Músicas
O oco do mundo
Gilberto Gil
para trans e meta pós
o oco do mundo a foz
de um rio sem nascente
como um broto sem semente
um raio de sol sem luz
como infecção sem pus
o oco do mundo a sós
o oco do mundo ainda
na minha periferia
como eco da bahia
saudade do meu sertão
o oco do mundo inteiro
passando pela tangente
ainda na minha frente
como um campo de visão
o oco do mundo vem
se aproximando de mim
primeiro como calor
depois como frenesi
em seguida como odor
e logo como tremor
o oco do mundo vem
se aproximando de mim
o oco do mundo então
já no meu interior
pedaço de pau na mão
fazendo de mim tambor
batendo tirando som
e sangue e suor e horror
o oco do mundo então
encarnação do terror
o oco do mundo sai
vai se pôr por traz de mim
depos de me haver cruzado
a alma e o corpo presente
depois de engulir-me a mente
e sugar o meu passado
o oco do mundo sai
no futuro projetado
o oco do mundo fora
do alcance da linguagem
o oco do mundo imagem
sem epelho, sem suporte
o oco do mundo a morte
sem corpo, sem substrato
sem noção, sem aparato
como o azar sem a sorte
o oco do mundo em si
despido de qualquer veste
nem cão nem cabra da peste
nem anjo nem mãe de deus
opaco buraco negro
sem casca caroco ou ego
o oco do mundo cego
sozinho em seu próprio céu
o oco do mundo enfim
o oco do mundo além
além do mal e do bem
da verdade nua e crua
alem do saber dos sabios
alem do deus dos snobs
o oco do mundo é o bobs
no cabelo da perua
Gravação
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Warner Music
Comentário*
“Não tenho medo da morte” e “O oco do mundo” são da mesma safra; são “espanholas”. De Sevilha [onde foi composta a primeira], eu fui pra uma cidade chamada Vitória, onde eu fiz, acabei de fazer, “O oco do mundo”. “Não tenho medo da morte” e “O oco do mundo” se relacionam. Elas são gêmeas não univitelinas. Têm caras diferentes, mas lá no fundo é a mesma questão.
De novo o gosto pela especulação do cerne da poesia. Bastaria a primeira estrofe (de “O oco do mundo”): já daria conta. Mas como o especular sobre a transdimensionalidade do cheio e do vazio não termina nunca, é insaciável, não tem satisfação, então a letra teve que ir para uma segunda estrofe, uma terceira e… Eu me lembro lá em Vitória, eu me dizendo: “Não tenho mais nada que dizer sobre isso. O oco do mundo é oco e pronto. Mas não, peraí, diga mais, pense mais, fale mais, sinta mais”. Nessa tautologia: repetindo, insistindo, pleonasmicamente, sobre a mesma coisa.
E de novo a redondilha maior. — A redondilha maior, a estilística clássica… E eu cito aqui Augusto dos Anjos, porque ele poderia ter feito “O oco do mundo”. É bem augustiniano-angelical. Bem Augusto dos Anjos.
Quando você escreveu a letra, você já fez a música junto ou imaginou um tipo de canto? — Não; só depois é que eu pensei nisso.
Ela é meio hip-hop; algo entre o rock, o hip-hop e a melodia. — Exatamente. Como “Não tenho medo da morte” já teria sido também, porque começou com um ritmo e uma linha melódica que acabou se espraiando para todas as estrofes, mas que na última interpretação que eu fiz dela, pro show com Caetano, já desaparece; em praticamente boa parte da melodia ficou só o cantochão, a versão jogralizada, recitativa, pura.
Então a versão de “Não tenho medo da morte” do show com o Caetano tem a ver mesmo com a essência original, a aspiração original dela. — Exatamente. Eu reduzi a rítmica que o Bem propôs a uma batida simples no violão, no tanger da corda grave de um mi. Fiz mesmo uma redução estilística da canção, depois de ter feito a gravação original dela com um arranjo de cordas do Jaquinho Morelenbaum.
“O oco do mundo” teria algo a ver com “Copo vazio” também, não? — Sem dúvida. “Copo vazio” é uma outra dessas tais canções especulativas sobre não começo, não fim. Nãofimnãocomeçonãofimnãocomeço. O que não tem começo nem terá fim. É isso.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O mar e o lago
Gilberto Gil
Ondas no lago sereno
Vento repentino
Ares de menino
Fugas de brigas de rua
Luas e luas e luas
Repentina paz
Meu velho rapaz
O velho Mário Lago
O velho, o mar e o lago
O mar e o lago
A alma bem resolvida
A embarcação ancorada
Mar incorporado
Mares do passado
Aqui agora o presente
Lago tranquilo da mente
Paz no coração
Meu amado irmão
O velho Mário Lago
O velho, o mar e o lago
O mar e o lago
Gravações
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – It ‘s Good To Be Alive (Anos 90), 2002 – Warner Music
Comentário*
Eu fui tocado pela ideia da música falando: ‘O Mário Lago’; ‘o Mário Lago’; ‘o Mário Lago’; chegou uma hora que o sentido do que eu falava saiu do nome da pessoa e foi para… ‘o mar e o lago’.
Aí eu achei irrecusável a descoberta: afinal, eram o mar e o lago. O mar, a grande água (eu me lembrava do ‘I ching’: ‘É propício atravessar a grande água’: o mar), e o lago, a pequena água; a grande poça e a pequena poça. Eu achei que era então para falar dele desse modo: ‘O mar e o lago’. ‘Mar incorporado’: a incorporação do mar pelo lago, a incorporação do lago pelo mar, esses dois corpos d’água de dimensões tão diferentes, mas com a mesma qualidade do acumular, do estar ali, do tempo que junta as coisas – esse sentido está configurado em ambos, tanto no mar, quanto no lago. E a ideia do grande e do pequeno também nele, na humildade do grande homem velho. Ele foi tipicamente um caso desses em que o velho foi ficando cada vez mais lépido, chegando até os 90 e tantos.
Uma figura maravilhosa. Um nome da arte popular brasileira do século 20; da música, mas não só da música: da militância política, do teatro, do rádio, da televisão. Autor de grandes clássicos, com vários parceiros, o Ataulfo [Alves], o Custódio [Mesquita]. Eu achei a descoberta dos dois corpos d’água no nome dele tentadora, e não resisti a escrever uma canção sobre ‘o mar e o lago’ nele, n’o Mário Lago’. Ele já era velho mesmo.
A letra ficou guardada por muito tempo antes de eu fazer a música, vindo a gravá-la somente no disco ‘Quanta’.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O lugar do nosso amor
Gilberto Gil
De uma bomba que explodiu
No saguão do nosso amor
Não foi tão grande assim
Nem tão profundo assim
Que lá no fundo fosse o fim do mundo
Lá no fundo o que ficou
Estilhaços de aflição
E pedaços de rancor
Não valem nada não
Não enchem um caminhão
Pegue com sua mão
Jogue no lixo
Deixe limpar seu coração
A bomba que explodiu, meu bem
Não passava de um traque
Tratava-se de um truque
De um mágico de fraque
História de almanaque de ilusões
Não há nada a lamentar
Ficou tudo no lugar
No lugar do nosso amor morar
O livre-atirador e a pegadora
Gilberto Gil
Não é um par porque logo são três – ou mais
O fato é que já estão acostumados
Namoradas, namorados vários de uma vez
Muita performance, muita parada
Muita balada, muito forrozão
Não tem romance, não tem paixão frustrada
De valenaite não precisam, não
Eh, vale dia e noite, eh, vale noite e dia
Vale pro carnaval, vale pro São João
Vale pro Rio, pra São Paulo, pra Bahia
Vale pro Ceará, vale pro Maranhão
O livre-atirador e a pegadora
A pegadora e o livre-atirador, que amor
Que amor pra eles é amor-pletora
Quem namora (2x), quem namora quem
Quem Timbalada, quem Babado Novo
Quem Psirico, quem calcinha azul
Calcinha Preta com cuequinha branca
Quem vale norte, vale norte a sul
Gravação
Gilberto Gil – Fé na festa, 2010 – Gege
Comentário*
Essa música foi provocada por uma expressão, “vale-night” [extraída da canção homônima, de Durval Lelys], que apareceu no Carnaval da Bahia com o Asa de Águia [a letra menciona outros grupos da música baiana em voga no período: Timbalada, Babado Novo, Psirico, Calcinha Preta], com o significado de liberação, um tiquete de liberação sexual entre casais. A canção surgiu disso; os elementos foram aparecendo, a ideia dos couples, dos pares de vários tipos: os heterossexuais, os homossexuais, os transexuais, os lgbtxyz da vida, todos eles. Daí também a ideia do xote, do conceito instigante da ironia, do duplo sentido, típico de um tipo de música nordestina, especialmente o xote, de que a gente tem outros exemplos no meu próprio trabalho. Os personagens vão surgindo, e vai se desenvolvendo um xote apimentado. Era um disco de música nordestina que eu estava fazendo: Fé na festa, de música junina. Então a ideia do xote veio quase seguramente por causa disso. Eu poderia ter feito uma outra canção com outro gênero, tratando das mesmas questões. Mas eu escolhi o xote, porque o xote abriga muito bem esse tipo de coisa apimentada.
Fala-se, inclusive, de amor pletora. — Exatamente. Variações múltiplas. Um sentimento de fartura, de sexualidade farta.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O Lenço e o Lençol
Gilberto Gil
Não tenho dono
Ninguém será capaz de me dobrar
Como seu eu fosse um lenço e pôr no bolso
E me tirar do bolso e se enxugar
O meu amor eu dou a quem me veja
Como um lençol quarando no varal
Alguém que chega me abraça e me beija
E eu ali pulando o carnaval
Pulando o carnaval
Literalmente
Ou pulando e caindo bem sentada
Em posição de lótus na calçada
A multidão passando alegremente
Sou quem sou vou fazendo o que eu bem queira
Sem eira nem beira nem protocolo
Quem me quiser que descubra a maneira
Não me bote no bolso e sim no colo
Quem me quiser que veja eu sou imensa
Eu sou intensa como a luz do sol
Quem me quiser que veja a diferença
Do tamanho do lenço e do lençol
Quem me quiser que veja a diferença
Do tamanho do lenço e do lençol
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
Nessa canção Roberta Sá é a personagem; canção feita pra ela e inspirada nela. Mulher solta, liberta, autônoma, todo esse conjunto de características associado às mulheres contemporâneas, às moças de hoje; e ela, sem dúvida alguma, é uma das representantes mais vivas, vivazes, desse campo.
[Gil manifesta um gosto particular pelas ideias poéticas de passagens como aquela em que a “personagem” cai sentada, ressaltando ali “o sentido da interioridade, da adesão irrecusável à profundidade interior dela; a ideia da meditação mesmo no meio do Carnaval. Nela também tem o cultivo da dimensão da interioridade, do silêncio, da pessoa quieta”. Ele destaca ainda o trecho que culmina no verso contendo a expressão-título (“Do tamanho do lenço e do lençol”, em diálogo com “A linha e o linho”) da canção: “O lençol não é coisa pra se botar no bolso, se dobrar e se enxugar; não é”. O objetivo foi “associá-la, assim, à dimensão mais ampla, mais aberta do lençol”.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O jornal
Gilberto Gil
Um jornal é tão bonito
Tudo escrito, tudo dito
Tudo num fotolito
É tão bonito um jornal
Vigilantes do momento
Senhores do bom jargão
Façam já soprar o vento
Seja em qualquer direção
Que o jornal é a matéria
E o espírito do mundo
Coisa fútil, coisa séria
Todo escrever vagabundo
Um jornal é tão diverso
Um jornal é tão diverso
Tudo impresso, tudo expresso
Tudo pelo sucesso
É tão diverso um jornal
Não importa a má notícia
Mas vale a boa versão
Na nota um toque de astúcia
E faça-se a opinião
De outra feita, quando seja
Desejo editorial
Faça-se sujo o que é limpo
Troque-se o bem pelo mal
Um jornal é tanta gente
Um jornal é tanta gente
Tudo frio, tudo quente
Tudo preso à corrente
É tanta gente um jornal
Um que dita, um que escreve
Um que confessa, um que mente
Um que manda, um que obedece
Um que calcula, um que sente
Um que recebe propina
Um que continua honesto
Um puxa-saco dos fortes
Um que mantém seu protesto
Um que trafica influência
Um que tem opinião
Um jornalista de fato
Um rato de redação
Um jornal é igual ao mundo
Um jornal é igual ao mundo
Tudo certo, tudo incerto
Tudo tão longe e perto
É igual ao mundo um jornal
Gravação
Erasmo Carlos – Homem de rua, 1992 – Sony Music
Comentário*
“O jornal” foi criada para o Erasmo Carlos, por ele ter sido líder de um movimento — a Jovem Guarda — que, como tantos outros líderes de movimentos musicais no Brasil, tinha tido um tratamento complicado por parte da imprensa. Esses caminhos enviesados da chamada crítica de cultura… Eu pensei: “Erasmo vai gostar de uma canção assim, que venha em defesa de nós, artistas, de nossa instituição; que nos defenda do modo canhestro como a gente é tratado pela imprensa numa boa parte das vezes”.
