão. O Rogério Duprat colocou a música depois.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ó, Maria
Gilberto Gil
Faz tempo que você sabe
Que eu também sou da Bahia
Ó, Maria
Quantos anos você tinha
Quando o mato era fechado
Lá na estrada da Rainha
Quando era a céu aberto
Que o batuque se batia?
Ó, Maria
Faz tempo que você sabe
Que eu também sou da Bahia
Ó, Maria
Vê se você me adivinha
Das sete qual é a porta
Pro corredor da Lapinha
De união qual é o traço
Barra-Barris-Barroquinha
Ó, Maria
Faz tempo que você sabe
Que eu também sou da Bahia
O veado
Gilberto Gil
Como é lindo
Escapulindo pulando
Evoluindo
Correndo evasivo
Ei-lo do outro lado
Quase parado um instante
Evanescente
Quase que olhando pra gente
Evaporante
Eva pirante
O veado
Greta Garbo
Garbo, a palavra mais justa
Que me gusta
Que me ocorre
Para explicar um veado
Quando corre
Garbo esplendor de uma dama
Das camélias
Garbo vertiqualidade
Animália
Anamélia
Ó, veado
Quanto tato
Preciso pra chegar perto
Ando tanto
Querendo o teu pulo certo
Teu encanto
Teu porte esperto, delgado
Ser veado
Ser veado
Ter as costelas à mostra
E uma delas
Tê-la extraída das costas
Tê-la Eva bem exposta
Tê-la Eva bem à vista
Gravação
Gilberto Gil – Extra, 1983 – Warner Music
Comentário*
O fator estimulante da canção foi a minha fantasia infantil com o animal — bonito e demasiadamente arisco, difícil de ser caçado, fugidio, ágil, lépido, desviando-se com facilidade do perseguidor —, associada à visão do estereótipo do homossexual assumido, a bicha-louca que faz da sua condição uma linguagem e gosta de se expressar como tal, com um modo de dar ao tórax e à bunda, como nas estátuas gregas, uma proeminência que estes, nas posturas relaxadas, não teriam.
Naquele momento o tema estava muito associado a nós, artistas que fazíamos a defesa da estética do androginismo — incorporando inclusive a ornamentália feminina em princípio proibida ao homem, mas enfim assumida por nossa geração como forma de afirmação de autonomia de ideia, proposta, gosto, de contestação do conservadorismo — e que nos colocávamos contra a histórica perseguição policial e a matança de homossexuais no Rio, em São Paulo, nas grandes cidades, como resultado de uma intolerância social em relação a eles. Por tudo isso, “O veado” é uma música ideológica.
É também a expressão da necessidade que eu sentia de aproxima- ção e compreensão da homossexualidade, e de participação nela. Não sou homossexual (poderia ser, mas não sou), não foi algo necessário na minha vida; mas da veadagem eu faço questão: é o que eu tenho reivindicado sempre para mim. Nesse aspecto, a música é aquilo que o Haroldo de Campos falou muito bem: o “veado viável”. É como nós podemos ser veados.
O interessante é que a letra faz a defesa disso com isso, quer dizer, com uma elaboração que tem a ver com a veadagem mesmo (e que, desse modo, participa dela): com a costura, o bordado, o brocado, o barroco. O encadeamento sonoro é melífluo; as palavras brotam com volúpia, com tempero, condimento, pimenta. E com garbo — de Greta Garbo, ela mesma uma figura andrógina, uma das grandes deusas da veadagem planetária (uma vez eu fiquei hospedado numa casa em Estocolmo onde ela tinha morado).
