Músicas
Louco coração
Gilberto Gil
Falou
Que era seu
Todo, todo, todinho seu
O meu amor
Meu coração, meu louco coração
Que diz
Que só você, com você
Poderia algum dia
Ainda ser feliz
Se o meu olhar
Encontra o seu olhar
Meu coração então
Põe-se a falar
Falar de amor
De amor
E em meu peito ansioso
Bate chorando
Bate, bate o louquinho
Bate falando
Bate, bate, zangado
Cansado de esperar
Logos versus logo
Gilberto Gil
Pelo logo da prosperidade
Celebra-se, poeta que se é
Durante um tempo a ideia radical
De tudo importar, se para o supremo ser
De nada importar, se para o homem mortal
Abarrotam-se os cofres do saber
Um saber que se torne capital
Um capital que faça o futuro render
Os juros da condição de imortal
(Mas a morte é certa!)
Trocar o logos da posteridade
Pelo logo da prosperidade
E assim por muito tempo busca-se
O cuidadoso esculpir da estátua
Que possa atravessar os séculos intacta
Tornar perpétua a lembrança do poeta
Mas chega-se ao cruzamento da vida
O ser pra um lado, pra outro lado o mundo
Sujeita-se o poeta à servidão da lida
Quando a voz da razão fala mais fundo
E essa voz comanda:
Trocar o logos da posteridade
Pelo logo da prosperidade
E o bom poeta, sólido afinal
Apossa-se da foice ou do martelo
Para investir do aqui e agora o capital
No produzir real de um mundo justo e belo
Celebra assim, mortal que já se crê
O afazer como bem ritual
Cessar da obsessão pelo supremo ser
Nascer do prazer pelo social
E o poeta grita:
Trocar o logos da posteridade
Pelo logo da prosperidade
Eis o papel da grande cidade
Eis a função da modernidade
Gravações
Gilberto Gil – Dia Dorim Noite Neon, 1985 – Warner Music
Moisés Navarro – Aquele Abraço, Gilberto Gil, 2022 – Alves Madeira
Comentário*
O mistério e a imprecisão semântica são minhas matérias. Eu lido muito com isso, é estimulante para mim e, na verdade, enriquece em muitos aspectos o meu trabalho, porque enfatiza um viés poético que gosta de operar com esses desvãos. É uma característica minha, de todo o meu falar, um certo dar voltas em torno de uma coisa, sem deslocar para uma sensação perceptiva de ampliação e de abrangência. Mas lá no fundo, no fundo, eu sei que o mistério está insinuante, e sei o que uma canção minha quer dizer. Essa imprecisão de que falo se aplica a “Logos versus logo”, mas ela diz o que se propõe a dizer.
Na primeira estrofe, ela coloca, como objetivo, a ideia da aproximação com Deus ou com o ser superior, com a excelência: aí estaria a força do poeta, ele seria grande por isso. Em tese, ele é superior ao cientista, porque busca e obtém essa abrangência. A segunda estrofe já traz um sentido diminuidor, depreciativo, dessa auto atribuição exorbitante, exuberante, que o poeta faz, ao associar a poesia ao plano da economia, ao plano da acumulação.
“Trocar o logos da posteridade/Pelo logo da prosperidade”, diz o refrão, no sentido de que nós todos, poetas ou não, estamos inseridos no utilitarismo, e no momento em que fazemos da poesia profissão, na música, caímos na vala comum. Assim, o poeta de uma certa maneira é obrigado a aceitar a operação que o dístico do estribilho propõe.
Nas estrofes subsequentes, é abordada a questão do engajamento: como você tem que viver o viés da economia, da produção; como você está encaixado, tem uma profissão — então você tem, de uma certa forma, de resgatar a excelência poética através de um serviço que você presta à humanidade, vindo daí o engajamento político. O poeta se engaja, daí a imagem da foice e/Ou do martelo.
Nas duas estrofes finais, desenvolve-se a ideia de que, já que ele deixou de ser etéreo (“sólido afinal”), o poeta entra na esteira da produção, se dobrando à contingência de ser um ser produtivo entre outros.
“Logos versus logo” pode parecer confusa — talvez mais até por usar o verbo [“trocar”] no infinitivo, quando na verdade ele está querendo ter funções temporais —, mas o querer dizer da canção é claro. É complexo. E apresenta interesse poético esse jogo de logos com “logo”, para exprimir a urgência, a emergência de uma visão utilitarista, produtivista, em contraposição ao mundo puro da poesia.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Logunedé
Gilberto Gil
Filho de Oxum, Logunedé
Mimo de Oxum, Logunedé – edé, edé
Tanta ternura
É de Logunedé a riqueza
Filho de Oxum, Logunedé
Mimo de Oxum, Logunedé – edé, edé
Tanta beleza
Logunedé é demais
Sabido, puxou aos pais
Astúcia de caçador
Paciência de pescador
Logunedé é demais
Logunedé é depois
Que Oxossi encontra a mulher
Que a mulher decide ser
A mãe de todo prazer
Logunedé é depois
É pra Logunedé a carícia
Filho de Oxum, Logunedé
Mimo de Oxum, Logunedé – edé, edé
É delícia
Gravação
Gilberto Gil – Realce, 1979 – Warner Music
Comentário*
Uma homenagem a meu orixá, à sua natureza brincalhona, jovial, matreira, sestrosa e dengosa; ao seu caráter bissexual também, na referência a Oxum e Oxóssi, seus pais, igualmente homenageados. Uma composição minimalista, musicalmente única, construída só sobre uma tríade de notas que atravessam toda a harmonia, e uma letra igualmente econômica, modernista na capacidade descritiva de, com dois, três traços, compor uma paisagem.
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999. “Me referindo no caso pessoal a Logunedé, tinha primeiro aquela presença: Ele, um dos donos da minha cabeça. Queria tributar isso, fazer uma canção para Ele e pensava: ‘Tenho que dizer que é charmoso, que é jovem; ele é esperto e é um rapaz vivaz. Ao mesmo tempo, ele é filho de Oxum e Oxóssi’. Fui organizando essas ideias todas e imaginando por onde é que devia começar, escolhendo um jeito de falar tudo isso por um caminho qualquer. Fui juntando a beleza com a riqueza, imaginei que essas duas coisas rimam… Ele é bonito e, ao mesmo tempo, é rico, é todo ouro de Oxum. Ele gosta dessas coisas; então, já tem…
… o mimo. — Porque isso era uma coisa em que Mãe Menininha insistia muito. Ela usava essa palavra o tempo todo: ‘Ele é o mimo d’Oxum! Ele é o mimo d’Oxum!’. E eu perguntava: ‘Mas o que é mimo d’Oxum, Mãe?’. Ela dizia: ‘É o mimo, é mimado, é a figura mimada, é o filho predileto dela’. Eu achava que tinha de ter essa frase, tinha que ter ‘mimo d’Oxum’. E aí me lembrava de Moreno, pois estava passando uns dias na casa do Caetano, quando comecei a pensar na música. Sabia que Moreno era de Logunedé também e me lembrava muito dele. Ele era muito presente para mim como imagem, quase como se ele fosse o símbolo da entidade. Ele era ainda menino, travessozinho e, ao mesmo tempo, muito calmo e muito suave. Então, a música é muito feita pra ele. E ele veio trazendo as ideias, porque Moreno também é filho de Logunedé. Caetano é de Oxóssi. Tudo isso vinha na minha cabeça. E Caetano é muito meu irmão. A Dedé, que era mulher de Caetano e mãe de Moreno, também está presente na música.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Língua do pê
Gilberto Gil
Garanto que você
Nãpão vapai não vai
Nãpão vapai não vai
Compomprepeenpendeper
Bulhufas
Bulhufas
Dopo quepe tempentapamopos lhepe dipizeper
Não tem problema
Não tem problema
Espetapamopos pelaí
Não tem problema
Não tem problema
Espetapamopos espepeperanpandopo coisas pela aí
Smetak tak tak tak (tak tak tak tak tak)
Mariá bababa baba baba
Catuaba
Cachoeira
Vão me procurar na Lapa
Na gruta da Mangabeira
Quarta-feira de manhã
Quarta-feira de manhã
Gravações
Gal Costa – Legal, 1970 – Philips
Gilberto Gil – O Sol de Oslo, 1998 – Pau Brasil
Gilberto Gil – It’s Good To Be Alive (Anos 90), 2002 – Gege
Cris Aflalo – Quase Tudo Dá, 2009 – Tratore
Comentário*
Essa música recupera uma linguagem cifrada, uma língua de ocultação, criada para ser falada sem que os outros entendam; uma brincadeira. Como as cartas enigmáticas. Minha atração por isso advinha de isso ser uma coisa fantástica da infância. Mas aqui, além do aspecto lúdico, há também o relacionado com o mundo esotérico, referido na última estrofe.
Smetak [o músico, de temperamento místico, Walter Smetak], de Salvador, um bruxo; Catuaba: Paulo Catuaba, de Cachoeira, na Bahia, outro bruxo; Maria babá, babá de Roberto Pinho [antropólogo baiano], também de Cachoeira. São todos personagens reais, ligados a questões de fragmentos de mundos esotéricos com os quais lidávamos naquele momento – eu, Rogério Duarte, Roberto Pinho.
A gruta da Mangabeira aparece como um símbolo da concretização do mundo misterioso, do mundo subterrâneo, por ser uma gruta subterrânea do distrito da Mangabeira, município de Ituaçu [cidade da infância de Gil], um lugar cheio de mistérios que eu visitei muitas vezes, quando criança.
Cachoeira tem muita relação com Ituaçu porque era aonde eu chegava de trem, vindo de Ituaçu, para pegar o navio para a Bahia.
