Músicas
Kalil
Gilberto Gil
Gente inteligente no Brasil
Dr. Roberto Kalil
Gente competente no Brasil
Dr. Roberto Kalil
Grande coração, cabeça à mil
Conhecimento, sentimento
Tudo no melhor padrão
Cardiologista de mão cheia
Pega artéria, solta veia
Volta e meia faz o morto ficar são
É que o cabra acredita em milagre
Com uma gota de vinagre
Já curou pra mais de cem
Tô falando sério
Pode procurar no sírio
Que o seu tratamento não tem pra ninguém
O doutor já tratou presidente
Senador e tanta gente
Que a gente nem sabe quem
Vem fazendo sempre a sua parte
Promovendo a sua arte
Medicina para o bem
E se o paciente diz que dói, que dói
O doutor então vira super-herói
É Batman lutando
Contra a super bactéria
Que afinal ele pega, mata e destrói
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Ok Ok Ok, 2018 – Gege
Comentário*
O mote básico dessa canção é o hábito que o dr. Roberto Kalil tem de se vestir de Batman. Ele tem uma coisa assim como o Dom [neto de Gil, filho de Bem Gil, tema de “Tartaruguê”] com as Tartarugas Ninja. Ele tem uma fantasia permanente que provavelmente, possivelmente, traz da infância, do Batman. Então ele ganha fantasias do Batman, compra fantasias do Batman, ele vai renovando o estoque dele de fantasias do Batman e se veste de Batman em ocasiões variadas, na casa dele, quando recepciona alguém na casa, quando faz uma festa e tudo mais.
Tem realmente algo de engraçado, jocoso e brincalhão nessa canção, que faz um elogio justo, justificável pela percepção que eu tenho da inteligência dele, da vivacidade dele, da sagacidade dele como médico, como curandeiro. E que fala da fama que ele tem de ser médico de várias celebridades, personalidades, políticos. “Kalil” mistura o mundo mágico e mítico do Batman com a ideia do curandeiro, do médico, daquele que cura.
A ideia do curandeirismo associado à medicina. Kalil não é um daqueles médicos tecnocráticos, pouco sensíveis. Ao contrário. Ele acredita em milagre. Tem um apreço muito grande pelas curas, pela possibilidade da cura milagrosa muito associada ao candomblé; ele gosta do candomblé. Então, é um médico curandeiro. Tem medicina e curandeirismo no modo dele trabalhar.
Da relação de “Kalil” com “Quatro pedacinhos”, que relata a ação da dra. Roberta Saretta; ambos trataram de Gil. — Os dois são associados. Ela, no período de meu tratamento, era assistente dele no setor cardiológico do hospital Sírio-Libanês. Ele era o meu médico no sentido geral, tomava conta de todo o conjunto das minhas enfermidades possíveis, e ela ajudava no sentido cardiológico. Ele contava com outros médicos para outras áreas nos cuidados médicos. Acho que até hoje ela é assistente dele. Ambos são paulistas. As duas canções vieram na mesma época.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Others Saw It
Gilberto Gil / Jorge Mautner
That that walt witman saw
Maiakowiski saw
Many others saw too
Something profoundly new
About manking in Brazil
Teddy Roosevelt as well
Rabindranah tagore
Stephan Zweig once again
All of them said amen
To that burst of life will
Roosevelt certenly felt
Our socio-cultural blend
He would consider it as a normal global trend
Mainly is his own country it should apply
He would try, melting pot, he would try
Even to pass a law his congress denied.
Rabindranah tagore preferred a prophecy
Bold enough he would say that Brazil is goinna be
A shore, a floor, a door into an other land
Wonderland, ye ye ye, motherland
Land of a man reborn on a mat made of sand
Maiakowiski heard
A whisperig mermaid
Softtly tell him about
A new mankind that is out there
There in the slums and blocks
Of these violent towns
South American Towns
African Towns around
Places for life unbound
For sunny sons of god
Places for life unbound
For tons and tons of blood
© Gege Edições Musicais
Gravação
Gilberto Gil – Banda Larga Cordel, 2008 – Gege
Comentário*
A versão de “Outros viram” eu fiz sozinho. Eu já havia feito uma versão pro inglês de uma música minha com Mautner, “O rouxinol”, pro disco Nightingale; canção que deu título ao disco que eu fiz então nos Estados Unidos com produção do Sérgio Mendes. Aí aproveitei pra fazer uma versão também dessa música, “Outros viram”, pra o inglês. Pra seguir uma tradição particular do meu trabalho com Jorge. Mas, no caso de “Others Saw It”, eu fiz já de posse, digamos, do cerne embrionário, da visão, da canção. E contando, de novo, com a facilitação da plasticidade linguística do inglês. Aí a tentação ficava irrecusável. E havia a perspectiva da ampliação do público: um público mundial, sendo o inglês uma língua de poder civilizatório muito grande. Aí eu fiz a versão, logo em seguida da canção. Ao gravar o disco, gravei a minha letra com Jorge e depois a minha versão em inglês.
A admiração misteriosa que alguns estrangeiros, entre os quais os três grandes poetas citados na canção, dedicaram ao Brasil e o sentido de vertê-la para o inglês. — Para dar a ideia da dimensão, da cobertura ampla que a noção auspiciosa de Brasil tem. A coisa de isso não ser uma particularidade nossa; não ser autorreferente. A noção de um Brasil redencionista, redentor — esse Cristo Redentor — não ser só uma visão nossa, mas ser uma visão planetária. A versão em inglês tinha um pouco a finalidade de comunicar isso.
Você já demonstrou sua competência para verter tanto do inglês para o português — como demonstram as recriações de “No Woman, No Cry” e de “I Just Called to Say I Love You” — como do inverso. — É o fascínio de transitar entre uma língua e outra e o encontro com essas facilidades maiores ou menores em relação à plasticidade linguística. Isso tudo é fascinante.
Os versos alusivos a Tagore exibem uma sonora sequência de vocábulos sucessivos terminados em “or” num verso (“a shore, a floor, a door”) seguida de outra com termos com “land” em função sufixal (“other land/Wonderland/motherland”), com uma brilhante conclusão imagética (“a man reborn on a mat made of sand”). — Essa imagem poética do homem deitado na areia.
E num “mat” feito de areia! “Mat” que é um termo usado hoje entre nós para designar o tapete usado na prática de ioga. Isso num trecho relacionado com um poeta indiano. — Exatamente. E as areias brancas das praias brasileiras… Tudo isso…
São liberdades que particularidades de uma língua como o inglês, de estrutura sintética, permitem, propiciando que na versão de uma canção escrita originalmente em português você use mais palavras do que — e até lance ideias não constantes — nos versos de partida. — Exatamente, mais ainda. Permite que eu fique mais livre para provocar o surgimento de outras palavras. Daí, em “Others Saw It”, eu pude fazer desdobramentos semânticos que não estavam nas propostas iniciais do Jorge. Pude viajar melhor.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Praga
Gilberto Gil
Estou pedindo a Deus, rogando praga,
Que tu fiques sem ônibus, sem luz, sem água
Trancado em casa com essa tal boneca, boneca, boneca…
Estou pedindo a Deus, rogando praga,
Que quando saias caia um baita de um pé d’água.
Que te encharque todo até cueca, cueca, cueca…
Estou pedindo a Deus, rogando praga,
Que esse nariz arrebitado que te estraga,
Te traga nada mais que uma meleca, meleca, meleca
Estou pedindo a Deus que alguém descubra
Esse maldito calabouço digital, onde tu vives enrolado
Com essa cobra, os dois a fornicar e falar mau.
Que a tua boca suja na internet, não me alfinete ou canivete
Nunca mais.
Estou pedindo a Deus no meu tablete
Que delete seus ataques virtuais.
Estou pedindo a Deus, rogando praga,
Vazando o meu ciúme, a minha grande magoa
Na música, no rádio, na televisão, na televisão, na televisão…
Estou pedindo a Deus, rogando praga,
Que tu deixastes os meus olhos tão rasos d’água,
Ao me deixares assim sem razão, sem razão, sem razão
Estou pedindo a Deus, rogando praga, que tu,
Que a tua bruxa e a tua estranha saga
Escapem pela luz do coração, coração, coração.
© Gege Edições Musicais
Gravação
Preta Gil – Sou como sou, 2012 – DGE Entertainment
Comentário*
Do porquê da canção, em defesa da filha Preta Gil, cantora, que vinha sendo atacada violentamente, com ofensas. — Eu fiz essa música pra ela, meio rogando praga a quem roga praga, rogando de volta. Foi no momento mais agudo desse surto nas redes sociais, de tudo que depois se tornou comum, lugar-comum perceptível por todo mundo, nas redes sociais. Ali era início ainda dessa onda. E eu achei interessante pontuar a questão usando o exemplo direto, pessoal, dela e trazendo as questões relativas a isso.
Há umas sonoridades ótimas extraídas das palavras, nas rimas. — Sim, e as ideias sobre o calabouço digital, o mundo digital como essa prisão, essa bolha de ar venenoso, esse lado, essa ideia da cobra. O que eu mais gosto é esse verbo “canivetar”. “Alfinetar” já existe, é comum. “Canivetar” eu nunca tinha visto. E fica bem aplicado aí. É uma das perolazinhas da letra.
As rimas em “ete” são muito boas porque “alfinete” e “canivete” rimam com “internet”, “tablete” e “delete”, e se há entre “alfinete” e “canivete” não só uma rima de som, mas também de sentido, o mesmo ocorre entre “internet”, “tablete” e “delete”. — Fechando as rimas com “delete”, de “deletar”, como esse verbo — que praticamente não existia, não era usado, antes da internet — se tornou tão característico do modus operandi do mundo digital. É que é um anglicismo.
Outra rima rica do ponto de vista da relação entre som e sentido é a que ocorre justamente em “eca”, nos finais das três primeiras estrofes, entre “boneca”, “cueca” e “meleca”, com os três termos exprimindo a ojeriza causada pelo sujeito. — É, em eca, que é bem a palavra que define o asco. “Eca!”
O sentido de “eca”, como substantivo ou interjeição, já está embutido em “boneca”, “cueca” e “meleca”. — Claro.
Embora se trate de uma praga contra uma praga, naturalmente essa praga é rogada de uma forma como o iniciante disso tudo não procederia (“Que a tua bruxa e a tua estranha saga/Escapem pela luz do coração”). — Sim. Rogando a praga pela redenção, usando o perdão pra isso.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Sob Pressão
Gilberto Gil e Ruy Guerra
Falta de ar, os gemidos , os ais,
a febre, seus fantasmas, seus terrores
sem pressa, passo a passo, mais e mais
a besta avança pelos corredores,
O médico caminha com cautela
estuda os segredos do inimigo
a enfermeira brava vence o medo
pouco lhe importa a extensão do perigo
O mundo está zaranza, ao Deus dará,
o povo não se entrega, é cabra cega,
é lá e cá, sem lei, sem mais aviso,
só sei que é preciso acreditar
Fazemos todos parte desta história
mesmo que os tontos blefem com a morte
num jogo de verdades e mentiras
um jogo duplo de azar e sorte
A ciência abre as suas asas,
a esperança à frente como um guia
com São João na reza, a pajelança,
a intervenção de Xangô na magia
Neste canto aqui da poesia,
casa da fantasia e da razão,
abre-se a porta, entra um novo dia,
pela janela a dentro, o coração
A Voz do bardo a bordo da alvorada
o sol da aurora secando o pulmão
” ano passado, se eu morri na Estrada,
vai que esse ano não morro mais não”
É pra montar no lombo da toada
desembarcar do trem da pandemia,
é pra fazer da rima arredondada
o rompante final de uma alegria.
“Vamos em frente, amigo, vamo embora
vamos tomar aquela talagada
vamos cantar que a vida é só agora
E sem cantar, amigo, a vida é nada!
© Gege Edições Musicais
Chico Buarque – voz
Gilberto Gil – voz e violão elétrico
Bem Gil – guitarra
Rafael Rocha – Bateria
Kiko Horta – Acordeon
Produção Musical: Bem Gil
Técnico de Gravação: Daniel Alcoforado
Roadie: Thiago Braga
Masterização e mixagem: Daniel Carvalho
Gravado no estúdio NAS NUVENS em agosto de 2020
Gravação
Gilberto Gil e Chico Buarque – single para especial da série Sob Pressão: Plantão Covid (uma coprodução da Rede Globo e da Conspiração Filmes), da Rede Globo, 2020
Comentário*
A letra resulta de um borrão que o Ruy me mandou e eu fui arrumando aqui, ali; tirando uma palavra, botando outra, propondo uma frase acolá. Fomos montando o texto ao tempo que eu ia propondo a música, e assim o fizemos a quatro mãos mesmo. A canção foi uma encomenda. O Andrucha Waddington, diretor da série Sob Pressão, propôs ao Chico Buarque que fizesse a música tema com o Ruy. O Chico, por razões de muita ocupação, de falta de tempo, disso e daquilo, propôs que eu a fizesse com o Ruy. Assim foi feito; mas eu chamei o Chico pra gravar. A música não é nada melancólica, é um baião com um tônus diferente, até um pouco divergente da temática da série, mas ao mesmo tempo denotando afinco na determinação de lutar contra a pandemia, de vencer a pandemia. Tem esse lado heroico, belicoso da luta, tipo: “Te entrega, Corisco! — Eu não me entrego, não!”.
Eu já tinha composto com o Ruy Guerra uma canção que nós abandonamos. Foi em 1965 ou 66, por aí. Ele passou um período em minha casa (eu casado com Belina, e com Narinha se não me engano recém-nascida à época), em São Paulo; ele, Torquato, mais alguns amigos. E naquela ocasião a gente fez uma canção que acabou se perdendo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Refloresta
Gilberto Gil
Manter em pé o que resta não basta
Que alguém virá derrubar o que resta
O jeito é convencer quem devasta
A respeitar a floresta
Manter em pé o que resta não basta
Que a moto-serra voraz faz a festa
O jeito é compreender que já basta
E replantar a floresta
Milhões de espécies, plantas e animais
Zumbidos, berros, latidos, tudo mais
Uivos, murmúrios, lamentos, ancestrais
Porque não deixamos nosso mundo em paz?