Se você é artista, tem que aprender a ser veado. É o meu caso: eu sou aprendiz.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O sonho acabou
Gilberto Gil
O sonho acabou
Quem não dormiu no sleeping-bag nem sequer sonhou
O sonho acabou hoje, quando o céu
Foi de-manhando, dessolvindo, vindo, vindo
Dissolvendo a noite na boca do dia
O sonho acabou
Dissolvendo a pílula de vida do doutor Ross
Na barriga de Maria
O sonho acabou desmanchando
A transa do doutor Silvana
A trama do doutor Fantástico
E o meu melaço de cana
O sonho acabou transformando
O sangue do cordeiro em água
Derretendo a minha mágoa
Derrubando a minha cama
O sonho acabou
Foi pesado o sono pra quem não sonhou
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Expresso 2222, 1972 – Philips
Comentário*
Glastonbury foi um festival grande, mítico, no interior da Inglaterra, feito com todos os cuidados astrológicos e esotéricos para ser o festival dos festivais da Era de Aquário. Fizeram uma pirâmide enorme, três palcos, trouxeram gurus. Poucos nomes do mainstream participaram, mas por lá passaram todos os grupos alternativos — e todos os ácidos lisérgicos.
Nós fomos todos, toda a comunidade brasileira em Londres na época: eu, Caetano, Sandra, Dedé, Cláudio Prado, Antônio Peticov, Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Paloma Rocha, filha do Glauber — talvez até ele tenha aparecido —, Péricles Cavalcanti.
Foi uma semana de desbunde, até que terminou. A gênese da música se relaciona com o amanhecer do dia da retirada, quando nos preparávamos pra voltar. Olhando as barracas sendo desarmadas e o acampamento abandonado, os restos todos no chão, me veio a sensação de que “o sonho acabou” — no sentido de que era o fim do festival, mas também de um sonho muito especial.
Naquele momento, a frase do John Lennon [“the dream is over”, da música “God”] estava no ar. “O sonho acabou” diz respeito à minha identificação com ele em seu novo momento de reciclagem do lixo aquariano e arquivamento de um certo deslumbramento do psicodelismo. É uma música discipular; eu era absolutamente louco por ele.
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999. “A estrada é um eterno retorno. ‘O sonho acabou’ era exatamente essa ideia de tomar ali uma constatação trágica, profunda, que Lennon fazia no momento de profunda dor ao compor ‘God’. Tudo para que eu pudesse dizer: ‘O sonho acabou/quem não dormiu no sleeping-bag nem sequer sonhou’, ou seja, se dormirmos nele, sonhamos. Tudo é possível, porque esse sonho, essa radiação se dá e se perpetua. O sonho, como tudo no mundo, é vibração; então ele não se interrompe. Os reflexos dessas ondas vão bater lá nos cafundós do universo, seja lá quantas megas eras forem e quantos éons tivermos que ter. Mas elas voltarão e repercutirão. É isso que quer dizer essa música sobre a repercussão do sonho, ou seja, o sonho, como tudo, como qualquer vibração da natureza repercutirá. ‘O sonho acabou hoje, quando o céu/foi de-manhando, dessolvindo, vindo, vindo/dissolvendo a noite na boca do dia/O sonho acabou/dissolvendo a pílula de vida do doutor Ross/na barriga de Maria’. Então, era isso: ao mesmo tempo que estamos engolindo a pílula da vida, estamos plantando nas nossas vísceras as raízes de um novo sonho. O sonho acabou, mas o sonho continua. Rei morto, rei posto.”
