Músicas
Dono do pedaço
Gilberto Gil
Waly Salomão
Antonio Cicero
Não sou tatu, não
Não sou nem do mato
Quando eu ganho a rua
Eu ganho corpo
Nada eu acho chato
Gingo, tiro chinfra
Dono do pedaço
Escrevo e driblo amor e dor
Soberano, traço
Quem eu quero, eu sei ser
Quadro, giz e apagador
Eu e meus amigos
Temos nesta vida
Poderosos aliados
Cor, calor, sabor da rua
E de repente
Um coração que eu já fiz
Que eu já fiz
Tão feliz
Corações a mil
Gilberto Gil
Dez corações de uma vez
Pra eu poder me apaixonar
Dez vezes a cada dia
Setenta a cada semana
Trezentas a cada mês
Isso, sem considerar
A provável rebeldia
De um desses corações gamar
Muitas vezes num só dia
Ou todos eles de uma vez
Todos dez
Desatarem a registrar
Toda gente fina
Toda perna grossa
Todo gato, toda gata
Toda coisa linda que passar
Meus dez mil corações a mil
Nem todo o Brasil vai dar
Gravações
Marina Lima – Olhos felizes, 1980 – Universal Music
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
Gilberto Gil – To be alive is good (Anos 80), 2002 – Warner Music
Comentário*
“Uma canção para comentar as relações abertas e a dimensão que o amor livre tinha então; uma música sobre a volúpia de namorar, de ter dez paixões simultâneas, para dar números a uma hipertrofia fenomenológica – como eu via, como muitos viam – em determinado período; para dar medida à multiplicação dos pães amorosos, uma obsessão naquele tempo: aquela era uma época em que se desejava uma multiplicação mesmo do amor, que o amor fosse múltiplo o tempo todo. Era uma característica ideológica da época. Nesse sentido, ‘Corações a mil’ é uma música de ideologia; um jingle – como boa parte das minhas composições são – ideológico; um panfleto da nova era. Marina, que a gravou, era uma pessoa disponível aos experimentos sentimentais do período, uma cobaia: alguém que se dava muito a esse papel.”
*Extraído do livro “Gilberto Gil – Todas as Letras”
Dona desta canção
Gilberto Gil
Dona desta canção
Dona do meu coração
Só você pode me dar
Asas
Asas da imensidão
Asas da imaginação
Pro meu coração voar
Pássaro vou
Fim de cada ilusão
Buscar o meu ninho em ti
Toda manhã
Novamente voar
Nova ilusão
Copo vazio
Gilberto Gil
Que um copo vazio
Está cheio de ar
É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar
É sempre bom lembrar
Guardar de cor
Que o ar vazio de um rosto sombrio
Está cheio de dor
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho
Que o vinho busca ocupar o lugar da dor
Que a dor ocupa a metade da verdade
A verdadeira natureza interior
Uma metade cheia, uma metade vazia
Uma metade tristeza, uma metade alegria
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
Gravações
Chico Buarque – Sinal Fechado, 1974 – Philips
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao Vivo), 1974 – Gege
Zizi Possi e Helio Delmiro – Songbook Gilberto Gil, Vol. 3, 1992 – Lumiar Discos
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Biscoito Fino
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases (Ao Vivo), 2018 – Gege
MPB 4 – Barra Pesada (Ao Vivo), 2019 – Discobertas
Gilberto Gil e Chico Buarque – Single, 2020 – Gege
Comentário*
Chico Buarque estava sendo hipercensurado naquele momento, e quis responder a isso fazendo um disco só com músicas de colegas. Por isso pediu a Paulinho da Viola, a Caetano, a mim e a outros que compusessem para ele.
Eu estava em casa, sentado no sofá, já de madrugada. Tinha tomado um copo de vinho no jantar, e o copo tinha ficado na mesa.
Pensando no que é que eu ia fazer pro Chico, eu de repente vi o copo vazio e concentrei o olhar nele para dali extrair emanações de imagens e significados, a princípio como se para nada obter, mas logo constatando: “O copo está vazio, mas tem ar dentro”. Disso me vieram ideias acerca das camadas de solidificação e rarefação que vão se sucedendo nas coisas — e disso, a música.
A letra faz uma viagem ao mundo das coisas sutis, transcendentes, mas suas primeiras frases são muito significativas em termos do que estava acontecendo: regime de exceção, censura, o Chico privado de sua liberdade artística plena etc. Embora não fosse essa a intenção principal, as dificuldades da situação contingencial estavam necessariamente metaforizadas, e qualquer crítica à canção em termos de fuga da realidade esbarraria no fato de que, ao contrário, a letra parte da realidade e não foge dela; foge com ela, se for o caso…
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Domingou
Gilberto Gil
Torquato Neto
Como nunca jamais se iluminou
São três horas da tarde, é domingo
Na cidade, no Cristo Redentor – ê, ê
É domingo no trolley que passa – ê, ê
É domingo na moça e na praça – ê, ê
É domingo, ê, ê, domingou, meu amor
Hoje é dia de feira, é domingo
Quanto custa hoje em dia o feijão
São três horas da tarde, é domingo
Em Ipanema e no meu coração – ê, ê
É domingo no Vietnã – ê, ê
Na Austrália, em Itapuã – ê, ê
É domingo, ê, ê, domingou, meu amor
Quem tiver coração mais aflito
Quem quiser encontrar seu amor
Dê uma volta na praça do Lido
O-skindô, o-skindô, o-skindô-lelê
Quem quiser procurar residência
Quem está noivo e já pensa em casar
Pode olhar o jornal paciência
Tra-lá-lá, tra-lá-lá, ê, ê
O jornal de manhã chega cedo
Mas não traz o que eu quero saber
As notícias que leio conheço
Já sabia antes mesmo de ler – ê, ê
Qual o filme que você quer ver – ê, ê
Que saudade, preciso esquecer – ê, ê
É domingo, ê, ê, domingou, meu amor
Olha a rua, meu bem, meu benzinho
Tanta gente que vai e que vem
São três horas da tarde, é domingo
Vamos dar um passeio também – ê, ê
O bondinho viaja tão lento – ê, ê
Olha o tempo passando, olha o tempo – ê, ê
É domingo, outra vez domingou, meu amor
Comunidária
Gilberto Gil
E você sabe
Ele, sim, sabe também
O que é sofrer
O que é chorar
O que é precisar de alguém
Eu sei
E você sabe
Se não sabe, há de saber
Quem nunca precisou de alguém
Ainda está pra nascer
E assim que nascer
Logo precisará
Da mãe, da mamadeira
Da enfermeira ou da babá
De braço em braço, berço em berço
E na hora de andar
De falar, de correr, de aprender a ler
De sonhar
Por todo esse caminho
De pequenino a doutor
Pra nunca precisar de alguém
Vai ter que já nascer robô
Sem alma, sem cabeça, sem amor, sem coração
E ainda assim precisará
De alguém pra lhe dar uma mão
Na hora de apertar o parafuso que soltou
Eu sei e você sabe
Quem não sabe não mamou
Eu sei e você sabe
Quem não sabe não mamou
Nem mamou
Gravação
Gilberto Gil, MEC, 2001
Comentário*
Foi feita para o Comunidade Solidária; pra uma festa de fim de ano, uma comemoração, uma entrega de prêmios do programa social, que era dirigido pela professora Ruth Cardoso [esposa do presidente Fernando Henrique Cardoso]. Eu era um dos membros do Comunidade Solidária. O Milton Seligman e o João Moreira Salles também faziam parte, além de várias outras figuras. Era um conselho. O disco vinha junto com os troféus da premiação.
[Gil concorda que o sentimento da compaixão, muito presente na sua personalidade, reflete-se consequentemente na sua obra, em canções como essa, a qual, falando de todos os seres que precisam de alguém, acaba por incluir até o robô:] É, mesmo ele, na hora de trocar o parafuso.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
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Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1968), 1968 – Philips
Gilberto Gil e Rita Lee – Refestança (Ao Vivo), 1977 – EMI Records
Gilberto Gil – Em Concerto, 1987 – Gege
Hermeto Pascoal e Margareth Menezes – Songbook Gilberto Gil, 1992 – Lumiar Music
Gilberto Gil – Concerto de cordas e Máquinas de ritmo (Ao Vivo), 2012 – Biscoito Fino
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois Amigos, um Século de Música (Ao Vivo), 2015 – Uns Produções Artísticas e Gege
Comentário*
Montar algo diferente, partindo de elementos regionais, baianos, para o festival da TV Record: esse era o projeto de Gil ao começar a pensar a canção. “Daí a ideia”, conta ele, “de usar um toque de berimbau, de roda de capoeira, como numa cantiga folclórica. O início da melodia e da letra da música já é tirado desses modos. Com a caracterização do capoeirista e do feirante como personagens, eu já tinha os elementos nítidos para começar a criação da história.”
“Algumas pessoas pensam que rima é só ornamento, mas a rima descortina paisagens e universos incríveis; de repente, você se depara no lugar mais absurdo. Eu, que a procuro primeiro na cabeça, no alfabeto interno – mas também vou ao dicionário -, vejo três fatores simultâneos determinantes para a escolha da rima: além do som, o sentido e o necessário deslocamento.
“Em Domingo no Parque, pra rimar com ‘sumiu’, eu cheguei à Boca do Rio (bairro de Salvador). E quando eu pensei na Boca do Rio, me veio um parque de diversões que eu tinha visto, não sei quantos anos antes, instalado lá, e que, desde então, identificava a Boca do Rio pra mim: desde aquele dia, a lembrança do lugar vinha sempre junto com a roda gigante que eu tinha visto lá. Aí eu quis usar o termo e anotei, lateralmente, no papel: ‘roda gigante’. Ela ia ter que vir pra história de alguma maneira, em instantes.