Além do morro deserto se alastra
Por toda terra da serra aos confins
Um todo oco um casco de canastra
Onde enterramos saguis
Manter em pé o que resta não basta
Já quase todo ouro verde se foi
Agora é hora de ser refloresta
Que o coração não destrói
Milhões de espécies, plantas e animais
Zumbidos, berros, latidos, tudo mais
Uivos, murmúrios, lamentos, ancestrais
Porque não deixamos nosso mundo em paz?
Manter em pé o que resta não basta
Que alguém virá derrubar o que resta
O jeito é convencer quem devasta
A respeitas a floresta
Manter em pé o que resta não basta
Já quase todo ouro verde se foi
Agora é hora de ser refloresta
Que o coração não destrói
Que o coração não destrói
E respeitar a floresta
E replantar a floresta
© Gege Edições Musicais
Ficha técnica:
Participação especial:
Bem Gil
Gilsons
Produtor musical:
Bem Gil
Músicos:
Bem Gil: Guitarra e sintetizador
Francisco Gil: Guitarra e voz
João Gil: Baixo e cavaquinho
José Gil: Bateria, percussão e samples
Gravação
Gilberto Gil, Bem Gil e Gilsons – Single, 2021 – Gege
Comentário*
Feita a pedido do Sebastião Salgado. Ele tem um projeto de reflorestamento nas terras da família, que ele recuperou, reflorestando — que ele refloresta. Ele me perguntou se eu não queria fazer uma “Refloresta”, eu que tinha feito “Refazenda”, “Refavela”, “Realce”. Eu parti daí [de uma retomada de “Refazenda” nos dias de hoje].
Um programa para evitar um futuro prevalentemente desastroso deve prever justamente um reflorestamento. — Manter em pé as florestas é uma das campanhas: a Amazônia, por exemplo; os resíduos florestais da Europa, em países como a Alemanha e os países nórdicos. Mas isso já não basta, como diz o primeiro verso da canção, porque temos consciência hoje do caráter devastador, destrutivo, predatório dos interesses industriais, agrícolas etc.; de madeireiros de um modo geral. Além de mantê-la em pé, é preciso replantar a floresta: está lá na segunda estrofe.
“Um casco de Canastra/ Onde enterramos saguins”. — Os tatus, os roedores, os macaquinhos, os bichinhos das matas, que vão sendo sacrificados, que vão perdendo seu habitat, que vão tendo que fugir pra lugares cada vez mais distantes, cada vez mais inóspitos, e perecem. Além da caça predatória etc. Tudo isso. O trecho é pra ilustrar essa ação predatória diária com seus vários modos de ser.
Eu canto “saguins”, rimando com “confins”. O nome do animal tanto pode ser sagui quanto saguim. Em algumas regiões da Bahia, por exemplo, é saguim. No dicionário, você encontra ambas as formas.
Enfim: “Manter em pé o que resta não basta…/Agora é hora de ser refloresta”. — Como se fosse um mote propagandístico do que consiste no lema da própria instituição, o Instituto Terra, do Salgado. Dizendo respeito ao compromisso profundo de nossa dimensão humana solidária com o resto, com as outras todas dimensões dos seres existentes.
Gênero. — Eu gosto dela por ser um samba rasgado, talvez um gênero inusitado em relação à expectativa de uma canção que tem a função de hino, de representação heráldica. Um samba talvez não fosse muito esperado que se fizesse, que uma canção como essa acabasse sendo um samba, mas ela é. “Refloresta” tem uma disposição positiva, esse aspecto de animação mesmo. “Vamos nos animar com isso.”
O despertar da minha consciência socioambiental, de grande incidência em meu trabalho como letrista, está associado a influências que sofri nos anos 1970 por obras como o seu álbum Refazenda. E eu observo que o processo de destruição do meio ambiente não surpreende tanto pessoas como você, que começaram a percebê-lo já naquele período, quanto quem passou a percebê-lo mais recentemente. — Hoje boa parte da sociedade mundial, a brasileira incluída, está pautada em relação ao meio ambiente e às várias questões envolvendo o meio ambiente. E tem ainda todo um contingente novo de convertidos recentemente ou a se converter, com jovens tomando conhecimento dessas questões todas e, com mais facilidade que os mais velhos, aderindo a essas pautas.
Nos últimos dez, quinze, vinte anos, eu venho observando gente descobrindo o que está acontecendo de ruim com a natureza, num processo que eu fui estimulado a constatar e acompanhar por figuras como você. — Pra mim isso chegou um pouco antes do que pra você. E ainda tem velhos anteriores a nós, de geração anterior à minha e à sua, pra quem o conhecimento, a temática ambiental está chegando agora. E ao mesmo tempo os jovens, no fluxo natural da renovação social, da chegada de novas gentes, também estão tomando consciência disso. Então tem gente mais velha tomando consciência e gente mais nova tomando consciência. E, pra essa gente mais nova, essa consciência está chegando numa idade anterior à que chegou pra nós.
Mas num momento histórico muito posterior; após um período em que o processo de destruição ambiental se acelerou.
— Mas também se acelerou a notícia, o conhecimento disso, as formas de ação contra isso. O movimento político ambiental cresceu, o conhecimento técnico ambiental científico cresceu. Essa canção é um exemplo disso. Alguém da minha geração que já foi tomado por essa questão algum tempo atrás começou a agir em relação a isso, criou um programa de reflorestamento para as velhas terras da família mineira em áreas que foram devastadas completamente pela agricultura, pela mineração, por isso, por aquilo, por aquilo outro, e essa consciência fez com que agisse. Hoje pessoas assim têm projetos e programas similares e já sabem que parceiros encontrar, que segmentos estão disponíveis a aderir, quem são os outros militantes que podem se associar. E aí ele me liga dizendo: “Vamos fazer uma música pra um projeto assim e tal”. E ele se liga no Refazenda lá atrás… As conexões são variadas, mas todas em função de uma pauta, que hoje existe, que não existia cinquenta anos atrás.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Superhomem, a canção
Gilberto Gil
Vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter
Que nada
Minha porção mulher, que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É que me faz viver
Quem dera
Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera
Ser o verão o apogeu da primavera
E só por ela ser
Quem sabe
O Superhomem venha nos restituir a glória
Mudando como um deus o curso da história
Por causa da mulher
Gravações
Gilberto Gil – Realce, 1979 – Warner Music
Caetano Veloso – Songbook Gilberto Gil, Vol. 3 – 1992
Caetano Veloso – Caetano Canta, 1997 – Universal Music
Arthur Moreira Lima – MPB Piano Collection, 1999 – Sony Music
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Gilberto Gil – Bandadois (Ao vivo), 2009 – Gege
Gilberto Gil e Caetano Veloso – Dois Amigos, Um Século de Música (Ao vivo), 2015 -Gege e Uns Produções Artísticas Ltda.
Daniela Mercury – O Axé, a Voz e o Violão (Ao Vivo), 2016 – Gege
Gilberto Gil – Em casa com os Gil, 2022 – Gege
Comentário*
Eu estava de passagem pelo Rio, indo para os Estados Unidos fazer a excursão do lançamento do Nightingale — um disco gravado lá, com produção do Sérgio Mendes —, em março e abril de 79, e gravar o disco Realce, ao final da excursão. Na ocasião eu estava morando na Bahia e não tinha casa no Rio, por isso estava hospedado na casa do Caetano. Como eu tinha que viajar logo cedo, na véspera da viagem eu me recolhi num quarto por volta de uma hora da manhã.
De repente eu ouvi uma zoada: era Caetano chegando da rua, falando muito, entusiasmado. Tinha assistido ao filme Super-Homem. Falava na sala com as pessoas, entre elas a Dedé [Dedé Veloso, mulher de Caetano à época]; eu fiquei curioso e me juntei ao grupo. Caetano estava empolgado com aquele momento lindo do filme, em que a namorada do Super-Homem morre no acidente de trem e ele volta o movimento de rotação da Terra para poder voltar o tempo e salvar a namorada. Com aquela capacidade extraordinária do Caetano de narrar um filme com todos os detalhes, você vê melhor o filme ouvindo a narrativa dele do que vendo o filme… Então eu vi o filme. Conversa vai, conversa vem, fomos dormir.
Mas eu não dormi. Estava impregnado da imagem do Super-Homem fazendo a Terra voltar por causa da mulher. Com essa ideia fixa na cabeça, levantei, acendi a luz, peguei o violão, o caderno, e comecei. Uma hora depois a canção estava lá, completa. No dia seguinte a mostrei ao Caetano; ele ficou contente: “Que linda!”. E eu viajei para os Estados Unidos. Fiz a excursão toda e, só quando cheguei a Los Angeles, um mês e tanto depois, para gravar o disco, foi que eu vi o filme. Durante a gravação, uma amiga americana, Olenka Wallac, que morava em Los Angeles na ocasião, me levou para ver.
A canção foi feita portanto com base na narrativa do Caetano. Como era Super-Homem — O filme, ficou “Super-Homem — A canção”; não tinha certeza se ia manter esse título ao publicá-la, mas mantive.
Das relações entre o poema e a melodia no processo de composição. — Como “Retiros espirituais”, “Super-Homem — A canção” é uma das poucas que eu fiz assim: música e letra ao mesmo tempo. É uma canção a serviço de uma letra, atrás de um sopro da poesia, mas com os versos também se submetendo a uma necessidade de respiração da canção. Há momentos em que a extensão do verso determina o estender-se da frase musical. Em outros, para se dar determinadas pausas e realizar o conceito de simetria e elegância, a extensão da frase poética se ajusta à do fraseado melódico.
Assim, depois de “Um dia”, há o corte e, lá adiante, “Que nada”, depois “Quem dera” e depois “Quem sabe” já surgem condicionados pelo “Um dia” do início. A frase musical de “Um dia” condicionou a extensão, o corte e a escolha dessas interjeições — “Que nada”, “Quem dera” e “Quem sabe”. (Mesmo no primeiro caso — “Um dia” —, também se reivindica ali um sentido de interjeição; embora na construção da frase, do ponto de vista gramatical, possa não ser considerado assim, do ponto de vista do canto é.)
Questões de métrica e simetria, e de mnemônica. — A música tem uma cadência descansada, escorrida, e umas quebras interessantes. A melodia muda, a métrica é regular (as notas se alteram, mas os tempos são iguais). Você tem quatro estrofes com versos de duas, catorze, doze e seis sílabas cada — assimétricas na distribuição interna, mas simétricas nas configurações finais. [A estrofe de abertura é ligeiramente diferente: o terceiro verso também apresenta catorze sílabas poéticas.]
Depois de fazer a primeira estrofe, eu decidi que aquilo seria um módulo que eu iria manter. Isso facilitou para que eu a fizesse rápido; nascida aquela célula, ela se reproduziu em mais três iguais. Dobrei o caderno, deixei o violão e fui dormir. Quando acordei pela manhã, a primeira coisa que fiz foi tocar, cantar e ver que a canção estava fixada. Se eu estivesse com um gravador, eu a teria gravado antes de dormir, para me assegurar (eu faço isso sempre hoje em dia, porque tenho cada vez menos memória). Como eu não estava, é provável que eu tenha usado algum recurso mnemônico, como fixar o número de notas ou sílabas das primeiras frases, ou então as cifras.
Sobre a “porção mulher”. — Muita gente confundia essa música como apologia à homossexualidade, e ela é o contrário. O que ela tem, de certa forma, é sem dúvida uma insinuação de androginia, um tema que me interessava muito na ocasião — me interessava revelar esse imbricamento entre homem e mulher, o feminino como complementação do masculino e vice-versa, masculino e feminino como duas qualidades essenciais ao ser humano. Eu tinha feito “Pai e mãe” antes, já abordara a questão, mais explicitamente da posição de ver o filho como o resultado do pai e da mãe. Em “Super-Homem — A canção”, a ideia central é a de que pai é mãe, ou seja, todo homem é mulher (e toda mulher é homem).