A música do Lennon, então, lhe deu força para fazer essa canção e para que o verdadeiro sonho continuasse vivo. — Ah, deu… Ouvia aquele disco o tempo todo. John cantando: “Mother!!!” — tinha uma força muito grande. E “God”, onde ele falava que o sonho acabou, era uma música sobre aquele confinamento que ele tinha vivido em Los Angeles e que não era só traduzido na capa do disco ou nas reportagens e entrevistas que ele deu. Foi ele que nos alertou sobre aquela corrida toda que a gente vinha fazendo com os ácidos e os desbundes. De repente, é alguém que diz: “Peraí, moçada! Peraí!”. Aquilo foi uma chamada de atenção muito interessante e muito profunda para uma reorganização e recondução do rebanho. Ele, de novo, toma o cajado do pastor na mão e, de ovelha, fez-se pastor de suas ovelhas. Falou e falava para si mesmo e para todos nós. Prestei muita atenção no que John falou e aquilo reorganizou nossas hostes de anjos e demônios internos. Em mim, pelo menos, e em muitos de nós, aquilo reordenou o diálogo interno e falou fundo nos nossos corações e me fez meditar, ajudando a trabalhar minha volta ao Brasil. Voltar para casa e retomar a função pastoral.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O seu amor
Gilberto Gil
O seu amor
Ame-o e deixe-o
Livre para amar
Livre para amar
Livre para amar
O seu amor
Ame-o e deixe-o
Ir aonde quiser
Ir aonde quiser
Ir aonde quiser
O seu amor
Ame-o e deixe-o brincar
Ame-o e deixe-o correr
Ame-o e deixe-o cansar
Ame-o e deixe-o dormir em paz
O seu amor
Ame-o e deixe-o
Ser o que ele é
Ser o que ele é
Ser o que ele é
© Gege Edições Musicais
Gravações
Doces Bárbaros – Doces Bárbaros, 1976 – Universal Music
Ney Matogrosso – Sujeito Estranho, 1980 – WEA International Inc.
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Ney Matogrosso – Ney Matogrosso anos 70, 2017 – Warner Music
Caetano Veloso, Moreno Veloso e Tom Veloso – Ofertório (Ao vivo), 2018 – Uns Produções Artísticas Ltda
Comentário*
A intenção foi brincar com o slogan da ditadura, “Ame-o ou deixe-o”, promovendo, através da substituição de uma conjunção, um corte profundo de ruptura no significado reducionista, possessivista e parcial do aforismo oficial, símbolo do fechamento e da exclusão maniqueísta, para criar um outro, com outra moral, a do amor — e, portanto, absolutamente generoso, democrático e libertário. A concepção de “amor livre” é também reiterada, reintroduzida como objeto de respeito e admiração à liberdade no amor, e ampliada até para um sentido mais cristão, de amor irrestrito.
Minimalista já na escolha de uma máxima tão concisa e conclusa, a letra também o é na construção — na maneira como suas significações se sobrepõem como degraus de uma escada tosca, de pedreiro, somando-se com certo desejo geométrico e uma ambição de organização aritmética de fatores numa conta de adição feita com números muito simples.
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999. “Era o período mais duro e mais cruel da ditadura. Nos aeroportos estava aquele dístico que era quase um símbolo do poder militar. Quando a gente foi fazer os Doces Bárbaros, eu achava que o repertório do show tinha que ser muito amplo e tinha que representar uma angulação muito aberta para todas as questões; inclusive, as questões políticas. Tinha que expor nosso papel e não só o que nós quatro tínhamos — os Doces Bárbaros — mas toda nossa geração. Os frutos dos anos 60, o grito de 68 e tudo aquilo. Havia pequenas respostas que ainda precisavam ser dadas. Quando me ocorreu o ‘ame-o ou deixe-o’, achei que era uma boa resposta para aquilo tudo, para aquele confinamento espiritual a que os detentores do poder, àquela época, se dedicaram. E eles se dedicaram ao claustro e à claustrofilia, naquele medievalismo todo dos quartéis e daquela coisa toda de um Brasil só para eles. Era um país todo virando uma ordem unida, e quem não quisesse aquela ordem que se retirasse. Achei que aquilo tudo era uma bobagem e, ao mesmo tempo, fiquei vendo como aquele slogan era uma apropriação terrível, indébita, de uma coisa que diz respeito ao sentimento máximo do ser humano que é o amor. E que coisa mais espúria usar a palavra ‘amor’ naquele contexto! “Então, me ocorreu fazer uma coisa para nós quatro cantarmos, como se fosse também um canto de meditação. Vinha nele a restauração do sentido do amor mesmo, o mais profundo, com toda a vivência amorosa e amorável que a minha geração tinha tido: o movimento hippie, com a ideia do amor livre e de superar as fronteiras…”