Fiz então uma canção passando por dentro da redação. Uma canção que reconhece a importância do jornal, mas que, ao mesmo tempo, argumenta que não adianta o jornal querer se colocar numa instância acima do bem e do mal, acima de tudo, porque na verdade ele é feito por pessoas, com todos os seus interesses próprios, particulares, ou de grupos ou facções, com seus defeitos; ali não há estar acima de nada. É uma música que passa por dentro das entranhas humanas das redações.
A canção versa inclusive sobre uma visão meio aética que os jornalistas têm que ter, no seu compromisso com fazer, vender, espalhar notícia; dar contornos próprios, específicos, às versões que fazem dos fatos — esse lado difícil do jornalismo. Ela é dura, mas humanizante: dá ao jornal uma dimensão da qual eles querem sempre fugir, a da realidade humana a que pertencem; eles querem estar um pouco acima disso, mas não estão.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O fim da história
Gilberto Gil
Venha comprovar
Nem negar que a História
Possa se acabar
Basta ver que um povo
Derruba um czar
Derruba de novo
Quem pôs no lugar
É como se o livro dos tempos pudesse
Ser lido trás pra frente, frente pra trás
Vem a História, escreve um capítulo
Cujo título pode ser “Nunca Mais”
Vem o tempo e elege outra história, que escreve
Outra parte, que se chama “Nunca É Demais”
“Nunca Mais”, “Nunca É Demais”, “Nunca Mais”
“Nunca É Demais”, e assim por diante, tanto faz
Indiferente se o livro é lido
De trás pra frente ou lido de frente pra trás
Quantos muros ergam
Como o de Berlim
Por mais que perdurem
Sempre terão fim
E assim por diante
Nunca vai parar
Seja neste mundo
Ou em qualquer lugar
Por isso é que um cangaceiro
Será sempre anjo e capeta, bandido e herói
Deu-se notícia do fim do cangaço
E a notícia foi o estardalhaço que foi
Passaram-se os anos, eis que um plebiscito
Ressuscita o mito que não se destrói
Oi, Lampião sim, Lampião não, Lampião talvez
Lampião faz bem, Lampião dói
Sempre o pirão de farinha da História
E a farinha e o moinho do tempo que mói
Tantos cangaceiros
Como Lampião
Por mais que se matem
Sempre voltarão
E assim por diante
Nunca vai parar
Inferno de Dante
Céu de Jeová
Gravação
Gilberto Gil – Parabolicamará, 1991 – Warner Music
Comentário*
A canção foi composta para responder à colocação do scholar nipo-americano Francis Fukuyama, que num artigo publicado um pouco antes defendeu a tese neoliberalista de que, com o final do comunismo — que, segundo ele, teria desaparecido —, a História teria também acabado. O artigo se chamou justamente “O fim da História”, e foi escrito para provar o término da marcha das utopias. Para lançar minha contestação frontal a isso, eu fiz a advocacia do “eterno retorno”, tratando exatamente da questão de que tratava Fukuyama (a derrocada do socialismo enquanto configuração dos conjuntos nacionais do Leste Europeu), e trazendo à discussão o mito de Lampião (havia então a notícia de que, numa cidadezinha do Nordeste, tinham tentado tirar a sua estátua, o que gerou polêmica, sugerindo-se um plebiscito em que o povo acabou preferindo mantê-la).
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O eterno deus Mu dança!
Gilberto Gil
Sente-se que a coisa já não pode ficar como está
Sente-se a decisão dessa gente em se manifestar
Sente-se o que a massa sente, a massa quer gritar:
“A gente quer mu-dança
O dia da mu-dança
A hora da mu-dança
O gesto da mu-dança”
Sente-se tranqüilamente e ponha-se a raciocinar
Sente-se na arquibancada ou sente-se à mesa de um bar
Sente-se onde haja gente, logo você vai notar
Sente-se algo diferente: a massa quer se levantar
Pra ver mu-dança
O time da mu-dança
O jogo da mu-dança
O lance da mu-dança
Sente-se – e não é somente aqui, mas em qualquer lugar:
Terras, povos diferentes – outros sonhos pra sonhar
Mesmo e até principalmente onde menos queixas há
Mesmo lá, no inconsciente, alguma coisa está
Clamando por mu-dança
O tempo da mu-dança
O sinal da mu-dança
O ponto da mu-dança
Sente-se, o que chamou-se Ocidente tende a arrebentar
Todas as correntes do presente para enveredar
Já pelas veredas do futuro ciclo do ar
Sente-se! Levante-se! Prepare-se para celebrar
O deus Mu dança!
O eterno deus Mu dança!
Talvez em paz Mu dança!
Talvez com sua lança
Gravações
Gilberto Gil – O eterno Deus Mu Dança, 1989 – Warner Music
Carla Visi – Carla Visita Gilberto Gil, 2001 – MZA Music
Comentário*
De acordo com Gil, o vocábulo “mu”, para designar uma divindade, assim como a palavra “mudança” transformada em nome próprio também de uma entidade divina, é uma licenciosidade poética, fundamentada semanticamente, contudo, numa relação com o termo Lemúria, do qual é extraído, e que é, segundo estudiosos esotéricos das idades, o nome da região pré-Atlântida de onde ter-se-ia originado a raça negra.
“Na verdade”, conta ele, “a criação do vocábulo foi acidental, tendo ocorrido em decorrência da decomposição da palavra ‘mudança’ em ‘mu-dança’, forçada pelo trecho da melodia que o Celsinho Fonseca tinha me dado, pronta, em Paris, para eu letrar. No final, tudo acabou ficando apropriado, tanto os substantivos Mu e Mudança significando dois deuses (um deus-deus e um deus-deusa) como o verbo dançar, já que a música era dançante, meio disco, meio funk.
Sendo que o sentido de ‘mudança’ era, antes de tudo mais, o motivo principal da canção: a ideia paradoxal da transformação como a única constante do universo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O compositor me disse
Gilberto Gil
Essa canção
Que eu cantasse como se o vento soprasse pela boca
Vindo do pulmão
E que eu ficasse ao lado pra escutar o vento jogando as palavras
Pelo ar
O compositor me disse que eu cantasse ligada no vento
Sem ligar
Pras coisas que ele quis dizer
Que eu não pensasse em mim nem em você
Que eu cantasse distraidamente como bate o coração
E que eu parasse aqui
Assim
Gravações
Elis Regina – Elis, 1974 – Philips
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao vivo), 1974 – Universal Music
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Comentário*
“O compositor me disse” é uma música que dialoga com a intérprete para a qual eu a compus, a Elis Regina, meio cabotinamente. Sou eu me arvorando em mestre, tentando lhe ensinar coisas; falando como um terapeuta para um paciente. Ela própria se queixava muito de certa dificuldade para um relaxamento. Como não sou psiquiatra, psicólogo, eu lhe mandei um recado através da canção. Era uma lição de ioga, para induzi-la a pensar no respirar e a não pensar naquilo que está sendo dito, ao cantar; a fazer do canto um veículo de expressão da interioridade completa, e da serenidade, um pressuposto, um patamar da elevação do canto. Ela sabia do que se tratava, e havia suficiente intimidade entre nós para que aquilo não soasse pretensioso, demasiadamente cabotino, paternalista até. Ela tinha admiração por minhas inclinações pela ioga; gostava do meu modo de gostar disso. E gostava de me gravar. Elis foi a cantora que mais me gravou, considerando o período da sua produção. Ela era louca por mim, eu era louco por ela, por outras tantas razões — eu fui apaixonado por ela fisicamente.
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999. “É oriental, pré-socrática. E antes de mandar para ela, quando fui cantar a canção com o violão, eu tive uma dificuldade de harmonizá-la, no sentido de escolher os acordes: qual a sucessão, qual a sequência, como é que vai… Porque ela tem uma harmonia implícita, mas de difícil vislumbre. Não é fácil mesmo de vislumbrar. Acabei escolhendo uma versão harmônica que eu mandei para ela. Elis a transformou bastante na gravação, porque aí o César Camargo Mariano, com toda sua boa ambição estético-harmônica, transformou muito. Mas é basicamente uma canção para ser cantada ‘a palo seco’ e para ser sussurrada, fazendo emergir na pessoa que a cantar — no caso dela, que era uma adestrada nas coisas da música — certos eflúvios harmônicos.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
O cometa
Gilberto Gil
Waly Salomão
Que acentua a divisão
Profeta branco, anuncia
O fim do planeta Terra
Fome, seca, epidemia
Bexiga, maleita, morte
O diabo a quatro
Eta cometa da peste
De mil e seiscentos e sessenta e quatro
O cometa é um facão
Que acentua a divisão
Pro povo preto é bendito
É bem-vindo e é bonito
Ajunta céu e terra
Fartura e festa
Estrela e mata
Eta cometa porreta
De mil e seiscentos e sessenta e quatro
Gravação
Gilberto Gil – Quilombo, 2002 – Warner Music
O bom jogador
Gilberto Gil
O bom jogador não engana a geral
Afrouxa quem tem coragem
Deixa de galinhagem
O amor aqui de casa
Gilberto Gil
A chuva não dá sinal
Quem no mel seu mal padece
Seu bem conserva no sal
Vai doer de novo o parto
Vai secar de novo o açude
Vida aqui tem sala e quarto
Quem não couber que se mude
O amor daqui de casa
Tem um sentimento forte
Que nem gemido na telha
Quando sopra o vento norte
Que nem cheiro de boi morto
Três dias depois da morte
Quem só conhece conforto
Não merece boa sorte
O amor daqui de casa
Tem um sentimento nu
Com gosto de umbú travoso
Com cheiro de couro crú
Gravações
Gilberto Gil – As canções de eu, tu, eles, 2000 – Warner Music
Gilberto Gil – São João Vivo! (Deluxe), 2005 – Warner Music
Nicolas Krassik e Cordestinos – Nicolas Krassik e Cordestinos, 2008 – Rob Digital
Comentário*
A principal das canções que eu compus para o filme ‘Eu Tu Ele’, do Andrucha Waddington, justamente para a personagem principal (Darlene), vivida pela Regina Casé; pensando no significado geral dela, do seu posicionamento com relação ao amor e ao compartilhamento da sua vida afetiva com dois amantes. Eu já possuía a música, já a tinha composto certo dia, havia não muito tempo, e a cantarolava de vez em quando. Eu a tinha composto no modo de si maior, aproveitando uma modalidade violonística dessa tonalidade. Então, quando surgiu a tarefa de criar canções para a trilha, eu disse: ‘Deixa eu aproveitar essa música que é tão nordestina, vou ver se encaixo nela as palavras’. E fui fazendo a letra, toda em redondilhas maiores. A melodia já era apropriada exatamente para versos dessa medida, muito característica das frases melódicas da toada nordestina.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Na casa dela
Gilberto Gil
Trago a emoção
Bem vivida em meu coração
Do instante em que
Ví o fogo santo brotar do chão
Como uma flor
Como uma semente de ardor
Com um esplendor de uma cor
Que não tem comparação
O fogo eu vi
A sensação pude sentir
Nos meus pés descalços
Era suave e morno o calor
E há mais no ar
Havia perfume a exalar
Tão embriagador de quase não
Se poder respirar
Como se não bastassem
O fogo e o olor
Foi tocado um sino que eu sei
Que um anjo foi quem tocou
Fogo, calor, perfume
Som de sino, oiô
Só faltava o mel,
Só faltava o mel
Mas o mel chegou!
Pingava mel
Da parede escorria mel
Eu passava o dedo
E provava sem medo, sem temor
Doce sabor
Comprovava o gosto de amor
Lá na casa dela
Na casa dela, a Mãe do Senhor
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – São João (Ao vivo), 2001 – Warner Music
Comentário*
Essa é sobre os fenômenos de materialização que aconteciam na casa de uma mãe e uma filha, duas médiuns, perto de Campinas, em São Paulo. Fenômenos que eram testemunhados, presenciados por várias pessoas, dentre elas eu, Flora, Moreno Veloso, Elba Ramalho. Nós fomos levados pra lá como todas as pessoas iam, levadas por outras; como nas romarias.
Então nada é metafórico nem alegórico na letra? É tudo concreto mesmo? — Concreto. Havia todos esses fenômenos, e havia todo um processo devocional que se desenvolvia ali, assumido mais fortemente por uns, menos por outros. A Elba, por exemplo, chegou a ter esses fenômenos reproduzidos na casa dela com as imagens que ela teve de Nossa Senhora; em muitas ocasiões, na casa dela em São Conrado [no Rio de Janeiro], do rosto de Nossa Senhora também escorreu mel.
Brotava fogo não só do chão, mas de outros lugares da casa também; das paredes. A canção é pra narrar aquele ritual e as sensações propiciadas por ele, sensações essas que a gente não pode especular se eram do campo do real ou da ilusão; se estávamos todos — como é que poderíamos dizer? — hipnotizados ou não.
Mas se era ilusão todos estavam tendo a mesmíssima ilusão.