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999: “E você nunca teve dificuldade de assumir o seu lado feminino, já que nunca foi um homem machão. — Nunca fui e posso até ter estado ali na fronteira e ter sido ameaçado por isso. Mas eu tive a felicidade, num momento crucial da minha vida, de conhecer Caetano. “Que sempre teve a coragem de assumir, com arte, o seu feminino. — Pronto. É isso! Por isso me tornei discípulo dele. Em tantas coisas e nas fundamentais, sempre obedecia a uma necessidade de me deslocar com ele, acompanhando seus movimentos e aprendendo mesmo. Eu aprendi muita coisa. Quando eu digo Caetano, digo ele pessoa e tudo que vem com o seu mundo cultural e vivencial, os companheiros, a família… O mundo que aprendi com ele foi de uma arte e de uma cultura mais doce, o mundo de ternura e leveza. Fui naquela fronteira lá do ‘homem-homem’, de que eu tinha me aproximado na adolescência. Mas, na verdade, eu nunca tinha caído nela. “No colégio, era um menino que recusava a ‘virilidade’ fácil. Por exemplo: toda vez que um menino me desafiava pra briga — aquela coisa comum que acontece constantemente no recreio das escolas, de meninos empurrando os outros, xingando a mãe e provocando, num exercício natural da manifestação da virilidade —, tudo isso em mim era difuso e confuso, e eu já não gostava. Toda vez que um menino me desafiava pra briga, eu dava as costas e recusava aquele exercício. Às vezes, me xingavam: ‘Mulherzinha! Mulherzinha!’, ‘Fugiu, maricas!’. E eu ouvia aquilo e era ela, minha anima, quem falava de dentro: ‘Tenha paciência e resignação. Essas coisas são características minhas. É isso mesmo que você está ouvindo: mulherzinha!’. […] “Essa mulher sempre falou muito mais alto dentro de mim. E por isso que digo na canção: ‘É a porção melhor que trago em mim agora/ É que me faz viver’. Eu aprendi, ela foi me ensinando que aquilo que eu queria, aquilo com que meu coração se identificava, era sempre o lado que estava associado a ela e estava afiado à paz, ao apaziguamento e à recusa do conflito. A capacidade de ‘contornar’ estava ligada à visão contornada, aos contornos da mulher: os seios, a bunda e a tudo aquilo. Essas imagens foram crescendo comigo e eu fiquei, por isso mesmo, muito sexualmente hétero. Porque a mulher preencheu logo muito cedo esse lugar. Ela ficou muito entronizada dentro de mim e isso tem muito a ver também com minha infância, porque foram as mulheres que tomaram conta de mim muito cedo, minha mãe, minha avó e minha tia. Essa tríade tomou conta da minha cabeça. Primeiro, minha mãe, no seio materno; depois, minha avó, que me ensinou o verbo. E, por último, minha tia, que tomou conta do menino adolescente e o orientou.”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Soy loco por ti, América
Gilberto Gil
Capinan
Yo voy traer una mujer playera
Que su nombre sea Marti
Que su nombre sea Marti
Soy loco por ti de amores
Tenga como colores la espuma blanca de Latinoamérica
Y el cielo como bandera
Y el cielo como bandera
Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores
Sorriso de quase nuvem
Os rios, canções, o medo
O corpo cheio de estrelas
O corpo cheio de estrelas
Como se chama a amante
Desse país sem nome, esse tango, esse rancho,
esse povo, dizei-me, arde
O fogo de conhecê-la
O fogo de conhecê-la
Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores
El nombre del hombre muerto
Ya no se puede decirlo, quién sabe?
Antes que o dia arrebente
Antes que o dia arrebente
El nombre del hombre muerto
Antes que a definitiva noite se espalhe em Latinoamérica
El nombre del hombre es pueblo
El nombre del hombre es pueblo
Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores
Espero a manhã que cante
El nombre del hombre muerto
Não sejam palavras tristes
Soy loco por ti de amores
Um poema ainda existe
Com palmeiras, com trincheiras, canções de guerra,
quem sabe canções do mar
Ai, hasta te comover
Ai, hasta te comover
Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores
Estou aqui de passagem
Sei que adiante um dia vou morrer
De susto, de bala ou vício
De susto, de bala ou vício
Num precipício de luzes
Entre saudades, soluços, eu vou morrer de bruços
nos braços, nos olhos
Nos braços de uma mulher
Nos braços de uma mulher
Mais apaixonado ainda
Dentro dos braços da camponesa, guerrilheira,
manequim, ai de mim
Nos braços de quem me queira
Nos braços de quem me queira
Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores
Sonho triste
Gilberto Gil
Sonhei um sonho cheio de dor
Sonhei que você iria me deixar
Sonhei, meu amor, não quero mais sonhar
Vivi uma noite tristonha então
Sofreu sonhando o meu coração
Mas de manhã, ao despertar
Senti você junto de mim
E então chorei, chorei de amor
E o novo dia me sorriu
A noite foi, você ficou
O sonho triste se findou
Sonho molhado
Gilberto Gil
Faz muito tempo que eu não sei o que é me deixar molhar
Bem molhadinho, molhadinho de chuva
Faz muito tempo que eu não sei o que é pegar um toró
De tá na chuva quando a chuva cair
De não correr pra me abrigar, me cobrir
De ser assim uma limpeza total
De tá na rua e ser um banho
Na rua
Um banho
De ser igual quando a gente vai dormir
Que a gente sente alguém acariciar
Depois que passa o furacão de prazer
Ficar molhado e ser um sonho
Molhado
Um sonho
Eu vou dormir (enxutinho)
E acordo molhadinho de chuva
Gravações
As Frenéticas – Soltas na vida, 1979 – Atlantic
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
A Cor do Som – Songbook Gilberto Gil, Vol. 2, 1992 – Lumiar Discos
Comentário*
Todo o sentido orgasmático que tem o estar na rua e deixar a chuva bater, deixar aquela chuva espiritual, que purifica, bater na alma. A associação disso com as ejaculações espontâ- neas. A expressão wet dream significa isso: sonho com orgasmo. Tem um termo técnico, científico, para sonhos molhados: “poluções noturnas”.
É interessante que a canção começa falando de chuva, chuva mesmo, e termina falando dessa chuva metafórica. — Sexual, erótica. E a canção é interessante musicalmente também, pelo arpejo.
Essa foi gravada primeiro pelas Frenéticas. Foi uma encomenda delas? — Elas estavam garimpando repertório, me pediram, e eu fiz — essa e uma outra — pra elas.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Sol de Maria
Gilberto Gil
Uma estrelinha, a mais cadente do céu
Uma pedrinha de cascalho presa em seu colar
Pedra da rua aonde você nasceu
Se a vida resolveu que iria lhe chamar de Sol
Um raio vivo desse nosso astro rei
Que seja a luz do dia, sua guia, seu farol
Porque da noite, amor, da noite eu não sei
Que o mundo seja bom, que o mundo seja bom
pra nós
Seus pais, seus tios, seus primos, avós e bisavós
Que o mundo seja o que deseja sua geração
Todos que estão aqui e mais todos os que virão
Uma gotinha de orvalho pra lhe abençoar
Que toda água vem da fonte de Deus
Que o sol de Maria, que irradia seu chamar
Aqueça os sonhos seus
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
[Canção para a primeira bisneta, Sol de Maria, filha do cantor e compositor Francisco Gil, neta da Preta Gil.] “Uma pedrinha de cascalho presa em seu colar/ Pedra da rua em que você nasceu”: eu ainda estou devendo essa pedra a ela até hoje. Eu tenho que pegar essa pedra de cascalho da rua onde ela nasceu, e mandar incrustar num cordãozinho de ouro pra dar a ela. Estou devendo porque é uma promessa que está na canção. Que é pra já dizer a ela que a vida é isso, aquilo, aquilo outro e, mais que tudo, mistério. É uma oração, uma pequena ode ao nascimento dela, ao surgimento dela no mundo, à nova presença dela. A mais nova entre todos da família, o novo rebento ali. Ela tinha acabado de nascer, era pequenininha ainda, quando compus. Canção pra recém-nascido é pra saudar a chegada, a vinda de alguém, agradecendo à vida por lhe propiciar essa sucessão, essa corrente da sucessão, a prole.
Você teve vários descendentes, vários se dedicando à música.
— Tive oito filhos e, agora, doze netos e uma bisneta. É um monte de gente. Com exceção da Bela, a Maria e a Marília, os outros todos têm a ver com a música. A Nara, a primeira, e depois a Preta, o Bem e o José, além dos netos João, Francisco e agora a Flor… [Pedro, o filho que faleceu jovem, também era músico.]
A cobrança da Flor. — Quem me cobra muito uma canção pra ela é a Flor [filha da Bela Gil, que aos treze anos (em 2021) já está cantando e tocando, inclusive acompanhando o avô em turnê]. Ela cobra porque ela vê que tem canção pra os primos e tios. “Cadê a minha?”, cobra. Outro dia eu experimentei uma canção pra ela, cheguei a fazer, a finalizar, mas achei muito complexa demais, e acho que não estou disposto a realmente adotar essa can- ção. Acho que eu vou deixar o que fiz e fazer propriamente uma canção mais robusta pra ela uma hora dessa.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Só chamei porque te amo
Gilberto Gil
Nem ano bom
Nenhum sinal no céu
Nenhum Armagedom
Nenhuma data especial
Nenhum ET brincando aqui no meu quintal
Nada de mais, nada de mal
Ninguém comigo além da solidão
Nem mesmo um verso original
Pra te dizer e começar uma canção
Só chamei porque te amo
Só chamei porque é grande a paixão
Só chamei porque te amo
Lá bem fundo, fundo do meu coração
Nem carnaval
Nem São João
Nenhum balão no céu
Nem luar do sertão
Nenhuma foto no jornal
Nenhuma nota na coluna social
Nenhuma múmia se mexeu
Nenhum milagre na ciência aconteceu
Nenhum motivo, nem razão
Quando a saudade vem não tem explicação
Só chamei porque te amo
Só chamei porque é grande a paixão
Só chamei porque te amo
Lá bem fundo, fundo do meu coração
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil Em Concerto, 1987 – Warner Music
Canindé – História de Amor, 2005 – GRAVOmusic
Carla Visi – Carla Visita Gilberto Gil, 2008 – MZA Music
Maucha Adnet – Music for Picture Presents Revisionist History Vol I: 1984, 2009 – Amano Recordings
Comentário*
Na noite em que eu me encontrei com Stevie Wonder, em 85, em Washington (ele foi ao meu show e tocou gaita em “No Woman, No Cry”), quando eu lhe disse que tinha vertido “I Just Called to Say I Love You”, ele perguntou: “Mas por que você escolheu essa música para fazer uma versão? Eu acho que ela é tão banal”. Eu respondi: “Talvez tenha sido por isso mesmo, Stevie. Aliás, essas em geral são as que duram mais”. Ele admitiu que a canção é linda, mas reiterou um receio de que fosse demasiadamente vulgar.
Eu cantei a versão pra ele e expliquei o significado de algumas expressões — a tradução, paralela, tenta transportar livremente para equivalentes nossos as ocasiões festivas norte-americanas citadas no original. Ele gostou, achou legal. “Mas você acha que ela vai ficar?” — a preocupação dele era essa. “Claro, imagina, ela já tem até uma versão em português. É sinal de que ela vai ficar.”
A vontade de verter veio, primeiro, porque a música era dele, Stevie Wonder, uma pessoa que eu admiro muito e com quem ter algum laço aproximativo me é prazeroso, caro e interessante: eu quis tietá-lo. Além disso, a canção é abolerada, não tem os encadeamentos melódicos típicos da música americana e tem um gosto mais latino do que americano; isso também me aproximou mais dela.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Sítio do Picapau Amarelo
Gilberto Gil
Bananada de goiaba
Goiabada de marmelo
Sítio do Picapau Amarelo
Boneca de pano é gente
Sabugo de milho é gente
O sol nascente é tão belo
Sítio do Picapau Amarelo
Rios de prata piratas
Voo sideral na mata
Universo paralelo
Sítio do Picapau Amarelo
No país da fantasia
Num estado de euforia
Cidade Polichinelo
Sítio do Picapau Amarelo
Gravações
Gilberto Gil – lançado por ocasião da estreia da série homônima da Rede Globo, 1977
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Gilberto Gil – To Be Alive Is Good (Anos 80), 2002 – Warner Music
Gilberto Gil – Sítio do Picapau Amarelo, 2005 – Gege
Nicolas Krassik – Interpreta Gilberto Gil, 2021 – Gege
Gilberto Gil – Em Casa Com os Gil, 2022 – Gege
Gilberto Gil, Flor Gil e Galinha Pintadinha – Galinha Pintadinha, 2023 – Bromelia [dist. Tratore]
Comentário*
Essa foi feita de encomenda, para o programa homônimo da Rede Globo. Dori Caymmi, encarregado da trilha sonora, estava encomendando as músicas aos colegas, pedindo a um que fizesse a canção da Narizinho, a outro que fizesse a canção do Pedrinho, a outro que fizesse a canção do Visconde… Quando ele veio me pedir uma, eu perguntei: “Mas eu não posso fazer uma canção, um jingle, para o sítio?”. Ele respondeu: “Se você quiser, pode; se ficar legal, se couber, tudo bem”.
Eu preferi fazer uma canção que falasse de todos os personagens e do sítio todo, que ocupasse aquele espaço inteiro e nela coubesse Taubaté toda. Aí fui trazendo os personagens — boneca de pano, a Emília; sabugo de milho, o Sabugosa — e sempre procurando uma rima para “Sítio do Picapau Amarelo” ao final de cada parte, terminando com “cidade Polichinelo”, que é um personagem de um outro sítio, o polichinelo europeu.
A canção ficou muito popular por causa da série. Por nove, dez anos, todo dia, toda tarde, ela tocou, martelou. Mais tarde, após ela ter entrado no show Tropicália 2, a sua recuperação para o repertório do Unplugged foi um resultado dessa popularidade. Sua inclusão se deu a pedido do Lucas Santana, o flautista que tocava no grupo, que cresceu acompanhando o Sítio do Picapau Amarelo e que argumentou: “Ela é uma música da nossa geração, muito emblemática para nós. É como se fosse um button na nossa camisa, sabe? Então canta!”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Show de Me Esqueci
Gilberto Gil
Capinan
Com teu cone
Teu atômico
Combustível
Com teu jato
E parafuso
Ah, poderoso
Poderoso míssil
Quando for a uma estrela
Me leve daqui
Quando for a uma estrela
Me leve de Me Esqueci
Ha-ha-ha!
Hi-hi-hi!
Quero ir para uma estrela
Bem longe daqui
Ha-ha-ha!
Hi-hi-hi!
Bem longe de Me Esqueci
No tempo em que ouvi dizer
Que a bomba era um perigo
Eu fiquei tranquila e disse:
“Isso aqui não é comigo”
Mas um dia, dia, foi
Cata-pum-pum-pum
Lá se veio a guerra
Um e dois, já se foi
Três e quatro, lá se vão
Lá se foi um soldado
Lá se vai um batalhão
Mas um dia, dia, foi
Cata-pum-pum-pum
Um cogumelo azulado
Silenciou num segundo
Os industrializados
E lá se foi o presente
O que ficou é passado
Cata-pum
Cata-pum-pum-pum
Cata-pum
Cata-pum
Cata-pum-pum-pum
Eu ontem
Era mandado
Mas o mundo
Se acabou
Não tenho quem
Me mande rir
Ou chorar
Minha terra
Tem foguete
Onde canta o sabiá
Minha terra
Tem foguete
Onde canta o sabiá
Ha-ha-ha!