… sem posses… — … sem curral e essas limitações todas de ciúme, amor possessivo, amor institucional e utilitário a serviço da economia […] para a manutenção do poder das classes e das castas. Essa manipulação sociopolítico-econômica que se faz do seu sentido que se introjeta nessa coisa de posse e que tira o ser humano da sua e traz a perda do paraíso. Nessa canção volta um pouco a ideia de reconquista desse paraíso. Ali está o amor que corre e deixa correr, que vai brincar com os outros: “Ame-o e deixe-o brincar/ Ame-o e deixe-o correr…”, e deixa também se perder, ir e voltar, se quiser. Era isso, ao mesmo tempo, uma resposta ao uso espúrio da palavra “amor”, à redução utilitarista política da frase, uma correção trocando a preposição “ou” pela preposição “e”. Quanto mais se ama, mais se deixa ir e vir. Era se opor àquela ideia maniqueísta: “Ou isso ou aquilo; ou isso ou aquilo outro; ou eu ou ele”. A ideia era para o contrário: “Eu e ele e ela e tantos outros”. Evidentemente, uma música para nós, uma música de…
… ensinamentos básicos de sobrevivência amorosa. — … e de autoensinamentos para reiterar e relembrar em mim a necessidade do compromisso com o desapego. Ela é uma lição de desapego.
Essa música dá uma contribuição muito importante, porque, particularmente, a MPB tem esse discurso “dor de corno” mal resolvido ainda muito evidente. — Tem na música do mundo inteiro e em toda canção romântica. Onde houver o par, há a exigência elementar da posse. São histórias do ninho que foi deixado por um dos pássaros. É o medo da solidão. É uma coisa que se opõe ao ideal do oriental, que é cada um na solitude, pela conquista do amadurecimento. Mas a visão do ocidental, da posse, é esta: vampirização do outro.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O som da pessoa
Gilberto Gil
Bené Fonteles
A segunda pessoa soa como tu és
A terceira pessoa soa como ele
e ela também
Qualquer pessoa soa
toda pessoa
boa
soa
bem
Gravações
Bené Fonteles – Benditos, 1983 – independente
Gilberto Gil – GiLuminoso: A Po.Ética do ser (CD do livro de Bené Fonteles e Gilberto Gil), 1999 – Editora UnB
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Comentário*
[Bené Fonteles conta que viu o poema no livro Expresso 2222, de 1982, organizado por Antonio Risério.] Ele diz que pegou a letra e já saiu cantando, que aquilo já era uma canção pra ele.
Bené Fonteles: “Fiz a melodia na hora que li o poema. Parece que recebi… Como você levantou, começou num rascunho de ‘Refazenda’ [ver comentário sobre a gênese dessa canção à p. 161]. Mas, quando fiz a melodia, não sabia de nada. Achei que era só um poema sem música. Nem ousei pensar no que estava fazendo. Deixei fluir… Quando estava gravando meu primeiro disco, que Belchior produziu, quis gravar a canção porque a letra diz o que sinto sobre soar bem e sobre a importância da palavra que soa bem vindo de uma alma que soa bem. E Gil sempre me soa assim pela sua grandeza. Belchior mostrou pra ele a canção, e Gil autorizou a gravação. Depois a gravamos no Gil Luminoso por sugestão dele, pois eu não tinha colocado na lista das canções que Gil me pediu escolher pro disco”.
Gil sobre o verso “Toda pessoa boa soa bem”, que pode ser visto no fac-símile do esboço da letra de “Refazenda” [à p. 161]. — Que não foi utilizado na canção “Refazenda” e que eu recuperei pra essa redução mais minimal do poema. “O som da pessoa” é um poeminha. Eu gosto muito. Gozado: quem adorava esse poema e quis fazer uma canção com ele foi Gonzaguinha. Ele se referia a esse poema de forma muito entusiástica e tinha vontade de musicá-lo. Não sei nem se ele chegou a fazê-lo, eu acho que não; que, se tivesse feito, a gente saberia. Mas o Bené fez.