— A mesmíssima ilusão. Um pouco na mesma dimensão, digamos assim, dos fenômenos dos óvnis, os fenômenos das luzes, dos discos voadores e das tais abduções; de quando as pessoas são abduzidas. As abduções são desse campo de fenômenos extra materiais, do campo do extraordinário.
O ritual era religioso? — Religioso ou parar religioso ou trans religioso; através de instâncias religiosas, mas transcendendo a mera dimensão religiosa devocional. Tinha a ideia de infusão, de encontro com o elemento milagroso, não havia muito distanciamento entre o milagre e o presenciar do milagre. Nós éramos parte daquilo tudo ali.
Por que a canção entrou num de seus discos “nordestinos”, São João vivo! — Talvez porque ela seja um baião. As mulheres não são nordestinas. Acho que são ambas mineiras ou dali do interior de São Paulo; da região entre Minas e São Paulo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Extra 2 (O rock do segurança)
Gilberto Gil
Eu disse: “Nada de crachá, meu chapa
Eu sou um escrachado, um extra achado
Num galpão abandonado, nada de crachá
“Sei que o senhor é pago pra suspeitar
Mas eu estou acima de qualquer suspeita
Em meu planeta, todo povo me respeita
Sou tratado assim como um paxá
“Essa aparência
De um mero vagabundo é mera coincidência
Deve-se ao fato
De eu ter vindo ao seu mundo com a incumbência
De andar a terra
Saber por que o amor, saber por que a guerra
Olhar a cara
Da pessoa comum e da pessoa rara
“Um dia rico, um dia pobre, um dia no poder
Um dia chanceler, um dia sem comer
Coincidiu de hoje ser meu dia de mendigo
Meu amigo, se eu quisesse, eu entraria sem você me ver”
Gravações
Gilberto Gil – Raça humana, 1984 – Warner Music
Alceu Valença – Songbook Gilberto Gil, 1992 -Lumiar
Nego Alvaro – Cria do Samba, 2016 – Coqueiro Verde
Comentário*
A música foi feita em meia hora, na mesa de um quarto do Hotel Marina, no Rio, onde eu estava morando um tempo com Flora. Eu estava criando as canções do Raça humana (metade do disco era na linha rock brasileiro) e, uma noite, antes de sairmos pra jantar, fiquei fazendo um riff de rock e quis usar um mote ligado às vivências típicas do mundo do rock ‘n’ roll. Pensei então na situação dos seguranças barrando os fãs no ímpeto de entrar nos lugares onde estão os ídolos, e o impasse natural e necessário que se cria. A partir daí, as associações foram sendo feitas naturalmente por necessidade de criação do personagem, um et divino que vem como um homem simples, humilde — uma imagem cristã, a do Deus que encarna para se solidarizar com o ser humano. “Extra 2” dá sequência a “Extra”; lá, o et era epifânico, aqui ele é crístico, e na primeira pessoa: eu sou ele. Já é outra visão, influenciada pelo mito de que extraterrenos se disfarçam de humanos, por várias razões.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Extra
Gilberto Gil
Santo Salvador
Baixa
Seja como for
Acha
Nossa direção
Flecha
Nosso coração
Puxa
Pelo nosso amor
Racha
Os muros da prisão
Extra
Resta uma ilusão
Extra
Resta uma ilusão
Extra
Abra-se cadabra-se a prisão
Baixa
Cristo ou Oxalá
Baixa
Santo ou orixá
Rocha
Chuva, laser, gás
Bicho
Planta, tanto faz
Brecha
Faça-se abrir
Deixa
Nossa dor fugir
Extra
Entra por favor
Extra
Entra por favor
Extra
Abra-se cadabra-se o temor
Eu, tu e todos no mundo
No fundo, tememos por nosso futuro
ET e todos os santos, valei-nos
Livrai-nos desse tempo escuro
Gravações
Gilberto Gil – Extra, 1983 – Warner Music
Cidade Negra – Acústico Cidade Negra, 2002 – Sony Music
Gilberto Gil – Kaya n’gan daya (Ao vivo), 2003 – Warner Music
Gilberto Gil e BaianaSystem – Gil Baiana Ao Vivo em Salvador, 2020 – Gege e Máquina de Louco
Comentário*
A música foi inspirada pelo conjunto de referências da literatura que associava as aparições descritas na Bíblia (o anjo Gabriel, as carruagens de fogo) a seres extraterrenos e discos voadores. É, nesse sentido, tardia para mim, porque não corresponde ao momento do meu interesse profundo por essas coisas. Para mim, o assunto esteve mais em voga na década de 70, em Londres e na volta ao Brasil, na época do Refazenda, do general Uchôa e das reuniões de ufologia. “Extra” chegou, portanto, dez anos depois. É uma espécie de oração, de pedido de socorro, de invocação aos céus, na expectativa de que a vinda do et, assimilado a um santo, traga um melhoramento do ser humano e da vida no planeta Terra.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Êxtase
Gilberto Gil
“Brasil ano 2000”, vários, Universal Music
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
Expresso 2222
Gilberto Gil
Que parte direto de Bonsucesso pra depois
Começou a circular o Expresso 2222
Da Central do Brasil
Que parte direto de Bonsucesso
Pra depois do ano 2000
Dizem que tem muita gente de agora
Se adiantando, partindo pra lá
Pra 2001 e 2 e tempo afora
Até onde essa estrada do tempo vai dar
Do tempo vai dar
Do tempo vai dar, menina, do tempo vai
Segundo quem já andou no Expresso
Lá pelo ano 2000 fica a tal
Estação final do percurso-vida
Na terra-mãe concebida
De vento, de fogo, de água e sal
De água e sal
De água e sal
Ô, menina, de água e sal
Dizem que parece o bonde do morro
Do Corcovado daqui
Só que não se pega e entra e senta e anda
O trilho é feito um brilho que não tem fim
Oi, que não tem fim
Que não tem fim
Ô, menina, que não tem fim
Nunca se chega no Cristo concreto
De matéria ou qualquer coisa real
Depois de 2001 e 2 e tempo afora
O Cristo é como quem foi visto subindo ao céu
Subindo ao céu
Num véu de nuvem brilhante subindo ao céu
Gravações
Gilberto Gil – Live in London ’71, Vol. 2 (Ao Vivo), 1971 – Gege
Gilberto Gil – Expresso 2222, 1972 – Philips
Gilberto Gil – Back in Bahia (Ao Vivo), 1972 – Gege
Gilberto Gil – Ao Vivo na USP, 1973 – Gege
Gilberto Gil – O Viramundo, Vol. 1 (Ao Vivo), 1976 – Gege
Ana Belén – Ana En Rio, 1982 – Sony Music (Spain)
João Bosco – Songbook Gilberto Gil, Vol. 3, 1992 – Lumiar
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
João Bosco – Da licença meu senhor, 1995 – Sony Music
Armandinho Macedo – A voz do bandolim – Caetano e Gil, 2001 – Visom Digital
Marco Pereira – O samba da minha terra, 2004 – Marco Pereira
João Bosco – Maxximum, 2005 – Sony Music
Gilberto Gil – Bandadois (Ao Vivo), 2009 – Gege
Wilson Simonal – Um sorriso pra você, 2009 – Universal Music
Maria Bethânia – Noite Luzidia (Ao Vivo), 2012 – Biscoito Fino
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Dois Amigos, um Século de Música (Ao Vivo), 2015 -Gege e Uns Produções Artísticas
Daniela Mercury – Baile Barroco, 2015 – Páginas do Mar
Wilson Simonal – A Arte de Wilson Simonal, 2015 – Universal Music
Vanessa Moreno e Fi Maróstica – Cores Vivas: canções de Gilberto Gil, 2016 – Tratore
MPB 4 – Barra Pesada (Ao Vivo), 2019 – Discobertas
Gilberto Gil – Concerto de Cordas e Máquinas de Ritmo – Extra (Ao Vivo), 2020 – Biscoito Fino
Nicolas Krassik – Expresso 2222 (single), 2020 – Gege
Trio Nordestino – Canta Gilberto Gil, 2020 – Biscoito Fino
Caraivana – Caraivana toca Gil Ep. 1, 2021 – Tratore
Carlos Malta e Pife Muderno – Carlos Malta e Pife Muderno em Gils: Suíte Viramundo, 2022 – Deck
Comentário*
Um dia em Londres eu anotei num caderno: ‘Começou a circular o expresso 2222, que parte direto de Bonsucesso pra depois’ – e esse pra depois me suscitou imediatamente uma parada. Não tive o mínimo ímpeto de continuar nada; decidi deixar aquilo ali como um vinho, num barril de carvalho, pra envelhecer. Só quase um ano mais tarde, já em outra casa, peguei de novo o caderno (onde, além de versos, eu anotava recados telefônicos, bilhetes para Sandra), musiquei o que tinha escrito e, com o violão, fui fazendo o resto.
Por que 2222 – Da infância até a idade adulta eu fiz muita viagem de trem, que era um dos meios de transportes fundamentais para nós da Bahia. Os trens da Companhia Leste Brasileira – e outros – saindo e entrando nas estações, em Salvador, em Ituaçu, em Nazaré das Farinhas, me marcaram. Não sei por que cargas d’água, essa repetição do 2 era algo de que eu estava impregnado; alguma locomotiva, de número 222, que eu vi, ficou na minha cabeça e, quando comecei a letra, a primeira imagem que me veio foi dela.
As metáforas da canção – É evidente que a ideia de viagem, expressa na letra, está ligada às drogas, os modificadores e expansores de consciência da época. Era um tempo de muita maconha, LSD, mescalina; Londres vivia o auge dessa cultura. O expresso foi uma alegoria literal disso. E ‘Bonsucesso’ entrou porque era rima e, além disso, referência a um lugar de onde eu vinha, de onde a viagem poderia ter-se iniciado – o Brasil, o Rio de Janeiro, aquele bairro -, seguindo dali pra depois…
Vocativo funcional – A tal menina que aparece no meio da música é uma interlocutora fictícia, que só entrou para fazer a transição rítmica entre uma linha e outra, como um engate dos vagões de um trem, mas que ganhou personalidade e reapareceu na estrofe seguinte. Eu senti necessidade de chamá-la à cena de novo, de revê-la na próxima estação… Essas coisas malucas; o feitio de uma canção é uma loucura!