Hi-hi-hi!
Quero ir para uma estrela
Bem longe daqui
Ha-ha-ha!
Hi-hi-hi!
Bem longe de Me Esqueci
O foguete vai subir
Não encontro o meu radar
Estou cheia de culpa e de fome
Vim correndo perguntar
Engrenagem
Indestrutível
Onde está
Teu combustível?
Como vai
Você subir
Sem ninguém
Pra pilotar
E a contagem
Regressiva
Qual de nós pode contar?
Pode existir um índio
Ao lado de um foguete?
Quero mergulhar no céu
Quero ser um cosmonauta
Em vez de usar um penacho
Quero ter um capacete
Ah-ah-ah!
Ih-ih-ih!
Quero ir para uma estrela
Bem longe daqui
Ah-ah-ah!
Ih-ih-ih!
Bem longe de Me Esqueci
[ para o filme Brasil, Ano 2000 ]
Gravação
Gal Costa, Bruno Ferreira e Ênio Gonçalves – Brasil ano 2000 (filme), 1967 – Forma (1969)
Seu olhar
Gilberto Gil
Algo que me ilude
Como o cintilar
Da bola de gude
Parece conter
As nuvens do céu
As ondas brancas do mar
Astro em miniatura
Microestrutura estelar
Há no seu olhar
Algo surpreendente
Como o viajar
Da estrela cadente
Sempre faz tremer
Sempre faz pensar
Nos abismos da ilusão
Quando, como e onde
Vai parar meu coração?
Há no seu olhar
Algo de saudade
De um tempo ou lugar
Na eternidade
Eu quisera ter
Tantos anos-luz
Quantos fosse precisar
Pra cruzar o túnel
Do tempo do seu olhar
Gravação
Gilberto Gil – Dia Dorim Noite Neon, 1985 – Warner Music
Comentário*
Eu tinha chegado da Europa, ia gravar um disco, não tinha nenhuma música feita ainda e não sabia nem por onde começar. Uma noite sentei para compor. ‘Você tem de fazer alguma coisa para o disco’, pensei. Eu e Flora estávamos morando num pequeno apartamento que tínhamos comprado na Barra da Tijuca [no Rio]; à meia-noite ela se recolheu, foi dormir, e eu fiquei lá, meditando. Não tinha ideia nenhuma, nada na cabeça. Fiquei horas e horas, violão de um lado, caderno na frente, folha completamente em branco. ‘O que é que eu faço?’, eu pensava.
De meia-noite às quatro eu fiquei ali, sentado no chão, levantava de vez em quando, tomava água, eu ali quieto, pensando, meditando, tentando evitar a ansiedade, evitar o atropelamento da emergência, mas ao mesmo tempo tendo que fazer alguma coisa, tendo que acionar, que dar partida no motor, apertar a ignição, estava no meio da estrada, o carro parado, tinha que fazer a chave fazer o carro pegar, não adiantava apelar. Fiquei resignadamente esperando, até que lá pelas três e meia, quatro horas da manhã, começou a vir a ideia do olhar. Olhar… olhar… Aparecia vagamente aquele olhar… Tinha um pouco a ver com Flora; ‘essa música é para ela’, eu pensei, ‘o olhar dela’. Eu não tinha nada para fitar,
não havia nada no horizonte; então eu ‘vi’ o olhar dela e comecei a fazer uma descrição fantasiosa do seu olhar, e assim a canção saiu, saíram as três estrofes. A última eu comecei mas não terminei naquela noite, apenas no dia seguinte. Foi assim.
Essa música tem um significado particular, porque ela marca nitidamente um turning-point, um momento de indefinição. Eu tinha adiado a gravação de um disco, a princípio tinha ficado de compor músicas durante a excursão na Europa, não tinha conseguido, tinha chegado com o compromisso de compor para em seguida gravar. Aí fiz essa canção e, pronto, no dia seguinte fiz mais uma, depois outra…
Deslocamento inesperado – ‘Seu olhar’ é toda bem amarradinha e tem um trecho na segunda estrofe que eu particularmente adoro, quando a poesia faz um deslocamento e eu pergunto ‘quando, como e onde vai parar meu coração’ (‘parar’ relacionado tanto com paradeiro como com morrer: nos dois sentidos). Na primeira estrofe eu destaco também a imagem da bola de gude como se fosse o planeta Terra, empregada porque as bolas de gude se parecem com a Terra vista nas fotografias.
No abismos da ilusão – Eu não costumo usar ‘ilusão’ no significado corriqueiro. Eu uso a palavra preferentemente na acepção budista; é dessa forma que mais frequentemente ela aparece nas minhas letras. Nunca há a ‘ilusão’ no sentido do engano trivial, do equívoco comum, somente ‘ilusão’ no sentido do profundo engano (o que se associa com o viver). É assim em ‘Seu olhar’, como no final de ‘Cada tempo em seu lugar’, onde já aparece a palavra ‘desilusão’ (‘Solidão:/ Quando a desilusão chegar’) – ali há a conformidade com o estar só e com o morrer também. Já que temos o enigma da morte a esclarecer, só sendo a vida uma ilusão, poderá a morte ser alguma coisa; só o desiludir-se da vida pode fazer da morte alguma coisa.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Sete sílabas
Gilberto Gil
Perinho Santana
No primeiro verso da canção
Sem mesmo saber por que juntei
Qual o motivo, a razão
Irresponsavelmente até
Até porque não sei de nada
Sob o sol
Que você não saiba também
Quanto eu sei, tão mal, quanto eu sei
O que eu sei não vale um tostão
O que eu possa lhe dizer
Não é verdade nem salvação
O que eu possa lhe dizer de cor
Não tem cor de coração
Paradoxalmente até
Até porque não há palavras
Para Deus
O mel você tem que provar
Pra saber o doce que tem
As sílabas juntei em vão
Gravação
Lúcia Turnbull – Aroma, 1980 – EMI/ Odeon
Sereno
Gilberto Gil
Bem Gil
Vovó gostou do nome Sereno
Tem mais dois aqui
Tem mais dois aqui
Tem mais dois irmãos pra te curtir
Será que vem peixinho
Será que vem depois
Será que vem um pouco dos dois
Sereno quer dizer que você será
Será suave, ameno e tranquilo, será (?!)
E quando for mamar na mamãe, será
Não vai querer morder seu mamilo,
será (?!)
Gravações
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Gilberto Gil – Em Casa Com os Gil, 2022 – Gege
Comentário*
Essa é uma canção que o Bem propôs. Foi ele que escreveu: “Vovô gostou do nome Sereno”. Aí a Flora exigiu “vovó também gostou do nome Sereno”, e ele foi adiante: “Tem mais dois aqui […]”: porque a canção era para o terceiro filho dele. Eu só entrei na última parte (o resto é todo do Bem): “Sereno quer dizer que você será […]? Quando for mamar na mamãe, será?/ Não vai querer morder seu mamilo, será?”. Não foi assim. Ele mordia o mamilo dela. E de Sereno, no sentido mais exigente da palavra, ele não tem nada.
“Será que vem peixinho?” Porque ele estava pra nascer entre o signo de Peixes e o de Touro. “Será que vem um pouco dos dois?” Porque poderia ser cúspide, estar ali na fronteira.
[“Sereno”, para o neto, faz parte da série de temática “familiar”, da safra de composições feitas para o álbum OK OK OK, que inclui a dedicada à mulher (“Na real”), uma para outro neto (“Tartatuguê”) e uma para a bisneta, “Sol de Maria”. A obra ainda incluiu “Uma coisa bonitinha”, sobre uma vó e uma mãe, de 2003, recuperada e então aproveitada.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Serenata de teleco-teco
Gilberto Gil
Um violão gemeu num ritmo legal
E começou assim em plena madrugada
Um tamborim no samba de calçada
Visitando o sono da cidade
A lua a iluminar o grupo barulhento
Um guarda a reclamar silêncio
Silêncio pra quem dorme
E eu, que escuto ao longe
O som do meu telecoteco
Sinto o romantismo feito à porta
À porta de um boteco
Seresta de samba também tem suavidade
Samba também fala de saudade
Gravação
Gilberto Gil – Sua música, sua interpretação, 1963 – JS Discos
Jair Rodrigues e Elis Regina – Dois na Bossa, número 3, 1967 – Philips
Gilberto Gil – Salvador, 1961 – 1963, 2002 – Warner Music
Gilberto Gil – Retirante, 2010 – Discobertas
Comentário*
A propósito do termo “teleco-teco”, que não consta nos dicionários. — Acho que está ligado ao tamborim. Ao teleco- -teleco-teco-teco-teleco-teleco-teco-teco-teco-teteco do instrumento. À percepção do percutir da percussão, com os timbres saídos dos instrumentos. Tele-teleco-teco-teco-teco-teleco-teleco-teco, é o mais provável que seja, é a onomatopeia de um ritmo. Que foi viajando para vários contextos, letras de canções, crônicas, artigos jornalísticos. O teleco-teco foi se espalhando por aí.
Em certa altura, a letra diz: “E eu, que escuto ao longe/ O som do meu teleco-teco”. — É que é isso: o som do batuque. O som da batucada. A canção faz uma combinação de seresta e samba. — Sim, porque à época dessa composição eu frequentemente me juntava a grupos de músicos para fazer serestas no centro de Salvador, nas praças, nos lugares. Era uma atividade muito costumeira naquele momento; então a “serenata de teleco-teco” é por causa disso. Sou eu, ali no ponto, cantando nas reuniões, nos grupinhos.
No DVD Outros (doces) bárbaros, de 2002, Caetano vê pela primeira vez você tocando e cantando “Máquina de ritmo” e o associa a “Serenata de teleco-teco” como um tipo de samba que você não visitava fazia muito tempo. — Eu me lembro do dia que ele ouviu “Máquina de ritmo”: “Ah, parece aqueles sambas seus antigos, como ‘Serenata de teleco-teco’”. O que eu propriamente, pessoalmente, não sinto muito. Mas como esses sambas, especialmente esse primeiro, insinuaram um estilo composicional, um modo mais próprio de batida de violão, um sambar violonístico mais pessoal, eu acho que foi isso que acabou dando margem a que ele associasse “Serenata de teleco-teco” e “Máquina de ritmo” como do mesmo gênero.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Serafim
Gilberto Gil
O som do ferro sobre o ferro
Será como o berro do bezerro
Sangrado em agrado ao grande Ogum
Quando a mão tocar no tambor
Será pele sobre pele
Vida e morte para que se zele
Pelo orixá e pelo egum
Kabieci lê – vai cantando o ijexá pro pai Xangô
Eparrei, ora iêiê – pra Iansã e mãe Oxum
“Oba bi Olorum koozi”: como deus, não há nenhum
Será sempre axé
Será paz, será guerra, serafim
Através das travessuras de Exu
Apesar da travessia ruim
Há de ser assim
Há de ser sempre pedra sobre pedra
Há de ser tijolo sobre tijolo
E o consolo é saber que não tem fim
Kabieci lê – vai cantando o ijexá pro pai Xangô
Eparrei, ora iêiê – pra Iansã e mãe Oxum
“Oba bi Olorum koozi”: como deus, não há nenhum
Gravações
Gilberto Gil – Parabolicamará, 1991 – Warner Music
Gilberto Gil – To Be Alive Is Good (Anos 80), 2002 – Gege
Gilberto Gil – Serafim, 2023 – Gege
Comentário*
Religiosamente incorreta. — Quando “Serafim” foi lançada, eu cantava “carneiro” onde hoje está “bezerro” — um erro religioso: o carneiro é um animal rejeitado por Ogum e não podia ser referido em sua homenagem. A correção veio depois (no show Tropicália 2 eu fiz a substituição), por advertência do Caetano e da Flora, que havia se iniciado no candomblé. Eu tinha usado “carneiro” porque é um animal comumente sacrificado no candomblé.
Em “Lavagem do Bonfim” [canção composta para Gal Costa em 1993] também há algo que pode ser visto como uma incorreção, mas que é proposital. Ao citar o caruru — que não é uma comida para Oxalá — eu não estou me referindo ao caruru como uma comida específica de oferenda a um santo, mas ao caruru como o somatório das comidas de santo, que na Bahia chamam caruru. “Vou ao caruru da dona Fulana”, quer dizer, “lá vai ter abará, acarajé, vatapá, arroz, feijão, inhame etc.” “Caruru” ali está portanto no sentido transreligioso, profano, de “ceia”, “refeição”, comida de todos os santos.
Iorubá. — “Kabieci lê”: saudação para Xangô; “eparrei”: para Iansã; “ora iê, iê”: para Oxum. “Oba bi Olorum koozi”: a expressão eu vi inscrita num para-choque de caminhão em Lagos, acompanhada da tradução em inglês: “No king as God”. “Um dia ainda vou usar isso numa música”, pensei. Guardei na memória e usei, acompanhada da tradução (livre) em português [“Como Deus não há nenhum” — “nenhum” rimando com “Oxum”].
Da utopia da poesia de as palavras serem as coisas, e da relação de correspondência entre som e sentido, fundo e forma. — [“O som do ferro sobre o ferro será como o berro do bezerro”: as aliterações em “r” e “b” parecem exprimir aquilo a que a frase alude, estabelecendo biunivocamente a conformidade fônico-semântica, como se os versos não apenas falassem de um ruído: fossem o ruído.]
Os recursos sonoros empregados na construção dessa letra são mesmo muito fortes, de profunda inspiração. Tinha que ser assim, porque a música é sobre a potência — do axé, dos orixás.
[Um deles, Exu — aliás, aludido em outro bloco de carregada sonoridade, uma sucessão tríplice de “trs” e vês e esses —, é destacado pelo compositor:] Tenho por ele uma particular admiração. No sincretismo, Exu é assimilado ao demônio, visto como uma entidade do mal, mas não é nada disso. Embora traquino, travesso, ninguém, nenhum orixá trabalha nem vive sem ele. Exu é o eixo, o mensageiro; o que dá energia a tudo — como a luz solar para a Terra.