Sobre a motivação da feitura dos versos. — O que é uma pessoa, o que é a alma, a dimensão anímica na vida dessa pessoa, e pra onde essa dimensão anímica se desloca, pra um plano da proximidade com a consciência, da percepção da consciência, da autoconsciência; o eu e os significados disso. Essas eram questões que estavam o tempo todo ali povoando o meu trabalho. A lavra das canções estava toda ela ligada ao recanto dessa mina, à mineração de pepitas sobre mente e espírito. “O som da pessoa” é uma das minhas canções sobre meditação. É, ela mesma, uma pequena meditação [assim como a canção homônima, “Meditação”].
Sobre a música feita pelo Bené traduzir o aspecto meditativo da letra. — Ele percebeu que era essa a intenção original, que, aliás, também é regra, aparecendo muito frequentemente, no trabalho dele próprio. As canções, os sambas que ele faz, têm um pouco esse mesmo tom. E aí, quando ele me mostrou, eu achei perfeito; achei que a música tinha sido acoplada de maneira muito natural às palavras.
Sobre o parceiro. — Eu e o Bené nos conhecemos desde há muito tempo; desde os anos 70. Ele com um relacionamento muito estreito com várias figuras da Bahia — o Mário Cravo Neto e o André Luís de Oliveira — e uma aproximação muito intensa que teve comigo, com meu trabalho, com o trabalho do Caetano. Ele é um ser orbital do nosso mundo, do nosso planeta, um dos satélites desse planeta poesia, brasileiro, e já àquela época foi mostrando interesse pela Bahia, uma referência profunda pra ele — um lugar de refúgio dele — até hoje.
Muito espiritualizado; de uma espiritualização aberta, miscigenada, sincrética. — Sincrética, pluralista. E ele vê essa mesma identidade em mim, no Caetano, em vários outros artistas, poetas. Um grande devoto de Luiz Gonzaga.
Paraense de origem, de família cearense, com ligação com o Nordeste e com o Centro-Oeste (Mato Grosso e Mato Grosso do Sul).
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O rouxinol
Gilberto Gil
Jorge Mautner
Pra pescar o sol
Mas tudo que eu pesquei
Foi um rouxinol
Foi um rouxinol
Levei-o para casa
Tratei da sua asa
Ele ficou bom
Fez até um som
Ling, ling, leng
Ling, ling, leng, ling
Cantando um rock com um toque diferente
Dizendo que era um rock do oriente pra mim
Cantando um rock com um toque diferente
Dizendo que era um rock do oriente pra mim
Depois foi embora
Na boca da aurora
Pássaro de seda
Com cheiro de jasmim
Cheiro de jasmim
O revólver do meu sonho
Gilberto Gil
Waly Salomão
Roberto Frejat
Apagou a fita daquela canção
A Casa do Sol Nascente?
Enfiou a tesoura na transação?
Passou a gilete na ligação?
Meteu a borracha no traço de união
Ocidente-Oriente?
Passado-futuro-presente
Fundido e confundido na minha mente
A todo o vapor
Barato era tudo muito mais
As Curvas da Estrada de Santos
O motor fervia
O carro rugia, meu amor
O coração batia tão feroz
Mas o mundo corria muito mais veloz que nós
Mais veloz que nós
O revólver do meu sonho atirava
Atirava no que via
Mas não matava o desejo
Do que ainda não existia
Interfone, blitz, joaninha, computador
O futuro comum de hoje em dia
Que eu, cigana, já pressentia
Mas você não percebia
No espelho retrovisor
O revólver dos Beatles disparava nas paradas
Me assustava, me encantava e movia
E eu ia, e eu ia, e eu ia
E recocheteava
Arembepe, Woodstock, píer, verão da Bahia
Arembepe, Woodstock, píer, verão da Bahia
O revólver do meu sonho atirava
Atirava no que via
Mas não matava o desejo
Do que ainda não existia