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Eu vim da Bahia
Gilberto Gil
Eu vim da Bahia cantar
Eu vim da Bahia contar
Tanta coisa bonita que tem
Na Bahia, que é meu lugar
Tem meu chão, tem meu céu, tem meu mar
A Bahia que vive pra dizer
Como é que se faz pra viver
Onde a gente não tem pra comer
Mas de fome não morre
Porque na Bahia tem mãe Iemanjá
De outro lado, o Senhor do Bonfim
Que ajuda o baiano a viver
Pra cantar, pra sambar pra valer
Pra morrer de alegria
Na festa de rua, no samba de roda
Na noite de lua, no canto do mar
Eu vim da Bahia
Mas eu volto pra lá
Eu vim da Bahia
Mas algum dia eu volto pra lá
Gravações
Maria da Graça (Gal Costa), 1965 – RCA
Quarteto em Cy e Tamba Trio – Som Definitivo, 1966 – Universal Music
Stan Getz e João Gilberto – The best of two world, 1986 – Sony Music
Gilberto Gil – Em Concerto, 1987 – Gege
Leila Pinheiro e Oscar Castro Neves – Songbook Gilberto Gil, 1992 – Lumiar
João Gilberto – João Voz e Violão, 1999 – Universal Music
Baden Powell – O Universo Musical, 2002 – Universal Music
Gilberto Gil – Concerto de cordas e Máquinas de ritmo (Ao vivo), 2012 – Biscoito Fino
Luciana Souza e Marco Pereira – Duos III, 2012 – Sunnyside Communications
Gilberto Gil – Gilbertos Samba, 2014 – Gege
Gilberto Gil – Gilbertos Samba Ao Vivo, 2014 – Sony Music
Jaques Morelenbaum – Coellosam3atrio – Saudade do Futuro Futuro da Saudade, 2014 – Biscoito Fino
Caetano Veloso & Gilberto Gil – Dois Amigos, um Século de Música (Ao vivo), 2015 – Sony Music
Alexandre Leão – O Teatro (Ao Vivo), 2016 – Alexandre Leão
Coral cant’duRio – Na Onda de João 73, 2021 – Mills Records
Margareth Menezes e Rosa Passos – Para Gil & Caetano, 2015 – Estrela do Mar
Stan Getz e João Gilberto – Getz/ Gilberto ’76, 2016 – Resonance Records
Bebel Gilberto – João, 2023 – [PIAS]
João Gilberto – Ao Vivo em Buenos Aires, 2023 – Ipanema Discos
Comentário*
Eu estava em Salvador ainda, quando a compus. Era janeiro, e, a convite da Gessy Lever, eu estava indo a São Paulo, já com a viagem marcada. Fiz a música querendo ou necessitando antecipar uma sensação para me precaver, digamos. Uma coisa assim: ‘Deixa eu experimentar logo essa coisa de estar fora da Bahia, já imaginar como é’. Mas também por uma vaidade de baiano, de querer descrever as riquezas, as belezas, os encantos da terra, aquilo que a particulariza, aquilo que a faz minha, aquilo que faz da Bahia a Bahia, que faz do baiano um filho dela. E foi assim: quando eu soube que eu ia fazer um show de despedida, aí preparei uma canção como se me despedindo, mas já longe, despedindo já à distância, já como se a Bahia estivesse dormindo quando eu saí em viagem, e ao acordar eu já estava longe, então tive que saudá-la de longe…
Sobre o fato de João Gilberto, em sua segunda gravação (de 1999) da música, ter deixado de cantar todo um verso (‘Na Bahia, que é meu lugar’) e o início do seguinte (‘Tem meu chão’), além de ter omitido uma (‘outro’, ao cantar: ‘E do lado o Senhor do Bonfim’) e substituído outras palavras (cantando ‘Se a gente não tem pra comer/ De fome não morre’ nos versos correspondentes e, no último, “um” no lugar de “algum”) – João faz com ela o que ele fez com a grande quantidade de canções que já cantou: ele dá a leitura mais escorreita, filtrada, quase como uma complementação, de um alter-ego deslocado, fora da própria pessoa do autor, um alter-ego de fora, o nosso alter-ego numa outra pessoa. Ele
omite as palavras, como nessa última gravação: dessa vez foi um trecho grande. Um dia ele já me perguntou: ‘Você achou demais’? Eu disse: ‘Não, eu achei da conta’. No caso do trecho ‘Na Bahia, que é meu lugar/ Tem meu chão’, ele cortou o que não precisava [juntando o ‘tem’ do final de ‘Tanta coisa bonita que tem’ com o ‘tem’ de ‘tem meu céu, tem meu mar’, e estabelecendo uma nova sequência: ‘Tanta coisa bonita que tem/ Tem meu céu, tem meu mar’], formando essa ligadura textual e ajudando mesmo a ligadura da música. João faz esse processo de recomposição. Em várias canções ele omite estrategicamente algumas palavras, no sentido de reforçar e esclarecer significados.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Eu te dei meu ané
Gilberto Gil
Marlui Miranda
Eu te dei meu ané
Eu te dei meu ané
Foi simbora o ané
Foi simbora o ané
Num aperto de mão
Ê
Menina de ouro
Menina de prata
Menina de cobre
Menina de lata
Ê
Menina direita
Menina suspeita
Menina tão cara
Menina barata
Ê
Você dizia que você me queria
Eu te dei meu ané
Eu te dei meu ané
Foi simbora o ané
Foi simbora o ané
Num aperto de mão
Eu quero andar ligeiro
Pegar o meu pandeiro
Eu quero o meu dinheiro
Eu quero ter de volta o meu ané
Ê
Menina de ouro
Menina de prata
Menina de cobre
Menina de lata
Ê
Menina, desgruda
Menina, se muda
Menina, desanda
Menina, desata
Eu e ela estávamos ali encostados na parede
Gilberto Gil
Caetano Veloso
José Agrippino de Paula
Ela estava em silêncio e eu estava em silêncio
Eu sentia o corpo dela junto ao meu
Os dois seios, o ventre, as pernas e os seus braços me envolviam
Eu pensei que ela deveria sentir o calor que eu estava sentindo
Nós dois estávamos imóveis encostados na parede
Eu não me recordo quanto tempo
Mas nós estávamos abraçados
E encostados ali há muito tempo
Eu não me recordava se eram horas, dias, meses
Nós dois esquecemos naquele momento
Que nós dois pretendíamos a paz
Dentro da violência do mundo
E sem perceber a chegada da paz, nós dois estávamos
Alojados dentro dela
Nós não saímos da parede, e a paz nos encontrou
Subitamente
Não enviou nenhum sinal
E nós não procuramos a paz
Eu e a noite
Gilberto Gil
A saudade e o silêncio
O desespero e a escuridão
As batidas monótonas de meu coração
Eu e a noite
Uma estrela cadente que passa
Uma esperança que as horas destroem
A angústia e a impaciência que alma corroem
Eu e a noite
Triste melodia vem de longe
Louco pensamento me tortura
Provo gotas enormes de amargura
Eu e a noite
A noite a esperar que venha o dia
E eu a esperar que ela volte
Não virá, e ainda assim esperamos
Eu e a noite
Eu descobri
Gilberto Gil
Um dia o antes, o agora e o depois
No mesmo dia o sim, o não e o talvez
No mesmo dia o zero, o um e o dois
E tudo que acontece depois do três
Grande emoção
A mesma das batidas de um coração
A mesma das ondas que vão e que vem
A mesma do chão da janela de um trem
Vertiginoso caos e fascinação
Pobre de mim
Pensei que ainda havia o que descobrir
Pensei que aquele dia fossem surgir
Anjos no céu, pobre de mim
Pobre de mim
Ali naquele instante igual aos demais
Eu percebi que o encoberto jamais
Nos mostrará seu corpo, a escuridão
Porque a escuridão é o que não se vê
A não ser
Que um novo Cristo volte mais uma vez
Agora, ontem, hoje, antes e após
Para mostrar a todos todos os sóis
E todos os buracos negros também
Quem me diz
Que a gente nunca poderá ser feliz
A menos que alcancemos o além da luz
Oh! Meu Jesus, meu bom Jesus.
Gravação
Gilberto Gil – Concerto de cordas e máquinas de ritmo, 2012 – Biscoito Fino
Comentário*
Essa foi pro Sérgio Dias, dos Mutantes. Ele estava morando nos Estados Unidos na ocasião e me telefonou pedindo uma canção, e aí eu fiz, partindo dessas palavras contraditórias:
“o antes, o agora e o depois; o sim, o não e o talvez; o zero, o um e o dois”. “E tudo o que acontece depois do três”: aquela coisa de “o um dá o dois, o dois dá o três, e o três dá tudo”, do Tao; uma das explicações do Tao.
[“Na hora eu tive dificuldade pra resolver”, conta Gil, “com a concisão das frases”, a segunda estrofe, a que começa com a “grande emoção”, emoção que “fui encontrando, de fazer a canção”. E ele chama a atenção, no verso “A mesma do chão, da janela de um trem”, para a vírgula após “chão”, para significar que se trata “do chão vislumbrado a partir da janela”.]
Sobre a terceira e quarta estrofes, interligadas. — Segue-se então, de novo, a interiorização, o voltar-se pra dentro. “Eu percebi que o encoberto jamais/ Nos mostrará seu corpo, a escuridão/ Porque a escuridão é o que não se vê/ A não ser/ Que um novo Cristo volte mais uma vez”: aqui a ideia da luz, do ser luminoso, do Redentor, da redenção, “agora, ontem, hoje, antes e após” [remontando ao — e remontando o — sentido do segundo verso da letra: “Um dia o antes, o agora e o depois”]. Sobre o final. — É uma das bases da crença, da adoção do Cristo como Salvador, como filho de Deus, a ideia da parousia, da volta do Cristo, a dimensão crística da transcendência dos seres iluminados. Cristo, a encarnação do ser supremo, é tido por uma dessas figuras. Pra nós do Ocidente, pra boa parte do mundo, Jesus é o maior símbolo disso.
A letra que começa aludindo a uma descoberta chega no miolo à constatação do indescobrível, do que não dá pra descobrir (e que é a escuridão). — A não ser através desses que são considerados, por nós, os descobertos. Os que dobraram a escuridão com a luz.
Através de quem viria a felicidade. — Que é a luz. A associação da luz com a felicidade, com o feliz. Feliz luz, luz feliz. Essa articulação.
Sobre a citação (“Quem acreditou…”) de “Meditação” (de Tom Jobim e Newton Mendonça) no fim da canção. — É pra dizer que a harmonia e a toada da canção seguem a mesma direção [de “Meditação”].
Quando ao pedido… — Sérgio Dias não deu indicação nenhuma sobre a canção que queria. Foi puro afeto. Ele sempre foi muito afetuoso comigo. Ele é uma bela figura, o Serginho.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Estrela azul do céu
Gilberto Gil
Do céu do meu balão
De antigamente
Sumiu de repente
Da noite de São João
Azul do céu na noite só
Papel de seda faz
Balão era isso
Magia, feitiço
Milagre que não tem mais
Papel de seda azul e vermelho e amarelo
E verde a cintilar
Translúcido vitral
O balão se elevava, súbito pairava lá no ar
Ser sobrenatural
Aquela estrela azul do céu
O tempo carregou
O tempo não falha
O tempo atrapalha
O tempo não tem pudor
A fila anda, a vida vai
Propondo a mutação
Então de repente
Ficou diferente
A noite de São João
Gravação
Gilberto Gil – Fé na festa, 2010 – Gege
Comentário*
Nostálgica e ao mesmo tempo conformada com a ideia da conformação, da transformação: conforme a transformação, você vai adotando novas posturas, novas posições. A canção tematiza a magia do balão como um dos símbolos maiores da festa junina, de São João. Ele também, o próprio balão meio amaldiçoado, meio banido, proibido, tendo inserções espúrias nos céus das noites juninas modernas.
Você faz uma espécie de resgate, pelo menos simbolicamente, no campo da memória. — É isso. Essa música é reminiscência pura, clara. Reminiscência da inocência no tempo.
Sua alma poética tão aberta e receptiva às mudanças evolucionárias trazidas pelo tempo também é lugar para o lamento e a nostalgia daquilo que ficou no passado e não volta mais. O tempo é assim, mais uma vez, objeto de uma canção sua.
— É. A contemporaneidade do passado e do futuro. Passado e futuro contemporâneos, permanentemente contemporâneos, um deslocado pelo outro o tempo todo. E essa fusão/difusão: passado e futuro fundidos e difundidos o tempo todo. Nos quereres, nos fazeres, nos prazeres, nas assunções, no assumir de cada momento da vida, de cada instante. Síntese. Tempo. É no tempo que cabe — e cabe ao tempo — fazer com que caiba esse encontro permanente entre passado e futuro. A concretude vivencial do tempo com seus ardores, tremores, fervores, sabores, tudo. O tempo factual, o tempo quando as coisas se dão, as coisas se fazem. Tempo material, tempo vivencial, as dimensões do tempo.
A saudade é um sentimento que toca você bastante, não é? Eu já vi você chorar de saudade. — Muitas vezes. Cada vez mais. É comum. Porque vai se adensando a percepção da multiplicidade de aspectos do tempo e de nós agentes disso, cada eu em si processando isso tudo. Emoção é onde se dá essa vibração do eu, toda vez que esse eu vibra com essas minúcias, a partir do encontro com essas minúcias todas das suas definições do tempo. Quando essa emoção vibra, a gente chora. Não tem saída. Vaza em lágrimas.
E naturalmente, pela sua origem, muitas das suas saudades estão sediadas, digamos assim, no sertão. — A maior parte delas. Ituaçu é uma das locações mais frequentes dos meus sonhos. Toda hora, toda semana, todo mês eu estou sonhando com Ituaçu. Com tudo. Com a casa, com situações, com lembranças, com pessoas, com meu pai, com minha mãe; com margem do canavial, margem da beira-rio. O balão na festa junina é um momento em que isso se eleva, e se tem essa epifania.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Estrela
Gilberto Gil
De surgir
Uma estrela no céu cada vez que ocê sorrir
Há
De apagar
Uma estrela no céu cada vez que ocê chorar
O contrário também bem que pode acontecer
De uma estrela brilhar quando a lágrima cair
Ou então de uma estrela cadente se jogar
Só pra ver a flor do seu sorriso se abrir
Hum
Deus fará
Absurdos, contanto que a vida seja assim
Sim
Um altar
Onde a gente celebre tudo o que Ele consentir
Gravações
Carlos Pita – Coração de índio, 1981 – Continental
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – To be alive is good (Anos 80), 2002 – Warner Music
Gilberto Gil – Concerto de cordas e máquinas de ritmo, 2012 – Biscoito Fino
Sandy e Lucas Lima – Estrela (single), 2020 – Letra S Promoções Artísticas/ Universal Music
Comentário*
Qualquer coisa que ocorra, quer dizer, uma folha que se mexa aqui, reflete lá longe, em qualquer lugar do universo, que é um grande campo onde as relações se dão em conexão constante, onde tudo está ligado e tudo tem a ver, não havendo fato isolado no universo. ‘Estrela’ é sobre isso, que certas considerações filosóficas sempre levam em conta; sobre a ideia do campo, das relações do campo, o campo cósmico; sobre a ideia da física sobre o campo, onde tudo que ocorre é inter-relacionado, tudo se dando no campo.
É a física quântica: não é à toa que a canção acabou entrando somente no disco ‘Quanta’, embora tenha sido feita mais de quinze anos antes. Ela só foi caber, só teve amparo semântico de repertório completo no ‘Quanta’, onde finalmente se encaixou. Nesse sentido, parece com ‘Átimo de pó’, com ‘A ciência em si’, com todas as canções do CD; ela tem o mesmo locus embrionário que essas outras todas têm. E é sobre isso: a ideia do grande campo universal onde todos os eventos estão relacionados.