[Explicitação poética desse pensamento pode ser conferida numa música de Gil intitulada justamente “O eixo e Exu”, de 1996. E de 1995 é “Dança de Shiva”, outra canção em que a mesma referência reverenciadora à entidade é feita pelo compositor.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Sei que me amavas
Gilberto Gil
Giuseppe Carella
Alfredo Rapetti
Non dirme no
Os tempos vão
Foram-se os tempos e agora te calas
Tu já não falas se falo de amor
Se tens as malas prontas, não finjas, tudo acabou
Porque já não se vê
O teu sorriso ao amanhecer
Porque já não sou mais teu bem-querer
Se ami sai quando tutto finisce
Se ami sai come un brivido triste
Come in un film dalle scene già viste
Che se ne va oh no !
Se o amor acaba a ninguém cabe a culpa
Se o amor acaba não cabe desculpa
Agora aperte as minhas mãos, sim
Pra que reste o recordar, sim.
Amanhã.
E non si può
Chiudere gli occhi e far finta di niente
Come fai tu quano resti con me
E non trovi il coraggio di ddirmi che cosa c´è
Erá dentro di me come una notte d´inverno perché
Será da oggi in poi senza di te
Sei que me amavas e agora é tão tarde
Sei que me amavas e agora é saudade
No nosso filme o fim será triste
Não quero ver, oh não !
Sabes que é chegada a hora das dores
Dores de quando se acabam os amores
Agora aperte as minhas mãos, sim
pra que reste o recordas, sim
Amanhã
Não estarás
Mais aqui.
Versão de Gilberto Gil da música “Seamisai” de Giuseppe Carella e Alfredo Rapetti.
Sebastian
Gilberto Gil
Milton Nascimento
Diante de tua imagem
Tão castigada e tão bela
penso na tua cidade
Peço que olhes por ela
Cada parte do teu corpo
Cada flecha envenenada
Flechada por pura inveja
é um pedaço de bairro
é uma praça do Rio
Enchendo de horror quem passa
Oô cidade, oô menino
Que me ardem de paixão
Eu prefiro que essas flechas
Saltem pra minha canção
Livrem de dor meus amados
Que na cidade tranquila
Sarada cada ferida
Tudo se transforme em vida
Canteiro cheio de flores
pra que só chorem, querido,
Tu e a cidade, de amores
Se eu quiser falar com Deus
Gilberto Gil
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar
Gravações
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
Elis Regina – Elis Regina, 1982 – EMI/Odeon
Gal Costa – Songbook Gilberto Gil, Vol. 2, 1992 – Lumiar Discos sob licença exclusiva de Sony Music
Cesar Camargo Mariano e Pedro Mariano – Piano & Voz, 2003
Gilberto Gil – Eletroacústico (Ao vivo), 2004 – Warner Music
Maria Rita – Redescobrir, 2012 – Universal Music
Margareth Menezes – Para Gil & Caetano, 2015 – Estrela do Mar
Comentário*
“O Roberto me pediu uma canção; do que eu vou falar? Ele é tão religioso — e se eu quiser falar de Deus? E se eu quiser falar de falar com Deus?” Com esses pensamentos e inquirições feitos durante uma sesta, dei início a uma exaustiva enumeração: “Se eu quiser falar com Deus, tenho que isso, que aquilo, que aquilo outro”. E saí. À noite voltei e organizei as frases em três estrofes.
O que chegou a mim como tendo sido a reação dele, Roberto Carlos, foi que ele disse que aquela não era a ideia de Deus que ele tem. “O Deus desconhecido.” Ali, a configuração não é a de um Deus nítido, com um perfil claro, definido. A canção (mais filosofal, nesse sentido, do que religiosa) não é necessariamente sobre um Deus, mas sobre a realidade última; o vazio de Deus: o vazio-Deus.
Esse nada-Deus. — [Num dos encontros com Gil para as entrevistas que resultariam nas edições de seus comentários aqui apresentadas, o coordenador deste livro lhe entregou, a pedido do editor, Luiz Schwarcz, um exemplar do livro Uma história de Deus, da scholar norte-americana Karen Armstrong, uma ex-freira. Na mesma noite Gil começou a lê-lo, e na tarde seguinte leu para este interlocutor uma longa passagem que ele relacionou com o tema de “Se eu quiser falar com Deus”, que, por coincidência, tinha sido objeto das conversas no dia anterior.
Parte do trecho dizia: “Sem dúvida, [Deus] parece estar desaparecendo da vida de um número crescente de pessoas, sobretudo na Europa ocidental. Elas falam de um buraco em forma de Deus em suas consciências, onde antes Ele estava: onde antes havia Deus, hoje há um buraco em forma de Deus”. Segundo o compositor, essas observações da autora imediatamente o fizeram pensar na canção. “Alguma coisa desse Deus-buraco parece estar contida na letra de ‘Se eu quiser falar com Deus’”, disse, querendo se referir especialmente ao seu trecho final.]
O pós possível. — A criação do efeito veio por impulso, instintivamente: a sequência de “nadas” (treze no total) insinuando sucessivas camadas de buraco, criando a expectativa de algo e culminando com uma luz no fim (do túnel, da estrada, da vida), quer dizer, deixando entrever, embutida na morte, a possibilidade de realização de uma existência num plano diferente de tudo que se possa imaginar, mas que de qualquer maneira se imagina existir; a possibilidade de transmutação — com o desaparecimento do corpo físico, da entidade psíquica que chamamos de alma, inconsciente, eu — para outra coisa, outra forma de consciência de todo modo imprevisível, se não for mesmo nada.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Se eu morresse de saudade
Gilberto Gil
Todos iriam saber
Pelas ruas da cidade
Todos poderiam ver
Os estilhaços da alma
Os restos do coração
Queimado, pobre coitado
Pelo fogo da paixão
Se eu morresse de saudade
Mandariam lhe prender
O povo suspeitaria
Que o culpado foi você
Pois seu retrato estaria
Estampado em cada grão
Do que de mim restaria
Feito areia pelo chão
Fantasia, fantasia, sedução
Desde o dia
Que eu segurei sua mão
Se eu morresse de saudade
Nunca iria conhecer
O prazer da liberdade
O dia de lhe esquecer
Se eu morresse de saudade
Não poderia dizer
Que bom morrer de saudade
E de saudade viver
Gravações
Maria Bethânia – Maricotinha, 2001 – Sony Music
Maria Bethânia – Maricotinha (Ao vivo), 2002 – Biscoito Fino
Gilberto Gil e Maria Bethânia – Duetos 2, 2008 – Warner Music
Maria Bethânia – Noite Luzidia, 2012 – Biscoito Fino
Comentário*
[De novo o tema de saudade, de novo uma canção pra Bethânia e também de novo, ainda que obliquamente, a polícia no meio de um caso amoroso: “Mandariam lhe prender”.] “Se eu morresse de saudade” é uma canção prima de “A notícia”.
Rola um parentesco com “A notícia” porque também ocorre uma notícia aqui: a da morte de saudade. — É, mesmo teor imagético, ideológico. Um ataque ao corpo da interioridade, um atentado àquilo que pertence ao mundo interior; o amor, a paixão, o afeto.
Também é recorrente em vários momentos de minha obra esse revolver da minha interioridade como psiquismo e ao mesmo tempo fisicalidade. Essa ideia da junção permanente entre a dimensão psíquica, a dimensão do etéreo, a dimensão do pensamento, volatilidade pura e pensamento, sentimento como materialidade; incorporação, somatização.
“Pois seu retrato estaria/ Estampado em cada grão”. — Em cada grão o retrato do culpado: como as marcas, as digitais impressas em cada grão daquela areia. Isso eram também imagens vindas de filme onde super-heróis pulverizavam pessoas e coisas. Um pouco tirado dessa fantasia.
É interessante o fato de que a distância no tempo-espaço permita que a gente hoje se debruce sobre esse modus, esse campo poético, esse rosário diverso de fragmentos poéticos, e possa elaborar sobre eles essas memórias que não poderiam haver se não fosse o tempo tendo passado. São interpretações sobre essas canções que não poderiam ser, a não ser através da memória. São interpretações que são memoriais. É engraçado. Esse é um dos lados convidativos desse trabalho.
Você sente que isso ilumina pra você mesmo a compreensão que você tem da sua obra e quem sabe de si próprio? — Acende uma luz aqui, apaga outra ali. A luz na escuridão sempre.
Tem a ver com o envelhecer; com a transformação da espera pelas coisas num já estar nas coisas esperadas, já sê-las. Eu associo isso à velhice. À experiência. À coisa que eu guardo muito deste verso extraordinário do Caetano: “O homem velho é o rei dos animais”. A velhice traz essa capacidade de você poder reger sua orquestra inteira; você entra no mundo da regência mais plena, mais próxima do Absoluto. É nesse sentido que você pergunta se esse processo todo traz mais luz?
Sim, mais autoconhecimento, no exercício de reautoconhecer a obra. — Sobre meu próprio ser, sobre minha obra, tudo junto. Na verdade, estamos aqui falando da obra, interpretando, dando significados, desdobrando significados sobre ela, e no fundo, no fundo, sou eu sabendo cada vez mais de mim mesmo e me ignorando cada vez mais. Não tem outra coisa, não.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Umeboshi
Gilberto Gil
Como a flor de lótus é
Uma bomba poderosa
Como a pomba-gira é
Estimulante do apetite
Elixir contra a bronquite
Regulador da mulher
Base da saúde púbica
Saúde dois mil e única
Saída contra a maré
Umeboshi cura qualquer saúde
Umeboshi cura qualquer doença
Umeboshi cura tudo porque veio do Japão
Foi cultivada na terra
Onde teve uma explosão
“Eu quero paz e arroz
Amor é bom e vem depois”
Como disse o meu amigo Jorge muito Ben
No mais é Deus no céu da boca e nada mais
(Conheci meu amigo na beira do cais
Perguntei se ele iria
Ele disse: “O Senhor vai
Descer do céu na terra uma vez mais”
Eu pensei: “Quem diria”
Ele disse: “O Senhor vai”
Eu falei qualquer coisa
Ele sumiu do cais
Partiu dali para sempre
Para nunca mais
E quando eu chego em casa
Dá, pai
Dá, mãe
Dá cá
Dá cá
Dá cacun dá, dá, dá
Dá cacunda, dá, dá
Dá cacunda pro menino
Pro menino não chorar
Faz a cama da menina
Que a menina quer deitar
Dá cacunda, dá, pai
Dá cacunda, dá, mãe
Dá cacunda pro menino
Pro menino não chorar
Faz a cama da menina
Que a menina quer deitar)
Umeboshi
Ameixinha salgada
Três anos curtida
Três anos curada
No sal
De curtida
De curada
Cura
Cura qualquer doença
Cura qualquer saúde
Umeboshi
Ameixinha salgada
(Salgada paca)
Umeboshi é fruto da flor
Como a flor de lótus é
Uma bomba poderosa
Como a pomba-gira é
Gravações
Gilberto Gil – Cidade do Salvador, Vol. 1, 1973 – Gege
Gilberto Gil – Ao Vivo na USP, 1973 – Gege
Comentário*
Como “Jurubeba” e “Pílula de alho”, essa é mais uma das minhas canções que tratam dos alimentos com qualidades medicinais, do alimento como fonte de saúde, como remédio mesmo. “Umeboshi” foi composta para falar da eficácia da ameixa japonesa homônima, muito usada na macrobiótica.
“Umeboshi cura qualquer saúde”: o verso, aparentemente paradoxal, se relaciona com a ideia do professor Tomio Kikuchi [o introdutor da macrobiótica no Brasil], para quem “só tem saúde quem fica doente; sem doença, não há saúde”. Quer dizer, quem estiver se sentindo muito saudável, tem que se curar disso… A ideia remete para a visão do equilíbrio como pura dinâmica, não como situação estática.
“Eu quero paz e arroz/ Amor é bom e vem depois” é citação de uma música do Jorge Ben. “Deus no céu da boca” é uma referência ao hábito e à recomendação de deixar a umeboshi se dissolvendo na boca, quando se está tratando de algum problema com ela. O diálogo, na estrofe final, é um procedimento formal que será retomado depois em “Abra o olho”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Uma Coisa Bonitinha
Gilberto Gil
João Donato
Que é mamãe
Outra coisa ainda mais bonitinha
Que é vovó
Mamãe,
Numa blusa larga de tricô
Vovó,
Numa blusa justa de crochê
Mamãe,
Bem apertadinha no maiô
Vovó,
Num biquinizinho, que mulher
Mamãe,
Um rostinho Michelangelo
Vovó,
Um corpinho estilo Caribé
Mamãe,
Usuária assídua do metrô
Vovó
Bicicleta sempre que puder
Mamãe,
Elegante sempre na maior
Vovó,
Escrachada, hippie, bem lelé
Mamãe,
Materialista de bom tom
Vovó,
Idealista da cabeça ao pé
Mamãe,
Eu já sei o que que eu vou fazer
Vovó,
Vou acabar morando com você
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
Uma música que eu fiz com o Donato um dia na casa dele, há uns vinte e cinco anos [em 1997, segundo o pesquisador Marcelo Fróes]. A música, daqueles minimalismos típicos do Donato. A gente ficou nela durante horas, brincando, improvisando, derivando melodias, e ele a gravou no cassete, que se perdeu completamente. Um dia o Marcelo Fróes encontrou essa fita e me deu. Eu disse: “Olha! Vou brincar com isso aqui”. A mamãe e a vovó. Dá um contraste de gerações… Já havia a melodia toda, eu fui desenvolvendo a letra. A mamãe bonitinha e a coisa ainda mais bonitinha que é a vovó. E vovó então é aquela figura extraordinária, mais avançada do que a filha. E as imagens vão surgindo… No imaginário, a filha é gorduchinha, e a vó não: é toda esbelta ainda, apesar da idade. E prefere andar de bicicleta. No fim, é um pouco como se o filho almejasse que a vó fosse a sua mãe. A canção recompõe, restaura o mito da vó como a mãe maior, a mãe qualificada. O neto é o filho sem problemas, então a vó é a mãe sem problemas. Nesse sentido. A filha ainda nutre uma racionalidade, um enquadramento mínimo num modelo; é mais modelada. E a vó é solta, já está liberada. No fim, a declaração do filho: “Tudo bem, minha mãe, eu agradeço, você me criou, muito legal, mas minha noção mais paradisíaca de espaço doméstico, digamos assim, é a casa da vó. Então, já sei o que eu vou fazer: vou morar com a vovó”.