‘Língua do Pê’ foi, portanto, mais uma das canções exploratórias do campo esotérico, um campo importante de interesses nossos na época. E uma das primeiras que fiz já em Londres, com as reminiscências dos momentos imediatamente anteriores à saída, passados na Bahia – os momentos da Casa Redonda, dos encontros com Smetak, das tertúlias com Rogério, das idas a Cachoeira, do conhecimento do Catuaba.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Loba romana
Gilberto Gil
Romana mulher
Tu sabes que és
Mãe dessa cidade que tens aos teus pés
A te adorar
E eu serei talvez
Um daqueles teus amantes mais fiéis
Que sabe amar
Mais que aos teus encantos
Amar o que é teu destino
Mais que amar-te (a arte)
Amar o amor, o verso de Roma
Mais que às tetas
Amar-te a Eterna Ideia
Mais que ao teu sabor
Amar ao teu aroma
Tu sabes que eu tenho a alma apaixonada
E o meu amor por ti não vale nada
Tu sabes que eu serei, serei
Um dos teus tantos amantes mais fiéis
A te adorar
[ inédita ]
Lindonéia
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Sem que ninguém a visse
Miss
Linda, feia
Lindonéia desaparecida
Despedaçados, atropelados
Cachorros mortos nas ruas
Policiais vigiando
O sol batendo nas frutas
Sangrando
Ai, meu amor
A solidão vai me matar de dor
Lindonéia, cor parda
Fruta na feira
Lindonéia solteira
Lindonéia, domingo, segunda-feira
Lindonéia desaparecida
Na igreja, no andor
Lindonéia desaparecida
Na preguiça, no progresso
Lindonéia desaparecida
Nas paradas de sucesso
Ai, meu amor
A solidão vai me matar de dor
No avesso do espelho
Mas desaparecida
Ela aparece na fotografia
Do outro lado da vida
Lindinalva
Gilberto Gil
Apontava pra ladeira
Por onde viria o grande amor
Numa tarde colorida
Descendo daquele morro
Junto com o batuque do tambor
Como um príncipe encantado
Bem preto como o carvão
Anjo negro iluminado
Um cântico de ressurreição
Aparecer na cozinha
E ir brincar no quintal
Um sol negro iluminado
Um raio prum pobre coração
A seta indicando vida
Passava por um destino
Sem que ninguém percebesse bem
A seta indicando vida
– O Cupido – era cuspida
Repelida e atirada além
E o príncipe encantado
Bem preto como o carvão
Iria embora pra sempre
Pra sempre deixando solidão
Lia e Deia
Gilberto Gil
Que as duas são, as duas, uns amores
Uns amores, dois amores, mil amores
Meus e de tantos outros admiradores
Como fazer para dizer a elas
Quão belas são aquelas suas mãos
Cheias numa, mais magras na outra
E as outras partes, os vãos e desvãos
Uma, tamanho, tamanho, tamanho pé de laranja
A outra, tamanho, tamanho, tamanho pé de mamão
Uma mais assim broto de soja
A outra assim mais broto de feijão
Ambas o melhor dos alimentos
Ambas a melhor das refeições
Ambas trovoadas, fortes ventos
Para o meu e tantos outros corações
Lia e Deia, Deia e Lia, Lia e Deia
Duas cotovias e uma ideia:
Que os pássaros passarão todos os dias
Voando ao léu, no céu da poesia!
Que as noites sempre nos trarão a lua
Os sonhos de verão e as fantasias
Nos corações, nas mãos de Lia e Deia
Nas mãos, nos corações de Deia e Lia
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
Essa é uma canção de amor pra duas queridas amigas recém adotadas por mim. Pessoas que eu conheci na época, por quem desenvolvi um afeto muito grande. Uma de São Paulo, morando no Rio; a outra, do Rio. A causa da canção propriamente foi o pedido de uma delas. Na verdade, das duas. Eu fui a um jantar na casa de um amigo comum, que era amigo delas já antes de eu ser amigo dele e amigo delas. Elas já frequentavam a casa dele. Uma chamada Maria e a outra chamada Andreia. Nós estávamos no jantar na casa dele, uma noite, e uma delas pediu: “Faça uma música pra mim!”. Porque eu havia feito “Afogamento”. O meu amigo — o Jorge Bastos Moreno — me pediu pra cantar “Afogamento”, uma parceria minha com ele, pra elas ouvirem, eu cantei, e aí Maria disse: “Faça uma canção pra mim também!”. Porque “Afogamento” era pra um suposto boto que era um dos amigos nossos, da turma do Moreno. Aí a outra, Andreia, disse assim: “Ah, então eu quero uma música pra mim também”. Aí eu disse: como eu vou fazer? Vou fazer logo uma pra vocês duas. Pode, tá bom? Pode ser assim? Aí, pronto, eu fiz.
E eu comecei por me interrogar a respeito de como dar conta dessa tarefa. Porque eram dois tipos físicos bem diversos, diferentes. Andreia é patolinha, e Maria é toda mais esguia. As mãos de uma bem diferentes das mãos da outra. E daí às outras partes, os vãos, os desvãos, à beleza física completa delas, dos corpos delas, e à associação, em tom de brincadeira, com o pé de mamão e o de laranja; à diferença entre o broto de soja, que é mais cheio, e o broto de feijão, que tem as hastezinhas mais suaves. E à comparação: “Ambas o melhor dos alimentos/ Ambas a melhor das refeições”: a sugestão de um eventual romance com ambas. Por fim, a parte mais poético-romântica, a final, dos “sonhos de verão e as fantasias”. A canção é cheia de fantasias afetivas, amorosas. Uma toada canção toda pungente, bonita, bem construída.
Rapidez na fatura. — Fiz a canção de uma vez. “Lia e Deia” saiu de fluxo único. Foi bem fluente. Eu a compus logo depois [da solicitação] porque, como era encomenda das duas, eu quis entregar a encomenda sem demora; me livrar da tarefa. Foi um desafio interessante também do ponto de vista criativo: “Como fazer para dizer às duas?”.
Do interesse representado por começar uma letra com uma interrogação e do interesse representado por ter começado a canção com a interrogação em questão. — A pergunta suscita logo uma necessidade de espraiar, de dar vazão ao fluxo. Aí, pronto, os caminhos vão aparecendo. Você de uma certa forma se torna parceiro da inspiração. Você inspira, você atiça a inspiração. Não fica totalmente submisso a ela; ao contrário. Você já a provoca, você a desafia: “Como fazer? Diga logo”. A inspiração é obrigada a responder. Você remexe nesse campo anterior onde residem os substratos da inspiração.
Uma fase de canções para e sobre pessoas (como “Na real”, “Quatro pedacinhos”, “Uma coisa bonitinha”, “Tartaruguê”), algumas das quais com nomes de pessoas (casos de “Lia e Deia”, “Sereno”, “Jacintho”, “Yamandu”, “Kalil” e “Sol de Maria”). — Exatamente. Muito a ver com um momento em que foi necessário, foi imperativo pra mim a busca, a aproximação com gente e com gente nova dentro do ciclo mais próximo da família, como os netos, a bisneta: gente nova em termos de novidade no campo afetivo. E numa extensão até o mais velho de todos, o Jacintho, de cem anos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lia
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Ouvindo as pancadas
Das águas do mar
Essa ciranda quem me deu foi Lia
Que mora na Ilha
De Itamaracá
Eu estava sem saber da vida
A manhã perdida
Na beira do mar
Eu estava na beira e não via
Que o mar prometia
Morrer, deslindar
Depois veio aquela menina
E meu corpo queria
Crescer, navegar
Essa manhã de dor, essa alegria
Essa vontade nova em frente ao mar
Essa primeira esperança comovida
De ter de, de ter de atravessar
Essa janela aberta, essa varanda
Essa manhã desesperada e branda
Essa ciranda quem me deu foi Lia
Que mora na ilha
De Itamaracá
Gravação
Claudete Soares – Gil, Chico e Veloso por Claudete, 1968 – Philips
Lente do amor
Gilberto Gil
Uma grande angular
Vejo ao lado, acima e atrás
Pela lente do amor
Sou capaz de enxergar
Toda moça em todo rapaz
Pela lente do amor
Vejo tudo crescer
Vejo a vida mil vezes melhor
Pela lente do amor
Até vejo você
Numa estrela da Ursa Maior
Abrir o ângulo, fechar o foco sobre a vida
Transcender, pela lente do amor
Sair do cético, encontrar um beco sem saída
Transcender, pela lente do amor
Do amor
Pela lente do amor
Pela lente do amor
Pela lente do amor
Sou capaz de entender
Os detalhes da alma de alguém
Pela lente do amor
Vejo a flor me dizer
Que ainda posso enxergar mais além
Pela lente do amor
Vejo a cor do prazer
Vejo a dor com a cara que tem
Pela lente do amor
Vejo o barco correr
Pelas águas do mal e do bem
Mostrar ao médico, encarar, curar sua ferida
Transcender, pela lente do amor
Cantar o mântrico, pagar o cármico na lida
Transcender, pela lente do amor
Do amor
Pela lente do amor
Pela lente do amor
Gravações
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
Moisés Navarro – Aquele Abraço, Gilberto Gil, 2022 – Alves Madeira
Comentário*
Uma canção sobre a capacidade de apreensão e de ampliação da visão da alma, sobre as visões do amor, o amor como uma grande lente de aumento, um grande microscópio que pode tornar visíveis pequenos detalhes imperceptíveis a olho nu.
Uma canção sobre as visões míticas do amor, sobre os mitos do amor; o amor como doação irrestrita, incondicional e absoluta, sem a necessariedade da contrapartida; o amor que não pede nada em troca; que prescinde diretamente da reciprocidade; um amor, portanto, despersonalizado, que não precisa de outra pessoa; que não é carnal; que transcende o plano do afeto, que não é afetado por nada disso: o amor ideal, uma idealização do amor; o amor maior pregado pelos profetas, pelos santos, pelos religiosos. Daí a transcendência do plano trágico das diferenças; a ideia da superação do bem e do mal pela conformação, pela aceitação, pela resignação.
Amor transcendental por estar, basicamente, em princípio, além do alcance da humanidade, daquilo que é humano em nós – embora só o fato de falarmos disso [desse amor] e o buscarmos seja sinal de que isso se insinua em nós. Amor que, pela característica absoluta que ele tem, só fosse possível na rarefação completa de todos os corpos que nos compõem, desde o mais físico ao mais etéreo, mental – e aí é quando a dimensão humana não está em jogo; quando os desejos, as expectativas, as necessidades, as carências estão fora de cogitação. Nós ainda precisamos dos estágios anteriores do amor.
Amor que é tudo (‘love’s all’), identificado com Deus; com a infinitude; com a incondicionalidade; com a plenitude – e com o nada também, necessariamente. Ainda assim, é nossa ambição trazer essa dimensão plena de amor para dentro da vivência não plena da nossa condição humana. O discurso dos santos, dos profetas, dos religiosos, fala disso.
Tratar do amor talvez seja mesmo minha missão, pela frequência com que eu tento abordar a questão e pela maneira como eu tento chegar a essa qualidade irrestrita, essa abrangência, essa universalidade religiosa do amor, em ‘Lente do amor’.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lavagem do Bonfim
Gilberto Gil
Sai da Conceição da Praia a primeira
Talagada de batida na Praça Cairu
Levanta a pista ao alto o Lacerda
Mais parece um corredor que envereda
Uma pista de corrida a correr pro céu azul
Olha a vertigem, Virgem Maria!
Te segura, criatura, que o dia
Inda tá menino moço, o almoço inda tá cru
Segura bem na mão da menina
Poupa o coração, que é só na colina
Que o santo serve o caruru
Timbau, pandeiro, som de guitarra
Tanta roupa branca, tanta algazarra
Zona franca de folia, de fé, de devoção
Foto de lambe-lambe, alegria
Vai passar pelo moinho da Bahia
Mais de trinta graus de calor, amor e emoção
Lembra bem dos degraus da igreja
Guarda um pouco de suor pra que seja
Misturado às águas e às mágoas de lavar o chão
Faz tempo que passou da calçada
Segura os joelhos nessa chegada
Que o peito arde de paixão
Gravação
Gal Costa – O sorriso do gato de Alice, 1993 – BMG
Comentário*
Um dia eu estava em Salvador na Lavagem do Bonfim, vi aquelas cenas todas, aí peguei o violão e fiz essa música. É uma descrição daquela alegria, daqueles nove quilômetros que são percorridos entre a Conceição da Praia e a Ladeira do Bonfim. Vai passando pelos lugares, dá uma visão delirante, já bêbada, do Elevador Lacerda, segue, passa pelo Moinho da Bahia, vai indo, entra na avenida que vai passar pela Água de Meninos, pelo Bonfim, e aí chega aos degraus da igreja. É um samba de batuque.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lar hospitalar
Gilberto Gil
Milton Nascimento
Eu que testemunho dramas da canção fugaz
Eu que experimento o quanto a fantasia é bom
Alimento para a paz
E eu mesmo agora, tenho que lhe ouvir dizer
Aos berros que a vida é pura maldição
Que o mundo é feito só para os eleitos
Que houve sempre fraude na tal da eleição
Portanto, só queimando tudo
Só matando meio mundo
Só pondo a outra metade no poder
Você no comando, sempre vigiando
Pra ninguém se corromper
Finda a banda podre, linda a banda nobre
Sobe a velha rampa e altiva vem reinar
Com imunidades contra o vírus da maldade,
Com certeza, com pureza, com limpeza
Hospitalar, hospitalar, no seu lar hospitalar
Lar, hospitalar
Eu que moro onde o pecado mora ao lado
E me visita sempre no verão
Eu que já fui preso por porte de baseado
É baseado nisso que eu lhe digo não, não, não
Não vou fazer seu coro, seu sermão
A não ser que você possa instalar
O chip da ignorância em minha cuca
A não ser que você consiga me reprogramar
Reprogramar, me reprogramar, reprogramar.