“Era preciso também fazer o João e o José se encontrarem. O João não tinha ido ‘pra lá’, pra Ribeira; tinha ido ‘namorar’ (pra rimar com ‘lá’). Onde? Na Boca do Rio, pra onde o José, de outra parte da cidade, também foi. No parque vem a conformação dos caracteres psicológicos dos dois. Um, audacioso, aberto, expansivo. O outro, tímido, recuado. Esse, louco por Juliana mas sem coragem de se declarar, vivia há tempos um amor platônico, idealizando uma oportunidade pra falar com ela. Naquele dia ele chega ao parque e a encontra com João, que estava ali pela primeira vez e não a conhecia, mas já tinha cantado Juliana e se divertia com ela na roda gigante. É a decepção total pro José, que não resiste.
“Era só concluir. A roda gigante gira, e o sorvete, até então sorvete só, já é sorvete de morango pra poder ser vermelho, e a rosa, antes rosa só, é vermelha também, e o vermelho vai dando a sugestão de sangue – bem filme americano -, e, no corte, a faca e o corte mesmo. O súbito ímpeto, a súbita manifestação de uma potência no José: ele se revela forte, audaz, suficiente. A coragem que ele não teve para abordar Juliana, ele tem para matar.”
“A canção nasceu, portanto, da vontade de mimetizar o canto folk e de representar os arquétipos da música de capoeira com dados exclusivos, específicos: com um romance desse, essa história mexicana. Está tudo casado.”
“Domingo no Parque, como Luzia Luluza e outras do mesmo período, foi feita no Hotel Danúbio, onde eu morei durante um ano, em São Paulo. Nana [a cantora Nana Caymmi, segunda mulher de Gil] dormia ao meu lado. Nós tínhamos vindo da casa do pintor Clovis Graciano – amigo de Caymmi -, onde eu tinha rememorado muito a Bahia e Caymmi. Eu estava impregnado disso, e por isso saiu Domingo no Parque: por causa de Caymmi, da filha dele, dos quadros na parede. A umas duas da manhã fomos para o hotel e eu fiquei com aquilo na cabeça: ‘Vou fazer uma música à la Caymmi, fazer de novo um Caymmi, Caymmi hoje!’ Peguei papel e violão e trabalhei a noite toda. Já era dia, quando eu terminei. De manhã, gravei.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Comunidá
Gilberto Gil
Celso Fonseca
E quem traz a bebida
E quem prepara o salão
Um troco do sindicato é o ouro
Uns cem do candidato
Uns dez da associação
Luz, pede pra prefeitura, é o ouro
Pede uma viatura
Com Cosme e Damião
Vê se esse novo bicheiro é o ouro
Pode ser o patrono
E acabar dando uma mão
Comunidá
Camaradagem, todas cores
Comunidá
Lavagem pra lavar nossas dores
Comunidá
Na hora da dificuldade, eu sei
Comunidá também
Na festa, na titica de felicidade, amém
Gravações
Gal Costa – Gal, 1992 – RCA
Celso Fonseca – O som do sim, 1993 – Natasha
Comentário*
Essa, so to speak, promiscuidade entre tudo: o crime, o estado; o bicheiro, a viatura… Todo mundo da comunidade, a comunidade em plenitude. A comunidade do bem e do
mal, pra que tudo resulte “na festa, na titica de felicidade, amém” — expressão-chave na canção. É exorcizante, é cristã. “Perdoai as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores.”
Sobre “É o ouro!”. — Essa gíria estava muito em voga na época [começo dos anos 1990], na Bahia.
Sobre “Cosme e Damião”. — Uma expressão muito comum nos anos 1950. “Cosme e Damião” significava a dupla de policiais. É o título de um samba gravado por Jorge Veiga [e de autoria de
Wilson Batista com Jorge de Castro], que eu e Caetano cantamos no show que fizemos, Tropicália 2. “Conversei o Cosme/Dei um cigarro pro Damião/Expliquei aos bons soldados/Que mostrava o Pão de Açúcar à Conceição/Eles acharam graça/E um me respondeu, cheio de fé/‘Tureleques e bileques/Nem que o senhor fosse o Café!’/Dei marcha-ré no Chevrolet!…/Me dê o boné…” Samba de Breque. Café era o Café Filho, vice-presidente [e presidente por cerca de três meses]. Esse samba é talvez o que melhor ilustre essa parelha policial típica da época, o Cosme e o Damião.
Sobre o título. — “Comunidá” é uma alteração poética da palavra “comunidade”; a temática da música; o corte da última sílaba é um procedimento poético. Abreviação.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Doida por uma folia
Gilberto Gil
Mania de festa
Quando me falta alegria
O dia não presta
A noite protesta
E a vida se afasta de toda magia
Toda magia, ô
Toda magia
Dona do meu nariz chato
Do meu prato cheio
Quando desato o sapato
Descalço o receio
Começa o recreio
No meio da roda de samba, mulato
Samba, mulato, ô
Samba, mulato
Gandaia, gandaia, gandaiaiá
Recreio, recreio, recreioiô
Folia, folia, foliaiá
Só creio, só creio no meu tambor
No meu batuque, no meu fuzuê
No meu amor por você
No meu amor por você
No meu amor
Gravação
Marinês – Tô chegando, 1986 – RCA
Comentário*
Feita pra Marinês, na persona dela.
A letra apresenta um labor e um jogo de palavras e de ideias interessantes. Como nas rimas entre “receio” e “recreio”, com um termo diferindo do outro apenas pela interposição de um “r” no meio do segundo; e entre “presta” e “protesta”, com a diferença apenas de um “o” e um “t” que se interpõem também no segundo. — Sim, isso é criativo do ponto de vista linguístico. Esse era um tempo em que eu gostava de jogar com as palavras, mas trazendo tudo isso pro contexto de compreensão mediana da música popular, tendo essa dimensão e explorando o lado semiótico da poesia popular, da canção popular. Eu fazia muito isso. Ou seja, tinha uma ousadia, um gosto pela ousadia do garimpo no léxico e ao mesmo tempo um cuidado no sentido de que esse garimpo fosse mais de pedregulhos de que de pedras preciosas.
Mas esses pedregulhos brilham. — Sim. Mas tudo isso era pra ser usado na obra simples, popular. Não era um material a ser lapidado, não era carente de lapidação. Era pra ser usado na forma bruta da extração inicial. A memória que eu tenho do ímpeto poético é essa. Era uma época em que eu gostava de encontrar palavras e modos de concatenação, de rimas etc., interessantes, mas visando a uma compreensão que fosse imediata. Pra que as pessoas entendessem um linguajar; mais um linguajar que uma linguagem.
Isso me lembra uma citação que o poeta e letrista Antonio Cicero fez de uma afirmação do poeta inglês W. H. Auden, de que o que define o poeta é justamente esse gosto, essa paixão por lidar com as palavras, e não — ou mais do que — um sentimento de que tem coisas importantes a dizer. Eu vejo isso transposto para o linguajar poético de grande comunicabilidade da canção popular numa letra como essa (a exemplo de muitas outras suas). — Exatamente isso. A ambição era essa.
Do culto a Marinês. — Ela era aquela cabocla, mulata, mestiça, nordestina. Pernambucana. Casada com Abdias, zabumbeiro, e mãe do Marcos, um belo músico, acordeonista, formando uma família de músicos locais. Maravilhosa. Uma predecessora das grandes cantoras posteriores de música nordestina. Grande intérprete de João do Vale, das coisas picarescas dele. Fez uma carreira extraordinária. Eu comecei a curti-la na Bahia, quando ela começou, logo depois dos grandes: primeiro veio Gonzaga, depois Jackson e aí todos os que orbitavam naquele universo, como ela, cantando coisas como “Seu Malaquia” [“Peba na pimenta”], de João do Vale, inaugurando esse filão hiperjocoso, picaresco, de duplo sentido, que prosperou muito na música nordestina. Ela apresenta esse dado inaugural. Cantava bonito, tinha aquela voz típica, forte, nordestina. Marinês e Sua Gente era o nome do conjunto dela com o marido; já no último quadrante da vida dela, o filho Marcos foi tocar com ela. Figura fundamental.
Você cultuando, sempre que pode, as figuras importantes do cancioneiro do Nordeste. — Ah, sem dúvida. Paixão absoluta.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Com medo, com Pedro
Gilberto Gil
Tô com Pedro
Eu agora não tô mais com medo
Tô com Pedro
Eu agora já tô mais com Pedro
Do que com medo
Eu agora já tô mais com Pedro
Do que com medo
Deus me livre de ter medo agora
Depois que eu já me joguei no mundo
Deus me livre de ter medo agora
Depois que eu já pus os pés no fundo
Se você cair, não tenha medo
O mundo é fundo
Quem quiser no fundo encontra a porta
Do fim de tudo
Bem junto da porta está São Pedro
No fim do fundo
Findo
Fundo
Findo
Bem depois do fim de tudo o medo
Do fim do mundo
Bem depois do fim do mundo o medo
Do fim de tudo
Bem depois do fim do mundo o medo
Do fim do mundo
Bem depois do fim do mundo o medo
Do fim de tudo
Gravação
Gal Costa – Gal Costa, 1969 – Universal Music
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1969) – Bonus Track – Gege
Comentário*
Do mistério envolvendo os versos de uma canção falando sobre Pedro que foi composta em 69 e cuja data de edição é 7 de dezembro do mesmo ano, tendo Pedro, filho de Gil, nascido somente em 17 de maio do ano seguinte, mais de cinco meses após a edição da música, e cuja motivação o autor demonstra dificuldade em esclarecer, não podendo assegurar que, ao escrever o nome “Pedro” na letra, ele estava pensando em um filho que pensava vir a ter e ao qual planejava dar esse nome; será que o Pedro ali é porque ele tinha uma afeição tão especial pelo nome que acabou dando-o ao filho que veio a ter em seguida? Afinal, que Pedro é o dessa canção? — Eu não posso precisar. A lembrança afetiva, cordial que eu tenho é de que a canção foi feita para o Pedro; por alguma razão já era por ele, para ele, por causa dele. Eu não poderia ter naquele momento certeza de que ia ter um filho do sexo masculino; portanto não poderia ter com segurança dedicado a canção ao filho que eu sabia que já ia nascer, e que seria homem, e a quem, portanto, eu teria a possibilidade de dar o nome de Pedro: não era isso. Talvez fosse um conjunto dessas coisas todas. E talvez esse Pedro fosse uma das emanações significantes das viagens de ácido que eu fazia na ocasião, uma das emanações a que eu dei uma forma de pessoa, de filho, numa das catarses a que as viagens psicodélicas podem levar, uma das emanações que tivessem me livrado de algum medo ou de alguma fobia, de algum recalque freudiano. “Eu agora não tô mais com medo/ Tô com Pedro” — que talvez remontasse até mesmo à pedra fundamental da religião cristã, o Pedro fundador da Igreja do Cristo. Pode ter havido tudo isso, um conjunto holístico de vários signos em rotação. E aí, com o nascimento do Pedro, obviamente a canção ficou sendo para ele; o nascimento dele deu encarnação a todos aqueles fantasminhas. Hoje, essa é para mim a única explicação; a melhor que se pode dar. É a mais fiel; a mais verdadeira, portanto. Hoje, é mais verdadeiro se referir àquele momento de criação com essa complexidade. Então, relacionadas com a criação de “Com medo, com Pedro”, que aborda ainda a questão do fim do mundo e a da fundação do mundo, há todas essas coisas — que, de resto, são o quê? São terra revolvida do aluvião que a descoberta do cosmos veio provocar na minha vida; o aluvião da descoberta cósmica, física e metafísica, daquela época.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Doente, morena
Gilberto Gil
Duda Machado
Leva a chave
Me deixa trancado
O dia inteiro
Não ligo
Deito sobre os trilhos
E vejo o trem passar
Entre brinquedos, cigarros
O Tesouro da Juventude
Em não sei quantos volumes
E quando canto
Deixo a imaginação voar
Mas ontem à noite
A mão sobre meus cabelos
Ela me disse:
“Meu bem, não tenha medo
No verão que vem
Nós vamos à praia”
Clichê do clichê
Gilberto Gil
Vinícius Cantuária
Meu destino contra o seu
Num filme piegas sem sal
Não vou chorar
Nem fingir que o amor morreu
Chega de drama banal
Que seja a dor
Nosso amor, nossos ardis
Teatro nô japonês
Onde o ator
É ao mesmo tempo atriz
Vestes da mesma nudez
Eu, Belmondo
Como um Pierrot, le fou
Só no cinema francês
Você, Bardot
Belo anúncio de shampoo
Só fica bem nas TVs
Melhor viver
Nosso papel bem normal
Que a vida nos reservou
Interpretar
Nosso bem e nosso mal
Sem texto e sem diretor
Chega de representar
O que nós não queremos ser
Não vamos nos transformar
Num casal clichê do clichê
Gravações
Gilberto Gil – Dia dorim noite neon, 1985 – Warner Music
Vinicius Cantuária – Nú Brasil, 1986 – EMI Music
Margareth Menezes – Para Gil e Caetano, 2015 – Estrela do Mar
Comentário*
A letra – feita para uma música do Vinícius Cantuária, como um corpo para um vestido, ou um vestido para um corpo, como quiser; mas mais como um corpo para um vestido – foi desencadeada por uma daquelas indicações subliminares do ‘I ching’. Eu joguei para perguntar o que é que eu estava querendo falar, e, segundo o ‘I ching’, eu tinha que falar da questão da posse nas relações dos casais; de como se livrar do magnetismo de efeito colateral que as uniões dão: as pessoas se hipermagnetizam, o magnetismo mútuo cria uma hipertrofia da possessão, e elas não se concebem mais no exercício das suas liberdades para o mundo, as liberdades que transbordam a vida. A redução do casamento ao acasalamento: era isso que devia ser questionado, segundo a intuição que vinha no ‘I Ching’, e disso eu tratei na canção: do desacasalamento do casamento.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Dó-ré-mi
Gilberto Gil
Ré ré recoste o rostinho
Mi mi minhalma te embala
Fá fá falando baixinho
Sol sol de minha vida
Lá lá lá vem o luar
Si si se você não adormecer
Belas coisas não irá sonhar
Dó – dormir
Ré – relembrar
Mi – milhões de beijos, muitos anjos a cantar
Fá – farão você cair do céu
Sol – soltando os braços para me encontrar
Si – se você não adormecer
Coisas tão belas não irá sonhar
Doce de carnaval (Candy all)
Gilberto Gil
Pra que eu fosse batizado
Na religião pagã do carnaval
Eu pedi que mãe me desse um doce
Pra que o batizado fosse
Mais gostoso do que o batizado com sal
Eu tive uma febre aquele dia
De alegria, de euforia, de prazer de viver
E coisa e tal
Pai me trouxe, mãe me deu um doce
Fosse lá qual fosse o doce
Nunca, nunca, nunca mais fiquei normal
Nunca, nunca, nunca, nunca, nunca
Nunca mais perdi o gosto do doce de carnaval
Nunca, nunca, nunca, nunca, nunca
Nunca mais perdi o bloco que desce do Candeal
Fui batizado com doce
Doce no lugar do sal
Papapai cedo me trouxe
Pra brincar o carnaval
Mamamãe me deu um doce
Doce com mel e etcetera
Com mel etcetera e tal
Ô ô ô
Ô ô ô
Ô ô ô
Do Candeal eu sou
Pro carnaval eu vou
Gravação
Gilberto Gil – Quanta gente veio ver, 1998 – Warner Music
Do Japão
Gilberto Gil
Quero uma máquina de filmar sonhos
Pra registrar nas noites de verão
Meu corpo astral leve, feliz, risonho
Voando alto como um gavião
Que filme dentro de minha cabeça
Todo pensamento raro que eu mereça
Toda ilusão a cores que apareça
Toda beleza de sonhar em vão
Do Japão
Quero também um trem-bala-de-coco
Pra atravessar túneis do dissabor
Quero um microcomputador barroco
Que seja louco e desprograme a dor
Visitar um templo zen-desbundista
Conversar com um samurai futurista
Que me dê pistas sobre o sol-nascente
Que me oriente sobre o novo amor
Do Japão
Quero uma gueixa que em poucos minutos
Da minha queixa faça uma paixão
Descubra novos sentimentos brutos
E, enfeitiçada, tome um avião
E a gente vá viver num outro mundo
Pra lá do Terceiro ou Quarto ou Quinto Mundo
Onde a rainha seja uma açucena
E a divindade, a pena do pavão
Gravação
Gilberto Gil – O eterno Deus mu dança, 1989 – Warner Music
Comentário*
“Fui ao Japão em 86 e me impressionei com aqueles bairros com quarteirões inteiros de lojas de componentes eletrônicos, como se fossem grandes feiras com barracas de gravadores, televisores e outros aparelhos. Foi quando me veio a ideia de fazer essa música, estimulada pela miuçalha eletrônica japonesa e pelo significado do país como potência tecnológica, mas querendo um avanço mais para dentro da demanda profunda, existencial.
Há algum tempo atrás, eu li uma notícia de que daqui a vinte anos pretende-se ligar o cérebro ao computador, para levar o cérebro a estimular diretamente o computador e vice-versa. ‘Do Japão’ começou com a pergunta: até onde irá o avanço tecnológico? Numa linha visionarista, a canção é um delírio sobre a possibilidade de contribuição da tecnologia para o próprio fundamento da visão existencial, a visão de dentro.
Daí a ‘invenção’ da câmera de filmar sonhos. Dela, a letra vai para o ‘trem-bala-de-coco’ (eu tinha viajado em um trem-bala durante a minha estada lá), passa pelo ‘microcomputador barroco’ e chega ao samurai e à gueixa, saindo do campo das contribuições do mundo da tecnologia industrial para o das tecnologias do espírito japonês, para a alma japonesa. Uma fantasia zen-desbundista.
No final, a letra faz um súbito deslocamento, indo da referência a coisas e mundos palpáveis e concretos para a ideia da pena de pavão como divindade e da açucena como rainha. Aqui, a sugestão é já de uma sociedade trans-humana e de um estágio posterior ao do grande avanço técnico, no qual instala-se um mundo regido por signos do mundo vegetal e animal, mas mantendo-se as conquistas tecnológicas.
A canção tenta condensar tudo isso no seu caroço poético. É bem realizada e, musicalmente, interessante. Uma vez um menino, saindo de um show, disse assim: ‘ ‘Do Japão’ é uma música muito engenhosa!’ Tinha que ser.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Divino, maravilhoso
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Ao dobrar uma esquina
Uma alegria
Atenção, menina
Você vem?
Quantos anos você tem?
Atenção
Precisa ter olhos firmes
Pra este sol
Para esta escuridão
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino, maravilhoso
Atenção para o refrão:
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção
Para a estrofe, pro refrão
Pro palavrão
Para a palavra de ordem
Atenção
Para o samba-exaltação
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino, maravilhoso
Atenção para o refrão:
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção
Para as janelas no alto
Atenção
Ao pisar o asfalto, o mangue
Atenção
Para o sangue sobre o chão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Gravações
Gal Costa – Gal Costa, 1968 – Philips
Gal Costa – O cordão da liberdade, 1981 – Philips
Gal Costa – A arte de Gal Costa, 1988 – Polygram Music
Leila Pinheiro e Victor Biglione – Songbook Gilberto Gil, Vol. 2, 1992 – Lumiar
Gal Costa – Tropicália/ Millennium, 2004 – Universal Music
Gal Costa – O melhor dos festivais – CD 1, 2004 – Sigla
Gal Costa – Gal Costa interpreta Caetano Veloso (CD 1), 2005 – Universal
Daniela Mercury – Acústico – Daniela Mercury, 2005 – Páginas do Mar
Gal Costa – Lugar Comum, 2008 – Universal Music
Ney Matogrosso – Inclassificáveis, 2008 – EMI Music Brasil
Chicas – Em tempo de crise nasceu a canção, 2008 – Biscoito Fino
Gal Costa – Gilberto Gil – 2 lados, 2010 – Universal Music
Daniela Mercury – Clássica, 2011 – Páginas do Mar
Gal Costa – Filme Tropicália (trilha sonora), 2011 – Universal Music
Gal Costa – Recanto Ao Vivo, 2013 – Universal Music
Georgeana Bonow – Tropicalidades, 2015 – ROB Digital
Gal Costa – Os Dias Eram Assim (trilha sonora), 2017 – Som Livre
Iza e Caetano Veloso – Single, 2019 – Warner Music
Alissan – Single, Programa The Voice Brasil, 2020 – Universal Music
Almério – Desempena Ao Vivo, 2020 – Biscoito Fino
Maria Beraldo – A5 Five (Original Globoplay), 2020 – Som Livre
Elza Soares e Renegado – Single, 2020 – Deck
Dinamarca
Gilberto Gil
Milton Nascimento
Homem tão do mar
Do mar amar, como a um irmão
Capitão do mar
Homem tão do mar
Lembres que o mar também tem coração
Saudades, sim
O mar tem de ti
O mar triste e só
Depois do dia em que tu partistes, ó
Saudades, sim
o nórdico mar
Mar dinamarquês
Pede que venhas navegá-lo outra vez
Capitão do mar
Terás que voltar
Terás que vir uma vez mais
Nova embarcação,
Nova encarnação,
Nova canção, novo amor, novo cais
O mar e nós
Amigos fiéis
Amigos leais
Aqui a esperar teus novos sinais
O mar e nós
O norte, os confins
A barca, os canais
A Dinamarca e os seus carmins boreais
Gravação
Gilberto Gil e Milton Nascimento – Gil & Milton, 2000 – Warner Music
Comentário*
“Dinamarca” foi uma das músicas que eu pedi ao Milton que compusesse [para o disco e show Gil & Milton, que fizeram juntos], para que eu fizesse a letra. Um dia ele chegou no piano elétrico que eu tenho lá em casa e tocou aquela música bem miltoniana, pesada, plúmbea, chumbada. E disse: “Tá aí, faça a letra”. Eu disse: “Tá bom”. Aí, em meio ao trabalho, eu me lembrei do capitão dinamarquês amigo nosso, que era dono de uma casa noturna, Mont Martre, importante em Copenhague, onde se apresentavam grandes jazzistas, Chet Baker, Miles Davis, Herbie Hancock e quem você imaginar, além de muitos brasileiros, Hermeto Paschoal, Egberto Gismonti, Milton Nascimento, Gilberto Gil, esses que fazem concertos pela Europa nos verões.
Esse homem era um daqueles nórdicos típicos, fortes. Ele tinha um barco e levava a gente para passear nele. Milton gostava muito dele, eu também. Ele tinha morrido havia alguns anos, e eu me lembrei de homenageá-lo, fazendo uma canção rememorando a vitalidade dele e relacionando Minas a Dinamarca.
O nome dele era Kay, e o apelido, Capitão — Captain, a gente o chamava. Ele veio ao Brasil uma vez, foi a Belo Horizonte, ficou muitos dias em Minas, Milton o ciceroneou por lá. Todas as vezes que estive com ele foram em Copenhague.
“Dinamarca” fala da saudade dele; da constante ressurreição dele em nós através da lembrança, do amor, do afeto, da saudade no sentido profundo do “[…] capuz/ Transparente/ Que veda/ E ao mesmo tempo/ Traz a visão/ Do que não se pode ver/ Porque se deixou para trás/ Mas que se guardou no coração” [versos de “Toda saudade”, do próprio Gil]. Daí essas palavras finais da música, falando em esperar novos sinais dele; daí, a relação que se estabelece entre o Norte e os confins mineiros, para dar uma geografização da poesia. “Dinamarca” é uma canção de saudade; de saudação e saudade.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Despedida de solteira
Gilberto Gil
Perguntei-lhe se haveria despedida de solteira
Ela me disse que a principio não
Pelo visto não
Certamente não
Porque não, eu insisti em perguntar
Ela disse que eu devia já estar pensando em besteira
Eu disse a ela que a princípio não
Pelo visto não
Certamente não
E assim nossa prosa prosseguiria
O assunto era instigante, o horizonte promissor
Excitante para um cabra tão galante
Intrigante para uma cabrita em flor
Tanta coisa que ali se discutia
Fidelidade, virgindade, orientação sexual
No final ela admitiria que faria
A despedida de solteira e coisa e tal
Festa na qual eu por sinal
Não entraria não
Nem eu nem qualquer um outro varão
Nossa cabrita, tão catita, tão bonita
Depois de tanta desdita havia feito uma opção
Se casaria com outra linda cabrita, hah!
Que até bem pouco namorara o meu irmão
O pau de arara do meu pai o que diria disso
Que ela me disse, disso que ela me disse…
Gravações
Gilberto Gil – Banda larga cordel, 2008 – Warner Music
Targino Gondim – Sou o forró!, 2021 – ONErpm
Comentário*
Sobre se tratar de uma canção na tradição do xote malicioso, mas com uma novidade temática, a da homossexualidade feminina, do casamento entre mulheres, e o tema ser tratado não num tom de militância, e sim com uma leveza de graça engraçada, por meio de uma pequena história. — À feição dos xotes apimentados, de “Cheiro da Carolina” a tantos outros, como “Peba na pimenta”, dos quais “Xote das meninas” é o primeiro, o mais antigo, o mais querido, talvez o mais genial de todos. Sim: a ideia era essa, tratar o tema com jocosidade, ao mesmo tempo chamando atenção pra um assunto muito associado a preconceitos, intolerâncias, incompreensões, violências, rejeições familiares. Era pra dizer: “Olha aí as meninas jogando seu futebol feminino”.
Sobre um procedimento estilístico que tem sua ocorrência em muitas canções suas, mas que em algumas se acentua: a fluência das sonoridades das palavras que rimam internamente, proporcionando um efeito particularmente agradável (como, no final, a sucessão de termos terminados em “ita” e em “ara”, além do jogo entre “disso” e “disse”). — É a brincadeira toda com o versejar, com a literatura de cordel, a dos grandes trovadores, o modo como eles, nordestinos, brincavam com as palavras. “Despedida de solteira” é uma música bem da minha verve nordestina, tanto como músico quanto como poeta.
A ligação com a literatura de cordel e o repente nordestino; com a “música” dos trovadores medievais, cujos poemas eram cantados e não à toa chamados de canções. A literatura de cordel, o repente nordestino, são desdobramentos no tempo das canções trovadorescas. — Eu sou naturalmente ligado a tudo isso, desde a minha origem interiorana, nordestina, baiana. O fato de eu ter sido despertado assim para o gosto estético mais geral por gente como Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, por grandes intérpretes, como Gordurinha, da vida nordestina. Eu sou muito desse campo. Minha formação tem muitos elementos que vêm disso, e eu sempre procurei encontrar espaço pra manifestar a aderência, a adesão minha a isso.
E tem o viés libertário da canção, outra característica de sua obra; a abertura para o que diga respeito à liberdade do ser humano. — Sem dúvida, com um tema muito forte, de grande apelo: a questão do feminismo, a manifestação mais recente da dimensão feminina como algo próprio, com sua própria densidade, seus próprios compromissos políticos e existenciais; a libertação da mulher. Então é bom uma musiquinha desse tipo, jocosa, brincalhona, falando de uma coisa séria, seríssima nos tempos modernos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Desafio do lixo
Gilberto Gil
as caixas de isopor
onde diabos vamos pôr
as nossas caixas de isopor
como nos livrar
das plásticas palavras
ditas á mesa do bar
palavras que vão dar no mar
poluir é ir juntando o que resta de nós
após as refeições
nossos retos mortais
venenosas ilusões
milhões de garrafas vazias
cheias de alergias e aflições
onde vamos pôr
as caixas de isopor
a vida de mentira
a ira, do desamor
temos que encontrar o lugar
no deserto aberto
em nossos corações
Deixei recado
Gilberto Gil
João Donato
Falei do fogo
Falei da dor
Agora calo
Calço o chinelo
Reparo a flor
Batuqueiro, ê
Bate o couro, ê
Bate, bate com paixão
Com paixão por sim
Com paixão por não
Bate, bate, coração
Andei correndo
Andei sofrendo
Andei demais
Agora deito
Olho pro teto
Penso na paz
Batuqueiro, ê
Bate o couro, ê
Bate, bate com paixão
Com paixão por sim
Com paixão por não
Bate, bate, coração
Passei da conta
Passei da porta
Passei por lá
Deixei recado
Voltei cansado
Vou descansar
Gravação
João Donato – Lugar comum, 1975 – Universal Music
Deixar você
Gilberto Gil
Deixar você
Ir
Não vai ser bom
Não vai ser
Bom pra você
Nem melhor pra mim
Pensar que é
Só
Deixar de ver
E acabou
Vai acabar muito pior
Pra que mentir
E
Fingir que o horizonte
Termina ali defronte
E a ponte acaba aqui?
Vamos seguir
Reinventar o espaço
Juntos manter o passo
Não ter cansaço
Não crer no fim
O fim do amor
Oh, não
Alguma dor
Talvez sim
Que a luz nasce na escuridão
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Um banda um, 1982 – Warner Music
Ney Matogrosso – Brazil Night Ao Vivo Montreux, 1983 – Universal Music
Angela Ro Ro – Songbook Gilberto Gil, 1992 – Lumiar
Cesar Camargo Mariano e Pedro Mariano – Piano & voz, 2003
Margareth Menezes – Para Gil & Caetano, 2015 – Estrela do Mar
Alexandre Pires – DNA Musical, 2017 – Som Livre
Comentário*
‘Deixar você’ é da mesma época de ‘Drão’, mas não teve nenhum personagem no qual eu tivesse me baseado. O personagem da letra é inventado e surge de uma decisão assim: ‘Vou fazer uma canção’. Na verdade, ‘Deixar você’ foi feita para imitar o Djavan; eu quis compor uma canção que se assemelhasse com o que eu achava que era o modo do Djavan fazer música. Eu fiquei fazendo umas sequências melodico-harmônicas para mim parecidas com as dele, com alguns traços do estilo dele, e aí, música feita, pensei: ‘Bom, o que é que eu vou fazer com isso?’ Aí escrevi os versos, nos quais eu não tratava de uma situação real sobre a qual eu quisesse elaborar um pensamento.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
De ouro e marfim
Gilberto Gil
Aqui estamos reunidos
À beira-mar
Nesta noite de ano-novo
Nesta festa de Iemanjá
Pra prestar nossa homenagem
De coração
Ao grão-mestre dessa ordem
Venerável da canção
Brasileiro de Almeida
De ouro e marfim
Curumim da mata virgem
Antonio Carlos Jobim
Ê, babá, ê, babá, ê
Antonio Carlos Jobim
Ê, babá, ê, babá, ê
Antonio Carlos Jobim
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – Quanta Gente Veio Ver (Ao Vivo), 1998 – Gege
Comentário*
Era o dia em que iríamos cantar todos as músicas de Tom Jobim, homenageá-lo no show de ano novo: eu, Caetano, Gal, Chico, Milton, Paulinho. Aí, naquela manhã de 31 de dezembro de 1995, eu acordei me perguntando: ‘Mas será que você não tem que cantar uma canção especialmente surgida para a ocasião, relativa ao tema?’ O tema era Tom, claro. Aí me veio, ainda na cama mesmo, no travesseiro, a canção toda, verso após verso. Só na cabeça, mas já aprontando a música também, as duas coisas juntas.
E a letra veio muito na forma heráldica, digamos assim, de uma confraria, de uma escola com mestres e alunos, de uma ordem. Essas coisas também influenciaram o modo de fazer a canção: o fato de meu pai ter sido maçom – a maçonaria; e de a Ordem Terceira do Carmo e a Ordem Terceira de São Francisco terem sido entidades religiosas do mundo católico presentes na minha infância e adolescência.
‘De ouro e marfim’ foi ensaiada e apresentada no mesmo dia. E é interessantíssimo que, na gravação do show, se escuta claramente a multidão de Copacabana cantando: ‘Ê, babá, ê, babá, ê’. Na primeira vez em que foi cantada, o público já a recebeu cantando-a, instigado por essa forma clássica do canto popular, dos cantos de raiz, que estão enraizados na tradição, no caso a do candomblé, dos cantos que vêm dos terreiros. Porque parece um daqueles cantos de Filhos de Gandhi pelas ruas de Salvador: a resposta do público é pronta, como se aquela fosse uma velha poesia. Na verdade, um arquétipo estava sendo reiterado ali.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
De leve (Get Back)
Gilberto Gil
Mas sabia que era não
Saiu de Pelotas, foi atrás da hera
Trepadeira de verão
De leve
De leve
De leve, que é na contramão
De leve
De leve
De leve, que é na contramão
Sweet Loreta Martinica da cuíca
Muito garotão curtiu
Juram que viram Loreta de cueca
Dizem minas lá no Rio
De leve
De leve
De leve, que é na contramão
De leve
De leve
De leve, que é na contramão
[ Get Back, de John Lennon e Paul McCartney ]
De Bob Dylan a Bob Marley – um samba-provocação
Gilberto Gil
Fez um disco de reggae por compensação
Abandonava o povo de Israel
E a ele retornava pela contramão
Quando os povos d’África chegaram aqui
Não tinham liberdade de religião
Adotaram Senhor do Bonfim:
Tanto resistência, quanto rendição
Quando, hoje, alguns preferem condenar
O sincretismo e a miscigenação
Parece que o fazem por ignorar
Os modos caprichosos da paixão
Paixão, que habita o coração da natureza-mãe
E que desloca a história em suas mutações
Que explica o fato da Branca de Neve amar
Não a um, mas a todos os sete anões
Eu cá me ponho a meditar
Pela mania da compreensão
Ainda hoje andei tentando decifrar
Algo que li que estava escrito numa pichação
Que agora eu resolvi cantar
Neste samba em forma de refrão:
“Bob Marley morreu
Porque além de negro era judeu
Michael Jackson ainda resiste
Porque além de branco ficou triste”
Gravação
Gilberto Gil – O eterno Deus mu dança, 1989 – Warner Music
Comentário*
[A tal pichação a que alude a letra muito provavelmente nunca existiu. Gil, pelo menos, nunca a viu, de fato.] Isso eu inventei para não colocar a ideia como minha; para deslocá-la. Mas era uma ideia possível de existir àquela altura; embora não houvesse sido pichada, ela já estava na manifestação do discurso de muita gente. Então, para não fazer essa afirmação — para não fazer dessa afirmação uma coisa minha —, eu a coloquei como se ela tivesse sido anonimamente fixada numa inscrição de parede, numa provocação de muro: “Bob Marley morreu porque além de negro era judeu”. Houve até um artigo, que eu li publicado numa revista americana, que discutiu a questão da intolerância contra Marley na sociedade jamaicana, apontando como tendo sido uma das razões das perseguições (os atentados) que ele sofreu o fato de ele, além de ser negro, defender seu rastafarianismo, como uma espécie de judaísmo transfigurado. [Quanto ao outro nome citado na “pichação”, Michael Jackson:] Já se começava a especular sobre as tais injeções de branqueamento que pretensamente ele estaria tomando. Era esse momento. [“Provocação” em substituição a “exaltação”:] porque o samba trabalha com uma série de ideias polêmicas.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Das duas, uma
Gilberto Gil
Das duas, uma
Ou será pluma
Ou será pedra e pesará
Se forem hábeis e sábios e sãos
Serão amáveis e tempo terão
Pra fazer da vida a dois
Dois chumaços de algodão
E os frágeis cristais
Das aventuras
Encontrarão proteção e, quem sabe, quebrarão jamais.
Se porventura
A vida dura
Lhes for madrasta e voraz
Sejam capazes, audazes e bons
Façam das pazes noturnos bombons
E os percalços naturais
Farão parte da canção
Serão tropeços
E recomeços
Um a cada vez, cada mês
E vocês se acostumarão
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Bandadois (Ao Vivo), 2019 – Gege
Comentário*
“Das duas, uma” foi feita pra duas pessoas muito próximas, ligadas ao meu círculo de afetos, de convívios — uma filha e um colega de banda. Fiz a canção pra Maria e pro Alex Fonseca, nosso querido músico gaúcho, que haviam resolvido se casar. Maria me disse: “Queria que você cantasse uma coisa qualquer no meu casamento, pai”. E eu resolvi fazer uma canção pra cantar e pra tratar da questão espinhosa do casamento: o lado espinho dessa rosa. A canção é sobre as dificuldades da conciliação do encontro, da criação, da formação e da manutenção da unidade conjugal.
“Das duas, uma”: são as duas pessoas; os dois destinos dessas pessoas, os dois aspectos do encontro a partir das individualidades de cada um. São cristais, são frágeis. Daí o trabalho permanente de encontrar a suavidade do algodão nas suas disposições diárias, no sentido de construir a relação da forma mais harmônica possível.
A função educadora do pai. — Ali tem um discurso de instrução; uma forma de instruir um pouco os meninos ainda não tão experientes, a partir de experiências vividas por mim: três casamentos, três momentos de dois desdobrados em outros dois e outros dois: eu e três, três eus que se uniram a três outras, três outros eus. A sustentação da ideia do casamento: de como é que se sustenta sem exigências fundamentalistas, sem votos, sem a dimensão votiva da obrigatoriedade religiosa do “para sempre até que a morte nos separe”. Prevenindo que casamento não é questão de vida ou morte — não é só a morte que separa: é a vida que separa também.
E é gozado, porque hoje eles são amigos, já separados como marido e mulher. Entraram e saíram do casamento como amigos.
Quem adora essa música é o Arnaldo Antunes. Ele me disse uma vez. Eu gosto muito também. Ela é mesmo bem construída.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Ciranda
Gilberto Gil
Moacir Santos
Esta ciranda
De tantas cores
Vem nos aliviar as dores
Os maus olhados
Os dissabores
Ó, cirandeiro, cirandeiro
Que faz ciranda o tempo inteiro
Só por folia
Só por amor
Vem de um lugar chamado Flores
Esta ciranda
De tantas cores
Vem nos falar dos trovadores
Dos bem-amados
Dos benfeitores
Ó, cirandeiro, cirandeiro
Que faz ciranda o tempo inteiro
E só por isso
Tem seu valor
Gravação
Gilberto Gil – O sol de Oslo, 1998 – Pau Brasil
Comentário*
Moacyr Santos… Uma ciranda mesmo que ele escreveu, me passou, eu escrevi a letra e fiz a referência direta à origem dele [Flores]. Eu o comparo ao cirandeiro “Que faz ciranda o tempo inteiro/E só por isso/Tem seu valor”; ele que era um músico complexo, aderente a uma visão sofisticada das misturas musicais. Nesse caso, volta-se para a sua fonte originária. A letra apresenta um jeito ingênuo de composições de cânticos religiosos, de cirandas, de cantigas de roda. Ciranda nada mais é que uma roda de cantiga; é tanto a música quanto o modo de aglomerar-se — tanto o samba quanto a roda de samba.
[Refletindo sobre “Ciranda”, Gil se lembra de João Donato:] Tem aquela mesma inocência das canções dele.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Cinema novo
Gilberto Gil
Caetano Veloso
A voz do morro rasgou a tela do cinema
E começaram a se configurar
Visões das coisas grandes e pequenas
Que nos formaram e estão a nos formar
Todas e muitas: Deus e o Diabo
Vidas Secas, Os Fuzis
Os Cafajestes, O Padre e a Moça, A Grande Feira,
O Desafio
Outras conversas, outras conversas
Sobre os jeitos do Brasil
Outras conversas sobre os jeitos do Brasil
A bossa-nova passou na prova
Nos salvou na dimensão da eternidade
Porém, aqui embaixo “a vida”
Mera “metade de nada”
Nem morria nem enfrentava o problema
Pedia soluções e explicações
E foi por isso que as imagens do país desse cinema
Entraram nas palavras das canções
Entraram nas palavras das canções
Primeiro, foram aquelas que explicavam
E a música parava pra pensar
Mas era tão bonito que parasse
Que a gente nem queria reclamar
Depois, foram as imagens que assombravam
E outras palavras já queriam se cantar
De ordem, de desordem, de loucura
De alma à meia-noite e de indústria
E a terra entrou em transe, ê
No sertão de Ipanema
Em transe, ê
No mar de Monte Santo
E a luz do nosso canto
E as vozes do poema
Necessitaram transformar-se tanto
Que o samba quis dizer
O samba quis dizer: “Eu sou cinema”
O samba quis dizer: “Eu sou cinema”
Aí o anjo nasceu
Veio o bandido meteorango
Hitler Terceiro Mundo
Sem Essa, Aranha, Fome de Amor
E o filme disse: “Eu quero ser poema”
Ou mais: “Quero ser filme, e filme-filme”
Acossado no limite da garganta do diabo
Voltar à Atlântida e ultrapassar o eclipse
Matar o ovo e ver a Vera Cruz
E o samba agora diz: “Eu sou a luz”
Da lira do delírio, da alforria de Xica
De toda a nudez de Índia
De flor de Macabéia, de Asa Branca
Meu nome é Stelinha, é Inocência
Meu nome é Orson Antônio Vieira Conselheiro de Pixote Super Outro
Quero ser velho, de novo eterno
Quero ser novo de novo
Quero ser Ganga Bruta e clara gema
Eu sou o samba, viva o cinema
Viva o Cinema Novo
Cidade do Salvador
Gilberto Gil
Tanta dor
A cruz
A dor
A dor
Adormeço
A dor mereço
Agora
A dor
A dor
A dormência
Do sono lunar
Sonho
Sonho
A terra
No sonho
A terra inteira
No sonho
Aterrador
Mar
O mar
O mar
O maremoto
remoto
remoto
motivo
Teria Deus
Pra nos salvar
Fé
A fé
A fé
Só a fé
A fé
A felicidade
Cidade do Salvador
dor
dor
Gravações
Gilberto Gil – Cidade do Salvador – cd 2, 1998 – Polygram
Gilberto Gil – Umeboshi – ao vivo (1973), 2017 – Discobertas
Gilberto Gil – Gilberto Gil ao vivo – USP (1973), 2017 – Discobertas
Comentário*
Uma música carregadíssima de reflexão poética, de uso da poiesis; a música indo ao encontro do mundo idealizado da poesia, e sendo o sonho de que fala somente busca de assunto para engendramento construtivista do muro poético que vai se erguendo com suas palavras-tijolos; música trazendo o sentido de condensar ideias inteiras em palavras-verbetes que contêm toda a sua significação — procedimento de poesia concreta.
No plano musical, é bem parecida com Milton Nascimento, com frases elásticas, prolongadas. Algo muito fora da minha tônica; em mim tudo é mais onomatopaico, rítmico, as divisões fracionadas, e as palavras funcionando como rolamentos, rolimãs. Aqui não, as palavras são escorridas, estendidas como trilhos, sugerindo a imagem contínua dos trilhos que vão além do horizonte.
Muito isso. Muito miltoniana, nesse sentido
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Darlene Triste
Gilberto Gil
Outras gravações:
“CD you”, Heraldo Do Monte – viola nordestina, Eletrônica Digital 2001
“Viola nordestina”, Heraldo Do Monte, Kuarup
[ trilha do filme “Eu, Tu, Eles” ]
Cibernética
Gilberto Gil
Solino sempre estava lá
Escrevendo: “Dai a César o que é de César”
César costumava dar
Me falou de cibernética
Achando que eu ia me interessar
Que eu já estava interessado
Pelo jeito de falar
Que eu já estivera estado interessado nela
Cibernética
Eu não sei quando será
Cibernética
Eu não sei quando será
Mas será quando a ciência
Estiver livre do poder
A consciência, livre do saber
E a paciência, morta de esperar
Aí então tudo todo o tempo
Será dado e dedicado a Deus
E a César dar adeus às armas caberá
Que a luta pela acumulação de bens materiais
Já não será preciso continuar
A luta pela acumulação de bens materiais
Já não será preciso continuar
Onde lia-se alfândega leia-se pândega
Onde lia-se lei leia-se lá-lá-lá
Cibernética
Eu não sei quando será
Cibernética
Eu não sei quando será
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil Ao vivo, 1974 – Gege
Comentário*
Celestino, Solino, César e eu éramos colegas na Alfândega, em 62, 63; éramos fiscais. César era um entusiasta da cibernética e foi quem me falou de cibernética pela primeira vez; quem me deu o primeiro livro sobre o assunto – a obra clássica, de Norbert Wiener, o pai da cibernética. Cibernética era um dos temas que ele mais gostava de debater comigo.
César não era o que a gente poderia chamar classicamente, para os padrões da época – padrões de gente que vinha da universidade –, um comunista ou mesmo um simpatizante comunista, como muitos eram, como eu mesmo era e como eram tantos outros que pertenciam às linhas auxiliares, como eram definidos os que não eram comunistas, não pertenciam a uma daquelas agremiações clássicas de esquerda da vida universitária, da vida operária, mas que simpatizavam com a causa, tinham uma compreensão profunda pelos ideais socialistas, destes participando de alguma forma. O César talvez não fosse nem isso; ele talvez fosse mais um liberal até; mais, classicamente falando, um liberal. Mas ele tinha uma dificuldade muito grande com a ideia da acumulação dos bens materiais. Ele não compreendia bem isso, ele achava que isso não dá certo, que isso emperrava o mecanismo de desenvolvimento de evolução da humanidade.
No fundo era um comunista, o César Orrico – este era o sobrenome dele. ‘Onde lia-se alfândega leia-se pândega/ Onde lia-se lei leia-se lá-lá-lá’: isso é anarquismo libertário. Eu diria isso: César era talvez um liberal anarquista. Eu gostava muito dele. Ele era habitado pelo sentimento de que o avanço da ciência e da tecnologia traria benefícios espirituais para o homem; por isso ele me falou: ‘E a cibernética, você nunca leu? Eu disse: ‘Não; eu já ouvi falar, mas nunca li nada’. – ‘Tome aqui um livro’. Pronto. Me aplicou na cibernética.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Dandara, a flor do gravatá
Gilberto Gil
Waly Salomão
Dandara, Dandara, Dandara
Dando carinho, dor e flor, é dando
Dandara, Dandara, Dandara
É flor que brota em grota
Em greta, em grota, em gruta
Ingrata, o dedo espeta
E grita, berra, braba, forte, mata
Dandara
Bonita, bárbara, felina, flor do gravatá
Vibra o punhal de prata!
Vibra o punhal de prata!
Vibra o punhal de prata!
E ainda assim tão terna
Tão ternamente rara
A flor do gravatá
Medra na pedra
Na pedra se escancara
Dandara, Dandara, Dandara
Gravação
Gilberto Gil – Quilombo, 1984 – Warner Music
Comentário*
[Ao contrário de “Quilombo, o eldorado negro” (e das demais canções de Gil e Waly Salomão feitas para o filme Quilombo), “Dandara, a flor do gravatá” apresenta uma letra que resultou da participação de ambos na criação.]
Nessa letra eu sinto tanto você quanto o Waly Salomão. Diferentemente de “Quilombo, o eldorado negro”, aqui eu já sinto o Waly. — Mas foi ele quem propôs; a letra já veio com as iniciais dele.
“É dando espinho, é dando amor, é dando/Dandara, Dandara, Dandara// Dando carinho, dor e flor, é dando/ Dandara, Dandara, Dandara”: tem a cara dele. — “É flor que brota em grota/ Em greta, em grota, em gruta/ Ingrata, o dedo espeta/ E grita, berra, braba, forte, mata/Dandara/ Bonita, bárbara, felina, flor do gravatá”. Essa flor do gravatá é claramente de Waly.
“Vibra o punhal de prata!”: eu já vejo Waly bradando isso, erguendo o braço. — Claro!
Mas em seguida vem: “E ainda assim tão terna/ Tão ternamente rara/ A flor do gravatá/ Medra na pedra/ Na pedra se escancara”. Ternura depois da bravura. Parece você. — Aí fui eu, esse final fui eu. Minha cara, totalmente minha cara.
Sinto o Waly também na sequência carregadamente aliterativa com os termos “brota”, “grota”, “greta”, “gruta”, “ingrata”, “grita”, “braba”; e também na insinuação maliciosa da expressão “é dando” e do verso com “grota, greta e gruta”. — A insinuação ao sexo feminino.
Um lance evidente e eminentemente poético por envolver som e sentido: as três palavras muito próximas por só se diferenciarem por uma vogal, terem cinco letras e remeterem a uma mesma coisa, que é sexo. — Todas elas; exatamente.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Chuva miúda
Gilberto Gil
Não lava a calçada, não limpa o chão
Tal como o seu olhar
Não lê meu coração
Ai, meu Deus, chuva miúda
Se não muda o tempo e não abre o sol
Não vai dar pra brincar
Não vai dar meu cordão
Esse tempo que molha e não chove
Esse tempo
Esse papo que chove e não molha
Esse papo
Esse samba que eu fiz pra você
E você que nem me olha
E você que nem me olha
E você que nem me olha
Dança dos homens
Gilberto Gil
Carlinhos Brown
Outras gravações:
“Z”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
Chuck Berry fields forever
Gilberto Gil
A jungle drum was brought and got the white God to get in
A pagan dance until he had no other chance unless the sin
Of black-white day and night, soul and mind magic
The European Goddess fainted under jungle drum’s sound
She was fertilized by some afro God while on the ground
So the begotten sons as samba, mambo, rumba, rhythm’n’blues
Became the ancestrals of what today we call rock and roll
Rock and roll is magic
Rock and roll is mixture
Chuck Berry fields forever
The joyful English four knights of the post-calypso
In the post-calypso age
Rock and roll
The opening page
What is to come next
We don’t know the text
No one knows precisely
It’s on to progress
Into its funky fullness
Next century
Gravações
Doces Bárbaros – Doces Bárbaros, 1976 – Universal Music
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao Vivo em Montreux), 1978 – Warner Music
Celso Fonseca – O som do sim, 1993 – Polaróides Music
Gilberto Gil – Eletroacústico Ao Vivo, 2004 – Warner Music
Caetano Veloso – Pipoca moderna – Caetano raro e inédito 2, 2006 – Universal Music
Ana Cañas – Hein?, 2010 – Sony Music
Comentário*
De acordo com Gil, a versão para o inglês de Chuck Berry Fields Forever foi feita durante toda uma madrugada. “Trabalho de artesão mesmo”, conta. “Guardião dos significados da canção, eu senti a necessidade de ser fiel em todos os sentidos e de, ao mesmo tempo, ir adiante, acrescendo coisas não constantes na letra em português.
“Um exemplo: na transposição, a deusa europeia transa com o deus africano; Gil: “Ela é literalmente comida, num estupro cósmico; ‘while on the ground’ é para dar bem a ideia de que ele a derrubou no chão e… Isso tinha que acontecer, até para reafirmar um arquétipo popular, que identifica a África com o masculino, a força física, a virilidade, a natureza de instinto básico, e a Europa com a racionalidade, a mediação do pensamento, a característica mesmo acética – embora, vistas por outro ângulo, a Europa possa até ser identificada com um sentido mais masculino e a África com um sentido mais feminino”.
Outro: impossibilitado de verter para o inglês o jogo sonoro entre os termos ‘versículo’ e ‘século’, Gil aproveitou os últimos versos para lançar um dado poético novo em relação ao texto de partida: a sugestão do funk como o gênero que, “depois do samba, mambo, rumba e rhythm and blues, e do rock and roll como a primeira página da época pós-calipso, viesse para – mais do que ser o descendente dos ‘begotten suns’ do deus bárbaro com a deusa ‘branca de neve’, pálida e frágil – se tornar a própria alma desse casamento e da música negra moderna”.
“No final, original e versão acabam se espelhando e se complementando.”
História e propaganda – “Chuck Berry Fields Forever dá uma visão dinástica do sincretismo religioso e cultural das Américas resultante da junção das culturas da Europa e da África, utilizando a música popular como fio condutor do processo e como um dos modos de apreendê-lo. As Américas são vistas a partir dos seus ritmos: o samba, brasileiro, o mambo e a rumba, centro-americanos, e o rhythm and blues, norte-americano, tudo isso desembocando no rock and roll, que seria assim a forma mais nova da linhagem e a mais representativa da época. Nesse aspecto, a canção não só faz uma apologia do gênero como uma propaganda da minha adesão a ele, o que só aconteceria de fato nos anos oitenta.”
Isomorfismo som-sentido – Os dez tês (num verso de catorze sílabas) de “Tambor de tinto timbre tanto tonto tom tocou”: ao colocar em prática este procedimento aliterativo a intenção do músico-poeta Gilberto Gil foi mimetizar “o tam-tam-tam dos tambores; a sonoridade inebriante – ‘tinto’ se refere a vinho -, o caratér alucinatório da batida reiterada dos tambores”; representar, em suma, “o transe através do som, como no candomblé.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Chuck Berry fields forever
Gilberto Gil
Tambor de tinto timbre tanto tonto tom tocou
E neve, garça branca, valsa do Danúbio Azul
Tonta de tanto embalo, num estalo desmaiou
Vertigem verga, a virgem branca tomba sob o sol
Rachado em mil raios pelo machado de Xangô
E assim gerados, a rumba, o mambo, o samba, o rhythm’n’blues
Tornaram-se os ancestrais, os pais do rock and roll
Rock é o nosso tempo, baby
Rock and roll é isso
Chuck Berry fields forever
Os quatro cavaleiros do após-calipso
O após-calipso
Rock and roll
Capítulo um
Versículo vinte
-Sículo vinte
Século vinte e um
Versículo vinte
-Sículo vinte
Século vinte e um
Dança de Shiva
Gilberto Gil
Dança de Shiva
Repare a dança de Shiva
Enquanto a reta se curva
Cai chuva da nuvem de pó
Fraude do Thomas
Repare a fraude do Thomas
Os deuses todos em coma
Enquanto Exu não dá o nó
Nó se dá um só
Se dói de dó
Se mói na mó
Pulverizar
Se foi na avó
No neto irá
Não, não irá
Quiçá morrerão
Deuses em coma
Homens em vão
Pela ciência
Pela canção
Deuses do sim
Deuses do não
Quem me vir dançar
Verá que quem dança é Shiva
Quem dança, quem dança é Shiva
Quem me vir já não me verá
Verá no Thomas
Por trás da fraude do Thomas
Alguns verazes sintomas
De um passageiro mal-estar
© Gege Edições Musicais
Gravações
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – Projeto Especial IBM, 1997 – IBM
Comentários*
O Thomaz Green Morton é um mago a quem se atribuem muitos milagres, mas ao mesmo tempo muitas fraudes; fica um dilaceramento entre autenticá-lo e desautorizá-lo, um jogo que reflete apenas a nossa própria instabilidade com relação aos campos da fé. Nessa música eu falo: “Repare a fraude do Thomas/ Os deuses todos em coma/ Enquanto Exu não dá o nó”, quer dizer: enquanto nós não temos capacidade de percepção completa da fenomenologia do sutil, do mistério que se dá de uma forma muito equívoca para a nossa percepção da fenomenologia do dia a dia; enquanto não temos a percepção da fenomenologia para além dos sentidos, a percepção que não é a corriqueira, a cotidiana, do campo do macromundo, mas a do campo do micromundo — que, no entanto, a ciência já aborda, exatamente a partir da relatividade, a partir dos quanta.
Então eu não vejo nenhum problema com o milagre. Mas, assim como ocorre com o milagre, a fenomenologia subatômica é questionada; as academias pintaram horrores com os homens da ciência subatômica, da mesma forma que os mágicos sofreram muito também. Eu gosto da associação possível, probabilística, entre os dois campos. “Dança de Shiva” versa sobre isso; na verdade, ela é uma música em defesa do Thomas, apesar de muita gente perceber como uma reles acusação inquisitorial a referência a ele na letra. Ao contrário, a música está defendendo aquilo naquilo que é defensável; naquilo que é um mistério, uma manifestação de mistério — mistério para ele mesmo! Imagina alguém supor que aquilo é um campo dominado pelo Thomas; não é! Aquilo não é de domínio dele, aquilo é de domínio do domínio.
“Dança de Shiva” é hermética, sim, como os próprios campos que ela aborda. O campo da ciência subatômica é esoterismo puro; a prosa cotidiana da superfície dos fenômenos palpáveis de nosso dia a dia não dá conta desse mundo, como não dá conta do mundo dos mágicos. Há, nesse sentido, uma aproximação muito grande entre o mundo mágico e o mundo da hiper ou da hipociência, dessas ciências modernas. São campos que se encontram, por serem, ambos, campos que aparentam dar — e dão — a dimensão do milagre. Uma célula fotoelétrica que abre uma porta à distância é um milagre! Por que o controle remoto é admissível e as transmutações do “rá” ficam como coisas que não devem ser trazidas para o terreno da compreensão, quer dizer, não devem ser incluídas, não devem ter o benefício da compreensão? Por que a ciência pode e a magia não pode?
Eu não quero saber de anteparos muito rígidos nas fronteiras desses campos. Prefiro que eles se interpenetrem mais e que nós possamos entrar.
*Extraído do livro Gilberto Gil – Todas as Letras
Dança das mulheres
Gilberto Gil
Rodolfo Stroeter
Outras gravações:
“Z”, Gilberto gil, Warner Music 2002
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Chororô
Gilberto Gil
De quem chora tenho dó
Quando o choro de quem chora
Não é choro, é chororô
Quando uma pessoa chora seu choro baixinho
De lágrima a correr pelo cantinho do olhar
Não se pode duvidar
Da razão daquela dor
Não se pode atrapalhar
Sentindo seja o que for
Mas quando a pessoa chora o choro em desatino
Batendo pino como quem vai se arrebentar
Aí, penso que é melhor
Ajudar aquela dor
A encontrar o seu lugar
No meio do chororô
Chororô, chororô, chororô
É muita água, é magoa, é jeito bobo de chorar
Chororô, chororô, chororô
É mágoa, é muita água, a gente pode se afogar
Chororô, chororô, chororô
É muita água, é magoa, é jeito bobo de chorar
Chororô, chororô, chororô
É mágoa, é muita água, a gente pode se acabar
Gravações
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao Vivo em Montreux), 1978 – Warner Music
Elba Ramalho – Coração Brasileiro, 1983 – Universal Music
Targino Gondim – Sou o forró!, 2021 – ONErpm
Comentário*
Chororô foi feita no quarto de hotel em Montreux, uns dois dias antes do meu primeiro show no festival de jazz da cidade. ‘Não tenho uma canção nova para esse show; o que é que eu vou fazer? Vou fazer um xote’, eu disse. Aí peguei o violão e fui tocando. Ao pensar na necessidade de uma letra, por algum desvão qualquer, não lembro qual, como naquelas ribanceiras em que você escorrega de repente, eu caí no ‘chororô’. Eu comecei pelo refrão, caindo no ‘chororô, chororô, chororô’, e me perguntei: ‘O que é que eu vou dizer agora?’ Aí eu tive de inventar a história de um chorão, que não era estimulada por ninguém: o choro era de alguém idealizado na minha cabeça.
Na verdade, embora idealizado, o personagem é como se fosse, também, uma espécie de alterego meu, e a canção como se fosse eu falando para mim mesmo: para um lado piegas, sentimentalóide, existente em mim. Como se houvesse em mim a possibilidade de idealizar uma personalidade hipertrofiada com essa característica, que desse margem a uma crítica, não digo necessariamente a mim mesmo, mas a qualquer um. ‘Chororô’ é uma música anti-emocionalista. Uma reiteração, também, do já aprendido nas experiências ligadas à economia álmica, existencial, emocional.
A canção tem um espírito nordestino evidente. O linguajar, trazendo expressões bem próprias, apresenta um inegável traço étnico do modo de falar nordestino – para combinar com a linguagem musical do xote, para inclusive favorecer o fraseado, o modo de cantar, a adaptação da palavra à melodia. Porque a música nordestina possui uma propriedade muito particular, e as frases, a construção dos versos, têm todo um idiomatismo próprio do modo de falar nordestino, comparado aos outros modos mais urbanos, ao carioca, por exemplo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Dança da água e da paz
Gilberto Gil
Lelo Nazário
Outras gravações:
“Z”, Gilberto Gil, Warner Music 2002
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Choro de criança
Gilberto Gil
Perinho Santana
Em casa quem não quiser choro de criança
Em casa quem não quiser choro de criança não casa
No caso quem não quiser choro de criança
Não casa porque quem casa tem que escutar
O choro de criança
O choro de criança é tudo
O choro de criança é tudo que se tem
O choro de criança é tudo que se tem em casa
O choro de criança é tudo que se tem em casa
Quando alguém se casa é choro de criança
O tudo que se tem
No caso quando alguém se casar
É choro de criança tudo
Que alguém terá de cantar
Pra consolar
O choro de criança
Chiquinho Azevedo
Gilberto Gil
Garoto de Ipanema
Já salvou um menino
Na praia do Recife
Nesse dia Momó também estava com a gente
Levou-se o menino
Pra uma clínica em frente
E o médico não quis
Vir atender à gente
Nessa hora nosso sangue ficou bem quente
Menino morrendo
Era aquela agonia
E o doutor só queria
Mediante dinheiro
Nessa hora vi quanto o mundo está doente
Discutiu-se muito
Ameaçou-se briga
Doze litros de água
Tiraram da barriga
Do menino que sobreviveu, finalmente
Chiquinho Azevedo
Teve muita coragem
Lá na Boa Viagem
Na praia do Recife
Nesse dia Momó também estava com a gente
Todo mundo me pergunta
Se essa história aconteceu
Aconteceu, minha gente
Quem está contando sou eu
Aconteceu e acontece
Todo dia por aí
Aconteceu e acontece
Que esse mundo é mesmo assim
Gravações
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Gilberto Gil – It’s good to be alive -anos 90, 2002 – Warner Music
Comentário*
A música foi feita, em desagravo ao Chiquinho, depois da prisão em Florianópolis. Como ele tinha sido condenado comigo por porte de maconha, e tinha ficado aquela pequena mancha na imagem dele, e como antes – em 75 – tinha acontecido o episódio que eu conto na canção, em que ele tinha tido a atitude heroica de salvar um menino em Recife, eu achei que era uma boa oportunidade para fazer um contraponto e, ao homenageá-lo, mostrar como ele era um belo cidadão, uma pessoa extraordinária, e como o fato de ele fumar e ter sido preso com maconha não diminuía em nada a beleza do ser humano que estava nele.
O episódio aconteceu durante a excursão do show Refazenda. Chiquinho, Momó (Moacir Albuquerque) e Dominguinhos tocavam comigo. Eu, Momó e Chiquinho – que viria depois a ser o baterista dos Doces Bárbaros – estávamos na praia, e, de repente, um menino se afogando, ele vai, se joga no mar, salva e traz o menino pra areia. O menino naquela agonia, inconsciente, bem defronte havia uma clínica; levamos o menino pra lá, o socorro era urgente, e aí, o médico: ‘Peraí, quem vai pagar, quem é o responsável, e não sei o quê.’ Aquela história. ‘Responsável, coisa nenhuma!’, a gente começou a gritar e xingar.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Chewing gun with banana
Gilberto Gil
Only when your Uncle Sam allows me in
With my tambourine, my cuica and my zabumba
Only when he knows that a samba is not a rumba
So then, I will mix it all
Miami with Copacabana
Your chewing gun I’ll mix with my banana
And then my samba’s gonna hit your soul
Boroboroborobo, boptch-boptch-bop
Boroboroborobo, boptch-boptch-bop
Boroboroborobo, boptch-bop
What a great confusion in the hall
Boroboroborobo, boptch-boptch-bop
Boroboroborobo, boptch-boptch-bop
Boroboroborobo, boptch-bop
We are dancing samba-rock’n’roll
Yes, but on the other hand
We can feel the boogie-woogie trying hard to understand
How to do a brake and shake a tambourine
Joing my Brazilian jamboree
[ inédita – Chiclete com Banana, de Gordurinha e Almira Castilho ]
Dada
Gilberto Gil
Caetano Veloso
A
DEUS
DEUS
A
A
FRO
DI
TE
DE
TI
TI
VE
VI
DA
DA
DA
A
DEUS
© Gege Edições / Preta Music (EUA & Canada) / © Uns (Warner/Chappell)
Gravação
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Tropicália 2, 1993 – Philips
Comentário*
“Dada” é uma canção de inspiração de traço numinoso, aparecida meio por milagre. É como se as palavras e o seu encadeamento tivessem me acontecido malgré uma psique ou uma inteligência; como se o poema já estivesse num outro plano e descesse para entrar ali, naquela música. Essa a minha sensação.
Notas-gotas. — A música foi a primeira que Caetano compôs para o disco Tropicália 2. “Faça uma letra”, ele me disse. Fomos então fazendo as outras, ele as dele, eu as minhas, e aquela música foi ficando ali, e eu adiando, adiando. O repertório estava já quase todo constituído, quando um dia, em casa, eu comecei a meditar nela, no significado de conta-gotas que pode representar a sua sucessão de notas, de diferentes alturas e sonoridades. Fui então deixando aquelas gotas sonoras caírem no meu pensamento e se espalharem; pouco a pouco, como sem querer, elas foram se tornando palavras e, de repente, pronto, já tinham sentido. Mas uma gota não tinha caído no lugar certo.
[Gil conta que levou a letra para Caetano sem uma palavra para o trecho melódico que, na configuração espacial em que definiu a sua escrita, corresponde à penúltima linha, e que foi o parceiro quem completou a canção, introduzindo ali a palavra “dada”.]
Ele disse: “De vida dada”, e deu sentido a tudo; aquilo foi a dádiva do poeta que sabe como trazer nas mãos a poesia por inteiro.
A introdução de um tema novo: a velhice. — [Para Gil, a canção tem uma importância especial pelo que significa para ele, assim como para Caetano; justamente por causa desse significado, ele não sabia direito qual seria a reação do amigo diante da letra, quando foi apresentá-la.] Eu fui até meio reticente, temeroso de que ele… Mas ele falou: “Está certo; é hora mesmo de falarmos disso: somos nós dois envelhecendo. Está legal. Assinamos isso tranquilamente”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Chamada
Gilberto Gil
Gravação
Gilberto Gil – Z, 2002 – Warner Music
[ para o balé Z, de Germaine Acogny ]
Chão batido
Gilberto Gil
o lugarejo aqui não tinha
ensejo nem capacidade
nem caminhão aqui não vinha
não tinha estrada de verdade
o mais perto que se podia
pegar transporte pra cidade
era na verdade Luzia
o estirão de qualidade
São João, São João
São João em vez de chão batido a estrada
agora tá toda asfaltada
minha Toyota anda que anda
comprei novinha financiada
em vez de pé de serra a banda
agora vai tocar ciranda
com hip hop misturada
por exigência da moçada
a globalização que manda
São João, São João
São João vamo encontrar com tanta gente
a festa agora é diferente
que o mundo tá todo mudado
sobrou pouquinho do passado
uma pamonha um milho assado
uma quadrilha, uma quermesse
e o baião que permanece
a cada dia mais cotado
e o xaxado e o xaxado,
São João, São João
São João também tem outra novidade
a tal da eletricidade
seguida da telefonia
do celular estrela guia
de qualquer ponto a gente envia
mensagens se localizando
que tá pertim, que tá chegando,
já reservei pela Internet
ingressos para o show da Ivete
São João, São João
São João essa garota na carona
é manga-rosa temporona
que manga verde é muito dura
Gravação
Gilberto Gil – Fé na festa, 2010 – Gege
Certeza (Mão na mão)
Gilberto Gil
Perinho Santana
Falarei de amor
A não ser
Que eu saiba sua cor
Sua dureza
Seu cheiro, seu sabor
Sua certeza
E a certeza que se tem do amor
Nasce exatamente do calor
Da mão na mão
Do fogo no coração
Que amassa a massa
E assa o pão
Que a fome
Come e passa
Gravação
Guadalupe – Princesa do meu lugar, 1980 – GM Music