Já que eu me dispus a estender aquele refrão de anos antes que a gente tinha feito numa brincadeira, numa tarde, pensei: como é que eu vou estender isso aqui? Como é que eu vou elaborar essa mãe e essa vó aqui? E eu fiz a letra pensando um pouco em mim e no Donato como irmãos, filhos dessa mãe, netos dessa avó — e no lado espontaneísta, aberto, nada enrijecido, da música do Donato, dentro de uma tradição de várias canções de brincadeira, quase infantis, juvenis, nossas. Esses sentimentos todos foram chegando ali, na hora de ampliar a canção para além do refrão. E eu fui fazendo essa livre associação de contrastes.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Se ela me chamasse
Gilberto Gil
Atirar-me em seus braços, e em prantos
Lhe diria que a amo, que a adoro
Que ela é minha vida, a musa dos meus sonhos
Das preces que elevo, das canções que canto
Se ela me chamasse, eu iria correndo
Atirar-me em seus braços ardentes
E a sonhar, loucamente extasiado
Contemplaria aquele rostinho tão amado
E morreria em seus braços, feliz e contente
Um trem para as estrelas
Gilberto Gil
Cazuza
Vejo o Cristo, da janela
O sol apagou sua luz
E o povo lá embaixo espera
Nas filas dos pontos de ônibus
Procurando aonde ir
São todos seus cicerones
Correm pra não desistir
Dos seus salários de fome
É a esperança que eles têm
Nesse filme como extras
Todos querem se dar bem
Num trem pras estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas
Meu nego
Num trem pras estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas
Meu nego
Estranho, teu Cristo, Rio
Que olha tão longe, além
Tem os braços sempre abertos
Mas sem proteger ninguém
Eu vou forrar as paredes
Do meu quarto de miséria
Com manchetes de jornal
Pra ver que não é nada sério
Eu vou dar o meu desprezo
Pra você que me ensinou
Que a tristeza é uma maneira
Da gente se salvar depois
Num trem pras estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas
Meu nego
Num trem pras estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas
Meu nego
Gravação
Gilberto Gil e Cazuza – Um trem para as estrelas (filme de Cacá Diegues, 1987) – Globo/Som Livre
Saudade
Gilberto Gil
Fantasma de minha vida
Consequência da despedida
Que entre nós há de vir
Saudade
Triste resto de esperança
Saudade, amarga lembrança
Do louco amor que vivi
Agora
Quando já tenho no peito
A dor de um sonho desfeito
E o presságio da solidão
Quisera
Nunca tê-la encontrado
Para não ser ao seu lado
Candidato à desilusão
Um sonho
Gilberto Gil
Que eu estava certo dia
Num congresso mundial
Discutindo economia
Argumentava
Em favor de mais trabalho
Mais emprego, mais esforço
Mais controle, mais-valia
Falei de pólos
Industriais, de energia
Demonstrei de mil maneiras
Como que um país crescia
E me bati
Pela pujança econômica
Baseada na tônica
Da tecnologia
Apresentei
Estatísticas e gráficos
Demonstrando os maléficos
Efeitos da teoria
Principalmente
A do lazer, do descanso
Da ampliação do espaço
Cultural da poesia
Disse por fim
Para todos os presentes
Que um país só vai pra frente
Se trabalhar todo dia
Estava certo
De que tudo o que eu dizia
Representava a verdade
Pra todo mundo que ouvia
Foi quando um velho
Levantou-se da cadeira
E saiu assoviando
Uma triste melodia
Que parecia
Um prelúdio bachiano
Um frevo pernambucano
Um choro do Pixinguinha
E no salão
Todas as bocas sorriram
Todos os olhos me olharam
Todos os homens saíram
Um por um
Um por um
Um por um
Um por um
Fiquei ali
Naquele salão vazio
De repente senti frio
Reparei: estava nu
Me despertei
Assustado e ainda tonto
Me levantei e fui de pronto
Pra calçada ver o céu azul
Os estudantes
E operários que passavam
Davam risada e gritavam:
“Viva o índio do Xingu!
“Viva o índio do Xingu!
Viva o índio do Xingu!
Viva o índio do Xingu!
Viva o índio do Xingu!”
Gravação
Gilberto Gil – Parabolicamará, 1991 – Warner Music
Comentário*
Modas de viola em geral têm uma narrativa linear, contam uma história com começo, meio e fim muito nítidos, são românticas, sentimentais, narram uma vicissitude amorosa, uma mulher que foi embora ou um crime passional, alguém que deu um tiro no outro ou histórias ligadas à família, casos de dificuldades na família, o filho que vai embora para trabalhar, a mãe que morre, alguém na cancela da estrada, o menino da porteira.
“Um sonho” é talvez minha única moda de viola, estruturada em quadras como manda o figurino clássico, mas com uma linguagem e um desenrolar de poesia de cordel. É maluca. A entrada do velho na história vira o discurso de ponta-cabeça, o sentido espiritual se sobrepondo ao materialista pragmático; na letra, passa a viger o contraponto artístico, o sonho mesmo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Um samba
Gilberto Gil
João Donato
O prazer à sombra num sol de verão
Repouso
No samba
Não ouso pedir mais do meu violão
Que as asas
De um samba
Prum voo na nave da inspiração
E um pouso
Suave
No telhado estrelado de um barracão
Da imaginação
Um samba
Tomara que as eras que ainda virão
E as feras
Uivantes
Dos alto-falantes da nova canção
Devorem
De um samba
As vísceras cruas de fogo e paixão
E as ruas
Repletas
Celebrem tambores de um mundo pagão
De um samba
Gravação
Leila Pinheiro – Olho nu, 1986 – Philips
Comentário*
O Donato me mandou uma fitinha com essa música, e eu escrevi a letra pra ela quando estava fazendo “Punk da periferia”; no meio do processo de uma série de canções que eu estava fazendo na época. É uma exortação aos roqueiros, aos novos músicos, aos novos tempos. “Ouçam o samba, vejam o samba.” Uma mensagem para as novas gerações: “As feras uivantes dos alto-falantes da nova canção”. O endereçamento é muito explícito: a canção está falando para os meninos.
Que já estavam intensificando seu gosto, seu consumo de rock, no Brasil. — Isso mesmo. E eu, inclusive, também pertencendo a essa deriva. Mas ao mesmo tempo ali ainda apegado à paixão pelo samba, pelos tambores. Pelas “vísceras cruas” que eu digo, de algo irrecusável, que é… samba-rock. Trata-se de uma apologia ao samba-rock.
A primeira estrofe ainda não alude ao rock; fala do samba. E cita, no último verso, “Chão de estrelas”. — Exatamente. Contemplando o universo original, cultural do samba, a cultura de onde ele vem, no Brasil, a música se refere a “Chão de estrelas”. E na segunda parte faz a ponte com “os alto-falantes”. Samba- -rock. Subtítulo: “Samba-rock”.
A composição não difere de outras do Donato, como “Lugar comum”, de uma arquitetura mais sintética, econômica? — Sim… mas ao mesmo tempo são justaposições, colagens, montagens, edições de frases que são muito dele [Gil mimetiza com palmas e onomatopeia — pambambam pambambam pambumbê — a música de Donato]. São aquele jeito dele de buscar beber da tradição. À moda de Jobim também. O que talvez dê a sensação de distanciamento da arquitetura composicional da música é a própria letra.
Ah, sim. Porque ela tem frases relativamente longas; são vá- rios versos que compõem uma sentença só; o sentido de um verso vai se completando no seguinte. — Isso mesmo. São versos mais do que dodecassilábicos. Têm quinze, dezesseis sílabas… Eles vão dando a sensação de uma discursividade musical que, na verdade, é da própria letra; mais da letra do que da música.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Satisfação
Gilberto Gil
Agora olhe pro chão
Agora repare a luz
Que vem lá do caminhão
Rolling’s tão tocando bem
Rolling’s tão tocando mal
Rolling’s tão tocando mil
Na boca do pessoal
Posso ter não satisfação
Posso ter não satisfação
Sarro
Gilberto Gil
Jorge Ben Jor
Um riacho, um caminho
Gilberto Gil
Dominguinhos
Foram tantos os enganos, foram tais
As ilusões cruéis, as confusões banais
Foram tantos olhos de crianças, tantos risos de esperança
Que no fundo tanto faz
Se voltarão depois, se ficarão pra trás
Dito assim, parece que o coração esquece
O que merece da lembrança gratidão
Não é isso não, não é isso não.
Veja, o coração tem seu capricho, mesmo
O que já foi pro lixo da memoria, nele não
Pois nele a história está no cofre da emoção
Há por exemplo, cenas que ainda contemplo, como um telão
Pra sentir que era assim
Mesmo assim, bem assim
Aquele riacho sempre, sempre indo
Aquele caminho sempre a me levar
Então eu vim parar, parar bem aqui.
No entanto, quase tudo que eu canto
Não tem canto certo, não tem tempo nem lugar
É pra você ouvir, é pra você sonhar
O riacho, meu riacho, seu riacho
Meu caminho, seu caminho, tudo só canção
Só pra você guardar dentro do coração
Gravação
Gilberto Gil – Fé na festa (Ao vivo), 2010 – Gege
Comentário*
Dominguinhos já chegou com esse título. Ele fez a música e deu nome a ela. Ele disse: “Nego veio, é um riacho, um caminho. Escreve aí”. Pronto, aí foi só desenvolver, assumir a persona dele. Assumir “um riacho, um caminho” como duas instâncias dos vários instantes dele. A melodia já propunha todos os tais caminhos, já “eram” um córrego, já tinha esse fluir do riacho, essa ideia de desaguar, de tudo isso.
“E no fundo tanto faz/ Se voltarão depois, se ficarão pra trás”: de novo o jogo contrastante que eu gosto de manter: nada anda só pra frente, nada vai só adiante; a história de passado e futuro de que já falamos [a propósito de “Não tenho medo da vida” (além de “Estrela azul do céu”)]. E havia ainda o fato de que ele, também como o Rogério, tinha o viver já fragilizado. Morreu pouco tempo depois. Mas ouviu a canção e chegou a tocá-la e cantá-la comigo, na gravação do Fé na festa ao vivo. Foi a última vez que nós cantamos, tocamos juntos.
“Quase tudo que eu canto/Não tem canto certo/Não tem tempo, nem lugar”: a ideia do canto como um lugar também. [A letra] Falando do canto cantar e o canto lugar. Aquele lugar angular entre duas paredes.
Você fez a letra procurando incorporar a vivência do Dominguinhos. Do músico, compositor e cantor que vai viajando e volta, volta aos mesmos lugares. — Do retirante… É tudo isso.
Do músico falando com seu ouvinte também. — Da construção da sucessão de frases, do fraseado, da narrativa da canção. Toda a letra já era inspirada no fio melódico qual um riacho.
Como era compor com o Dominguinhos? — Era muito interessante. Desde “Lamento sertanejo”, a primeira. Depois “Abri a porta” [lançada por A Cor do Som]. Foram poucas e boas canções com ele. E teve as que não cheguei a compor, mas que “criei”, como se dizia antigamente, “fiz a criação”. “Xodó” e “Tenho sede”, ambas dele com a Anastácia, mas que eu “criei”, isto é, gravei-as.
Dois parceiros seus que se sobressaem como grandes músicos, mas que são muito diferentes, são, justamente, o Dominguinhos e o João Donato. — Muito diferentes. Mas ambos com essa densidade propriamente musical, sem necessidade de desbordar pra outro campo que não a melodia, a harmonia e o ritmo. Todos satisfeitos com a sua própria condição de músico, sua capacidade de desempenhar.
Os dois não faziam letra nunca. Só música mesmo. Mas quanta música! — Muita música, incrível!
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Zumbi (A felicidade guerreira)
Gilberto Gil
Waly Salomão
Ogunhê, ferreiro-mor capitão
Da capitania da minha cabeça
Mandai a alforria pro meu coração
Minha espada espalha o sol da guerra
Rompe mato, varre céus e terra
A felicidade do negro é uma felicidade guerreira
Do maracatu, do maculelê e do moleque bamba
Minha espada espalha o sol da guerra
Meu quilombo incandescendo a serra
Tal e qual o leque, o sapateado do mestre-escola de samba
Tombo-de-ladeira, rabo-de-arraia, fogo-de-liamba
Em cada estalo, em todo estopim, no pó do motim
Em cada intervalo da guerra sem fim
Eu canto, eu canto, eu canto, eu canto, eu canto, eu canto assim:
A felicidade do negro é uma felicidade guerreira!
A felicidade do negro é uma felicidade guerreira!
A felicidade do negro é uma felicidade guerreira!