‘Estrela’ foi feita pensando na Estrela, filha do Paulo Leminski e da Alice Ruiz [casal de poetas que viviam em Curitiba, no tempo da canção], que era na época uma menina pequenininha ainda. Na verdade, a canção não mexe com a questão da pessoa, não toca na pessoa. ‘Estrela’ é dedicada à Estrela, não é sobre a Estrela; não é para a pessoa dela, é para o nome dela. Para o que o nome dela pode despertar como reflexão.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Está na cara, está na cura
Gilberto Gil
Você não vê
Que a caretice está no medo
Você não vê
Está na cara
Você não vê
Que o medo está na medula
Você não vê
Está na cara
Você não vê
Que o segredo está na cura, está na cara
Está na cura desse medo
Quem tem cara tem medo
Quem tem medo tem cura
Essa história de medo é caretice pura
Vou brincar que ainda é cedo
Que o brinquedo está na cara
Está na cara, está na cara
Que o segredo está na cura do medo
Gravações
Gilberto Gil – Expresso 2222, 1999 (reedição) – Universal Music
Carla Visi – Carla visita Gilberto Gil, 2008 – MZA
Comentário*
O medo como elemento bloqueador do fluxo vital; como sintoma da dificuldade, nos indivíduos, de mantê-lo em permanente movimento; o medo ligado à ideia dos bloqueios, dos coágulos, dos nós, dos momentos de interrupção, de descontinuidade do élan vital; o medo associado a esses múltiplos significados dos impedimentos de várias ordens do fluxo vital. Esse o tema de ‘Está na cara, está na cura’. A caretice estava muito relacionada na ocasião a uma reação às modas, aos modelos então mais atuais de vida, às propostas desafiadoras aos sistemas de vida estabelecidos, ao status quo, aos modos convencionais da família. E também à noção de que careta era aquele que não consumia droga, que não fumava maconha, que não se dedicava ao jogo com a operação dos estados de consciência; aquele que não se animava com a ideia de alterar estados de consciência através de droga ou coisa que o valha. Então, a música era também para criticar o reducionismo dessa ideia de que careta era aquele que não ficava doidão.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Essa é pra tocar no rádio
Gilberto Gil
Essa é pra tocar no rádio
Essa é pra vencer o tédio
Quando pintar
Essa é um santo remédio
Pro mau humor
Essa é pro chofer de táxi
Não cochilar
Essa é pro querido ouvinte
Do interior
Essa é pra tocar no rádio
Essa é pra tocar no rádio
Essa é pra sair de casa
Pra trabalhar
Essa é pro rapaz da loja
Transar melhor
Essa é pra depois do almoço
Moço do bar
Essa é pra moça dengosa
Fazer amor
Essa é pra tocar no rádio
Essa é pra tocar no rádio
Gravações
Gilberto Gil – Cidade do Salvador, 1973 – Gege
Gilberto Gil – Umeboshi (Ao vivo), 1973 – Discobertas
Gilberto Gil e Jorge Ben Jor – Gil e Jorge, 1975 – Universal Music
Gilberto Gil – Refazenda, 1977 – Warner Music
Cacala Carvalho e João Braga – Cada tempo em seu lugar, 2012 – Zênitha Música [Dist. Quae]
Fernando Caneca e Davi Moraes – Refazendo, 2021 – Deck
Comentário*
‘Essa é pra tocar no rádio’ foi feita para brincar com o fato de que a execução de música no rádio é demasiadamente seletiva em função de uma série de valores próprios do veículo, de sua própria cultura interna e da cultura dos mass media, principalmente nessa fase de extrema especialização dos meios de comunicação; para fazer piada, blague, com essa ideia seletiva das ‘quinze mais’, das ‘dez mais’, da parada de sucesso – daquilo que só toca no rádio porque é sucesso e só é sucesso porque toca no rádio, esse círculo vicioso, essa coisa fechada da comunidade dos eleitos do sucesso paradístico.
Um pouco como quem diz: ‘Essa não vai tocar no rádio, então essa é pra vocês do rádio: vocês que não tocam as coisas que poderiam ser tocadas; vocês que não têm espaço, nem tempo, nem projeto para tocar tudo, e têm que tocar apenas algumas coisas; vocês que têm que viver essa exiguidade, esse confinamento, esse reducianismo necessário para o meio’.
Ao mesmo tempo, a letra é constituída de elementos de apelo extraordinariamente popular que fariam a música tocar no rádio, ingredientes tirados como amostra do universo semântico radiofônico mesmo: a menina, a balconista, o motorista de táxi, o rapaz da loja, o bairro de Bangu (subúrbio do Rio de Janeiro). A música tem também, por isso, a intenção de estabelecer um jogo de contrários. Musicalmente, ela é um híbrido de funk – talvez uma das primeiras que eu tenha trabalhado com a nítida intencionalidade de me utilizar do gênero funk – com algo nordestino; ela remete para um desses gêneros aforrozados.
No sentido radiofônico da parada de sucesso, do hit, ‘Essa é pra tocar no rádio’ não tocou no rádio.
Ficou talvez até como talismã para a visão autocrítica bem-humorada do próprio rádio. Houve rádios de São Paulo e do Rio que tocavam essa música em determinados horários.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Esotérico
Gilberto Gil
Porque mistério sempre há de pintar por aí
Pessoas até muito mais vão lhe amar
Até muito mais difíceis que eu pra você
Que eu, que dois, que dez, que dez milhões
Todos iguais
Até que nem tanto esotérico assim
Se eu sou algo incompreensível
Meu Deus é mais
Mistério sempre há de pintar por aí
Não adianta nem me abandonar
Nem ficar tão apaixonada, que nada!
Que não sabe nadar
Que morre afogada por mim
Gravações
Doces Bárbaros – Doces Bárbaros, 1976 – Universal Music
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Kid Abelha – Songbook Gilberto Gil, 1992 – Lumiar
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Maria Bethânia – Brincar de viver, 1999 – Universal Music
Gilberto Gil – Bandadois (Ao Vivo), 2009 – Gege
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Dois Amigos, Um Século de Música (Ao vivo), 2015 – Gege e Uns Produções Artísticas sob licença de de Sony Music
Gil, Nando e Gal – Trinca de Ases (Ao vivo), 2018 – Gege
Gilberto Gil – Em Casa Com Os Gil, 2022 – Gege
Comentário*
Uma tentativa de transpor a ideia do mistério divino, místico-religioso, para o campo do amor terreno; de desmistificar e humanizar a categorização do esotérico como algo inatingível, colocando-o como inerente à nossa natureza, à complexidade de nosso afeto. O ímpeto da canção nasceu da vontade de falar do sentido esotérico das coisas através de algo que fosse demasiadamente humano como é a relação amorosa entre duas pessoas — não deixando, no fim, de remeter a questão para a divindade (qualquer mistério está aquém do mistério do Criador).
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Escolha da liberdade
Gilberto Gil
Gravação
Vários – Brasil ano 2000, Universal Music
[ para o filme Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Jr. ]
Era nova
Gilberto Gil
Quase esquecem do eterno é
Só você poder me ouvir agora
Já significa que dá pé
Novo tempo sempre se inaugura
A cada instante que você viver
O que foi já era, e não há era
Por mais nova que possa trazer de volta
O tempo que você perdeu, perdeu, não volta
Embora o mundo, o mundo, dê tanta volta
Embora olhar o mundo cause tanto medo
Ou talvez tanta revolta
A verdade sempre está na hora
Embora você pense que não é
Como seu cabelo cresce agora
Sem que você possa perceber
Os cabelos da eternidade
São mais longos que os tempos de agora
São mais longos que os tempos de outrora
São mais longos que os tempos da era nova
Da nova, nova, nova, nova, nova era
Da era, era, era, era, era nova
Da nova, nova, nova, nova, nova era
Da era, era, era, era, era nova
Que sempre esteve e está pra nascer
Falam tanto
Gravações
Gilberto Gil – Refavela, 1977 – Philips
Vilma Nascimento – Conquistado, 1980 – Top Tape
Patricia Calcado – Contraveneno, 2004 – Patricia Calcado
Comentário*
[Em “Era nova”, Gilberto Gil sublinha uma crítica à ideia de sempre se querer decretar a disfunção de certos tempos e prescrever a vigência de outros; de se buscar instalar um novo ciclo histórico, um “novo início”, seja do ponto de vista religioso ou do político, ideia presente tanto no sonho da Era de Aquário (tematizada mais claramente pela canção) como no sonho revolucionário de esquerda — em todos os messianismos, enfim.] Querer uma “era nova” ou “o fim da história” [referência à sua música assim intitulada, e que data de 1991], o começo ou o fim: duas pontas de um mesmo absurdo. [Ainda segundo Gil, “Era nova”, no que é para ele o momento-chave da canção, trata da imperceptibilidade da passagem do tempo, mais exatamente] da ambiguidade eternamente presente em nós de termos em relação ao tempo uma percepção e uma não percepção: a de que ele passa quando pensamos e a de que ele não passa quando não pensamos, isto é: “sem que você possa perceber”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Entre os ateus
Gilberto Gil
Também brinco o carnaval
Rezo, medito, me irrito
Dou grito por dentro
Esperando por Deus
Não tenho muito de bom
Tampouco muito de mal
Não acredito em crenças
Não temo doenças
E vivo contente entre os ateus
Penso que tudo dá nada
E que nada dá tudo que a gente quiser
E se alma não é pequena vai saber
Que vale a pena viver
Pena e mais pena
O tribunal condena
Julgando ensinar a lição
Eu só me condeno a mim
Quando me esqueço o perdão
Entre a sola e o salto
Gilberto Gil
Por aquela janela
Entre a sola e o salto do sapato alto dela
Vê
Por ali, pelo vão
Entre a sola, o salto do sapato alto dela e o chão
Vê
Como existe um abrigo
Entre a sola e o salto do sapato alto
Contra o perigo do orgulho, da ilusão
Basta um centímetro prum grande coração
No espaço, ali embaixo
Entre a sola e o salto existe a imensidão
Vê
Como cabe folgada
A imensidão do olhar numa nesga de chão
Num pedaço de calçada
Vê
Que há bastante lugar
Prum coração chegar ali, ficar ali
Passar dali pra acolá
Ê, ê, quanto amor
No espaço embaixo do sapato dela
Ê, ê, quanto amor
No abrigo embaixo do sapato dela
Ê, ê, quanto amor
No teto embaixo do sapato dela
Ê, ê, quanto amor
Na tenda embaixo do sapato dela
Gravação
Alcione – Alerta Geral, 1978 – Philips
Comentário*
Feita para Alcione, de encomenda. E eu pensava mesmo no salto alto dela, me lembrava dela sobre o salto e vivia essa fantasia de diminuir de tamanho, como no livro ‘Viagens de Gulliver’ [de Jonathan Swift] e nos filmes em que um personagem encolhe, encolhe, encolhe, vai diminuindo até…: essa fantasia de miniaturização. Eu me miniaturizava e me escondia embaixo do salto do sapato dela, que virava uma grande estrutura, uma grande marquise, e eu ficava ali, entre a sola e o salto, naquele vão, e dali eu fazia uma descrição da situação. Uma sugestão também da ideia de ser pisado pela mulher; da ideia da subordinação, da submissão à força da mulher, à coisa de ser ela quem manda, comum nas regiões mais matriarcais ou matriarcalizantes, como a Bahia, o Rio Grande do Sul, a Argentina, a Espanha, a Itália, o Mediterrâneo todo. Veja-se o grau de recolhimento em que eu estava naquele momento, para poder me dar o direito a desenvolver uma fantasia tão absurda; a ponto de engendrar e viver toda uma estória ali embaixo daquele sapato. Uma ideia delirante. Uma canção também sobre a humildade, exprimindo um destemor absoluto em ser pequeno, em ser menor. E um samba bonito musicalmente, com o sentido rasgado dos sambas da Alcione, muito parecido com ela.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Então vale a pena
Gilberto Gil
E se vale a pena viver
Então morrer vale a pena
Se a gente teve o tempo para crescer
Crescer para viver de fato
O ato de amar e sofrer
Se a gente teve esse tempo
Então vale a pena morrer
Quem acordou no dia
Adormeceu na noite
Sorriu cada alegria sua
Quem andou pela rua
Atravessou a ponte
Pediu bênção à dindinha lua
Não teme a sua sorte
Abraça a sua morte
Como a uma linda ninfa nua
Gravações
Simone – Cigarra, 1978 – EMI
Moisés Navarro e Zé Manoel – Aquele Abraço, Gilberto Gil, 2022 – Alves Madeira
Comentário*
O tema da morte retomado. São duas músicas dedicadas explicitamente a ele: ‘A morte’ e esta, que o abordam diretamente, que foram feitas pensando na morte. De ‘Então vale a pena’ eu gosto muito, por causa do sentido de complementaridade outra vez embutido numa letra minha, a morte como o momento simetricamente oposto ao do nascimento, a morte como encerramento de um ciclo. Nesse caso a única ressalva que eu faço na canção é para a morte prematura, como sendo uma anomalia ou algo assim, uma interrupção no processo. É um mero reparo psicológico, um remendosinho, talvez um resquício de receio; uma tentativa de fazer um julgamento, de dar valores diferentes a mortes diferentes. É interessante a associação da morte com o sono e do renascimento com o acordar, além da ideia de abraçar a morte como a uma deusa – uma ideia antiga da morte.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ensaio geral
Gilberto Gil
O Cordão da Liberdade
E o Bloco da Mocidade
Vão sair no carnaval
É preciso ir à rua
Esperar pela passagem
É preciso ter coragem
E aplaudir o pessoal
O Rancho do Novo Dia
Vem com mais de mil pastoras
Todas elas detentoras
De um sorriso sem igual
O Cordão da Liberdade
Ensaiado com carinho
Pelo Zé Redemoinho
Pelo Chico Vendaval
Oh, que linda fantasia
Do Bloco da Mocidade
Colorida de ousadia
Costurada de amizade
Vai ser lindo ver o bloco
Desfilar pela cidade
Minha gente, vamos lá
Nossa turma vai sair
Nossa escola vai sambar
Vai cantar pra gente ouvir
Tá na hora, vamos lá
Carnaval é pra valer
Nossa turma é da verdade
E a verdade vai vencer
Gravações
Elis Regina – Viva o Festival da Música Popular Brasileira, 1966 – Artistas Unidos
Gilberto Gil – Louvação, 1967 – Philips
Chico Buarque – Songbook Gilberto Gil, 1992 – Lumiar
Comentário*
‘Ensaio Geral’ foi composta para o [II] Festival [de Música Popular Brasileira, da TV Record]. Samba socialmente engajado, impregnado do espírito universitário, típico da época; canção de protesto utilizando a imagem de ‘um novo dia’, ‘um novo amanhã’ – o futuro idealizado, redentor, igualitário, comunista: o próprio sonho comunista – e, ao mesmo tempo, vários elementos do imaginário popular do samba: a escola, o bloco, o cordão, o rancho, a fantasia, a costura. Tecendo as fantasias das inter-relações entre a arte e a política, o carnaval e a marcha da sociedade. ‘É preciso ter coragem e aplaudir o pessoal’, quer dizer, as novas milícias revolucionárias…
‘Ensaio Geral’ apresenta também uma veia poética prevalecente no meu trabalho, que é a do garimpo na poesia da música popular, como se a música popular fosse uma grande jazida onde eu vou pegar minhas pepitas, como qualquer outro compositor; a música popular como uma grande Serra Pelada. Para mim a música popular foi sempre um campo de exploração comum, mais do que qualquer outra coisa, e a sua beleza e o seu interesse sempre estiveram exatamente nessa grandeza e nessa riqueza comum, acumulada, formada ao longo da história dos grandes compositores; dos compositores todos, enfim. Essa música garimpa os vários lugares-comuns que vão sendo justapostos, montados, editados, para formar uma canção – uma característica observável também em várias outras músicas da época.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Marginália II
Gilberto Gil
Torquato Neto
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição
Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui, o Terceiro Mundo
Pede a bênção e vai dormir
Entre cascatas, palmeiras
Araçás e bananeiras
Ao canto da juriti
Aqui, meu pânico e glória
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na lua cheia
E termina antes do fim
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte
Olelê, lalá
A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender
Olelê, lalá
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1968), 1968 – Universal Music
Maria Bethânia – Recital na Boite Barroco, 1968 – EMI Music
Maria Bethânia – Diamante Verdadeiro, 1999 – BMG Brasil
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois amigos, um século de música (Ao vivo), 2015 – Sony Music
Maria Bethânia e Zeca Pagodinho – De Santo Amaro a Xerém (Ao Vivo), 2018 – Biscoito Fino
Mardi dix mars
Gilberto Gil
Et se la voudra ma poésie
Mardi dix mars
Et se la voudra ma poésie d’amour
Noire qui est toujour été à la recherche
De la passion
La plus profonde à vivre
Je vous dirai malgré
Que je sois bien, bien, bien, bien proche
Il manquera toujours
Un rêve à poursuivre
Et se la voudra
Toujours, toujours il manquera l’amour
À mettre dans l’esclavage un coeur libre
…………………………………
Mardi dix mars
Et se la voudra la vie qui viendra
Marcha da tietagem
Gilberto Gil
Tiete é uma espécie de admirador
Atrás de um bocadinho só do seu amor
Afins de estar pertinho, afins do seu calor
Hoje eu sou o seu tiete
Às suas ordens, ao seu inteiro dispor
De imediato aonde você for eu vou
No ato, no ato
Pro mato, pro motel, de moto ou de metrô
Tititititi
Como é bom tietar
Seu amor inatingível
Tititititi
E se você deixar
Eu farei todo o possível
Pra alcançar o nível do seu paladar
Gravações
Trio Elétrico Dodô e Osmar – Vassourinha Elétrica, 1980 – Elektra
Gilberto Gil – Luar (feat. Trio Elétrico Dodô & Osmar, As Frenéticas), 1981 – Warner Music
Gilberto Gil – Duetos 2 (feat. Trio Elétrico Dodô & Osmar, As Frenéticas), 2008 – Warner Music
Armandinho Macêdo, Marco Lobo e Yacoce Simões – Retocando Gil e Caetano, 2021 – Biscoito Fino
Comentário*
‘Tiete’ era uma gíria muito usada pelo pessoal que frequentava as praias, as dunas da Gal, pelo círculo do Ney Matogrosso, Cazuza inclusive. Na verdade, depois de fazer a música é que eu fiquei sabendo que Tiete era o apelido de uma senhora, frequentadora assídua dos shows do Ney. E que, por isso, o Luisinho – uma espécie de secretário do Ney, desaparecido há alguns anos atrás, tendo trabalhado com ele até morrer – passou a usar para se referir a todos os fãs e a todas as pessoas que assediavam o Ney ou outros artistas. Ele começou a chamar todas essas pessoas de tiete, como referência a essa mulher: senhora Tiete, dona Tiete. A expressão pegou entre nós. E como se tornou muito comum no nosso meio, eu resolvi fazer a canção. O Luisinho mesmo me contou toda a história relacionada com o surgimento do termo já depois do lançamento da marcha. ‘Tiete’ estourou e ‘tiete’ acabou virando uma expressão nacional. Hoje, tiete – todo mundo sabe – é sinônimo de fã, de macaca de auditório; não sei se já se tornou palavra do dicionário [sim, já], mas já adquiriu esse nível: o nível de verbete.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Marcha
Gilberto Gil
Este teu jeito de sapeca
Esta carinha de boneca
Estão fazendo um verdadeiro carnaval
Dentro de mim
Menina do coração de gelo
Estou caído
Fui flechado, estou perdido
Mas pode crer que isto não vai
Permanecer assim
Maracujá
Gilberto Gil
Maracu
Maracujá
Maracujá agora
Maracujá a qualquer hora
Maracujá em qualquer lugar
Mar de Copacabana
Gilberto Gil
Que você viu
Que você pediu pra eu dar
Outro dia em Copacabana
Talvez leve uma semana pra chegar
Talvez entreguem amanhã de manhã
Manhã bem seda tecida de sol
Lençol de seda dourada
Envolvendo a madrugada toda azul
Quando eu fui encomendar o mar
O anjo riu
E me pediu pra aguardar
Muita gente quer Copacabana
Talvez leve uma semana pra chegar
Assim que der, ele traz pra você
O mar azul com que você sonhou
No seu caminhão que desce
Do infinito e que abastece o nosso amor
Se o anjo não trouxer o mar
Há mais de mil
Coisas que ele pode achar
Tão lindas quanto Copacabana
Talvez tão bacanas que vão lhe agradar
São tantas bijuterias de Deus
Os sonhos, todos os desejos seus
Um mar azul mais distante
E a estrela mais brilhante lá do céu
Gravações
Gilberto Gil – Extra, 1983 – Warner Music
Gilberto Gil – Soy loco por ti América, 1987 – Warner Music
Gilberto Gil – Em Concerto, 1987 – Gege
Leny Andrade – Songbook Gilberto Gil, Vol. 1, 1992 – Lumiar Discos
Nicolas Krassik – Estrela, 2021 – Gege
Comentário*
Uma vez, quando nós passávamos pela praia de Copacabana, chegando ou saindo do Rio, a Flora me disse assim: ‘Você devia fazer uma música sobre o mar de Copacabana’. Fiquei com aquilo na cabeça e, um dia, tempos depois, eu decidi fazer uma canção abordando o assunto, dizendo exatamente o que dizem os primeiros versos, já que ela também havia, de brincadeira, me pedido o mar de Copacabana de presente – ‘Dê esse mar para mim…’ –, numa cena carinhosa, terna, romântica, entre nós. Aí, me inspirando na coisa da classe média, que faz compras à prestação que são levadas por caminhões de entrega, eu digo que a ‘encomenda’ está seguindo num deles – o caminhão ‘que abastece o nosso amor’, citado literalmente no samba, e que é uma espécie de epifania, sendo o mar de Copacabana a bijuteria que eu dou de presente para ela.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Máquina de ritmo
Gilberto Gil
Tão prática, tão fácil de ligar
Nada além de um bom botão
Sob a leve pressão do polegar
Poderei legar um dicionário
De compassos pra você
No futuro você vai tocar
Meu samba duro sem querer
Máquina de ritmo
Quem dança nessa dança digital
Será, por exemplo, que meu surdo
Ficará mudo afinal
Pendurado como o dinossauro
No museu do carnaval?
Se você aposta que a resposta é sim
Por Deus, mande um sinal
Máquina de ritmo
Programação de sons sequenciais
Mais de cem milhões de bandas
De escolas de samba virtuais
Virtuais virtuosas vertentes
De variações sem fim
Daí por diante, samba avante
Já sem precisar de mim
Máquina de ritmo
Quem sabe um bom pó de pirlimpimpim
Possa deletar a dor de quem
Deixou de lado o tamborim
Apesar do seu computador
Ter samba bom, samba ruim
Se aperto o botão meu coração
Há de dizer que é samba, sim
Máquina de ritmo
Processo de algo-ritmos padões
Múltiplos binários e ternários
Quaternários sem paixões
Colcheias, semicolcheias
Fusas, semifusas sensações
Nos salões das noites cariocas
Novas tecnoilusões
Máquina de ritmo
Que os pós eternos vão silenciar
Novos anjos do inferno vão pôr
Qualquer coisa em seu lugar
Quem sabe irão lhe trocar
Por um tal surdo-mudo do museu
E os bandos da lua virão se encontrar
Numa praia toda lua cheia
Pra lembrar você e eu
Moreno, Domenico, Kassin
Assim meus filhos, filhos seus
E bandos da lua virão se encontrar
Numa praia toda a lua cheia
Pra lembrar
Só pra lembrar
Só pra cantar
Só pra tocar
Só pra lembrar você e eu
Gravações
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa – Outros (doces) bárbaros, 2004 – Biscoito Fino
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Warner Music
Gilberto Gil – Concerto de cordas e máquinas de ritmo, 2012 – Biscoito Fino
Gilberto Gil – Gilbertos Samba (Ao vivo), 2014 – Sony Music
Comentário*
O samba foi feito no Algarve, em Portugal, durante uma semana que eu passei naquela ponta do Algarve, de onde teriam saído e onde teriam sido construídas as embarcações das grandes navegações, de dom Henrique; todo o projeto navegador de Portugal naquela época teria nascido ali. Eu estava naquele lugarzinho e ali me ocorreu “Máquina de ritmo”. Era um momento em que nós nos aproximávamos naturalmente das máquinas novas, das baterias eletrônicas e dos sintetizadores, a coisa toda da música eletrônica que estava pintando como referência nova estimulante; então a canção nasce disso. Vai se desenvolvendo um diálogo entre o artista da música e a máquina, e, engraçado, quando chega a última estrofe, esse artista se personaliza. É João Gilberto. Eu imagino esse diálogo entre homem e máquina, entre artista de uma origem artesanal com esse mundo tecnomusical. E é ele então, tocando violão, que vai ser lembrado na praia, onde [novos] Bandos da Lua se reúnem “pra lembrar você e eu”: quer dizer, a máquina e ele. João e a máquina de ritmo. A música é pra ele.
“Programação de sons sequenciais/ Mais de cem milhões de bambas de escolas de samba virtuais/Virtuais, virtuosas vertentes de variações sem fim/ Daí por diante samba avante já sem precisar de mim”. — A autoprogramação, a inteligência artificial, o automatismo. Não é substituição da própria inteligência humana pela inteligência artificial.
“Se aperto o botão…”. — “… Meu coração há de dizer que é samba, sim”: o artista, generosamente, resolvendo entrar em diá- logo profundo com a máquina e a adotando. É ele, João, assinando o documento de adesão.
“Moreno, Domenico, Kassin,/Assim meus filhos, filhos teus”.
— Eles como filhos dessa união entre artista e máquina. Os três [Moreno Veloso, Domenico Lancellotti e Alexandre Kassin] tinham começado a trabalhar juntos [A canção data de quatro anos após a formação do trio, adepto da incorporação de elementos sonoros eletrônicos: Moreno+2, depois Kassin+2, e ainda depois Domenico+2], e logo depois eu faço a canção e essa referência.
De a canção ser mais um exemplo do antipurismo, do antifundamentalismo estético-musical de Gil; de sua disposição para a transformação dos gêneros e dos estilos. — “Máquina de ritmo” é mais uma das canções que comprovam meu compromisso permanente com a diversidade, com o jogo das polaridades, o jogo das contradições.
No DVD dos Doces Bárbaros aparece você tocando e cantando a canção, e o Caetano chega, não resiste e começa a dançar. Depois se refere a ela como um antigo estilo de samba que você retomava ao fazer “Máquina de ritmo”. — Ele não conhecia a canção. E começa a dançar à la Rodrigo Veloso [irmão de Caetano, no filme O cinema falado, dirigido por Caetano, Rodrigo dança ao som de “Águas de março”, de Tom Jobim, como se fosse um samba de roda]. Ele ficou fascinado com “Máquina de ritmo”, que associa a uma constelação de sambas meus como “Amor até o fim” e outros. Eu adoro essa música; o samba que ela é, todo malemolente, todo caymmiano. É muito interessante; um dos itens permanentes do meu repertório; sempre canto, sempre toco.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Mancada
Gilberto Gil
Pro tamborim
Não vá gastar
Depois jogar a culpa em mim
O dinheiro que eu lhe dei
Não é meu, não
É da escola
Por favor, não mete a mão
Você lembra muito bem
No outro carnaval
Você chorou porque não pôde desfilar
A fantasia que eu mandei você comprar
Não ficou pronta porque o dinheiro que eu lhe dei
Pra costurar
Você (hum, hum)…
Eu nem vou dizer
Pra não lhe envergonhar
Gravações
Gilberto Gil – Louvação, 1967 – Universal Music
Claudete Soares – Gil, Chico e Veloso por Claudette, 1968 – Universal Music
Elza Soares e Miltinho – Elza, Miltinho e samba (Vol. 2), 1968 – EMI Records Brasil
Zimbo Trio – Decisão, 1969 – Som Livre
Elis Regina – 13th Montreux Jazz Festival, 1979
Beth Carvalho e Geraldo Vespar – Songbook Gilberto Gil, Vol. 1, 1992 – Lumiar Discos
Adyel Silva – Chic da Silva, 2003 – Atração
Gilberto Gil e Beth Carvalho – Duetos 2, 2008 – Warner Music
Orquestra de Sopros da Pro Arte e Flautistas da Pro Arte – Ituaçú – Gilberto Gil, 2012 – Geringonça Filmes
Rosa Passos – Azul, 2013 – Veleiro
Gilberto Gil – Gilbertos Samba (ao vivo), 2014 – Gege
Mauro Senise – Amor Até o Fim, 2016 – Fina Flor
Comentário*
Essa foi feita por uma encomenda curiosa. Era época de preparação para o carnaval no Rio, e havia um programa semanal de televisão na Globo, animado pelo Jair Rodrigues, que tinha sido criado especialmente para o carnaval e do qual participavam os artistas que estavam surgindo naquele momento. Num deles foi instituído uma espécie de concurso que lançou aos compositores presentes o desafio de apresentar na semana seguinte uma nova música de carnaval. Eu fui para a casa com essa tarefa e, um dia depois, de noite, inventei a história carnavalesca de uma cara que tinha embolsado o dinheiro da fantasia que tinha sido dado a ele pela escola, daí a expressão-título da canção, por causa da mancada que ele deu – a palavra nem aparece na música mas lhe dá nome.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Mamma
Gilberto Gil
Am gonna go my way, mamma
Tomorrow am gonna catch a train
Don’t try to hold me down
I wanna put my chest against the wind
From east and west once again
Mamma
Give me your blessing right now
Am gonna get ahead again
Am gonna go my way, mamma
Before you tie me to a chain
Before you close me down
So wide you should stretch your breast
And hold my life inside yourself again
Mamma
Give me your blessing right now
I wanna kiss your face again
Am gonna go my way, mamma
Don’t worry, don’t cry, don’t complain
Don’t try to hold me down
How much you want your darling, baby
Clinging to your long skirt again
Oh, mamma
Give me your blessing right now
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1971), 1971 – Warner Music
Gilberto Gil – Soy loco por ti América, 1987 – Warner Music
Gilberto Gil – Em Concerto, 1987 – Gege
Arnaldo Antunes – Arnaldo Antunes Disco, 2013 – Radar Records
Jorge Mautner e Gilberto Gil – O poeta e o esfomeado, 2014 – Discobertas
Comentário*
Essas músicas em inglês da minha fase londrina – ‘Nega’ e ‘Mamma’ – se ressentem muito do nível do meu inglês na época; elas expõem muito claramente as minhas deficiências no manuseio da língua, embora contenham passagens interessantes: no caso de ‘Nega’, o passear, downtown, em Londres, o descobrir-se na paisagem da cidade; o ato de tomar chá Mu (o hábito da macrobiótica, que eu cultivava rigidamente na época); e, no final, a revelação das fotografias do passeio.
Mas ‘Mamma’ é bem mais razoável, mais bem feita; ‘Mamma’ é relativamente bem feita. É mais concisa, mais precisa e mais densa. O tema também é mais exigente. Era para a minha mãe mesmo, para lhe dizer que eu tinha ido embora e por que tinha, por que estava tão longe naquele momento, tão saudoso dela e ela provavelmente tão saudosa de mim. Feita numa estrutura de blues, a canção reiterava o modo de cantar dos negros e a saga dos homens que vão embora – há muitos blues que falam disso: do homem saudoso, distante de casa, dizendo: ‘Vou pegar o trem etc.’
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Mamão papaia
Gilberto Gil
Papaia mamão da saia calça do Brown
Do lenço da Bel
Mamão papaia do céu
Que vela a feiticeira, ah
Mamão papaia do céu
Papaia mamão na mão do Gil ou da Gil
Quem dança é Durval
Mamão papaia do mel
Que mela a Daniela, Ah
Se a Margareth Menê, ou se a Ivete Sangá
Tatau e minha vão que vão
Caetano, Armando e Moraes
É que a galera quer mais
O axé do Xandi sensação
Mamão papaia do céu
Papaia mamão mão de pilão do Popó
Derruba no chão
Melhor é mesmo sambar
Sambar, sambar, sambar, sambar
gingar, gingar, gingar. gingar
pular, pular, pular, pular
E esquivar do campeão
Mamão papaia Olodum
Papaia mamão, Ilê,Mmalê, coisa e tal
O meu carnaval
É no papaia mamão
É Tchan, tchan, tchan no coração
Tudo com Cheiro de Amor
Papai mamão com gosto de acarajé
O lindo é que é
Tudo Muzenza em função
Da paz do Gandi, da emoção
Se a Sarajane ficar, se o Luiz Caldas ficar
Até o dia amanhecer
Geronimo se animar, o Lazo manda chamar
Dodo e Osmar no céu pra ver
Mãe da manhã
Gilberto Gil
Minha voz, meu amparo
Aro de luz nascente do dia
Brota na gruta da dor
Mãe da manhã, de tudo eu faria
Pra conservar vosso amor
A cada ano, uma romaria
Uma oferenda, uma prenda, uma flor
A cada instante, um grão de alegria
Lembranças do vosso amor
Santa Virgem Maria
Vós que sois Mãe do Filho do Pai do Nascer do Dia
Abençoai minha voz, meu cantar
Na escuridão dessa nostalgia
Dai-nos a luz do luar
Gravações
Gal Costa – O Sorriso do Gato de Alice, 1994 – Sony Music
Olivia Byington – Perto, 2008 – Biscoito Fino
Comentário*
Fiz essa canção em memória da Mariah, a mãe da Gal, de quem eu gostava muito. Ela própria era uma poetisa, a Gal chegou a publicar um livro de poesias dela. Uma mulher engraçada, filha da aristocracia decadente da Bahia, a aristocracia do fumo, de Cachoeira, da Bahia, da família Costa Penna. Tinha sido cultivada nos bancos de escola, era uma mulher minimamente cultivada e trazia resíduos do orgulho de sua classe: projetava para a filha um sonho aristocrático ligado às suas origens.
Eu gostava de conversar com ela, e quando ela morreu, eu escrevi essa canção, que fala em reverenciar os mortos, ritualizar a lembrança, as visitas aos cemitérios. O final é diretamente para Gal mesmo. Uma canção para as duas, para a mãe e para a filha vivendo a saudade da mãe.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Madalena (Entra em Beco, Sai em Beco)
Gilberto Gil
Isidoro
Encontrei Madalena
Sentada numa pedra
Comendo farinha seca
Olhando a produção agrícola
E a pecuária
Sua mãe consolava
Dizendo assim
Pobre não tem valor
Pobre é sofredor
E quem ajuda é Senhor do Bonfim
Há um recurso Madalena
Entra em beco sai em beco
Há uma santa com seu nome
Vai na próxima capela
E acende uma vela
Prá não passar fome
Gravações
Gilberto Gil – Parabolicamará, 1991 – Warner Music
Sérgio Mendes – Oceano, 1996 – Universal Music
Trio Nordestino – Xodó do Brasil, 1997 – Movieplay Digital
Quinteto Violado – As 20 preferidas, 1997 – RGE
Gilberto Gil – São João (Ao vivo), 2001 – Warner Music
Quinteto Violado – Os 30 anos do quinteto violado, 2002 – Matulão
Gilberto Gil – São João Vivo! (Deluxe), 2005 – Warner Music
Carla Visi – Carla Visita Gilberto Gil, 2008 – MZA Music
Akundum – O Melhor do Akundum, 2009 – MZA Music
Gilberto Gil – Back in Bahia – ao vivo (1972), 2017 – Discobertas
Ari Neves – Gilberto Gil Hoje, 2019 – Tratore [dist. Tratore]
Luzia Luluza
Gilberto Gil
Essa vontade de ser ator acaba me matando
São quase oito horas da noite, e eu nesse táxi
Que trânsito horrível, meu Deus
E Luzia, e Luzia, e Luzia
Estou tão cansado, mas disse que ia
Luzia Luluza está lá me esperando
Mais duas entradas, uma inteira, uma meia
São quase oito horas, a sala está cheia
Essa sessão das oito vai ficar lotada
Terceira semana em cartaz James Bond
Melhor pra Luzia não fica parada
Quando não vem gente, ela fica abandonada
Naquela cabine do Cine Avenida
Revistas, bordados, um rádio de pilha
Na cela da morte do Cine Avenida, a me esperar
No próximo ano nós vamos casar
No próximo filme nós vamos casar
Luzia, Luluza, eu vou ficar famoso
Vou fazer um filme de ator principal
No filme eu me caso com você, Luluza, no carnaval
Eu desço do táxi, feliz, mascarado
Você me esperando na bilheteria
Sua fantasia é de papel crepom
Eu pego você pelas mãos como um raio
E saio com você descendo a avenida
A avenida é comprida, é comprida, é comprida…
E termina na areia, na beira do mar
E a gente se casa na areia, Luluza
Na beira do mar
Na beira do mar
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1968), 1968 – Philips
Maria Bethânia – A Cena Muda, 1974 – Philips
Comentário*
Essa é uma viagem linda, um delírio, uma fantasia sobre um casal de jovens, ambos pobres, gente comum trazida para o estrelato do romance. Ela tem que trabalhar na bilheteria de um cinema, ele está num curso de teatro. O cinema idealizado por mim fica na avenida São João (em São Paulo); é o Comodoro ou um daqueles. Ela está na cabine. Ele sai de táxi, da Nestor Pestana, onde ensaiava, pra ir vê-la, e pega um engarrafamento brabo. Essa a visão que eu tinha.
Naquela cabine, a rotina, o tédio, a falta de sentido de um trabalho escravo num cubículo com um vidrão parecendo uma sala da morte mesmo. Ali ela morria um pouco a cada dia, morriam suas forças, sentada horas e horas dentro de um espaço exíguo, sem movimentos e quase sem ar para respirar. Ali, ela, já meio agoniada porque ele não chega; e no carro ele, preso no trânsito, agoniado pra chegar porque ela está à espera.
E ele vem como o libertador para tirá-la daquela prisão; para libertar Luluza, como ele a chamava carinhosamente; e como eu a nomeei para dar sonoridade musical e o sentido de ternura juvenil entre eles. E ele sonha, e chega, e os dois saem correndo pela avenida (e a São João é comprida mesmo, vai lá pra Lapa, por aquele corredor ela vaaaai…).
E os pensamentos, os discursos pela metade de cada um, as frases soltas que hipoteticamente seriam ditas, “Essa sessão das oito vai ficar lotada” (ela), “Que trânsito horrível, meu Deus” (ele): a narrativa se dá por fora e por dentro, misturadamente; tanto o narrador como os personagens se manifestam. Um conto.
O curioso nessas canções minhas com histórias e personagens é que eu não as imagino antes; elas são inventadas na hora. Elas não são construídas como os romances, onde as tramas vão sendo elaboradas antes do ato de escrever. Eu sento para fazê-las e elas vão se engendrando. Elas revelam um traço de escritor que eu poderia ser, se quisesse. Mas sou preguiçoso; prefiro fazer uma canção numa tarde a ficar um tempão num romance.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lunik 9
Gilberto Gil
É chegada a hora de escrever e cantar
Talvez as derradeiras noites de luar
Momento histórico
Simples resultado
Do desenvolvimento da ciência viva
Afirmação do homem
Normal, gradativa
Sobre o universo natural
Sei lá que mais
Ah, sim!
Os místicos também
Profetizando em tudo o fim do mundo
E em tudo o início dos tempos do além
Em cada consciência
Em todos os confins
Da nova guerra ouvem-se os clarins
Guerra diferente das tradicionais
Guerra de astronautas nos espaços siderais
E tudo isso em meio às discussões
Muitos palpites, mil opiniões
Um fato só já existe
Que ninguém pode negar
7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, já!
Lá se foi o homem
Conquistar os mundos
Lá se foi
Lá se foi buscando
A esperança que aqui já se foi
Nos jornais, manchetes, sensação
Reportagens, fotos, conclusão:
A lua foi alcançada afinal
Muito bem
Confesso que estou contente também
A mim me resta disso tudo uma tristeza só
Talvez não tenha mais luar
Pra clarear minha canção
O que será do verso sem luar?
O que será do mar
Da flor, do violão?
Tenho pensado tanto, mas nem sei
Poetas, seresteiros, namorados, correi
É chegada a hora de escrever e cantar
Talvez as derradeiras noites de luar
Gravações
Elis Regina – Elis, 1966 – Universal Music
Os Cariocas – Passaporte, 1966 – Universal Music
Gilberto Gil – Louvação, 1967 – Philips
Comentário*
Recebi o impacto da notícia do pouso (suave, segundo as avaliações) do Lunik 9 na Lua com orgulho e ponderação: estávamos conquistando o espaço, mas onde isso ia dar? Não era só o cidadão que especulava, mas também o artista, com o senso da responsabilidade de ser locutor da sociedade junto à história. Eu tinha que falar no assunto por isso — e também pelo sentido de competição. Havia uma disputa olímpica entre nós. “Provavelmente alguém vai fazer música sobre isso; deixa eu fazer logo a minha”, pensei.
“Lunik 9”. — Uma suíte com vários andamentos e atmosferas, entremeada de narração, reflexões e advertências, é uma canção pretensiosa para o grau de informação que eu tinha a respeito, mas bacana também por isso: por vulgarizar, no sentido de divulgar, traduzir, em linguagem simples, um tema em princípio complexo. Nesse aspecto, é também apócrifa, em relação aos cânones da época, embora a Bossa Nova já tivesse dado a abertura para temas e termos (a Rolleyflex e outras coisas); e iniciática, em relação ao meu trabalho, do qual a questão do mistério do cosmos acabou se tornando uma linha mestra.
Mas frente ao significado do que a motivou, “Lunik 9” apresentava um contraponto conservador, uma atitude ecológico-reativa, um temor exagerado da tecnologia e de que se inaugurava a possibilidade de extinção do próprio luar, da luz interior da Lua. À época eu gostei de tê-la feito, mas no período tropicalista eu já achava a música boba, ingênua. Hoje em dia acho relevante aquilo ter me ocorrido: a inspiração nasceu de uma profunda assunção de um sentido trágico de meu tempo.
Engraçado. No momento em que escrevi “A mim me resta disso tudo uma tristeza só”, era em Orlando Silva que eu pensava. Era a defesa parcial de um mundo — romântico — que eu identificava como o do Orlando Silva, símbolo e canto de outro tempo ainda, anterior ao meu, à própria Bossa Nova.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lugar comum
Gilberto Gil
João Donato
Lugar comum
Começo do caminhar
Pra beira de outro lugar
Beira do mar
Todo mar é um
Começo do caminhar
Pra dentro do fundo azul
A água bateu
O vento soprou
O fogo do sol
O sal do senhor
Tudo isso vem
Tudo isso vai
Pro mesmo lugar
De onde tudo sai
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao Vivo), 1974 – Philips
João Donato – Lugar Comum, 1975 – Universal Music
Emílio Santiago – Brasileiríssimas, 1976 – Universal Music
Leny Andrade – Songbook João Donato – vol 3, 1999 – Lumiar Discos
Carla Visi – Carla Visita Gilberto Gil, 2008 – MZA Music
Comentário*
A música de João Donato possui uma molecularidade própria imediatamente identificável, como se fosse composta de um número regular de átomos de uma substância simples, fundamental e conhecida; como o h2o. São muito dele um desprezo pela complexidade e uma essencialidade infantil no modo de compor. Isso já está no modo de ele falar, de utilizar a linguagem: João Donato é econômico, minimalista.
Como o som musical, por mais qualificado que seja em relação à palavra, ainda não é o silêncio, a palavra acaba também não sendo um corpo absolutamente estranho na sua música. É como se, no fundo, as suas moléculas melódicas quisessem dizer coisas — mas as palavras é que dizem; as palavras é que querem dizer; dizer — é da palavra! Por isso ela cabe na sua música. A exigência, colocada de antemão pela forma como ele melodiza, é a de só dizer o que não pode deixar de ser dito; em reduzir o que se quer dizer à expressão mais essencial para compatibilizá-la com a intenção primordial da celularidade musical dele. Isso é que é difícil.
A letra de “Lugar comum” foi escrita em Itapuã, no verão, estimulada pela sensação boa de estar ali e de ali ser um lugar comum a tanta gente comum — pela ideia de comunidade. Os versos finais reafirmam minha obsessão com o eterno retorno, com o sentido yin-yang da realimentação, do imbricamento vida e morte e da polaridade dos contrários: a coisa de o um dar o dois, o dois dar o três, e o três dar tudo.
A música, sem palavras, eu já conhecia e cantava; tinha uma admiração profunda pela beleza condensada dela. À época, o João Donato tinha voltado dos Estados Unidos e feito sua reintrodução à cena brasileira. Naquele momento fazíamos tudo informalmente: saíamos pelas noites, ele cantarolava as músicas e eu imaginava palavras para elas. Assim fizemos também “Bananeira”, “A bruxa de mentira”, “Emoriô”, “Que besteira”…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Luar (A gente precisa ver o luar)
Gilberto Gil
Do luar não há mais nada a dizer
A não ser
Que a gente precisa ver o luar
Que a gente precisa ver para crer
Diz o dito popular
Uma vez que é feito só para ser visto
Se a gente não vê, não há
Se a noite inventa a escuridão
A luz inventa o luar
O olho da vida inventa a visão
Doce clarão sobre o mar
Já que existe lua
Vai-se para rua ver
Crer e testemunhar
O luar
Do luar só interessa saber
Onde está
Que a gente precisa ver o luar
Gravações
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases (Ao Vivo), 2018 – Gege
Comentário*
Eu tinha feito a música do que eu planejava ser uma peça disco do álbum que estava gravando; uma peça ao gosto daquele momento em que a disco music era muito popular: eu queria fazer uma versão para single de uma disco, como o Djavan veio depois a fazer ‘Azul’, também, muito claramente, uma disco. Eu tinha feito a música e precisava fazer a letra. Já estava terminando o disco e, um dia, no estúdio mesmo, enquanto Liminha [produtor do disco] mexia com canções que a gente já havia gravado, eu peguei o violão e fiquei batucando ali, procurando alguma coisa, quando a letra foi chegando com a ideia do luar (eu tenho uma fixação com o tema).
‘O que eu vou dizer numa canção sobre o luar agora?’, eu me perguntei, vindo em seguida a fazer dessa própria interrogação, desse próprio impasse, o tema da canção, que nasceu, assim, do esgotamento da abordagem de um tema, o luar, um elemento do universo romântico. Me ocorreu então dizer que não havia mais nada a dizer do luar, a não ser que a gente precisa vê-lo, reiterando o fato de que uma coisa existe para outra e de que o luar só existe porque os olhos precisam vê-lo: ele é uma criação do olhar.
E, enquanto escrevia a canção, eu me recordava de um lugar especial onde eu via o luar, o Jardim de Alá, em Salvador, onde há uns coqueiros e onde a lua nasce sempre, na fase dos dias de lua cheia, no início da noite, logo que escurece; ela nasce e deixa um lençol imenso projetado no mar escuro, um clarão prateado. Nesse sentido, a canção é inclusive uma crítica às grandes cidades, às cidades modernas, nas quais a eletricidade, o excesso de iluminação elétrica, já impede um pouco a fruição do luar com a particularidade, a propriedade, o atrativo sedutor criado pelos raios, da fruição do luar de antigamente, o luar de Cely Campello.
Há um pouco de várias coisas nessa canção. Mas em especial esse realismo, essa ideia de que os fenômenos da natureza são parte da nossa vida, parte inalienável do nosso ser físico, do nosso viver no mundo físico – são a própria explicação, a própria razão de ser da nossa vida física; de novo essa ideia da essencialidade dos sentidos do corpo, da apreensão da natureza pelos sentidos: ou seja, a natureza faz sentido quando ela é introjetada, quando alguma coisa possibilita – no caso, os sentidos – a capturação dela para dentro de nós, e daí o reforço da nossa identidade com ela.
Quer dizer: nós podemos ser a consciência, a psiquê, a cultura, o escambau; podemos ser o que quer que seja, mas nós somos natureza! A natureza sempre retorna, sempre retoma o seu lugar, sempre cobra, sempre exige que sejamos aderentes, adeptos, parte fundamental dela. Ou seja: esse retorno, esse reverso da consciência, projetada para dentro de si mesma, para dentro da sua própria origem que é a natureza, embora ela tenha esse outro papel de expansor da natureza para além dela, através das projeções mentais, do conhecimento, da cultura, da consciência, da psiquê.
Daí a exigência de ‘Luar’: de que a gente precisa ver – para crer – o luar, porque hoje em dia a gente já não o vê: há esse apartamento, esse estar apartado da natureza que as segundas, terceiras, quartas naturezas tecnológicas possibilitam: esse confinamento dentro das naturezas-mortas.
‘Se a gente não vê, não há’: uma ideia que vem também das minhas reflexões filosóficas da infância, quando de noite o bonde passava na frente da minha casa, e eu pensava se ele deixava de existir depois de passar e desaparecer o som da passagem dele. O que os meus sentidos não podem apreender agora, existe, é real? Ou só é real o que a natureza propicia ser revelado através de mim? O observador influindo no objeto observado: sim, também aqui incide o princípio quântico, o princípio da incerteza, da complementariedade, Schrodinger e Heisenberg, a física moderna.
O compositor é um ser muito misterioso. É um ser humano, não apenas uma máquina de fazer versos. Cada canção reflete o pasmo dele diante da grandeza do mistério.
Aparentemente, ‘Luar’ é uma mera canção disco. De fato ela é bem simples, mas muito condensada; as ideias nela estão muito condensadas, até porque havia o compromisso com a música que já existia: eu tinha que apertar a poesia para esta se encaixar na métrica determinada pela música. E está tudo ali, encapsulado, atomizado, miniaturizado, para caber na lata do poeta. Eu tenho verdadeira paixão por essa canção por ter conseguido espremer e feito caber, na latinha que a música me dava, esse leite condensado, do leitoso clarão do luar…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Louvação
Gilberto Gil
Torquato Neto
Do que deve ser louvado – ser louvado, ser louvado
Meu povo, preste atenção – atenção, atenção
Repare se estou errado
Louvando o que bem merece
Deixo o que é ruim de lado
E louvo, pra começar
Da vida o que é bem maior
Louvo a esperança da gente
Na vida, pra ser melhor
Quem espera sempre alcança
Três vezes salve a esperança!
Louvo quem espera sabendo
Que pra melhor esperar
Procede bem quem não pára
De sempre mais trabalhar
Que só espera sentado
Quem se acha conformado
Vou fazendo a louvação – louvação, louvação
Do que deve ser louvado – ser louvado, ser louvado
Quem ‘tiver me escutando – atenção, atenção
Que me escute com cuidado
Louvando o que bem merece
Deixo o que é ruim de lado
Louvo agora e louvo sempre
O que grande sempre é
Louvo a força do homem
E a beleza da mulher
Louvo a paz pra haver na terra
Louvo o amor que espanta a guerra
Louvo a amizade do amigo
Que comigo há de morrer
Louvo a vida merecida
De quem morre pra viver
Louvo a luta repetida
Da vida pra não morrer
Vou fazendo a louvação – louvação, louvação
Do que deve ser louvado – ser louvado, ser louvado
De todos peço atenção – atenção, atenção
Falo de peito lavado
Louvando o que bem merece
Deixo o que é ruim de lado
Louvo a casa onde se mora
De junto da companheira
Louvo o jardim que se planta
Pra ver crescer a roseira
Louvo a canção que se canta
Pra chamar a primavera
Louvo quem canta e não canta
Porque não sabe cantar
Mas que cantará na certa
Quando enfim se apresentar
O dia certo e preciso
De toda a gente cantar
E assim fiz a louvação – louvação, louvação
Do que vi pra ser louvado – ser louvado, ser louvado
Se me ouviram com atenção – atenção, atenção
Saberão se estive errado
Louvando o que bem merece
Deixando o ruim de lado