Gravação
Gilberto Gil e Milton Nascimento – Gil & Milton, 2000 – Warner Music
Comentário*
Fizemos cinco composições; para duas delas, eu fiz as músicas primeiro, e Milton fez letras depois; para outras duas, ele fez as músicas primeiro, e eu fiz as letras depois; e numa, partilhamos tudo: numa parte, música e letra eu, outra parte, música e letra ele. Armamos assim uma piramidezinha, que acomodasse a parceria nos seus vários planos. No caso de “Lar hospitalar”, ele fez um daqueles rocks mineiros típicos dele, bem melódicos, bem harmônicos, e eu escrevi a letra.
Era a época em que se falava muito da “banda podre” em relação à polícia do Rio. Eu aí quis brincar um pouco com isso, como se todos nós não tivéssemos uma banda podre (aquela coisa d’“A raça humana” como “Uma beleza, uma podridão”)… A canção coloca as elites palacianas como partícipes desse dualismo necessariamente humano, demasiadamente humano, todos nós habitados pelo bem e pelo mal…
Há uma ironia em relação ao que seria uma campanha obsessiva contra a corrupção. — Sim, “Lar hospitalar” é uma música para ridicularizar os patrulhamentos de qualquer ordem, morais, políticos, econômicos, todos eles. Uma revisitação ao antipatrulhamento.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lamento sertanejo
Gilberto Gil
Dominguinhos
Lá do cerrado
Lá do interior, do mato
Da caatinga, do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigo
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado
Por ser de lá
Na certa, por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada
Caminhando a esmo
Gravações
Gilberto Gil – Refazenda, 1977 – Warner Music
Dominguinhos – Apôs Tá Certo, 1979 – Universal Music
Djavan – Songbook Gilberto Gil, Vol. 3, 1992 – Lumiar Discos
Gilberto Gil – As Canções de Eu, Tu, Eles, 2000 – Warner Music
Alcione – Nos Bares da Vida, 2000 – Universal Music
Zé Ramalho – Nação Nordestina, 2000 – Sony Music
Gilberto Gil – São João (Ao Vivo), 2001 – Warner Music
Maria Bethânia – Noite Luzidia (Ao Vivo), 2012 – Biscoito Fino
Mariene de Castro e Almério – Acaso Casa Ao Vivo, 2019 – Biscoito Fino
Mariana Aydar e Mestrinho – Ao Vivo no Coala. VRTL, 2021 – Coala.LAB
Marisa Monte – Portas (Ao Vivo), 2023 – Phonomotor
Comentário*
A música já existia em formato instrumental e até havia sido gravada pelo Dominguinhos num andamento rápido; era um xote rápido. Mas quando ele a mostrou para mim, na época em que estava tocando com a Gal, no show Índia, e começou a colaborar comigo para o disco Refazenda (nós tínhamos nos aproximado antes, no Midem, em 73, quando eu passei a cantar o seu “Xodó”), ele já a tocou como um lamento, como uma toada lenta, num andamento arrastado que lhe deu um certo tom de entristecimento. Aí, ele me pediu que fizesse uma letra e eu fiz o “Lamento sertanejo”, um título que ele mesmo propôs e com o qual ele a apresentou para mim, no andamento acelerado que dava a ela um caráter de peça dançante nordestina.
Essa canção possui o traço da minha identificação pessoal com o retirante, eu mesmo tendo sido um pouco retirante, um semirretirante. Quando, a cada verão, eu vinha de lá do sertão para Salvador, eu vivenciava o que os retirantes vivenciavam e que passaram a vivenciar mais intensamente nos primeiros anos da década de 50, quando se intensificam as suas caravanas: aquela coisa de vir da cidadezinha pequena do interior para a capital e tomar o susto com a cidade grande; de passar pela estrada empoeirada, pela paisagem das caatingas, dos lajedos, das pedras, dos arbustos e dos cactos, esse mundo que eu vivenciei durante a infância e que seria uma ponte de identificação minha com os retirantes. Quando ouvia as narra tivas do drama das viagens, eu sabia do que é que se tratava aquilo, eu tinha vivido aquilo em pequenas doses, sabia do seu significado, da saudade que batia da terra natal já durante a viagem, dos sofrimentos; via muitos tropeiros que iam buscar mercadoria nos lugares distantes; os viajantes que se empoleiravam nos caminhões, dormindo nas camas de redes armadas embaixo das carrocerias. Tudo isso eram paisagens próximas e cenários de vivências minhas e de pessoas muito próximas. No sertão, pobres e ricos, todos nós andávamos em caminhões e caminhonetes, ninguém tinha carro; todos viajavam naqueles coletivos típicos dos paus de arara.
“Lamento sertanejo” é sobre o retirante e sobre a saudade que ele tem da sua terra — e um pouco sobre as várias regiões do sertão, do serrado, da caatinga, que formam o panorama das diversidades regionais dos vários sertões brasileiros.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lamento de carnaval
Gilberto Gil
Que do imposto que pagamos ao estado
E do lucro que damos ao mercado
Um pedaço seja destinado ao carnaval
Para outros no entanto, ô, ô, ô
Da magia do tambor, da cor do canto
É que vem o calor que seca o pranto
Em seus olhos já cansados de ver tanto mal
Hoje é dia de folia
Hoje eu canto pra esquecer
Que a escola do bairro está sem professor
Amanhã depois da festa
A cidade que protesta
Entrará pela fresta da porta do corredor
Não adianta fugir
Não adianta fugir, seu doutor
Não adianta trancar a porta
Não adianta fugir, seu doutor
Para alguém neste momento, ô, ô, ô
Sua condição de dor e sofrimento
Deve ser cimentada com o cimento
Do rancor, do desespero, da exasperação
Para um outro, o lamento, ô, ô, ô
Da triste canção levada pelo vento
Pode ser uma luz no firmamento
Uma noite estrelada em seu coração!
Gravações
Gilberto Gil – Quanta Gente Veio Ver (Ao Vivo), 1998 – Warner Music
Marcelo Quintanilha e Vânia Abreu – Pierrot & Colombina, 2006 – YB Music
Comentário*
Eu tive duas motivações para compor o par de canções que ‘Lamento de carnaval’ e ‘Doce de carnaval’ formaram. Uma foi o próprio carnaval; a outra, o Lulu Santos. Lulu era meu convidado para participar do carnaval na Bahia naquele ano, o Carnaval da Tropicália, o primeiro que eu fiz tal qual venho fazendo nos últimos anos, com trio elétrico e vários colegas convidados.
Eu tinha feito ‘Doce de carnaval’, uma marcha em homenagem ao Candeal falando sobre a alteração na vida de uma pessoa provocada pela festa: o carnaval como elemento transformador. Aí eu disse: ‘Mas o carnaval é a marcha e o samba; onde é que está o samba?’ Então não teve jeito: tive que fazer um samba. A primeira motivação para eu fazer o ‘Lamento’ foi portanto essa: a provocação carnavalesca em função de a marcha ter que ser complementada pelo samba.
O Lulu já ia gravar a marcha, mas eu sabia que ele, ultimamente, estava interessado em samba; ele estava com o Carneirinho – o Nelson Jacobina – aprendendo sambas. Por isso eu disse: ‘Ah, vou fazer um samba, para ele também gravar comigo’. No fim, ele gravou a marcha e o samba. As duas motivações foram essas, a do arquétipo carnavalesco dos dois gêneros, o samba de carnaval e a marcha de carnaval, e a do Lulu, que me ajudou a formatar as duas músicas.
A ideia do ‘Lamento’ é recuperar a dimensão necessária da festa como um investimento. O texto tem por tema os gastos com o carnaval, em que a sociedade investe e em que são empregados recursos para que ela seja bonita, grande, e o lado reacionário que critica isso e se coloca contra o lúdico, contra a festa na vida, como se toda a vida tivesse que ser trabalho, tivesse que ser coisa séria, como não se devesse investir nem dinheiro nem energia na produção do lúdico, como se o lúdico fosse uma coisa desprezível.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Lamento africano
Gilberto Gil
Mama, mama, ê
Mama, mama, ê
Mama, mama, ê
Kioso unguando fuá
Nanhanga delê
Kioso unguando fuá
Nanhanga delê
Mama, mama, ê
Mama, mama, ê
Mama, mama, ê
Mama, mama, ê
Tataku matadi
Mamaku mujinhê, mujinhê
Tataku matadi
Mamaku mujinhê
Lady Neyde
Gilberto Gil
Antonio Risério
Pivete dengosa
Candeia de azeite
Escurinha gostosa
Pandeiro de pele de gata
É chinfra de malê, iaô
Persona muitíssimo grata
Convido-te para um melô
Chispa da Rua do Fogo
E vai me ver no meu barracão
Lá na Ladeira do Caminho Novo
Bate o tambor do meu coração
Ladeira da preguiça
Gilberto Gil
Que ladeira é essa?
Essa é a Ladeira da Preguiça
Preguiça que eu tive sempre
De escrever para a família
E de mandar contar pra casa
Que esse mundo é uma maravilha
E pra saber se a menina já conta as estrelas
E sabe a segunda cartilha
E pra saber se o menino já canta cantigas
E já não bota mais a mão na barguilha
E pra falar do mundo, falar uma besteira
Formenteira é uma ilha
Onde se chega de barco, mãe
Que nem lá
Na Ilha do Medo
Que nem lá
Na Ilha do Frade
Que nem lá
Na Ilha de Maré
Que nem lá
Salina das Margaridas
Essa ladeira
Que ladeira é essa?
Essa é a Ladeira da Preguiça
Ela não é de hoje
Ela é desde quando
Se amarrava cachorro com linguiça
Gravações
Elis Regina – Elis, 1973 – Philips
Elis Regina e Gilberto Gil – Phono 73, 1973 – Philips
Gilberto Gil – Ao Vivo na USP, 1973 – Discobertas
Gilberto Gil – Umeboshi (Ao Vivo), 1973 – Discobertas
Gilberto Gil – Cidade do Salvador, 1973 – Universal Music
Pedro Mariano – Pedro Mariano, 2005 – Universal Music
Shirle de Moraes – Nada Será Como Antes, 2005 – BMG
Maria Rita – Redescobrir (Ao vivo), 2012 – Universal Music
Rosa Passos – Azul, 2013 – Galeão
Gilberto Gil – Gilbertos Samba (Ao Vivo), 2014 – Gege
Illy – Te Adorando Pelo Avesso, 2020 – Alá Comunicação e Cultura
Comentário*
Outra canção do período londrino de reminiscências de tempos e lugares da Bahia e da mesma fase de ‘Fechado pra balanço’, além de ser, também como esta, um samba.
Formentera, o primeiro local citado pela letra, é uma ilha da Espanha, na época famosa, como Ibiza, pelas grandes migrações hippies. As duas ficam juntinhas. Eu estava hospedado em Formentera e ia a Ibiza, quando escrevi ‘Oriente’. Na sequência dos versos, eu aproveito para fazer uma enumeração de acidentes geográficos importantes da Bahia de Todos os Santos que foram trazidos à memória pela passagem por Formentera, naquele verão – daí a associação; são a Ilha do Medo, a Ilha do Frade, a Ilha de Maré e a Salina das Margaridas.
A Ladeira da Preguiça fica, em Salvador, entre o Unhão e o Campo Grande. A música nasceu do mistério que a Ladeira tinha para mim na infância, do lugar mitológico que ela ocupava na minha vida infantil. Era um local aonde a gente não ia; em que todo mundo falava, mas que era inacessível, por ser beira-mar mas não praia (porque a parte em que ela se situa corresponde a uma região de arrecifes, muros e muradas; você tem as praias da Ribeira, depois vêm a parte do porto, o Mercado Modelo, o Unhão, e só vai ter praia de novo no Porto da Barra). Por isso, a Ladeira não era um lugar que os banhistas frequentassem. Só iam lá, eventualmente, os malandros, os capoeiristas, as pessoas que tinham negócio por lá, além das que habitavam por perto. A Ladeira era na verdade um enclave de classe pobre numa área de classe média alta, na beira da Bahia de Todos os Santos; a ladeira que dava acesso à beira-mar. Um lugar mítico.
Música e letra manhosamente juntas – A sinuosidade do samba, do fraseado, foi propondo a sinuosidade dos versos, que são todos irregulares, não havendo estrofes propriamente. A canção é toda insinuante e sinuosa, ‘insinuosa’.
Do refrão – O caráter reiterativo e afirmativo do refrão parece lembrar um visitante, um turista, que anda pela cidade e pergunta: ‘Essa ladeira, que ladeira é essa?’ Ao que alguém responde: ‘Essa é a ladeira da preguiça!’
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ladainha
Gilberto Gil
Capinan
Medo de vivo é solidão
Luto por amor e morro
De facas no coração
Em campos sem travesseiro
Estou cercado de inimigo
Cada qual mais preparado
Intriguento e arruaceiro
Chove chuva e aguaceiro
Chove chuva e aguaceiro
Só sinto frio na alma
Estou vazio de sentimento
Não sinto água no corpo
Nem amor, nem ferimento
Chove chuva e aguaceiro
Chove chuva e aguaceiro
O vivo morreu cercado
De muita luta e alegria
Seu sorriso agora é nuvem
Sua festa, ladainha
Seu amor, cama vazia
Numa varanda do céu
Seu amor, cama vazia
Numa varanda do céu
Lá vem ela
Gilberto Gil
Vanessa da Mata
Fico cor de Deus, a cor sem cor
Nessas horas todos coram e a menina
Nessas horas ela é de maior
Passa pela casa de Jurema e Mario
Ancas de mulher são âncoras
Ai, se Deus me desse cor, coragem e fibra
Para eu poder me ancorar
Olha, lá vem ela, fértil, riso aceso
Semeando a rua
Espalhando mudas de sol, de esperança
Futuro e danuras
Quando ela corre ocorre uma corrente
De ar quente, ar de arrasta-pé
Ela corre à frente e o rastro arrasta a gente
E resta somente o que não é
O que ainda não é amor, ardor, paixão
Que o feitiço dela ainda não faz
Tudo mais, na luz da noite de São João
O ventinho dela leva e traz
La renaissance africaine
Gilberto Gil
Sa nature, ses dieux,
Son histoire et l’au delà
L’homme et son paysage aimé
Tout est là devant ses yeux
Tout ça dans le baouba
La renaissance africaine
La renaissance africaine
Et sa puissance
La renaissance africaine
La renaissance africaine
Avec sa dance
C’est l’afrique libertée
C’est l’afrique et ses idées
De sagesse et de vigueur
C’est l’afrique et sa mission
Clé pour la vrai construction
Du monde civilizé
Son peuple, son territoire
Qui s’étendent en diaspora
Jusqu’à la fin de la terre
En Europe, en Amerique
C’est toujour l’esprit d’Afrique
La nouveauté qui prospère
Ses enfants, ses gens musclés
Ses femmes d’outre beauté
Une beauté noir-nuit
Continent le plus agé
Les vieux temps nous ont laissé
Sa mythologie, sa vie
Gravações
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Gege
Gilberto Gil – Bandadois (Ao Vivo), 2009 – Gege
Gilberto Gil – Concerto de cordas e Máquinas de ritmo (Ao Vivo), 2012 – Biscoito Fino
Comentário*
Minha mania de abordar o francês em algumas canções. “La Renaissance africaine”: esse título é o título de um festival, que na verdade reeditava o grande festival proposto por Léopold Senghor [Festival Mundial de Artes Negras, criado em 1966]. Os agentes culturais senegaleses dessa época do Renaissance Africaine criaram o festival com esse nome e com o escopo de dar guarida às manifestações diaspóricas, africanas, no próprio continente e fora dele — à expansão da África para o mundo —, bem como a essa ideia de renascimento africano, que estava no Léopold Senghor e em todos os grandes temas poéticos da diáspora. Então, pra contemplar isso, eu fiz a canção, que chegou a ser sugerida. “Por que você não faz uma música com esse tema?”, perguntou Youssou N’Dour, conversando comigo. Ele também era um dos participantes, um dos curadores do festival. Ele disse: “A gente precisa ter uma música-tema desse Renaissance”. Eu nem prometi a ele que ia fazer, mas acabei fazendo.
Sobre trechos que apresentam um interesse particular por falar, por exemplo, na missão da África para a construção do mundo civilizado. — “O homem pleno de dignidade. Sua natureza, seus deuses. Sua história e seu além. O homem e sua paisagem amada. Tudo diante dos seus olhos. Tudo isso na árvore, nessa árvore símbolo extraordinário daquela região da África, que é o baobá. A África libertada, a África com suas ideias de sabedoria e de vigor. A África e sua missão pela verdadeira construção do mundo civilizado. Seu povo, seu território. Que se estende em diáspora até o fim da terra. Até os confins da terra, do mundo. Na Europa, na América, sempre o espírito da África. A novidade que prospera. Suas crianças, seus meninos, seus homens musculosos. Suas mulheres de especial beleza — ‘d’outre’, aí, no sentido de ‘especial’, de ‘diferente’: ‘outra beleza’ nesse sentido. Suas mulheres de outra beleza. Uma beleza noite negra. O mais velho dos continentes. Os velhos tempos nos deixaram, nos trouxeram, nos deram sua mitologia, sua vida.”
É uma canção feita a partir de estímulos muito efetivos: todo o mundo africano reunido, colegas artistas, poetas, músicos, em um festival; uma disposição da instituição cultural, de um país importante como Senegal, de promover isso, de fazer esse festival. Então a canção veio pronta nesse sentido: no sentido da sua urgência, da sua adequação, da sua propriedade. Eu só fiz versejar em cima disso, e musicar.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
La lune de Gorée
Gilberto Gil
Capinan
Sur l’île de Gorée
C’est la même lune qui
Sur tout le monde se lève
Mais la lune de Gorée
A une couleur profonde
Qui n’existe pas du tout
Dans d’autres parts du monde
C’est la lune des esclaves
La lune de la douleur
Mais la peau qui se trouve
Sur les corps de Gorée
C’est la même peau qui couvre
Tous les hommes du monde
Mais la peau des esclaves
A une douleur profonde
Qui n’existe pas du tout
Chez d’autres hommes du monde
C’est la peau des esclaves
Un drapeau de Liberté
Gravações
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – Eletracústico, 2004 – Warner Music
Comentário*
É basicamente uma letra de Capinan com retoques meus: pequenos ajustes de adequação métrica; eventualmente, uma reorganização das estrofes; uma coisinha aqui, ali, uma outra; alguma mexida em relação às questões tonais das frases. Um tipo de ação parecida com a que eu fiz na canção com o Ruy Guerra, “Sob pressão”.
A canção remete ao portal, o arco, um ancoradouro de navios em que os escravos eram embarcados e dali partiam para as travessias. O Capinan acabou indo a Gorée fazer uma visita, depois que eu já tinha ido, e se lembrava da minha ida. (Eu fui mais de uma vez. Uma, com o pessoal ligado ao Ministério da Cultura do Senegal, a entidade cultural senegalesa. Outra, com o presidente Lula.) O fato é que foi depois da visita que Capinan fez que ele resolveu escrever a letra, e me propôs fazer a música, e eu fiz.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Kaya N’Gan Daya
Gilberto Gil
Robert Nesta Marley (Bob Marley)
Wake up and turn loose
Wake up and turn loose
Wake up and turn loose
For the rain is falling
Got to have kaya now
Got to have kaya now
Got to have kaya now
for the rain is falling
I feel so high, I even touch the sky
Above The falling rain
I feel so good in my neighborhood
So here I come again
Got to have kaya now
Got to have kaya now
Got to have kaya now
for the rain is falling
Eu posso ver
O sol aparecer
Sobre a chuva que cai
Tão bom rever
A tribo, o fumacê
Do cachimbo da paz
(e muito mais)
Kaya já, na Gandaya
Kaya já, na Gandaya
Kaya já, nem que a chuva
Kaya
Na Gandaya, Kaya já
Na Gandaya, Kaya já
Kaya já , nem que a chuva
Kaya
Kaô
Gilberto Gil
Rodolfo Stroeter
Obá obá obá obá obá
Obá obá obá obá obá
Obá obá obá obá
Xangô baobá obá Xangô
Kaô
Kabieci lê
Kabieci lê
Kabieci lê
Kabieci lê
Kaô kaô kaô
Baobá
Obá obá obá obá Xangô
Obá obá obá obá obá Xangô
Obá obá obá obá Xangô
Obá obá obá obá obá
Jurubeba
Gilberto Gil
Beba beba beba beba beba beba juru
Jurubeba
Licor licor licor licor licor de jurubeba
Beba chá de juru, beba chá de jurubeba
Oba, bicharada viva, pé de jurubeba
Jurubeba
Canta, passarada linda, flor de jurubeba
Quem procura acha cura, flor de jurubeba
Quem procura acha na raiz de jurubeba
Tudo que é de bom pro figueredo e que se beba
Feito vinho, feito chá
De licor, de infusão
Jurubeba, jurubeba, planta nobre do sertão
Gravações
Mariana Aydar – Brasil, Sons e Sabores, 2005 – YB Music
Comentário*
Meu trabalho é frequentemente permeado por uma tendência a se aproximar das ideias do slogan e do jingle, que foi por onde eu comecei basicamente a fazer música: depois de compor algumas canções em casa, eu fui logo trabalhar para uma agência de publicidade de Salvador, fazendo jingles.
Criei vários: de lojas de tecidos, de sapatos, de bateria de carro. Um deles, o dos calçados Calba, dizia: ‘Parece incrível, mas é flexível/ É o calçado que você sonhou/ É bossa nova exclusiva da Calba/ É bossa nova que a Calba criou.’ Era um sapato tipo Vulcabrás, versão baiana. O das lojas O Cruzeiro finalizava: ‘Nas lojas O Cruzeiro seu dinheiro tem ainda o cartaz/ Nas lojas O Cruzeiro seu cruzeiro vale mais!’
Um outro, das lojas Milisam: ‘Milisam tem roupa feita para você comprar/ Sem sentir/ Compre de tudo pra vestir/ No crediário popular/ No plano espetacular/ Na sua Milisam’.
Mais tarde, cheguei a fazer alguns no Rio. Um ano depois do meu primeiro disco, um deles ganhou um concurso aberto pelo Jornal dos Sports, que na época remodelava tipografia, cor, diagramação etc. Fiz também um jingle para os cigarros Hollywood; a canção falava sobre a fumaça como um veículo para os sentimentos e as ideias; como um puxador de emoções.
A lógica do convencimento, do apelo à sedução, através do ressaltar de traços e elementos constituintes de alguma coisa, típica da linguagem de jingles, é uma característica que de vez em quando aparece nas minhas canções – a tentativa de ir diretamente ao interlocutor, sem intermediações, com ‘um produto’ a oferecer: um pensamento, um sentimento, um valor, uma avaliação, um modo de ver.
Jurubeba, além de se utilizar da forma, teve mesmo a intenção de ser jingle: foi composta para fazer propaganda da bebida – um composto com vinho que contém boldo e apresenta propriedades medicinais, boa para o aparelho digestivo, e que lembra alguns amaros do Mediterrâneo. Eu gosto muito. Um amigo meu, o Synval da Costa Lima, irmão de Vivaldo da Costa Lima, antropólogo, tinha uma fábrica e costumava me mandar umas caixas de Jurubeba Leão do Norte. É a melhor.
P.S. — [Gil já havia esgotado seu estoque de jingles na memória, quando, muito tempo depois de editar o comentário acima, eu recebi de Belina, sua primeira mulher (que manteve a letra manuscrita desde a época da composição, início da década de 60, quando ainda namorava Gil), a transcrição de mais este, que, pela forma e extensão, me sugeriu a denominação de um gênero musical, o jingle-canção — ao contrário de “Jurubeba”, que seria, digamos assim, uma canção-jingle — mas, seja como for, trazendo também em seu conteúdo a publicidade de uma bebida: “Morango, pera e limão/ Gasosinhas três delícias, que prazer/ Fratelli Vitta, qualidade e tradição/ Gasosinhas gostosinhas pra você beber// Eu já sei e todos sabem/Até hoje ainda não há/Igual a Fratelli Vitta/ Saboroso guaraná/ Não há outro e acredito/ Que outro não pode haver/Guaraná Fratelli Vitta/É guaraná pra valer”.]
Outro P.S. (sobre outra canção-jingle). — [O resgate do jingle e minha apreciação sobre ele e sobre “Jurubeba” parecem ter reavivado a memória de Gil. A tempo, ele se lembrou de outra peça do gênero, composta em 1992. Ao contrário de “Jurubeba”, porém, “A turma do focinho” é mais propriamente uma canção- -jingle de caráter propagandístico que publicitário. Ou, para ser ainda mais exato, dado o seu tom crítico, uma canção-jingle de protesto contra a sujeira nas praias e de propaganda das ideias da Ondazul, movimento e, depois, fundação ambientalista que Gil presidiu.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Jubiabá
Gilberto Gil
Filho malcriado de uma velha tia
Via com seus olhos de menino esperto
Luzes onde luzes não havia
Cresce, vira um forte, evita a morte breve
Leve, gira o pé na capoeira, luta
Bruta como a pedra, sua vida inteira
Cheira a manga-espada e maresia
Tinha a guia que lhe deu Jubiabá
Que lhe deu Jubiabá
A guia
Trava com o destino uma batalha cega
Pega da navalha e retalha a barriga
Fofa, tão inchada e cheia de lombriga
Da monstra miséria da Bahia
Leva uma trombada do amor cigano
Entra pelo cano do esgoto e pula
Chula na quadrilha da festa junina
Todo santo de vida vadia
Tinha a guia que lhe deu Jubiabá
Que lhe deu Jubiabá
A guia
Alva como algodão e tão macia
Como algo bom pra lhe estancar o sangue
Como álcool pra desinfetar-lhe o corte
Como cura para a hemorragia
Moça Lindinalva, morta, vira fardo
Carga para os ombros, suor para o rosto
Luta no labor, novo sabor, labuta
Feito a mão e não mais por magia
Tinha a guia que lhe deu Jubiabá
Que lhe deu Jubiabá
A guia
Negro Balduíno, belo negro baldo
Saldo de uma conta da história crua
Rua, pé descalço, liberdade nua
Um rei para o reino da alegria
Tinha a guia que lhe deu Jubiabá
Que lhe deu Jubiabá
A guia
[ para o filme Jubiabá, de Nelson Pereira dos Santos ]
Gravação
Gilberto Gil – Soy loco por ti America, 1987 – Warner Music
Comentário*
[Canção da trilha do filme de Nelson Pereira dos Santos para o livro homônimo de Jorge Amado.]
Jubiabá foi o primeiro romance do Jorge Amado, que tinha 22 anos quando o escreveu e 23 quando o publicou. Uma estreia que foi um estouro, com direito a elogio de Albert Camus dizendo que o livro era um assombro. — É: com uma complexidade toda de relações humanas num plano transcendente já. Muito interessante, muito importante. O jorro poético dessa letra nasce de um caudal que já está no livro e que depois Nelson levou até às imagens.
Para fazer as canções da trilha, você leu o livro? Já tinha lido? — Já tinha lido, e li de novo.
A canção leva o nome de “Jubiabá”, que é o pai de santo, mas narra a história de Balduíno, o capoeirista. — Porque o personagem mais abrangente, digamos assim, é o pai de santo, mas os descendentes poéticos são os personagens que vêm fazendo o enredo todo.
O substantivo próprio faz um jogo com o adjetivo nele contido — “baldo”, desprovido, carente; um descendente da escravidão. As imagens são fortes: “Pega da navalha e retalha a barriga/Fofa, tão inchada e cheia de lombriga/ Da monstra miséria da Bahia”. — É isso que Jorge quis retratar no seu livro e é isso que proporciona o elogio do Camus.
A história toda, a complexidade da Bahia, da questão étnico racial brasileira, deve tê-lo assombrado. — Exatamente. As semelhanças com a questão dos imigrantes africanos para a Europa, para a França, essa similitude, os escravos todos, o tráfico negreiro. Tudo isso. A Diáspora negra, as escravidões todas das Américas. Jorge Amado, grande receptáculo dessa dimensão narrativa, um socialista, logo dedicou-se a isso.
Duas quadras da letra acabaram sendo omitidas na gravação (a primeira começando com “Alva como algodão e tão macia”) e aludem à moça branca que se apaixona por Balduíno, por quem ele se apaixona também, e que é filha do senhor que ele serve, embora o tempo não seja mais o da escravidão; mesmo assim o amor deles não se realiza (como Gil canta em “Lindinalva”, ver a letra seguinte). — Sim, não se realiza. O amor é submetido à dimensão trágica da impossibilidade. Era impossível em uma rede de relações tão complicadas que o amor desabrochasse. É trágico. Romeu e Julieta. O problema era de ordem racial e social. É o gênio de Jorge.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Joia rara
Gilberto Gil
Hoje vem o vento
A qualquer momento
O fogo virá
Coração vadio
Tem que estar atento
Pois cada elemento
Terá seu lugar
Água e ar e fogo
Terra pedregosa
Pedra preciosa
Tudo a merecer
Um canto na alma
Um tapa na cara
Uma joia rara
Um tanto sofrer
No meio do rio
A voz do barqueiro
Lança o desafio
Buda há de escutar
No meio da noite
No meio do frio
Ao fisgar do acoite
Buda há de encontrar
Justo justo meio
Entre o belo e o feio
Longe do receio
Perto do sonhar
Onde o amor se esconde
Onde o amor se ampara
Uma joia rara
Um certo penar
Gravação
Gilberto Gil – Joia Rara (trilha sonora da novela da Rede Globo), 2013 – Som Livre
Comentário*
A letra rememora a lenda sobre a iluminação do Buda. A lenda diz que ele se iluminou exatamente num determinado momento em que navegava por um rio. Foi quando o sentido do caminho do meio lhe ocorreu, o que lhe teria deflagrado a iluminação. A canção é sobre isso. Uma descrição dessa lenda da iluminação. Buda teria ouvido a voz de um barqueiro, e aí se iluminado. Evidentemente tudo isso, na canção [composta para a abertura de uma novela homônima], é dirigido a uma tentativa de explicação da dimensão da espiritualidade, a noção do sofrimento e gozo, a ideia dos contrários, algo que é recorrente no meu campo temático, no meu receituário de composições, de elementos pra compor.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
João Sabino
Gilberto Gil
Pra quem?
Pro santo
Pra quem?
Pro santo
Pra quem?
Pro santo espírito senhor
Pai do filho do Espírito Santo
Senhor pai do filho do Espírito Santo
Senhor pai de quem?
Pai do filho do Espírito Santo
Senhor pai de quem?
Pai do filho do Espírito Santo
Filho do Espírito Santo
Filho de uma localidade de lá
Nessa localidade de lá
Uma abertura de si
Uma embocadura pra dó
Sustenindo uma passagem pra ré
Mi bemol
Já traz o som, o eco
A claridade
Ainda um pouco abaixo do horizonte
Atrás do monte
De mi pra fá
Sustenindo, suspendendo
Sustentando, ajudando o sol
Nascer
Aqui na terra
Atrás da serra
Cachoeiro do Itapemirim
O sol nascer
João Sabino, eu imagino
Quando era menino, via assim
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao Vivo), 1974 – Gege
Comentário*
A música que eu fiz em homenagem a João Sabino, pai do filho do Espírito Santo… Nonsence, mas não tanto. Porque João Sabino era o pai de Rubão Sabino [músico que tocava com Gil naquele período], que nasceu no Espírito Santo. ‘Filho de uma localidade de lá’: Cachoeira do Itapemirim – de onde ambos eram. Essa composição é uma loucura. Estranha, inusitada. Toda ela construída com elementos da coisa do nonsence, mas na verdade nem tanto assim. João Sabino era sanfoneiro – tocava sanfona de oito baixos – e eu o conheci no Rio, onde ele morava. Uma figura extraordinária, um negro bonito. Eu gostava muito dele e o homenageei com essa música. O pai do filho do Espírito Santo. Uma maluquice. Quem é louco por ela é o Moreno.
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Jeca total
Gilberto Gil
Presente, passado
Representante da gente no senado
Em plena sessão
Defendendo um projeto
Que eleva o teto
Salarial no sertão
Jeca Total deve ser Jeca Tatu
Doente curado
Representante da gente na sala
Defronte da televisão
Assistindo Gabriela
Viver tantas cores
Dores da emancipação
Jeca Total deve ser Jeca Tatu
Um ente querido
Representante da gente no olimpo
Da imaginação
Imaginacionando o que seria a criação
De um ditado
Dito popular
Mito da mitologia brasileira
Jeca Total
Jeca Total deve ser Jeca Tatu
Um tempo perdido
Interessante a maneira do tempo
Ter perdição
Quer dizer, se perder no correr
Decorrer da história
Glória, decadência, memória
Era de Aquarius
Ou mera ilusão
Jeca Total deve ser Jeca Tatu
Jorge Salomão
Jeca Total Jeca Tatu Jeca Total Jeca Tatu
Jeca Tatu Jeca Total Jeca Tatu Jeca Total
Gravações
Gilberto Gil – Refazenda, 1975 – Warner Music
Emílio Santiago – Brasileiríssimas, 1976 – Universal Music
Comentário*
O fato de que a obra de Jorge Amado tinha antecedido ao período televisivo e agora estava na televisão (era a época da novela Gabriela) me fez pensar nas interseções entre os mundos rural e urbano — muito presentes em seus livros — e no encaminhamento evolutivo dos vários Brasis no sentido campo-cidade, vindo daí a ideia de traçar um risco do Jeca Tatu a um personagem ligado já a um tempo de mudanças técnicas e socioculturais recentes no país, que seria o Jeca Total.
A canção é uma metáfora da, ainda que penosa e minimamente processada, emancipação do homem do povo no Brasil, dentro do grande ciclo histórico da politização das massas [primeira estrofe], simbolizada num ente idealizado em lugar da imagem depreciativa do brasileiro inviável, paupérrimo, esfarrapado, descalço e cheio de verme [segunda e terceira estrofes], não sem um contraponto que põe em dúvida o desejo cumulativo contido na própria ideia progressista de avanço [última].
Jorge Salomão entra no final como uma síntese e um exemplo de Jeca Total. Menino do interior da Bahia, levado pelo impulso de uma geração, ele parte, como o irmão, Waly, de Jequié pra Salvador, de Salvador pro Rio, e daí pra Nova York, tornando-se como realizador um artista no plano do low-profile, não uma celebridade, mas de todo modo um modelo nítido de emancipação própria.
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Jards Anet da Vida
Gilberto Gil
Jards Macalé
Ou melhor, da selva
Ou pior, da Silva
Ou pior, da selva
Ou melhor, da Silva
Gravação
Jards Macalé – Aprender a nadar, 1974 – Philips
Jacintho
Gilberto Gil
Já sinto aqui na barriga
Mais preguiçosa a bexiga
Mais ociosos os rins
Jacintho
Já sinto aqui no meu peito
Alguns sinais de defeito
Coração, pulmões e afins
Velhice
Cálculos, calos, calvície
Hora de chamar o vice
Para assumir o poder
Seu caso
Vaso com mais de cem anos
Vaso sem quebras, sem danos
Meus parabéns pra você
Jacintho
Já sinto certa inveja de você
Cem anos não é para qualquer um viver
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
Um velhinho que eu conheci em São Paulo. Ele estava com 98 anos. Casado com uma mulher que a Flora conheceu no casamento de uma das amizades comuns delas em São Paulo, e de quem se tornou amiga. Acabamos um dia convidados pra um jantar na casa deles. E aí conhecemos Jacintho e nos tornamos relativamente amigos, passamos a frequentar esporadicamente a casa deles. Um ano e meio depois ele faria cem anos. Aí me deu a ideia de homenagear o centenário dele. De dar-lhe os parabéns pela longevidade.
Daí, a minha solidarização com a velhice dele a partir do meu próprio envelhecimento; daí, a boa inveja do mais jovem em relação ao mais velho, no sentido de como alcançar a idade mais avançada, e levando em consideração as questões de saúde que me afetavam naquele momento.
Também a ideia do envelhecimento como a cobrança natural que a natureza faz sobre a nossa parcela de natureza, sobre o nosso quinhão natural, que é o nosso corpo: “Velhice/ Cálculos, calos, calvície/Hora de chamar o vice”. Essa aproximação com a segunda vida possível. Na verdade — como eu diria? — um outro modo de nomear a morte. Chamando-a de vice, aproveitando a rima com calvície, brincando com isso.
“Vice” está dentro de “calvície”, assim como “calos” dentro de “cálculos”; e “vice” também está em “velhice”. É um jogo linguístico rico, interessante. Estabelece-se uma relação de som e de sentido entre essas palavras, como se materialmente, concretamente, no plano da linguagem poética, o “vice”, que no caso é metáfora pra morte, estivesse relacionada, como está, com a “velhice” e com a “calvície” também. — No caso dele, de alguém fazendo cem anos, quer dizer, numa aproximação compulsória com o momento de passagem, com a ideia da morte. Uma aproximação que ele não deveria ter nem aos vinte, nem aos trinta, nem aos quarenta, nem aos cinquenta anos, mas ao cem! Aí já é mais natural que essa aproximação seja sentida. E que venha com um sentimento mais benigno sobre a morte! Era eu falando isso tudo pra ele e já dizendo: eu também já estou a caminho, também já estou por aí, já estou ficando velho, já estou velhinho. A cobrança da natureza sobre o corpo já está se dando no meu caso; por isso, o relato da bexiga preguiçosa e da ociosidade renal.
Tem a brincadeira também do nome dele com o verbo “sentir”. Era irrecusável.
Ele faleceu com quantos anos? — Aos 102. Canô foi até 105. Minha mãe, Claudina, até 99.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
It’s good to be alive
Gilberto Gil
I’ll better stay, no matter how long
Until it finally comes, the day
I hear inside the sound of the gong
Then now I’ll certainly give away
Oh, give away
My possessions
All my passions
All my songs
And once I got my freedom I’ll go
I’ll better go no matter how far
And definitely I’ll wait till I know
Nowhere else I could get with my car
Then now I’ll be stuck again with my show
Oh, with my show
Back here
In Bahia
Or in a star
To be alive is good
Good enough, baby, just to be alive
To sing a song is good
Good enough, baby, just to sing a song
Iniciática
Gilberto Gil
Quando a gente num segundo
Ouvindo Nana cantando, se fia
Muda de plano prum plano pleno de felicidade
Bahia
Iniciática
Quando toda aquela gente
Reparou que de repente chovia
Trio elétrico tocando Chuva, Suor e Cerveja
Bahia
Iniciática
Porto da Barra
Caravela, amanhecendo o dia
Primeiro do tempo do que veio a ser você
Bahia
O que veio a ser você
Nascer aqui
Neste lugar do Plano
Inclinado a dar início
A um movimento regular
De descida e subida
Dos homens da cidade
Adormecida
do Salvador
Índigo blue
Gilberto Gil
Índigo blusão
Índigo blue, índigo blue
Índigo blusão
Sob o blusão, sob a blusa
Nas encostas lisas do monte do peito
Dedos alegres e afoitos
Se apressam em busca do pico do peito
De onde os efeitos gozosos
Das ondas de prazer se propagarão
Por toda essa terra amiga
Desde a serra da barriga
Às grutas do coração
Índigo blue, índigo blue
Índigo blusão
Índigo blue, índigo blue
Índigo blusão
Sob o blusão e a camisa
Os músculos másculos dizem respeito
A quem por direito carrega
Essa Terra nos ombros com todo o respeito
E a deposita a cada dia
Num leito de nuvens suspenso no céu
Tornando-se seu abrigo
Seu guardião, seu amigo
Seu amante fiel
Gravações
Gilberto Gil – Raça Humana, 1984 – Warner Music
Erasmo Carlos – Buraco Negro, 1984 – Universal Music
Comentário*
Fiz essa música em Brasília. É sobre um ícone da juventude. A letra lembra um desses videoclipes de casais jovens em dunas de areias e lugares assim, da natureza, fazendo uma analogia poética entre o mundo físico e o mundo dos sentidos humanos, da sensualidade; entre a paisagem e a juventude, a idade das paixões, tendo como símbolo básico o jeans, o índigo blue (razão por que eu mais tarde permiti que a canção acabasse sendo usada num comercial do Moinho Santista).
A canção nasceu inicialmente do meu gosto pela palavra ‘índigo’ e por causa de o tecido, de padrão internacional, inventado pelo Lévi-Strauss, ser industrialmente conhecido pela expressão ‘índigo blue’. Associei então as três coisas: ‘blue’, de ‘índigo blue’; ‘blues’, o gênero musical (e de fato a música é mais um blues do que um reggae, ritmo em que ela foi gravada por mim); e blusão, a vestimenta e também ‘o grande blues’, isto é, o aumentativo de ‘blues’.
A letra da música dedica uma estrofe para a mulher e outra para o homem. Na primeira, em que faço a citação – à Serra da Barriga – de um lugar real, concreto, da Terra, esta é aproveitada como uma metáfora para o corpo da mulher, explorado pelas mãos do amante. Na segunda, eu exploro o amor pela própria Terra como berço; pelo corpo inteiro do planeta suspenso no cosmos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ilha da ilusão
Gilberto Gil
Desejo que vem do mar
Que há dentro de mim
O mar, ondas fortes de emoção
Que me levam o coração
A cantar assim
União das águas, dos ventos
De mil elementos
Da esfera do sonho e da paixão
União total
Da terra, dos mares, dos povos
Dos jogos de amores
União da ilha da ilusão
Do meu carnaval
E as cores tão matizadas
Fantasias tão bem humoradas
Não vi, não
Tambores na madrugada
Sacudindo corpos tão alegres
Não vi, não
As dores são as dores comuns
As flores são de papel crepom
Como é bom
Como é bom
Como é bom
Que o teu samba prossiga selvagem
Com bambus, samambaias e praias de luz
Uma ilha que pede passagem
Gravação
Pery Ribeiro – Pery, 1991 – Polygram Music
Iemanjá
Gilberto Gil
Othon Bastos
Iemanjá – só se vê mar
Mulher tá na praia, homem tá no mar
Mulher tá rezando pro homem voltar
Mané foi pra pesca pescar pra viver
Peixe bom pra comida
Peixe bom pra vender
Iemanjá – só se vê mar
Iemanjá – só se vê mar
Mulher tá rezando, já passou da hora
Mulher tá chorando, meu deus, que demora
Iemanjá tá querendo ficar com Mané
Iemanjá é rainha
É bonita, é mulher
Iemanjá – só se vê mar
Iemanjá – só se vê mar
Não foi desta vez, desta vez não será
Lá vem a jangada chegando do mar
Trouxe pouca pesca, mas Mané voltou
Salve Nossa Senhora
Salve Nosso Senhor
Iemanjá – só se vê mar
Iemanjá – só se vê mar
Iansã
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Senhora do mundo
Dentro de mim
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Tempo bom, tempo ruim
Senhora das chuvas de junho
Senhora de tudo
Dentro de mim
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Tempo bom, tempo ruim
Eu sou um céu
Para as tuas tempestades
Um céu partido ao meio no meio da tarde
Eu sou um céu
Para as tuas tempestades
Deusa pagã dos relâmpagos
Das chuvas de todo ano
Dentro de mim
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Tempo bom, tempo ruim
Gravações
Maria Bethânia – Drama, 1972 – Philips
Gilberto Gil – Cidade do Salvador, 1999 – Universal
Zé Mauricio – Toques de umbanda, 1999 – Dubas Music
Rita Ribeiro – Tecnomacumba, 2006 – Biscoito Fino
Juliana de Oliveira Gomes – Juju Gomes, 2008
Alice Caymmi – Rainha dos Raios, 2015 – Universal Music/ Rosa dos Ventos Produções Artísticas
Mariene de Castro – 26 Prêmio da Música Brasileira, 2015 – Biscoito Fino
Gilberto Gil – Umeboshi – ao vivo, 1973, 2017 – Discobertas
Gilberto Gil – Gilberto Gil ao vivo – USP (1973), 2017 – Discobertas
Homem de Neanderthal
Gilberto Gil
Capinan
Walter Lima Jr.
Terciário
Secundário e até primário
Sou o tal
Que foi chamado “homem de Neandertal”
Que foi chamado “homem de Neandertal”
Que foi chamado “homem de Neandertal”
O tal que foi chamado “homem de Neandertal”
Mas sou amável
Sou saudável
E mesmo sendo
Tão selvagem
Tenho direito de não ser
Abominável
Antigamente não havia uma voz
Uma voz que se levantasse
Que se engraçasse em duvidar da autoridade
Da autoridade paternal
Este século está perdido
Corroído, corrompido
Sem humildade, sem moral
Pobre de quem perdeu
O respeito pelos pais
A memória dos avós
E pensam que nasceriam sem nós
A culpa dos avós
Quem faz são eles
Mas quem paga somos nós
Não, senhor
Por favor
Pague o filho pelo filho
Pague o avô pelo avô
Quem me dá um trem que me leve
Da Bahia a Nova Iorque?
Que me deixe ao meio-dia
Em qualquer ponto de Berlim?
Uma astronave?
Um manequim que desfile só pra mim?
E quem me dá um tesouro mais rico
Que o de Aladim?
Quem me dá:
Um vestido como aquele de Paris?
Um galã de Hollywood?
Feriado no Hawaí?
Um domingo todo livre?
Um verão longe daqui?
Quem me dá
Quem me dá
Quem me dá uma roupa nova?
Quem me dá
Quem me dá
O respeito do que sou?
Quem me dá
Quem me dá
Quem me dá um tempo de existir?
Quem se revolta
Quem se revolta por mim?
Quem me dá
Quem me dá
Quem me dá meu próprio dia?
Quem sente melhor por mim
A alegria que me dá o sol
A chuva, o caminho?
Quem me dá a semelhança de astronauta?
Quem me dá a liberdade de escolher
De pensar, de sair?
É você?
Olha aqui:
Quem me dá sou eu!
Hoje o dia nasceu diferente
Gilberto Gil
Porque ontem de repente a gente se encontrou
E o mar disse: “Oba”
E o céu disse: “Ora”
E a lua quedou-se
Clara até agora
E o sol preparou-se
Pra fazer da aurora
Um prazer tão doce, musse
Um gosto de viver que nunca fosse embora
E nós
Fazendo o possível para fazer jus
Os dois
Achando impossível que haja tanta luz
Se a voz
Da felicidade fosse audível, enfim
Jamais
Diria outra coisa que não fosse: “Sim”
Hoje o dia nasceu diferente pra gente
Pra você e pra mim
Hino da figa
Gilberto Gil
Este é meu gesto, meu gesto de amor
Ele não faz parte de uma doutrina
Ele não pertence a nenhum senhor
É como o gesto de um fidalgo branco
Que acolhe em seu leito uma negra escrava
E nela crava o seu cravo de afeto
E então se trava a batalha de amor
Sem nenhum outro motivo que o sonho
De ao próprio sonho fazer vencedor
Sem nenhum outro querer que não seja
Ver a beleza distinta da cor
O meu gesto é o fogo sagrado
Que não destrói mas é abrasador
Que faz a dor transmutar-se em alegria
Pelo seu mais agradável calor
O meu gesto político, figa!
Nenhuma mágoa, desprezo ou temor
Gravação
Jorge Mautner e Gilberto Gil – O poeta e o esfomeado, 2014 – Discobertas
[ inédita ]
Comentário*
Feita especialmente para “O poeta e o esfomeado”, o show que eu e o Jorge Mautner resolvemos nos juntar para fazer em torno da Figa Brasil, um movimento que nós dois criamos, justaposto ao movimento Kaos, inventado por ele nos anos 60, e no qual incorporávamos elementos da negritude, das pulsões políticas mais atuais, num momento já posterior à redemocratização do Brasil e à valorização da temática negra como fonte de inspiração político-ideológica — por isso a figa como símbolo.
Fiz então esse hino sobre o que eu cunhei como sendo o “mesticismo”: o movimento da e pela mestiçagem, em defesa dela; sobre a dimensão “mesticista” do jogo político-ideológico da construção dos pequenos e múltiplos aparatos ideológicos, dos quais nós temos nos servido para ir encaminhando a questão da inserção brasileira no socialismo, no liberalismo, nos jogos da harmonização dos vários sistemas, na construção da sociedade brasileira, em todos os movimentos libertários brasileiros em todos os tempos.
E ao mesmo tempo reivindicando o caráter transideológico e transpolítico que nós temos desejado sempre para as nossas coisas, o não enquadramento nas categorias clássicas, expressão do desejo de não nos prendermos aos campos mais restritos e restritivos, mas nos abrirmos ao grande campo onde entram as dimensões da visão holística, pan-óptica, da interação múltipla dos campos da política, da energia, da ciência, da poesia etc., o grande campo que o Kaos já tentava abranger, sendo a Figa apenas um outro deslocamento da sua mesma estrutura básica.
“Hino da figa” é uma canção sobre o senhor e a escrava, o amor da raça mestiça que nasce das imbricações contraditórias provocadas pela ascendência natural ou naturalmente imposta do senhor sobre o escravo, por força do estatuto da escravidão, mas ao mesmo tempo da sedução, da paixão, do amor, da coisa indomável do sexo, na construção do híbrido brasileiro onde os dois, tanto o senhor como o escravo — entre outros, especialmente esses dois —, tiveram um papel fundamental.
Eu o mostrei a Florestan Fernandes, em Brasília, num seminário sobre a abolição (era o ano de 1988), o papel do negro na vida brasileira, a questão abolicionista e os resíduos da escravidão, a não abolição, todas essas questões. Eu fiz uma palestra sobre o mesticismo para os políticos, ele era deputado, estava lá também o Ulysses Guimarães — era um seminário promovido pelo PMDB. No final eu cantei o “Hino da figa”. Ele achou estranho, interessante; se referiu àquilo dizendo: “Esse papel extraordinário do amor, da transmutação dos antagonismos, das subordinações, das hegemonias, enfim, interessante essa visão que o Gil teve”. Falou assim.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Here and now
Gilberto Gil
Here and now
Here and now, I still can sing out a song
Here and now
Here and now, I guess I know how
To feel as good with or without
Either high up, either low down
It’s all to forget and get out
Here and now, I guess I do fine
Surviving the floods of despair
Where it’s wet, and yet is sunshine
Where it’s at, and yet is nowhere
Here and now, I still can find I belong
Here and now
Here and now, I still can sing out a song
Here and now
Here and now, to rest in my nest
Here and now, the taste is so good
Here and now, to give up my past
Here and now, as fast as I could
Here and now, I guess I know how
Remote and secret that could be
The time when a man can lay down
And the place where he can run free
Here and now, I still can find I belong
Here and now
Here and now, I still can sing out a song
Here and now
Haiti
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque com a pureza de meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
E na TV se você vir um deputado em pânico
Mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo
Qualquer qualquer
Plano de educação
Que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização do ensino de primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina
111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
Gravações
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Tropicália 2, 1993 – Philips
Caetano Veloso – Fina Estampa (Ao Vivo), 1995 – Universal Music
Caetano Veloso – Noites do Norte (Ao Vivo), 2001 – Universal Musica
Elza Soares – Do cóccix até o pescoço, 2002 – Maianga/ Dubas
Emicida (feat. Caetano Veloso) – 10 Anos de Triunfo (Ao Vivo) – Laboratório Fantasma Produções Eireli sob licença exclusiva da Sony Music Entertainment Brasil ltda.
Guerra santa
Gilberto Gil
Ele promete a salvação
Ele chuta a imagem da santa, fica louco, pinel
Mas não rasga dinheiro, não
Ele diz que faz que faz tudo isso em nome de Deus
Como um papa da Inquisição
Nem se lembra do horror da Noite de São Bartolomeu
Não, não lembra de nada, não
Não lembra de nada, é louco, mas não rasga dinheiro
Promete a mansão no paraíso, contanto que você pague primeiro
Que você primeiro pague o dinheiro, dê sua doação
E entre no céu levado pelo bom ladrão
Ele pensa que faz do amor sua profissão de fé
Só que faz da fé profissão
Aliás, em matéria de vender paz, amor e axé
Ele não está sozinho, não
Eu até compreendo os salvadores profissionais
Sua feira de ilusões
Só que o bom barraqueiro que quer vender seu peixe em paz
Deixa o outro vender limões
Um vende limões, o outro vende o peixe que quer
O nome de Deus pode ser Oxalá, Jeová, Tupã, Jesus, Maomé
Maomé, Jesus, Tupã, Jeová, Oxalá e tantos mais
Sons diferentes, sim, para sonhos iguais
Gravações
Gilberto Gil – Festival Hollywood Rock, 1995 – Promoter
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – Eletracústico (Ao Vivo), 2004 – Warner Music
Comentário*
‘Guerra Santa’ foi uma canção que eu fiz em resposta mesmo à provocação contida no episódio do pastor evangélico que chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida na televisão. Eu achei aquilo uma falta de respeito, de um utilitarismo reles; um gesto de proselitismo funcional, de puxar a brasa para a sua sardinha religiosa; um gesto de um viés materialista muito claro, no meio da linguagem religiosa. Achei aquilo de uma ignorância que eu senti quase uma necessidade de denunciá-la; de denunciar o fato de que aquele gesto ignorava uma série de coisas, de que era um gesto ignorante mesmo. Se ele não pode respeitar o atributo religioso de uma outra religião, de um outro credo, de uma outra profissão de fé, ele não tem direito de professar uma fé; se ele não respeita a profissão do outro, ele não tem direito de ser profissional. Daí a própria letra falar do mercado, das barracas, dos vendedores…
Se não houver uma substância comum às religiões, de que universalidade estaremos falando? Se os universais não são compostos dos particulares, das partes… ‘Guerra santa’ é uma canção sobre isso, que eu fiz durante um retiro, num spa em São Paulo. Eu achei que havia no gesto uma exigência, que o que ele estava dizendo quando fez aquilo era: ‘Digam alguma coisa; expliquem isso, me expliquem isso aqui’. Era um pedido de explicação que eu me senti na obrigação de atender. Essa música foi das poucas músicas na minha vida que surgiram de uma exigência filosófica. Música de resposta mesmo – a uma intolerância religiosa que não é compatível com a complexidade do nosso tempo.
A volta da história – Como o candomblé tinha sido perseguido pelos católicos, agora estes eram atacados pelos evangélicos, e nós [do candomblé] vínhamos – quer dizer, eu achei que tinha de vir – em defesa dos católicos; quer dizer, o antigo algoz virava vítima e a vítima vinha em socorro do algoz…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Gueixa no tatame
Gilberto Gil
Mas a gueixa me iludiu
Logo de cara, umeboshi
Uma ameixa salgada
Quieto, seu mano engoliu
Um forte impacto no ilíaco
Mas se era afrodizíaco, tudo bem
Gueixa não é sempre que se tem assim
Depois ela serviu, sake, sushi, nato, tofu
Como encontrar apetite pra tanto palpite no menu
Não sei se vinha da ameixa mas a deixa era
Luzes, câmera, ação !
Não aguentava mais meu coração
Minha gueixa no tatame
Parecia um camafeu
Uma gueixa no tatame
E eu ali perto do céu
Olhei pra ela e disse
Sonho, sonho meu
Nesse mesmo instante
Incontinente ela adormeceu
Não foi possível libertá-la do morfeu
Gravação
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Warner Music
Comentário*
De como Gil, não podendo mais cantar “Minha nega na janela”, cria e canta “Gueixa no tatame”. — É engraçada essa história, porque eu cantava “Minha nega na janela” por ser das canções que tinham me chegado através do Germano Mathias, com aquela sestrosidade toda, aquela malícia toda do sambista urbano, de uma urbanidade mais estranha, mais complexa, de São Paulo, do que, por exemplo, a urbanidade mais simplista, mais necessariamente negroide dos morros cariocas: ali era um malandro do asfalto, paulista, paulistano, com aquele repertório também muito sestroso, jocoso, com as grandes ironias dos sambas simples. E esse samba “Minha nega na janela” [de Germano Mathias e Firmo Jordão, gravado por Gil no álbum Antologia do samba-choro, dividido em interpretações de Gil e de Mathias] chegou pra mim por aí, exatamente por causa daquela violência simbólica toda, toda ela em busca de sublimação, uma violência com aspirações sublimantes. Eu cantava porque era uma música do grande repertório do Germano, do início do trabalho dele, de logo quando ele surge. E aí vem, muito depois, a questão toda do politicamente correto, a confusão toda do racismo. A consciência negra cobrando seus ázimos naturais. E aí eu não pude mais cantar essa canção. Não tinha mais como. Se eu cantasse, ninguém ia me perdoar, ninguém ia preservar a minha inocência juvenil, a minha infância “germânica”. Não ia ter mais como. “Não pode! Como é que vai tratar sua nega desse jeito?”
Parece que seus familiares mesmo, sua mulher, Flora… — Minha família, todo mundo. “Como? Não pode cantar uma música dessa!” Eu disse: “Tá, não posso; então vou cantar ‘Gueixa’”.
E é uma paráfrase que você faz, da mesma forma que fez entre “Pela internet” e “Pelo telefone”. Você parte de uma música de um repertório tradicional pra fazer algo que dialoga com aquilo. — Exatamente. A construção é toda praticamente a mesma. A estrutura de “Gueixa no tatame” é a mesma de “Minha nega na janela”, toda ela. Número de versos, as sílabas de cada verso: é um encaixe direto. Dá pra cantar uma e cantar outra. Foi uma maneira de salvar essa canção pra mim, que eu tinha muito gosto de tocá-la, muito gosto de ter encontrado um jeito, um violão especial pra ela e tudo mais. E a lembrança extraordinária do Germano. Então eu dizia: “Eu não posso jogar isso fora”. Não quis, e aí eu fiz a “gueixa no tatame”, em vez da “nega na janela”. Ao fazer, me lembrava do [Tomio] Kikuchi [o introdutor da macrobiótica no Brasil, que manteve um restaurante dessa dieta, o Satori, em São Paulo], lembrava do restaurante lá na Liberdade [o bairro oriental da capital paulista], do tofu, do saquê, do natô, daquilo tudo. Aí é essa pescaria que você vai fazendo nas fontes da vida; os lugares que a vida lhe oferece. A canção é engraçada, jocosa.
É você dialogando com a tradição, seja da música nordestina, seja do samba paulista. — Exatamente.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Graça divina
Gilberto Gil
De reter a dor
Graça divina no dom que a aspirina tem
De aspirar a dor
A eficácia da graça divina tem
Um pé na farmácia, outro no amor
Graça divina no som da buzina diz:
“Cuidado, atenção!”
Graça divina no olhar da menina diz:
“Paz no coração”
A voz humana da graça divina diz:
“Dou graças pelas coisas que são”
São Matheus, Mata de São João
Madredeus, Vitória de Santo Antão
Mata a saudade, quem há de me dar o prazer
Me levar pro sertão!?
Graça divina na vina, no violão
Toda música
Graça divina no tato, na sensação
Toda física
A proteína da graça divina não
Não está na doutrina mas na meditação
Graça divina que a raça bovina dê
Leite e muito mais
Graça divina que a moça da esquina crê
Que seja um rapaz
Se apaixonando e casando com ela lá
No altar da capela de São Brás
Gravação
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Comentário*
Essas aliterações do mundo da física, da química. “Graça divina” é bem quântica. Eu me lembro que, quando eu fiz essa música, eu me apaziguei com a ideia do Quanta. Achei que ela dava um desfecho a toda a ideia conceitual do álbum.
A imbricação profunda entre dimensões individuais, as possessões dos indivíduos que formam o povo, e o mundo do imagético, do poético, com suas ondas. O mundo físico, químico, e as manifestações divinas. A ciência, o conhecimento, a aplicação do conhecimento para o desenvolvimento da saúde. A dimensão sanitária da divindade. A graça divina se manifestando no humano.
É uma das canções mais fidedignas do meu grande interesse pela existência em todas as suas formas; tudo, evidentemente, passando necessariamente pelo filtro humano, a humanidade. Deus — a religião humanidade, esse sentido. Deus é culmen absoluto, está em tudo.
Dos topônimos do refrão. — São lugares. São Matheus, no Espírito Santo. Madredeus, na Bahia de Todos os Santos — em Portugal também tem, mas no caso aqui é na Bahia mesmo, porque essa música se passa no Recôncavo. Vitória de Santo Antão é em Pernambuco: aí há esse deslocamento a partir do Recôncavo. Um refrão bem telúrico, bem terreno. Terras, lugares.
[No refrão também aparece, significativamente, “saudade”, outra palavra que volta e meia reponta em canção de Gil. E não à toa seguida de “sertão”.]
“Graça divina” vai buscar personagens em lugares importantes da nossa territorialidade brasileira que são referidos; personagens anônimos de encontros que a vida me deu junto do Recôncavo. São vários os elementos de aproximação com a dimensão cultural, afetiva, a variedade geográfica, e os elementos do início da canção, ligados a uma poesia de jogos de interconexão entre ciência e tecnologia e música e poesia.
Interessante a aliteração em “vi” e em “n” em “Graça divina na vina, no violão”. E interessante também vir o Oriente: de repente a gente é remetido pra Índia. — Sim, esses instrumentos tão seminais. E a Índia, claro. É outra tradução de Bahia.
Uma das dez mais. — “Graça divina” é um batuque-baião, um baião meio batuque. Muito própria. É uma canção que eu adoro. Se eu fosse escolher as dez mais, as dez melhores minhas, essa estaria entre elas. E o que há de muito emocionante nela, o que pra mim reforça o caráter mágico dela, é para além da letra: é a música.
Concorre demais. Aí ela nos adentra no terreno do mistério mesmo. Aí entra o que “diz” o som. — Som, ritmo, suingue, balé. É esse jogo de música, dança; tudo isso.
E o sentimento que a música em si, e combinada com a letra, transmite, sendo isso inclusive aludido num trecho, é o sentimento da gratidão. — É a graça divina. Está no título. Está em “graças pelas coisas que são”. A gratidão pelo existir, pela encarnação, pela consciência, pela condição humana de poder exercer a percepção do mundo, da existência das coisas. Eu diria que a canção é uma ode ao grande tesouro, a grande dádiva que é a consciência humana — e tudo isso contido no verbo, na capacidade de pronunciar a palavra “eu”, como diz Caetano, que é substrato básico da consciência humana. O “em si” que propicia — o eu é de onde sai a catapulta que lança o ser para o si. Do ser para o eu, para o si; nisso consiste a força da consciência. Tudo isso, na canção, é verbalizado como jogo poético, brincalhão.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Gosto do prazer
Gilberto Gil
Jorge Gomes
A cara alegre, o gosto do prazer
Guanabara, Guanabara
(Que quarup pop)
Paulicéia, Paulicéia
(Que platéia dadá)
Amazônia, Amazônia
(Tão idônea cor)
Mantiqueira, Mantiqueira
Me queira sempre amor
Isso é que é
Utopia
Sonhos de axé
Na Bahia
Toque de bola
Nossa escola tropical
Toca a viola
Carnaval
Bate o pandeiro
Nosso cheiro de dendê
Vale um bocado
De dinheiro
Tomara que a cidade possa ter
A cara alegre, o gosto do prazer
Saber o som da cor da Cor do Som
Isso é alegria, isso é que é bom
Goodbye my girl
Gilberto Gil
I’ll be leaving soon
When you wake up in the morning
I won’t be with you
Good-bye
Please, don’t cry
We should try
To get together one more time
So catch a train and you can make the next town
To see the show
I will be singing one more time
And yours will be the only face in the front row
Good-bye, my girl
[ No Norte da Saudade, de Gilberto Gil, Moacir Albuquerque e Perinho Santana ]
Goma de mascar
Gilberto Gil
Mascar e mascar e buscar o sabor
Onde já não há sabor
Onde já não há sabor
Como ferro de engomar
Passar e passar até fazer do amor
Lenço sem dobras de dor
Lenço sem dobras de dor
Como sempre admirar
O que quer que faça rima
Como irmã com Maria e mar
O que quer que esteja acima
Do nível do medo de amar
O que quer que faça feliz
Como pôr os pingos nos is
Pingos nos is das ilusões
O que quer que mereça um bis
Como goma de mascar
Glasses
Gilberto Gil
I have my glasses on
Suddenly I’m going crazy ways I haven’t gone before
I have my glasses on
If I am wearing glasses, I am happy, I can feel all right
If I am sad, I take the glasses off
It’s the darkest night
Oh, baby, why don’t you look at me?
What’s wrong, baby, you never tell me
Oh, baby, why don’t you look at me?
Behind these lenses, I’m a very good boy
Needless to say, I’ve never been the best
An intellectual charm should help me pass the test
One thing is true, and it seems that you won’t believe me thou
I was born with no glasses on
With no glasses, wow
Oh, baby, why don’t you look at me – oh, oh
What’s wrong, baby, you always say no – oh, oh
Oh, baby, why don’t you look at me – oh, oh
Behind these lenses, I’m trying to say hello
[ inédita – Óculos, de Herbert Vianna ]