Brasil, meu Brasil brasileiro
Meu grande terreiro, meu berço e nação
Zumbi protetor, guardião padroeiro
Mandai a alforria pro meu coração
Sargento Pimenta e a Banda Solidão
Gilberto Gil
Sua banda pra tocar pra nós
Hoje já tanto tempo depois
Sempre o mesmo pique e solidez
Agora, aqui, mais uma vez
Apresentamos pra vocês
Sargento Pimenta e a Banda Solidão
Sargento Pimenta e a Solidão
Que todos curtam pra valer
Sargento Pimenta e a Solidão
Até o dia amanhecer
Sargento Pimenta, Sargento Pimenta
Sargento Pimenta e a Banda Solidão
Que maravilha estar aqui
É grande a emoção
Plateia tão bonita assim
Eu até mesmo levaria pra casa, no fim
Mais uma coisa só para avisar
Antes da nossa banda atacar
É que já na primeira canção
Todos devem cantar o refrão
Sem mais cascatas, com vocês
O que arrebata a multidão:
Sargento Pimenta e a banda Solidão
[ Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band,
de John Lennon e Paul McCartney ]
Gravação
A Cor do Som – Magia Tropical, 1982 – Elektra
Comentário*
Banda é onde a música começa para mim: meu fascínio por música surgiu na minha infância com meu fascínio por banda. Uma das pontas importantes da minha história foram as alvoradas com os músicos, todos fardados, da filarmônica de Ituaçu — a Lira Ituaçuense — tocando pelas ruas. Eu acordava sozinho às quatro, cinco horas da manhã, e ia para a porta ver a banda passar. Por isso fiquei encantado com “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”: foi como se a canção tivesse sido feita para mim; como se fosse uma rememora- ção de coisas vividas por mim em minha cidade. Eu achava incrível o mundo das bandas e achei incrível os Beatles terem feito uma música para um músico de banda da mocidade deles, ainda que imaginário (pelo menos, eu nunca cheguei a saber se o sargento Pimenta existiu mesmo). “Sgt. Pepper’s” era demasiadamente emblemática desse mundo. A canção, uma homenagem às bandas, fala muito a todos nós, músicos; e a mim particularmente: Pepper, um músico de banda de coreto, era igual ao Sinésio, fogueteiro de Ituaçu, na minha visão. [Eis por que um dia Gil acabou vertendo a canção — que acabou, naturalmente, sendo gravada por uma banda: A Cor do Som.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Zumbi
Gilberto Gil
Carlinhos Brown
Sambadô, donde tá seu Zumbi?
Sambadô, donde tá seu Zumbi?
O pessoal bota a mão na cabeça
O pessoal
Sambadô tá no batuquejê
Sambadô tá no batuquejê
Sambadô tá no batuquejê
O pessoal tira a mão da cabeça
O pessoal
…………………………
Zumbi (zum!) nasceu
Zumbi (zum!) criou
Zumbi (zum!) lutou
Zumbi (zum!) morreu
(Zum!
Zum!
Zum!
Zum!)
Zumbi (zum!)
Zumbi (zum!)
Zumbi (zum!)
Zumbi
[ para o balé Z ]
Zoilógico
Gilberto Gil
Capinan
Ilógico
Logo, sou
Zoológico
Ilógico
Logo, sou
O menino que abriu a porta das feras
No dia em que todas as famílias visitavam o Zoo
O Zoo, o Zoo
O Zoo, o Zoo
O Zoo
Zoo, Zoo, Zoo
Zoológico
Ilógico
Logo, sou
Zoológico
Ilógico
Logo, sou
O leão que está solto nas ruas
E as garras soltas no ar
Logo, sou
O menino que abriu a porta do Zoo
A porta do Zoo
A porta do Zoo
A porta do Zoo
Zoo, Zoo, Zoo
Zoológico
Ilógico
Logo, sou
Zoológico
Ilógico
Logo, sou
O céu
Logo, sou
O sol
Logo, sou
A girafa comendo o jardim sobre o muro
Logo, sou
Apenas a garrafa de um casco verde-escuro
Logo, sou
Sou a serpente
Logo, sou
O carneiro manso
Logo, sou
Santa Tereza
Logo, sou
Santo Antônio resplandescente
Logo, sou
Santo e demônio
Logo, sou
A feros, o zero, a cidade
Logo, sou
A ferocidade
Logo, sou
Quem fere a cidade
Logo, sou
A felicidade
Logo, sou
O leão que está solto nas ruas
E as garras soltas no ar
Logo, sou
O menino que abriu a porta do Zoo
A porta do Zoo
A porta do Zoo
A porta do Zoo
Zoo, Zoo, Zoo
Zoológico
Ilógico
Logo, sou
Zoológico
Ilógico
Logo, sou
Logo, sou eu
Logo, ninguém morreu
Logo, sou eu
Aquilo que eu não sou
Logo, sou eu
Alguém aquém do bem
Logo, sou eu
Tudo aquilo que eu não sou
Logo, sou eu
Seja lá o que for
Logo, sou eu
Que estou no Zoo
Logo, sou eu
Que estou no Zoo
Logo, sou eu
Que estou no Zoo
Zoo, Zoo, Zoo
Zoológico
Ilógico
Logo, sou
Zoológico
Ilógico
Logo, sou
Gravação
Gal Costa – Gal Costa, 1971 – Philips
Zabelê
Gilberto Gil
Torquato Neto
Minha zabelê
Toda meia-noite eu sonho com você
Se você duvida, eu vou sonhar pra você ver
Minha sabiá
Vem me dizer, por favor
O quanto que eu devo amar
Pra nunca morrer de amor
Minha zabelê
Vem correndo me dizer
Por que eu sonho toda noite
E sonho só com você
Se você não me acredita
Vem pra cá, vou lhe mostrar
Que riso largo é o meu sonho
Quando eu sonho com você
Mas anda logo
Vem que a noite já não tarda a chegar
Vem correndo pro meu sonho escutar
Que eu sonho falando alto
Com você no meu sonhar
Yamandu
Gilberto Gil
Tem que ouvir o Yamandu
Com seu violão ligeiro
Parece que é pressa
Mas é só suingue à beça
E bossa e vibração no corpo inteiro
Só quem segue o Yamandu
É o frisson do pandeiro
Vê se pega o Yamandu, lá vai o Yamandu
Não deu, Yamandu chegou primeiro
Violão brejeiro corre assim
Viva o brasileiro até o fim
Veja as mãos, ouça o fraseado
Parece que é só bolado e treinado, ensaiado, e não é
Tem que ouvir o Yamandu
Com seu violão ligeiro
Vê se pega o Yamandu
Lá vai o Yamandu, não deu
Yamandu chegou primeiro
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
[“Yamandu”: mais uma canção de Gil pra um músico, um artista da música brasileira, ele que já cantou João, Caymmi, Tom, Milton, Alf.] Nesse caso foi originalmente uma canção instrumental, um choro suave, bossa-novístico. Só em seguida me ocorreu oferecer essa música a Yamandu. Como processar isso? Veio a ideia de falar da própria agilidade, da habilidade dele, da sua destreza como instrumentista; de fazer uma defesa dessa qualidade contra uma desqualificação, porque eu já ouvi certas críticas ao fato de ele ser muito ligeiro, muito rápido. Foi o que fiz, louvando a inteireza do talento; a relação entre a capacidade técnica e a vibração inspiradora. “Yamandu chegou primeiro”: pra dar uma concretude à ideia da ligeireza, da rapidez, da vertigem virtuosística do instrumentista veloz que ele é. E inspirado mesmo, porque ele é música pura, sensorialidade profunda, sensualidade, vivacidade. Não é mera técnica, é para além disso: ele transcende esse campo. É um grande músico, tem uma primazia, é o primeiro da classe.
Eu tinha conhecido Yamandu num episódio engraçado, interessante. Eu fui fazer um show em Florianópolis e fiquei hospedado no mesmo hotel em que ele estava. À tarde, eu chegando ao meu quarto, ouço um dedilhado de violão. Me deu aquela curiosidade. Dois ou três quartos mais adiante a porta aberta estava aberta, e ele tocando. Cheguei à porta, ele me reconheceu: “Oi, Gil!”, nós nos saudamos e ficamos a noite toda tocando. Depois disso várias outras vezes estivemos juntos. Depois já de ter composto a música pra ele, nós fomos juntos pra uma apresentação em Boston, num desses encontros culturais multidisciplinares com vários artistas e gente ligada às questões da internet; e os dois músicos que foram chamados pra tocar lá, entreter aquela plateia, fomos eu e ele. Eu cantei, toquei, e ele me acompanhou pela primeira vez nessa música. Depois ele a colocou no repertório dele. E eu no meu. E eu o chamei pra gravá-la comigo; ele participou da gravação.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Xote da Modernidade
Gilberto Gil
Uma maneira de encarar a vida
Tá tudo fora do lugar
Vamos achar nossa medida
Uma verdade dura de enxergar
Mas acredito que a felicidade
É a gente conseguir se enroscar
No xote da modernidade
Sei que a vida é um desatar de nós
Os nós de tantos fios de uma vez
Embaraçarmos com desembaraço
Foz de muitos rios a desembocar
Num mar de rios num braço de mar
Em tantos mares e rios sem braços
Vem cá que eu vou te arrastar
Pela corrente presa em teu pescoço
E as correntes desse novo mar
Nos levarão até o porto
Onde as sereias vão nos esperar
Com risos cheios de felicidade
E todos nós vamos dançar, dançar
O xote da modernidade
E todos nós vamos dançar, dançar
O xote da modernidade
Gravação
Roberta Sá – Giro, 2019 – Rosa Produções
Comentário*
[De acordo com Gil, “Xote da modernidade” é outra canção em parceria com Roberta Sá proposta e iniciada por ela. “Ela fez todo o começo, até o verso com os termos com que ela nomeou a canção. Eu comecei com ‘Sei que a vida é um desatar de nós’”, conta Gil sobre a parte da letra cuja música correspondente foi feita pelo Bem. Complexizando o conteúdo da canção, Gil cria então as imagens poéticas inusitadas — “um tanto pra confundir a topografia, a geografia, o mapa do lugar, o território” — que preenchem as duas estrofes seguintes, até “Em tantos mares e rios sem braços”. A estrofe final retoma a parte musical inicial criada por Roberta, à qual Gil sobrepõe outros versos. “ ‘Xote da modernidade’ é expressão que ela inventou e que eu tive que buscar traduzir”, conta Gil, explicando como exprimiu a fé na felicidade possível de um casal encontrar hoje, com os dados da contemporaneidade que, segundo ele, “ela representa”.]
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Xote
Gilberto Gil
Rodolfo Stroeter
Deixando o Monte da Viúva sem molhar
Que eu me dei conta que a santa lá da fonte
Ficou três dias sem beata pra rezar
Ficou três dias sem beata pra cantar a cantoria
Que há dez anos todo dia vêm cantar
As rezadeiras, todas filhas de Maria
Todas vindas da Bahia com promessas pra pagar
Rezadeiras, todas filhas de Maria
Todas elas com um bocado de promessas pra pagar
Aquela fonte permanece desaguando
De um milagre que há dez anos acontece no lugar
Ela não brota de uma grota, de uma pedra
Nunca medra como qualquer fonte costuma medrar
Bem na caatinga, onde quase nunca pinga
Nessa fonte sempre chove todo dia sem falhar
Esse fenômeno de fato inusitado
Parece que é provocado pela firme devoção
Das rezadeiras que vêm sempre em romaria
De Alagoas, Pernambuco, Paraíba e região
Mas todos sabem se a oração não principia
Com uma moça da Bahia, então chover, não chove, não
Algumas moças rezadeiras que vieram
De outros lugares sem ligar pra tradição
Cantaram tudo, tudo, tudo que puderam
Mas nos três dias não choveu no lajedão
Nesses três dias sem as moças da Bahia
Pra cantar a cantoria, todo mundo percebeu
Não adianta, pirulito é pirulito
Piriquito é piriquito, mito é mito, Deus é Deus
Gravação
Gilberto Gil – O sol de Oslo, 1994/1998 – Pau Brasil
Comentário*
Essa era uma composição do Rodolfo para a qual fiz uma letra e dei o nome de ‘Xote’, como dei o nome de ‘Rep’ a outra do mesmo disco. Inventei a história, fantasiosa, sobre um lugar de romaria, milagroso, que na verdade é como um terreiro de candomblé, onde são as baianas que estimulam o ethos local. Todo ano elas fazem uma romaria para aquele lugar, que se torna milagroso com a presença delas. Num determinado ano elas não vão, por alguma razão, e os milagres não brotam.
É uma homenagem às baianas e ao candomblé; às relações profundas que o candomblé tem com as outras formas religiosas manifestadas no Nordeste, com o curandeirismo de outros teores e o próprio catolicismo – Padre Cícero e todos os milagreiros, todas as romarias, os locais de peregrinação da região. Compus ‘Xote’ para marcar esse sentido iniciático, fundamental, da presença fundadora da baiana. Sem a ala das baianas, a escola de samba não sai, não é? É proibido. O próprio baião era chamado primitivamente de baiano; assim como as bandas de pífaros, que eram chamadas de conjuntos baianos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Sarará miolo
Gilberto Gil
Sara, sara, sara, sarará
Sarará miolo
Sara, sara, sara cura
Dessa doença de branco
Sara, sara, sara cura
Dessa doença de branco
De querer cabelo liso
Já tendo cabelo louro
Cabelo duro é preciso
Que é para ser você, crioulo
Gravações
Gilberto Gil – Nightingale, 1978 – Gege
Gilberto Gil – Realce, 1979 – Gege
Gilberto Gil e BaianaSystem – Gil Baiana ao vivo em Salvador, 2020 – Gege e Máquina de Louco
Comentário*
A criação dessa música, durante uma viagem que eu fiz pelo Nordeste, teve dois estágios. Começou numa jam session de três violões num fim de tarde em Aracaju, eu e dois amigos na casa de um músico da cidade chamado Marquinho. Nós ficamos horas improvisando, e no meio do improviso eu comecei a cantar: “Sara, sara, sara, sarará/ Sara, sara, sara, sarará”, ficando só nisso por muito tempo. Chegando em Fortaleza dias depois, eu, que tinha ficado com o tema na cabeça, peguei o violão e o retomei. Aí fui desenvolvendo-o e fiz a canção, aproveitando o mote do sarará. O “sara”, na jam, ocorreu só pelo som, eu nem estava pensando em “sarará”, que me veio como uma complementação automática.
“Sarará miolo” é uma expressão baiana para designar um tipo específico de sarará, o mais louro e mais carapinha, um albino negro ou mestiço com negro.
Por que essa doença de branco, essa doença infantil da hegemonização, essa necessidade de anular qualquer traço do negro possível, se submetendo inteiramente ao valor da raça branca e desvalorizando completamente a raça negra? Esse é o sentido de “Sarará miolo”, em que me valho da ideia de que se trata de um mestiço por acaso louro, de um mestiço no qual a cor prevalecente é a branca, um sarará alvíssimo, albino, que tem o cabelo crespo. O que nele caracteriza o negro são os traços fisionômicos, pois o cabelo é carapinha, no entanto louro. Então eu faço essa brincadeira com ele: “Deixa essa doença de branco, essa hipertrofia do branco em você, você não precisa disso. Você já tem uma parte branca, aceite então sua parte negra, admita que você tem uma coisa negra”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Vou-me embora pra pasárgada
Gilberto Gil
Manuel Bandeira
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
– Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
São João, Xangô menino
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Da fogueira de São João
Quero ser sempre o menino, Xangô
Da fogueira de São João
Céu de estrela sem destino
De beleza sem razão
Tome conta do destino, Xangô
Da beleza e da razão
Viva São João
Viva o milho verde
Viva São João
Viva o brilho verde
Viva São João
Das matas de Oxossi
Viva São João
Olha pro céu, meu amor
Veja como ele está lindo
Noite tão fria de junho, Xangô
Canto tanto canto lindo
Fogo, fogo de artifício
Quero ser sempre o menino
As estrelas deste mundo, Xangô
Ai, São João, Xangô Menino
Viva São João
Viva Refazenda
Viva São João
Viva Dominguinhos
Viva São João
Viva Qualquer Coisa
Viva São João
Gal Canta Caymmi
Viva São João
Pássaro Proibido
Viva São João
Gravações
Doces Bárbaros – Doces Bárbaros, 1976 – Philips
Gilberto Gil – Gilberto Gil (Ao Vivo em Montreux), 1978 – Gege
Caetano Veloso – Muito (Dentro da Estrela Azulada), 1978 – Philips
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois Amigos, Um Século de Música, 2015 – Uns Produções Artísticas e Gege sob licença de Sony Music
Gilberto Gil – São João em Araras (Ao vivo), 2021 – Gege
Vontade de amar
Gilberto Gil
Ficou quebrado, sem querer partiu
E hoje ao meu lado, coitado
Se queixa da sorte partida que a vida lhe deu
A ternura que eu sonhei sumiu
Fiquei de lado e o meu amor fugiu
E abandonado sou mais um coitado
Que a sorte sem sorte, sem trégua, escolheu
Quebrado assim num samba é tão difícil de cantar
Tão triste, amargurado, eu não consigo mais sonhar
Resolvemos nos unir, surgiu
Novo calor o coração sentiu
Que o samba assim fica até mais bonito
Eu cantando não sinto vontade de amor
Volta ao mundo
Gilberto Gil
A volta ao mundo e aqui chegueeeeeeei
Para ficar um dia ou dois
Um dia ou dois
Dooooooooooois
Ou três ou quatro ou cinco ou seeeeeeeis
A depender do coração
As circunstâncias disporão
Dirão que sim, dirão que não
E eu ficarei um dia a mais
Talvez não parta nunca mais
A depender do coração
Do meu amor, do seu feijão
Da dor da dor, da cor do mar
As circunstâncias disporão
Porão você pra fora, e a mim
Porão de castigo a chorar sem fim
Choraaaaar sem fim
Seeeeeeeeeeei, agora eu sei
Que dei a volta, e a volta volta a me deixar aqui
Aqui sozinho, sem ninguém
Sozinho, sem ninguém
Vem, me faz um ninho
Faz de conta que eu sou passarinho
Minha sabiá
Minha zabelê
Pelo meu caminho
Toda meia-noite eu sonho com você
Se você duvida, eu vou sonhar pra você ver
Volkswagen blues
Gilberto Gil
My Volks-Volkswagen blues
Ready to carry me away
A long way to reach the moon
Let me present to you
My Volks-Volkswagen blues
Ready to carry me away
A long way to reach the moon
Such an idea fills my daydream
Such an idea brings a moon beam
Such a floating light thread
Hangs on my little cabin, lonely cabin
My lunar Volkswagen cabin
With no men, no dog, no bag in
Such an idea thrills my soul
Breaks down my self control
So I haste away to find
Accelerating my mind
Now my cabin floats holding me in
I’ve got the space under my skin
Such an idea thrills my soul
Breaks down my self control
But I feel like a yolk in a egg
On the way to the moon
Thrown high in the sky by my dream
In my Volkswagen blues
Let me present to you
My Volks-Volkswagen blues
Ready to carry me away
A long way to reach the moon
Let me present, let me sing to you
My Volks-Volkswagen blues
Ready to carry me away
A long way to reach the moon
[ Volks-Volkswagen Blue, de Gilberto Gil ]
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1971), 1971 – Philips
Comentário*
Do fato de a versão em inglês de ‘Volks-Volkswagen blue’ se distanciar semanticamente da letra original; de a nova temática que a canção adquiriu, algo espacial – e que a faz alinhar-se a ‘Cérebro Eletrônico’, ‘Vitrines’ e ‘Futurível’ –, espacialmente pop, se explicar talvez pelo ambiente, londrino e pop, em que ela foi feita – Sim, mas também pela minha então recente adesão a esse tema, exatamente a partir das canções da prisão. Fiz a versão já em Londres, mas pouco tempo – um ano talvez – depois de ter saído da prisão. Ainda vivendo, portanto, sob o signo novo da descoberta do cosmos, que corresponde também à descoberta das filosofias orientais, que propõem esse deslocamento do microcosmos para o macrocosmos e vice-versa, esses embriões da ecologia que levam o homem do centro do antropocentrismo para um universocentrismo, que tiram do centro o homem e colocam a vida. Eu já estou começando a fase macrobiótica, me aprofundando nas filosofias orientais, na yoga, tudo que eu conheci na prisão e que em Londres eu vou explorar mais e mais. Então o Volkswagen blue vira uma nave espacial… Era também o momento áureo da Nasa, das viagens espaciais, em que apareceu aquele sonho de que a exploração do espaço, a partir dali, pudesse ser um caminho científico perene e aprofundável, que levasse cada vez mais a novas descobertas – o que na verdade não se confirmou, porque houve uma certa estagnação pelo menos da corrida espacial. Assim, naquela época havia, tanto no sentido físico, quanto no sentido metafísico, uma temática espacial nova na vida da gente. ‘I’ve got the space under my skin’: quer dizer, a incorporação mesmo da dimensão da espacialidade. Tanto no sentido físico estávamos abrindo a perspectiva de irmos para o espaço, quanto no sentido metafísico estávamos adotando as novas visões teosóficas, teológicas, filosóficas.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
São João carioca
Gilberto Gil
Nando Cordel
É forró, é alegria, é festa de São João
O Rio de Janeiro vai ser só animação
É forró, é alegria, é festa de São João
São Cristóvão, eu te convido pro chamego
São Conrado, vem que o fogo vai pegar
São Januário, pode vir com seu molejo
Diga a São Sebastião que a festa vai começar
São Judas Tadeu, Santo Antônio, Santa Bárbara
Traga São Vicente, São Bento e muita energia
São José, São Jorge e São João Batista
Santa Marta, todo mundo vai cair nessa folia
No Rio de Janeiro vai ter festa pra chuchu
Na praça da Zona Norte, na praça da Zona Sul
No Rio de Janeiro vai ter festa pra chuchu
Na praça da Zona Norte, na praça da Zona Sul
Vem Flamengo, Madureira, Botafogo
Vem pro jogo lindo que nem futebol
Nas firulas do baião e do xaxado
Driblando tristeza e fado, dançando de sol a sol
A cidade será tão maravilhosa
Quanto mais acesa no seu coração
Estiver sua fogueira, sua brasa
Aquecendo sua casa, ardendo sua paixão
Sandra
Gilberto Gil
Maria Sebastiana, porque Deus fez tão bonita
Maria de Lourdes
Porque me pediu uma canção pra ela
Carmensita, porque ela sussurou: “Seja bem-vindo”
(No meu ouvido)
Na primeira noite quando nós chegamos no hospício
E Lair, Lair
Porque quis me ver e foi lá no hospício
Salete fez chafé, que é um chá de café que eu gosto
E naquela semana tomar chafé foi um vício
Andréia na estréia
No segundo dia, meus laços de fita
Cintia, porque, embora choque, rosa é cor bonita
E Ana, porque parece uma cigana da ilha
Dulcina, porque
É santa, é uma santa e me beijou na boca
Azul, porque azul é cor, e cor é feminina
Eu sou tão inseguro porque o muro é muito alto
E pra dar o salto
Me amarro na torre no alto da montanha
Amarradão na torre dá pra ir pro mundo inteiro
E onde quer que eu vá no mundo, vejo a minha torre
É só balançar
Que a corda me leva de volta pra ela:
Oh, Sandra
Gravação
Gilberto Gil – Refavela, 1977 – Philips
Comentário*
Em 94, eu estava dando uma entrevista coletiva em Curitiba, quando uma moça entrou e disse: “Não se lembra de mim?”. Eu fiquei olhando, olhando, e ela então gritou: “Andreia na estreia!”. E eu: “Claro!”. Andreia era a menina que eu tinha conhecido, em 76, na passagem do show dos Doces Bárbaros pela cidade (antes de seguirmos para Florianópolis, onde eu fui preso por porte de maconha e posto em tratamento ambulatorial numa clínica, episódio em que a canção é baseada). Tínhamos ficado juntos na ocasião, e ela que me levou a um armarinho para comprar as fitas com que me enlaçou os cabelos trançados. Desde então nunca mais tínhamos nos reencontrado.
Todas as meninas mencionadas em “Sandra” foram personagens daqueles dias que eu vivi entre Curitiba e Florianópolis. Maria Aparecida, Maria Sebastiana e Maria de Lourdes me atenderam no hospício durante o internamento imposto pela Justiça, enquanto eu aguardava o julgamento. A de Lourdes me falava a toda hora: “Você vai fazer uma música pra mim, não vai?”. “Vou.” Carmensita: essa — foi interessantíssimo —, logo que eu cheguei, ela veio e me disse, baixinho: “Seja bem-vindo”. Lair era uma menina de fora, uma fã que foi lá me visitar. Salete era de lá: “Meu café é muito ralo”, me falou. “É exatamente como eu gosto, chafé”, respondi. Cíntia: também de Curitiba, como Andreia. Quando passamos pela cidade, me levou ao sítio dela uma tarde; foi quem me deu uma boina rosa com a qual eu compareceria ao julgamento mais adiante, em Florianópolis, e com a qual eu apareço no filme Os Doces Bárbaros. Ana: ficou minha amiga até hoje; de Florianópolis. E Dulcina, que era a mais calada, a mais recatada de todas na clínica, a mais mansa — era como uma freira —, foi a única que um dia veio e me deu um beijo na boca.
Sandra, citada no final da letra, era minha mulher, que preferiu não ir a Florianópolis e com a qual eu associei a ideia do hexagrama da torre, tirado no I Ching, um dos meus livros de cabeceira naquele período: a que tomava conta de tudo; onde eu estivesse, o seu olhar espiritual me acompanharia; seu ente se espraiaria, estendendo-se por todas as mulheres com quem eu convivesse. A ela as mulheres citadas na letra remetiam por representarem o feminino, a minha sustentação naquele momento.
Mas o que ninguém sabe, e que não se revela de nenhuma maneira na canção — o seu lado oculto —, é que há duas Sandras, a que é mencionada no fim e a do título, que não se refere à Sandra com quem eu era casado, mas a uma menina linda, maravilhosa, também chamada Sandra, que tietava o Caetano em Curitiba, amiga da Andreia — que me tietava.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Volks-Volkswagen blue
Gilberto Gil
Um Volks-Volkswagen blue
Zeca, meu pai, comprou
Um carrinho todo azul
Para Beto, para Dina
Chega benção de Claudina
Anda minha mãe mofina
Que saudade, que saudade das meninas
Duas marinaravilhas
Minha cara, duas filhas
Minha caravela, ê
Vai seguindo rumo, ê
Minha cara Bela, ê
Vai seguindo rumo, ê
Viva Bela, ê, ê, camará
Vida bela, ê, ê, camará
Margarida, ê
Me criou pra valer
Morena, morenê, camará
Vou ficar com você
Vou viver com você, camará
Com Jesus vou morrer
Zeca, meu pai, comprou
Um VW mais novo
Zeca, meu pai, mandou
Um beijo, um abraço saudoso
Zeca, meu pai, comprou
Um VW mais novo
Zeca, meu pai, mandou
Um beijo, um abraço gostoso
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1969), 1969 – Universal Music
Comentário*
Feita no período da prisão domiciliar em Salvador, antes do exílio. Meu pai veio de Vitória da Conquista e nós andamos muito com ele em seu carrinho azul: eu e minha filha Nara, que ele e minha mãe criavam na época – Belina [primeira mulher de Gil] estava sozinha em Salvador e eles ficaram tomando conta das meninas, as duas maravilhas: Nara e Marilia. Um período de produção autorreferente e auto reveladora. Era preciso afirmar a legitimidade do trabalho na praça e a transparência na relação artista-comunidade, cantor e coro: a coisa da tragédia grega.
*
Beto e Dina, citados na letra, são Gilberto Gil e sua irmã Gildina, referidos pelo apelido com que eram chamados em casa, no ambiente familiar. Bela é Belina, mãe de Nara e Marília.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil