Músicas
Que bom prato é vatapá
Gilberto Gil
Paulinho Boca de Cantor
Galvão
Se falar mal de baiano
Que bom prato
É vatapá
Mas cuidado
Que eu já vi
Muito nego se dar mal
Com siri
E acarajé
Que bom prato
É vatapá
Tá na onda
Se falar mal de baiano
Mas cuidado
Que eu já vi
Muito nego se dar mal
Com siri
E acarajé
Onde é
Onde é que se viu
Que se viu
Se cuspir
No prato que se ouviu
Que se ouviu
O baiano anda olhando pra cima
Feitiço é saber
Ter no corpo dendê
Que besteira
Gilberto Gil
João Donato
Amou
Depois
Não quis
O rapaz não se refez
Chorou
Pediu
Quis mais
Os mistérios da paixão
Senão
Da cruz
Os dois
Que besteira você fez
Não quis
Depois
Cedeu
O rapaz mais uma vez
Sorriu
Ficou
Feliz
O nascimento da luz
A pomba
A paz
O três
Quatro, cinco, seis
Que besteira
A primavera, a quimera
A flor-de-lis
A cruz de malta
A dor que causa
A falta de clareza
A incerteza quando a gente diz:
Que besteira você fez
Pois eu
Também
Já fiz
Que besteira você fez
Já faz
Um mês
Ou mais
Que besteira você fez
Pois foi
Você
E a beleza de um rapaz
Gravação
João Donato – Lugar Comum, 1975 – Philips
Gilberto Gil – Ensaio geral, 1999 – Universal Music
Quatro Pedacinhos
Gilberto Gil
Depois mandou examinar os quatro pedacinhos
Um para saber se eu sinto medo
Um para saber se eu sinto dor
Um para saber os meus segredos
Um para saber se eu sinto amor
Ela é médica e tem todo direito de arrancar o que quiser
de mim
Eu que estou, como qualquer sujeito,
Sujeito a dar defeito ou coisa assim
Doença, mal, moléstia, enfermidade
Até saudade, até saudade pode ser meu fim
Ela mandou arrancar quatro pedacinhos do meu coração
Depois mandou examinar os quatro pedacinhos
Um para saber se há um depósito de proteínas esquisitas lá
Um para saber se as pequeninas são assassinas e podem
mata
Um para saber se estou curado com os remédios que ela
me deu
Um para saber se estou errado por ter juntado o meu
destino ao seu
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
Uma das canções relacionadas com a crise de saúde experimentada no ano de 2016. A personagem é a médica cardiologista, a dra. Roberta Saretta, que tratou de Gil. — A canção é sobre a relação de afeição que se desenvolveu entre nós. A intenção, basicamente, foi brincar com a importância da dimensão do paciente, da submissão do paciente ao médico, ao encarregado do tratamento. O que a oportunizou foi o fato pitoresco de ela determinar uma extração de pequenos pedaços do meu coração para fazer uma biópsia, um exame. Aí eu faço a associação do coração material, físico, com o coração espiritual, onde reside o campo do afeto, do amor, com a apropriação do campo físico, fisiológico, pelo psicológico, o coração como residência da afetividade. A canção constitui também uma espécie de agradecimento a ela, por ela ter cuidado de mim, e tê-lo feito em ambos os sentidos, tanto o físico como o espiritual, porque foi uma pessoa muito importante no sentido da manutenção do vigor espiritual. Tem essas duas dimensões.
[Segundo Gil, ao contrário do que se pode interpretar, o último verso se refere à mesma terceira pessoa de quem a canção trata desde o princípio, não se dirigindo o cantor a um interlocutor que seria em tese a pessoa amada por ele. “É porque nos tornamos amigos mesmo, e eu interrogo qual o sentido de que os eventos relativos à nossa relação técnica tenham levado a um desenlace afetivo profundo. Sou eu falando com ela — dela — mesmo.”]
Sobre tanto “Quatro pedacinhos” quanto “Kalil” (dedicada ao doutor que também tratou dele), com o qual faz par, se relacionarem com o fato de Gil ter convivido de perto com a medicina desde cedo. — O impulso de tratar com especificidade os relacionamentos com os dois médicos naquele momento tem a ver com um respeito e uma admiração profunda pelo profissional que é o médico por causa do cultivo desse respeito e dessa admiração desde a minha infância, a minha própria criação, na minha casa. Ao lado de me criar em todos os outros sentidos da expressão “criar- -me”, meu pai foi também o meu médico, o primeiro zelador da minha saúde. Era clínico geral. Uma vez, ele disse pro Caetano: “Tropicalista sou eu”. Porque depois de ser clínico geral por muitos anos, ele se especializou em doenças tropicais. E durante o último quadrante da vida dele exerceu a profissão de sanitarista especializado em doenças tropicais. Por isso, ele fazia essa brincadeira: “Eu que sou tropicalista. Sou um médico tropicalista”. Foi político também; vereador. Chegou a ser presidente da Câmara de Vereadores em Vitória da Conquista e prefeito interino, substituindo o prefeito eleito.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Quatro Modos
Gilberto Gil
São diferentes modos de atribuir
Poder à divindade
O mito da verdade superior
Ô-ô-ô
São diferentes modos de buscar
São diferentes modos de atribuir
A vida com a lenda
Na busca da verdade superior
Ô-ô-ô
Ver o céu condensado
Nos Olhos de uma deusa
Chamá-la de Iansã, Santa Bárbara
O que olha e não pensa
E ganha a recompensa
Ao ver Nossa Senhora de Fátima
Nossa Senhora de Fátima!
São diferentes modos de exigir
São diferentes modos de atribuir
Poder à divindade
O mito da verdade superior
Ô-ô-ô
São diferentes modos de buscar
São diferentes modos de equilibrar
A vida com a lenda
Na busca de verdade superior
Ô-ô-ô
O que fica curado na pia de água benta
Em Juazeiro do padre Cícero
O que tem uma filha
E faz no batizado
Chamar a filha de Guadalupe
La Virgen de Guadalupe!
Quatro coisas
Gilberto Gil
Quatro coisas essenciais
A primeira é que o nosso amor
Não irá terminar jamais
A outra é
Que a memória de amor igual
É possível que esteja até
Na história de outro casal
Número três
Mesmo que exista por aí
Outra história de amor assim
Não será como foi pra nós
A quarta então
Tranquilize seu coração
Nosso amor virou pedra e não
Temos força pra quebrar não
Quarto mundo
Gilberto Gil
Escassa ambição e excessiva euforia mescladas na dose fatal
Transporte da vida pra morte, da morte pro esquecimento total
A lágrima de encontro ao riso já sem paraíso ou juízo final
Quisera entender meu som tropical
Saber decifrar meu som tropical
Mistério de amor, meu som tropical
Viver e morrer meu som tropical
A carne verde da luxúria estendida ao sol
Assada à brasa dessa vida debaixo do sol
Curtida a pele percutida transmutada em som
Cadência e decadência na batida do tantã
Meu som tropical lembra imagens da aprendizagem da desilusão
Paisagem da cana depois da colheita, da fome após a refeição
O luxo transformado em lixo depois do capricho da satisfação
A calma da alma penada, da ânsia ancorada na resignação
Um Primeiro Mundo, depois um Segundo, um Segundo
depois um Terceiro
Investe-se, vestem-se os índios, invertem-se os vértices, mundo ligeiro
E o meu poliedro vai se lapidando, arredondando-se por inteiro
E o som tropical tributando o mistério profundo do ser verdadeiro
Quisera entender meu som tropical
Saber decifrar meu som tropical
Mistério de amor, meu som tropical
Viver e morrer meu som tropical
Quisera entender meu som tropical
Meu quarto mundo
Quanta
Gilberto Gil
Plural de quantum
Quando quase não há
Quantidade que se medir
Qualidade que se expressar
Fragmento infinitésimo
Quase que apenas mental
Quantum granulado no mel
Quantum ondulado no sal
Mel de urânio, sal de rádio
Qualquer coisa quase ideal
Cântico dos cânticos
Quântico dos quânticos
Canto de louvor
De amor ao vento
Vento, arte do ar
Balançando o corpo da flor
Levando o veleiro pro mar
Vento de calor
De pensamento em chamas
Inspiração
Arte de criar o saber
Arte, descoberta, invenção
Theoría em grego quer dizer
O ser em contemplação
Cântico dos cânticos
Quântico dos quânticos
Sei que a arte é irmã da ciência
Ambas filhas de um deus fugaz
Que faz num momento e no mesmo momento desfaz
Esse vago deus por trás do mundo
Por detrás do detrás
Cântico dos cânticos
Quântico dos quânticos
Gravação
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Comentário*
Quanto mais eu leio sobre o quantum da matéria, sobre essa abolição da escravatura da física do mecanicismo, do paradigma cartesiano, mais eu fico pensando por que eu resolvi passar quase cinco anos dedicando uma especulação sobre isso a um trabalho artístico, acabando por fazer um disco duplo, enorme, exaustivo, até confuso para muita gente. Mas é bacana que eu tenha feito. E a confusão se parece muito comigo mesmo, com o modo como a minha mentalidade se insinua por aí, pelo mundo, pelos fazeres, pelo meio das coisas.
É um trabalho que vem do meu enorme fascínio pelo universo max-planckiano, schrodingeriano, heisenberguiano, niels-bohriano; um fascínio de anos. Me lembro que exatamente no dia que eu mostrei Parabolicamará ao Caetano, eu disse: “Esse disco me excitou; me deu vontade de fazer um trabalho sobre os quanta!”. Isso foi em 92, e eu só vim a fazer o Quanta em 96. Foi, portanto, um disco amadurecido ao longo de, pelo menos, quatro anos, com muitas canções, de vários paradigmas.
“Quanta”, a canção, fala da noção científica dos quanta; da coisa quase do mundo virtual que é a ideia do subatômico, do subdimensionamento da matéria a partir do átomo: um mundo fascinante porque vedado à própria consciência, no sentido dos mecanismos com os quais a consciência trabalha; do sentido incorpóreo, transdimensional, para além da dimensão palpável das coisas, pelos sentidos; para além dos sentidos; da visão da existência no mundo, nos lugares onde os sentidos não podem percebê-la, e aí, ainda assim, elas existem; ainda assim elas podem ser ampliadas por microscópios de vários tipos, sendo trazidas ao campo dos sentidos, da percepção sensorial.
Esse domínio subatômico é a própria fronteira do meu mundo especulativo; é o próprio encantamento para mim, como as grutas da minha infância, que eu visitava em Ituaçu — lá, eram os mistérios subterrâneos; aqui, são os mistérios subatômicos, os subterrâneos da matéria, esses lugares onde a matéria está enterrada, as particulinhas invisíveis onde ela está enterrada. Eu tenho um fascínio pelo mistério; eu sou fascinado por ele. Adoro a ideação do mistério em ação, eu passo a agir a partir de um estímulo intelectual desse.
São as esferas mentais que introduzem a não dimensão no campo da nossa materialidade. É a mente — incapturável, nesse sentido — que introduz o mistério da rarefação material, do campo do sutil, do indeterminismo na matéria, da imaterialidade da matéria. Essas especulações já fazem fronteira com a religiosidade, com os mistérios. Aí, só a arte dá conta; a arte ou as ciências que se querem “artistizadas”, ou “artistizantes”, niels-bohrianas (foi o ying e o yang que deram a Niels Bohr a ideia da complementaridade, da imbricação). A aproximação brutal que de repente a ciência fez da sua substância com a do mundo místico, mítico, é de um fascínio enorme para mim — a coisa do deus dos fragmentos.
Cântico/quântico. — Um trabalho como Quanta só foi possível por ter o mundo do milagre sido finalmente explicado (entre aspas) pela ciência; por ele ter se tornado acessível à racionalidade pela ciência subatômica, que dimensionou, através da palavra, do conceito, do discurso, alguma coisa que já está no campo da não dimensão, restituindo materialidade àquilo que não é mais matéria, que já está além, transdimensionado. Eis o milagre quântico. A expressão “cântico dos cânticos”, relacionada com o campo quântico, já tinha sido usada — o Moreno me mostrou depois — num artigo por um cientista francês.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Quando amanhecer
Gilberto Gil
Vanessa da Mata
Para iluminar você
Vai anoitecer o dia
Se não vier
Mas se for presente
Tudo iluminará
Meu humor, meu coração
Como deve ser se
Ser como Deus quer for
Milagre, resignação
Roupa colorida
Alegria às vistas, indecência, indiscrição
Seu cheiro me achando
Minh’alma perdida
Direi que é céu no chão
Quando anoitecer será
Para te fazer dormir
Estrelas que nem brilhantes
Pra te vestir
Vai saber que Deus fez
As damas da noite
Preparando o seu buquê
Como vai dizer não
Se tudo o que eu vejo
Está aqui pra te servir
A mais bela roupa
Roupa de ir a festa
Coloquei pra te esperar
Disco na vitrola
Uma vela acesa
E a lua mais cheia
Quando o sol nascer será
Para desenhar você
Ou será você que virá
Pro sol nascer
Gravação
Vanessa da Mata – Bicicleta, Bolos e Outras Alegrias, 2010 – VDM
Quando
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Gal Costa
Rita Lee, i-i
Com todo prazer
Quando a governanta der o bode
Pode crer que eu quero estar com você
Superstar com você
Há muito tempo uma mulher sentou-se e leu na bola de cristal
Que uma menina loira ia vir de uma cidade industrial
De bicicleta, de bermuda, mutante, bonita
Solta, decidida, cheia de vida etc. e tal
Cantando yê-yê-yê-yê-yê-yê-yê
Ho ho
Gravações
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa – Doces Bárbaros, 1976 – Philips
Comentário*
Eu iniciei a canção e fiz a letra toda praticamente; Caetano e Gal deram algumas sugestões de melodia. ‘Quando’ é uma brincadeira com o superestrelato, com o superstar como signo da celebridade artística. Nós íamos, de uma certa forma, resenhar um período de experiência, e Rita Lee era muito emblemática de uma coisa que tinha sido importantantíssima para nós: ela era a nossa musa do desvio, do transvio… A música tem elementos de composição que vêm do rock and roll filtrado por ela. Uma garota de bicicleta etc.: a figura descrita parece com ela. A canção talvez tenha sido a segunda em sua homenagem. Eu nunca tive nenhuma afirmação conclusiva, mas eu tenho a impressão de que ‘Rita jeep’, do Jorge Ben Jor, se refere a ela; à época em que ele tinha um jipe.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Punk da periferia
Gilberto Gil
Sou o pus
Sou o que de resto restaria
Aos urubus
Pus por isso mesmo este blusão carniça
Fiz no rosto este make-up pó caliça
Quis trazer assim nossa desgraça à luz
Sou um punk da periferia
Sou da Freguesia do Ó
Ó
Ó, aqui pra vocês!
Sou da Freguesia
Ter cabelo tipo índio moicano
Me apraz
Saber que entraremos pelo cano
Satisfaz
Vós tereis um padre pra rezar a missa
Dez minutos antes de virar fumaça
Nós ocuparemos a Praça da Paz
Sou um punk da periferia
Sou da Freguesia do Ó
Ó
Ó, aqui pra vocês!
Sou da Freguesia
Transo lixo, curto porcaria
Tenho dó
Da esperança vã da minha tia
Da vovó
Esgotados os poderes da ciência
Esgotada toda a nossa paciência
Eis que esta cidade é um esgoto só
Sou um punk da periferia
Sou da Freguesia do Ó
Ó
Ó, aqui pra vocês!
Sou da Freguesia
Gravações
Gilberto Gil – Extra, 1983 – Warner Music
Rita Lee – Songbook Gilberto Gil, Vol. 2, 1992 – Lumiar Discos sob licença da Sony Music
Gilberto Gil – To be alive is good (anos 80), 2002 – Gege
Diego Moraes – Meus ídolos, 2010 – EMI Music
Comentário*
Relacionada com São Paulo, com o movimento punk, a periferia, o bairro da Freguesia do Ó. Uma tentativa de leitura por dentro do que poderia ser um sentimento geral de uma turma, de um arquipélago de gangues e tribos. Houve uma certa crítica, uma reação ao que, na verdade, era a poesia tentando alcançar a posição do outro, a posição daquilo que é interpretado, retratado. Não sou eu dizendo que eu sou um punk da periferia; sou eu dizendo que o punk da periferia diz que ele é um punk da periferia! Eu achei até demasiadamente ingênua, infantil, a reação contra a música e o fato de eu tê-la escrito: como é que não se compreendeu que ali o poeta estava falando do outro, colocando-se no lugar do outro? O punk da periferia não sou eu, o punk da periferia é o punk da periferia; só que ali ele está falando na primeira pessoa através da interpretação poética de um poeta que não é ele, é outro. Além do mais, o fato de que eu queria me identificar com o punk da periferia era interessante: significava reconhecimento político, adesão, solidariedade, identidade mesmo – frente única.
‘Nós ocuparemos a praça da Paz’ – É engraçado hoje a praça da Paz ser o lugar para onde acorre a cidade toda: as pessoas vêm de todos os cantos – muitas da periferia – para celebrar os grandes rituais da música em São Paulo. Hoje em dia quando eu canto essa canção lá no parque Ibirapuera, dá-se uma coisa interessante (num show que eu fiz lá com a Rita Lee, eu a cantei): na hora do verso ‘nós ocuparemos a praça da Paz’, ela soa profética – uma profecia do nosso próprio tempo.
‘Sou da Freguesia do Ó/ Ó/ Ó, aqui pra vocês’ – Essa possibilidade performática de se incorporarem gestuais típicos ao canto: o último ‘ó’ se refere ao – e se comunica pelo – gesto; é uma incorporação de gesto ao texto – é gexto.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Pronto pra preto
Gilberto Gil
Pronto pra preto, pronto pra preto
De nouveau noir
Pronto pra preto, pronto pra preto
Back to black
Pronto pra preto, pronto pra preto, pronto pra preto, pronto pra preto, pronto pra preto, pronto pra preto, oh vamos ver
Vamos ver que se pode fazer nessa tenda pra bem receber os irmãos, os que vem, vamos ver
Vamos ver quantos são nessa aldeia os que vão abraçar e beijar os irmãos, os que vem, vamos ver
Que essa aldeia comungue da ideia da comunhão
(refrão) oh, vamos nós
Vamos ver que se pode obter dessa lenda de paz, se de fato ela faz mais sentido pra nós
Por menor que seja o gesto, por mais modesto que seja, que esteja por trás nossa convicção
Que essa aldeia comungue da ideia da comunhão
(refrão) oh, vamos ver
Vamos ver o que há na panela, maxixe, xuxu, galinha de cabidela, angu de milho, arroz e feijão,
Vamos dar pra esse povo de fora uma festa de arromba, uma linda kizomba, um fuzuê, uma baita recepção
Que essa aldeia comungue da ideia da comunhão
A noite o lual
Pronto pra preto, pronto pra branco
A dança geral
Pronto pra branco, pronto pra índio
Aldeia global
Pronto pra índio, pronto pra japa, pronto pra preto, pronto pra branco, pronto pra tudo, junto com todo mundo afinal
Gravação
Gilberto Gil – Bandadois, 2009 – Gege
Comentário
“Pronto pra preto” é uma música que eu fiz pra um festival, Back to Black [da empreendedora cultural Connie Lopes, irmã da Meny Lopes, coordenadora de produção de Gil desde 1993]. Fala desse encontro na tribo com gente vinda de vá- rios lugares; da comunidade. A ideia da comunidade. Uma canção interessante, animada; uma mistura de samba com funk; funk com batuque. “Por menor que seja o gesto,/ Por mais modesto que seja,/Que esteja por trás nossa convicção,/Que essa aldeia comungue da ideia da comunhão”: este é o momento de condensação do vapor em nuvem. Todo o vapor de significados — de partículas em suspensão — está nesses versos que reúnem propriamente a ideia da canção. Que é um jingle. Se fosse fazer um texto publicitário sobre o encontro, seria esse.
É uma canção de boas-vindas ao encontro, comentando sobre a natureza do encontro — de delegações e seus representantes, de grupos musicais negros vindos de várias partes do mundo. Boas-vindas à iniciativa, ao festival em si, e pontualmente, aqui e ali, boas-vindas mais específicas, mais particularizadas. Além disso, o que imaginamos estar sendo oferecido a todos: a tenda, o lugar de encontro e os ingredientes do encontro entre eles: a questão da alimentação — como nutrir esse pessoal todo? —, evidentemente citando aí as iguarias, os pratos tipicamente negros, ligados à cultura afromundial. Tem a saudação em três línguas. E quanto ao título, “Pronto pra preto”, há algumas possíveis interpretações, possíveis leituras, mas aí tem antes de tudo o sentido da prontidão.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Procissão
Gilberto Gil
Edy Star
Se arrastando que nem cobra pelo chão
As pessoas que nela vão passando
Acreditam nas coisas lá do céu
As mulheres cantando tiram versos
Os homens escutando tiram o chapéu
Eles vivem penando aqui na terra
Esperando o que Jesus prometeu
E Jesus prometeu vida melhor
Pra quem vive nesse mundo sem amor
Só depois de entregar o corpo ao chão
Só depois de morrer neste sertão
Eu também tô do lado de Jesus
Só que acho que ele se esqueceu
De dizer que na terra a gente tem
De arranjar um jeitinho pra viver
Muita gente se arvora a ser Deus
E promete tanta coisa pro sertão
Que vai dar um vestido pra Maria
E promete um roçado pro João
Entra ano, sai ano, e nada vem
Meu sertão continua ao deus-dará
Mas se existe Jesus no firmamento
Cá na terra isto tem que se acabar
Gravações
Gilberto Gil – Retirante, Vol. 1, 1962 – Gege
Tamba Trio – Tamba Trio, 1965 – Philips
Gilberto Gil – Louvação, 1967 – Philips
Marinês – Marinês, 1967 – CBS
Gilberto Gil – Gilberto Gil, 1968 – Philips
Gilberto Gil – Ao Vivo na USP, 1973 – Gege
Sérgio Reis – Natureza, 1978 – RCA
Simone – Simone Bittencourt de Oliveira, 1995 -Sony Music
Fran e Chico Chico – Onde?, 2020 – Blacktape
Trio Nordestino – Canta Gilberto Gil, 2020 – Biscoito Fino
Comentário*
A clássica composição é locada em Ituaçu, cidade da infância de Gil, localizada no interior baiano, onde ele se acostumou a assistir às procissões católicas durante as festas religiosas. A religião é vista como ‘ópio do povo’, bem de acordo com a perspectiva marxista da realidade, que orientava o pensamento do compositor, alinhado ao do CPC (Centro Popular de Cultura), à época. Testemunha da situação de abandono do homem do campo nordestino, o músico-poeta a denuncia.
A questão da exploração do homem pelo homem, das grandes diferenças sociais, das grandes dívidas históricas, da colonização, da escravidão: era o momento em que se tomava consciência de tudo isso através dos livros, da ampla discussão no mundo estudantil, universitário; em que se passava a ter o hábito sistemático, quase imposto mesmo, obrigatório, de todos nós lermos as obras dos pensadores brasileiros de esquerda, o Caio Prado Júnior, o Florestan Fernandes, o Nelson Werneck Sodré.
A releitura do marxismo a partir da realidade brasileira e a situação pós-45, de ilegalidade, do Partido Comunista. Os intelectuais comunistas e o legado que eles deixaram retomado com intensidade pela nossa geração, com a fase pós-Juscelino, pós-desenvolvimentista-brasileira, e com a crítica ao modelo de neo-colonização americano, no momento em que o Brasil entra de novo no ciclo dos grandes empréstimos internacionais para financiamento do seu desenvolvimento. Os economistas liberais Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos. O confronto marxismo/liberalismo. E nós, os compositores, e os estudantes, com suas várias interpretações individuais desses grandes temas, dessas grandes discussões.
‘Procissão’ é uma música que relata isso e que, ao mesmo tempo, retoma, faz a re-apropriação, no sentido de resgate, do linguajar popular, da linguagem simples do homem sertanejo; ela é, toda, como se fosse um sertanejo falando; a narrativa, toda, feita através de um personagem próprio, típico, local, eu vindo disso, tendo vivido no sertão, e tendo o fato de que essa música nasceu de uma memória muito clara das procissões em Ituaçu.
Uma contribuição – Eu recebi uma pequena contribuição de um amigo, o Edy, na letra; ele sugeriu dois ou três dos versos da terceira estrofe. Edy é um cantor, compositor, também travesti, baiano, para quem eu vim a fazer, anos mais tarde, ‘Edith Cooper’. Ele chegou a escrever vários versos; eu aproveitei apenas um trechinho e o incluí na música.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Outros viram
Gilberto Gil
Jorge Mautner
Maiakowscki viu
Outros viram também
Que a humanidade vem
Renascer no Brasil!
Teddy Roosevelt sentiu
Rabindranath Tagore.
Stefan Zweig viu também
Todos disseram amém
A essa luz que surgiu!
Roosevelt que celebrou nossa miscigenação
Até a considerou como sendo a solução
Pro seu próprio país
Pra se amalgamar
Misturar “melting pot” feliz
Não conseguiu pois seu Congresso não quis!
Rabindranath Tagore também profetizou
Ousou dizer que aqui surgiria o ser do amor
Um ser superior, civilização da emoção, da paixão, da canção
Terra do samba sim e do eterno perdão!
Maiacowski ouviu
A sereia do mar
Lhe falar de um gentio
De um povo mais feliz
Que habita esse lugar!
Esta terra do sol
Esta serra do mar
Esta terra Brasil
Sob este céu de anil
Sob a luz do luar!
Gravação
Jorge Mautner – Revirão, 2006 – Gege/ Warner Music
Comentário*
Da escolha de um tema muito importante, um tema alto. — Um tema que está ligado à percepção de uma especialidade brasileira. O Brasil como um evento civilizatório importante pelos seus traços de mistura, de miscigenação cultural, racial, e sua localização geográfica no planeta. E pela história da sua gestação mesmo como nação. A questão do empreendimento dos templários portugueses, a importância do sebastianismo com sua visão de uma terra edênica que surgiria. Essa visão profética associada a uma terra e um povo específicos e especiais. A música toca nessa questão, na compreensão do papel do Brasil ou na suposição sobre o papel do Brasil; no almejo de que o Brasil seja algo diferente, algo diverso, com os traços todos de especificidade geográfica, de convergência de culturas vindas de vários lugares do mundo etc., que dão margem a essa especulação, a esse sonho, ao seu surgimento. E o sebastianismo é uma das correntes mais imediatamente ligadas a tudo isso, porque os portugueses foram os descobridores.
Eu escrevi a canção com Jorge, fizemos tudo junto. Ele evidentemente propôs as referências a Maiakóvski, a Walt Withman, a Tagore. A coisa dos grandes louvadores da dimensão brasiliana da vida. Os grandes fãs do Brasil. Isso era tema de nossas conversas. Nós estávamos em Araras, na serra do Rio de Janeiro. Ele passava uns dias comigo, e a gente fez essa música. Fizemos outra na mesma ocasião, que foi “Os pais”, que escrevemos juntos também.
Além das alusões aos três grandes poetas, Stevan Zweig e Teddy Roosevelt são citados. — Stefan Zweig, que veio pra cá e morou aqui, escreveu o livro Brasil, país do futuro, com essa mesma atitude de compreensão de uma dimensão profética em relação à civilização brasileira. Ele foi um desses visionários sobre a dimensão e a inserção do Brasil no mundo. E o Roosevelt [que fez uma expedição à Amazônia com o marechal Cândido Rondon] aplicou a expressão “melting pot” relacionada ao Brasil. Ele disse que a sociedade brasileira era um “melting pot”; que deveria se desenvolver a partir de uma visão de amálgama de raças e culturas. E teria voltado para os Estados Unidos com a intenção de institucionalizar o “melting pot” como uma dimensão civilizatória importante. Chegou a propor isso ao congresso americano, que acabou não topando. Ele possivelmente deve ter notado semelhanças, aproximações em termos dos vetores de formação do Brasil e dos Estados Unidos, ambas civilizações novas, num continente novo, o continente americano. Ambas com a mistura de europeus, brancos, indígenas locais e negros trazidos d’África. Eu acho que ele achava que Brasil e Estados Unidos tinham esse viés em relação ao resto do mundo, que eram civilizações irmãs por causa desses traços de parentescos muito aproximativos.
Ambas nações de grande dimensão territorial. — Grande dimensão territorial e unidade linguística. Eu acho que foi isso que o levou à tentação de propor a institucionalização, ou seja, como isso seria feito, que tipo de parametração em termos de regras e réguas seria empregada pra estabelecer tais medidas e tomá-las como administrativas e técnicas. Ele devia ter uma ideia de tudo isso na cabeça. É interessante essa canção despertar, dentre outras coisas, esse interesse de revisita histórica, de recuperação histórica de um momento de uma grande figura — sem contar os outros grandes que são mencionados — que foi um presidente da República do maior país das Américas, hoje a maior potência política, cultural, social do mundo; é importante a canção levantar essa curiosidade histórica sobre ele e sobre o significado do Brasil.
O fato de a canção ter sido composta em 2006, uma época politicamente mais positiva no país do que a que nós estamos vivendo agora [2021], não contribuiu de alguma maneira para que vocês se animassem a escrevê-la? — É possível que aquele momento histórico tenha ensejado uma positividade; tenha supostamente aberto uma janela pra essa visão, pro descortino da luminosidade, da claridade de que a civilização brasileira era portadora. E portanto era propício, pertinente, o anúncio disso. Era o momento adequado a esse anúncio, a essa profetização. É possível que sim; é seguro que sim. Já por tudo: por toda a modernidade brasileira — Brasília, Bossa Nova, todo o encadeamento histórico do Brasil; Getúlio Vargas, Segunda Guerra Mundial, tudo mais; lá atrás a missão e a influência francesa… Enfim todo esse encadeamento histórico de reunião dessas vertentes variadas, de várias origens e de vários caracteres. Acho que tudo estimulava [o sentido da canção], e aquele, evidentemente, era um momento em que esse encadeamento histórico ficava mais evidente pra o estudioso de Brasil.
Estávamos sob o governo do Lula. O Brasil ganhou uma respeitabilidade que não havia tido ainda nem com Fernando Henrique. — Que não havia sido possível ainda com Juscelino. Mas todos esses foram momentos insinuadores disso [da contribuição original que o país poderia dar]. Por isso citei a missão francesa, citei Getúlio e a Segunda Guerra Mundial, citei a Bossa Nova. Lula é um coroamento, digamos assim, da ideia de unidade nessa tendência, por força da própria condição nova da história nas comunicações, a agilidade das comunicações internacionais: o novo tempo já ali, já chegando a internet, essas coisas todas. Houve uma espécie de coroamento dessa tendência na escolha de um estadista moderno, original. E os traços de personalidade, de formação, de alguém como o Lula, davam a ele o perfil de uma liderança que talvez significasse mais do que tudo que já tinha vindo antes em termos do estadismo brasileiro. Uma dimensão utópica.
E havia o fato de que você era ministro da Cultura. — Também. Até por isso mesmo, por todas essas razões. Eu era ministro da Cultura por tudo isso, por toda essa cadeia de condicionamentos históricos.
“Outros viram” é uma canção do poeta que é ministro da Cultura. — Sim, sem dúvida. E de Mautner, com a perspicácia que ele sempre teve em relação a isso, a expectativa permanente dele em relação ao redencionismo promovido pelo reajuste da sociedade brasileira, pela reconciliação da sociedade brasileira com princípios universais, amplos, de valores. Jorge sempre foi um defensor ferrenho dessa ideia. Então ter ocorrido a ele essa reunião de nomes e figuras intelectuais e poéticas, coincidindo, como disse eu antes, com a dimensão profética do sebastianismo português, o Brasil sendo necessariamente visto como um desdobramento da civilização lusitana. Tudo isso junto.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Pretinha
Gilberto Gil
João Donato
Kátia Falcão
Eu queria te falar desse calor, ô, ô
Minha Preta gostosinha do Pelô
Me diga que você é meu amor
Porque não consigo viver sem você
Eu sei que você sente isso também
Pretinha venha logo viver comigo essa emoção
Cada vez que eu te vejo
Bate forte o meu coração!
Cada vez que eu te amo
Bate forte o meu coração!
Preciso de você
Gilberto Gil
Uma triste história de amor
Tudo
Solto na poeira de luz
Atrás do coração
Coração, meu motocross
Das estradas da ilusão
Um dia me acho
Um dia relaxo e gozo
Férias
Paro na soleira da paz
Em frente ao coração
Coração, meu aprendiz
És e hás de ser feliz
Sou a garota papo firme que o Roberto falou
Continuo a merecer
A confiança que essa juventude depositou
No meu jeito de dizer
Tudo que a bondade achar por bem que eu diga
Tudo que a cidade queira ouvir da amiga
E pra que eu prossiga
Eu preciso de você
Gravação
Gilberto Gil – Extra, 1983 – Warner Music
Comentário*
Foi feita pra Nara [a filha] cantar. Ela era bem adolescente. “Sou a garota papo-firme que o Roberto falou”: a frase [referência a uma canção do yê-yê-yê] é citada inteiramente. Engraçado isto: citação da citação. Como essas expressões emblemáticas viajam, como elas têm essa capacidade de se deslocar. Então é a Nara encarnando essa garota papo-firme que a Waldirene incorporou, de quem o Roberto tinha falado.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Preciso aprender a só ser
Gilberto Gil
É tanta coisa pra gente saber
O que cantar, como andar, onde ir
O que dizer, o que calar, a quem querer
Sabe, gente
É tanta coisa que eu fico sem jeito
Sou eu sozinho e esse nó no peito
Já desfeito em lágrimas que eu luto pra esconder
Sabe, gente
Eu sei que no fundo o problema é só da gente
É só do coração dizer não quando a mente
Tenta nos levar pra casa do sofrer
E quando escutar um samba-canção
Assim como
Eu Preciso Aprender a Ser Só
Reagir
E ouvir
O coração responder:
“Eu preciso aprender a só ser”
Gravações
Gilberto Gil – Ao Vivo na USP, 1973 – Gege
Gilberto Gil – Cidade do Salvador, Vol. 2, 1973 – Gege
Fafá de Belém e Wagner Tiso – Songbook Gilberto Gil, Vol. 1, 1992 – Lumiar Discos
Gilberto Gil – Gil Luminoso, 2006 – Gege
Caetano Veloso – Certeza da Beleza, 2008 – Universal Music
Comentário*
É também um depoimento sobre certos esclarecimentos obtidos através de meditação, da yoga e essa visão, que eu chamaria de superior, dos mestres iluminados. Era por volta de 73 e eu estava voltando do exílio e insistindo no processo de consolidação de uma proposta de compatibilidade entre ser ovelha e ser pastor. As coisas estavam se assentando. Um dia, eu me encontrava sozinho, na casa da avó de Sandra, onde ficávamos hospedados no Rio. Todo mundo havia saído e eu, só, naquele final de tarde. Comecei a meditar sobre essa ideia de ser, dessa essencialidade na redução a uma célula que contenha tudo dentro de nós. Esse apaziguamento do espírito diante das multiplicidades que a dualidade acarreta. E aí veio o mote dos irmãos Valle: ‘Eu preciso aprender a ser só’. Naquele tempo, os sentidos estavam muito nisso, no estar sozinho e vivendo a afetividade desse momento solitário, ou seja, tendo que pensar na solidão, ao conviver com ela. Ao mesmo tempo, havia um resgate do prazer dessa solidão, como um grande refúgio, igual a um grande casulo onde você é você. Como na solidão do nascimento, pois você nasce sozinho, ou na solidão da morte, pois você morre sozinho. Pensava nisso tudo e me ocorreu de brincar com isso: ‘Na verdade, eu não preciso aprender a ser só, eu preciso aprender a só ser’.
Foi também uma oportunidade de brincar, digamos assim, com a ferramenta do poeta que com ela torce e retorce a palavra. Brinca, molda-a como se molda quebra-queixo, no estica-estica, puxa-puxa da palavra. Puxa pra cá, puxa pra lá para ter um estilo mais reduzido, perto do sentido oriental de um hai-kai. Ela é assim, bem aforística. (…)
Gozado que, toda vez que a canto, ela vem, simbolizando a abertura de um show. E várias vezes, quando penso em fazer algum show, penso em começar com ela. Como se ela fosse sempre a primeira coisa que tenho a dizer: ‘Boa noite’ e ‘Sabe gente/ É tanta coisa pra gente saber’. É o sentimento que tenho com ela, de um convite à coloquialidade. É como se ela colocasse o interlocutor à vontade e fosse feita para humanizar os ambientes: ‘Tudo bem, estamos aqui tranquilos’.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Prece
Gilberto Gil
Todos os dias rezarás por mim
Num pacto de orações e de energias
Que os nossos corações fazem entre si
Aos santos, aos iogues e orixás
Rogaremos os cuidados e atenção
As preces que eu farei, que tu farás
Nos trarão luz e paz
Nos unirão
Rezaremos na hora marcada
Às seis da tarde como reza a lei
No encontro entre o dia, a noite e o nada
Salve rainha amada, amado Cristo rei
Pelo amanhã que tu não sabes
E eu também não sei
Pratitude
Gilberto Gil
Carlos Mendes
Igualitude
Venha, venha crer
Venha, venha crer
Uma delícia de prazer
Muita malícia de fazer
De fazer a preguiça
Foi na soma das cores
Corais e cantores
Vitória (a)tonal
Somatória total
Sobressai, sobressai
Sobressai, sobressai
Sobressai o normal
Quando fica uma face que faz
Com que brinca uma arte que arde
Que d’África
Arte que arde que d’África traz
Uma praia de cor
Traz uma praia de cor
Como casa de quem nunca saiu
Como asa de quem sempre voou
Gravação
Carlos Mendes – Ímã, 1983 – EMI/Odeon
Pra que mentir
Gilberto Gil
Geraldo Vandré
Minha dor
Não vá mentir
Que dor maior
Vou chorar se descobrir
Que a flor
Enganou pra não ferir
Sofrer
Todo mundo um dia vai
E eu
Já sabia que viria o dia de
Perder a flor
Chorar a dor
Pra que mentir
Sem ter porquê
Não vou guardar você
Pra que mentir
Gravação
Trio Marayá – Trio Marayá, 1966 – Som Maior
Pra fazer o sol nascer
Gilberto Gil
Acende a luz
Atende à minha voz
A(s)cende de acender e de subir
De clarear
De despertar assim
A mim, a tudo mais
Atende à minha voz
Ao meu saxofone
Cor do sol
Sol
Nasce d’ouro pra nós
Por que alguém tem inveja de você
Gilberto Gil
Por que que alguém tem de querer lhe negar valor?
Porque seu coração é bom
E na competição moral
Você contempla o bem e enfrenta o mal
Com a mesma decisão
Porque seu coração é bom
E em sua vida espiritual
Você vai à igreja e ao carnaval
Com a mesma devoção
Por que que alguém tem de implicar com você?
Por que que alguém tem tanta inveja de você, meu amor?
Por que que alguém tem de querer lhe negar valor?
Porque seu coração é bom
Seu dia a dia natural
Uma vida tão simples, tão normal
Sem drogas, com compaixão
Porque seu coração é bom
Sua bondade sutil
Se alguém repele ou finge que não viu
É pra não ter que ser igual a você
Por que que alguém tem de implicar com você?
Por que que alguém tem tanta inveja de você, meu amor?
Por que que alguém tem de querer lhe negar valor?
Porque seu coração é bom
E você ama o Lobo Mau
Você adora macarrão
Você gosta de dar quinau
Você detesta o gênero pinel
Você evita o que é vão
Você representa bem o seu papel
Você morre de medo de ladrão
Gravações
Tárcio – Tárcio, 1997 – BMG
Gilberto Gil – To be alive is good (Anos 80), 2002 – Gege
Comentário*
Essa é uma música que eu fiz pra Flora num momento em que a gente tinha notícia de muitas intrigas, pungentes, feitas contra ela por pessoas amigas, de gente próxima. Eu nunca cheguei a gravá-la; Tárcio a gravou, muito tempo depois. É bonita mas muito irregular; pra mim, é uma canção estranha. Tem alguns achados no versejá-la. “Porque seu coração é bom/E em sua vida espiritual/ Você vai à igreja e ao Carnaval/ Com a mesma devoção”. “Porque seu coração é bom/ E na competição moral/ Você contempla o bem e enfrenta o mal/ Com a mesma decisão”. Essas duas são as estrofes centrais do sentimento da canção. Fazem a afirmação de uma largueza, de uma amplitude de coração dela. São a parte interessante da canção.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Pop wu wei
Gilberto Gil
Assim como o sofrimento está para o gozo
Por isso eu faço tudo pra não fazer nada
Ou então não faço nada pra tudo fazer
Eu gosto de deixar a onda me levar sem nadar
Deixar o barco correr
Mas como o povo diz que Deus teria dito:
“Faz a tua parte que eu te ajudarei”
Melhor considerar o dito por não dito e dizer:
“Tudo que eu puder farei”
Meu bem, eu sei que posso estar contando prosa
E como é perigosa minha afirmação
Sair do movimento bem que pode ser um tormento
Eis outra constatação
O fato é que eu sou muito preguiçoso
Tudo que é repouso me dará prazer
Se Deus achar que eu mereço viver sem fazer nada
Que eu faça por merecer
Gravação
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Comentário*
Essa canção nasceu de uma intenção despreocupada de comentar o conceito filosófico taoísta da ‘ação da não-ação’, o wu wei chinês. A letra expressa a minha identificação pessoal com a imagem do pássaro pousado no tronco que boia, levado pela correnteza, onde ele cessa o seu próprio movimento, transfere o seu repouso para um movimento que vem sendo feito pela correnteza do rio, tem o movimento da correnteza transferido para o seu repouso, e ali continuam os dois numa relação de repouso e movimento ao mesmo tempo: o pássaro, que vinha voando e pousou no tronco, está em repouso, o rio está em movimento, o tronco boia sobre o rio, é levado sobre o rio, e pássaro e tronco e rio, todos se deslocam em movimento e em repouso.
Do fato de Gil ser uma pessoa normalmente em (muita) atividade – Essa atividade propiciada pela vida; essa autorização que o ser dá à vida, para que ela se mova em si mesma e em nós; para que ela nos abranja com o seu movimento total, e que todo o nosso movimentar-se seja dela, do movimento da vida; esse deslocamento do eu, de quando alguém se rende: de quando alguém, como o pássaro no tronco, repousa, sintonizando-se com o movimento das coisas e não mais com o seu. O
repouso é o movimento, a continuidade, talvez até a intensificação do movimento; quando ele se intensifica, entrando na sua condição paroxística. Aí você vai com as coisas, ao sabor das ondas.
Se você entra em repouso, você automaticamente cai na esfera dominante do movimento. É aquela coisa: no extremo, o yang vira yin; no extremo, o yin vira yang; quer dizer, não há uma coisa sem a outra, não há vida sem morte, não há dia sem noite, não há número dois sem número um.
‘Pop wu wei’ trata disso. Ao mesmo tempo, daí o seu título, a canção tem a linguagem clássica do samba popular; o seu discurso é feito num tom malandro de um pensador popular, um Wilson Batista, um Cartola. É isso que a torna interessante.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Poema aritimimético
Gilberto Gil
Nove sílabas, mais, três a três
Esculpido, expandido de cor
Poema aritmético
Tema aritimimético
Recitado por nove casais
Evocando a memória de seis
Legendários senhores feudais
São dezoito jograis, vezes dez
São trezentas e sessenta mãos
São trezentos e sessenta pés
São as vozes na triste canção
São castelos, tavernas, bordéis
Castelos, tavernas, bordéis
São baladas de amor, catedrais
Armaduras, espadas, anéis
Sedução de vassalos leais
Traição de amantes fiéis
Protitutas, bufões, tribunais
Um complô de cardeais contra o rei
Trágicos, fatídicos finais
Os punhais por detrás matam seis
Lendários senhores feudais
Matam mais os audazes vilões
Matarão mesmo os nove casais
De jograis provençais, vezes 10
Cortam-lhes as cabeças e os pés
As trezentas e sessenta mãos
É um massacre, a matança cruel
Semelhante a São Bartolomeu
Já não matam mais seis, mas seis mil
Não matam mais seis, mas seis mil
Mil e quinhentos Pedro Cabral
De repente já é o Brasil
Como em 2001, A Odisséia no Espaço
No tempo, no breu
No espaço, no tempo, no breu
Na noite de São Bartolomeu
Versos de arte maior já não são
É o osso quebrado, é o céu
É a nave varando a amplidão
A nave varando a amplidão
Mil anos-luz daqui e de agora
Valei-me Deus e Nossa Senhora
Guiai-me no campo magnético
Poema aritmético
Tema aritimimético
Pode, Waldir?
Gilberto Gil
Pra prefeito, não
E pra vereador:
Pode, Waldir? Pode, Waldir? Pode, Waldir?
Prefeito ainda não pode porque é cargo de chefia
E na cidade da Bahia
Chefe!, chefe tem que ser dos tais
Senhores professores, magistrados
Abastados, ilustrados, delegados
Ou apenas senhores feudais
Para um poeta ainda é cedo, ele tem medo
Que o poeta venha pôr mais lenha
Na fogueira de São João
Se é poeta, veta!
Se é poeta, corta!
Se é poeta, fora!
Se é poeta, nunca!
Se é poeta, não!
O argumento é que o momento é delicado
E prum pecado desse tipo
Pode não haver perdão
Mudança é arriscado, muda-se o palavreado
Mas o indicado
Isso ele não muda, não
O indicado deve ser do tipo moderado
Com um mofo do passado
Peça do status quo
Se é poeta, veta!
Se é poeta, corta!
Se é poeta, fora!
Se é poeta, nunca!
Se é poeta… oh!
O certo poderia ser o voto no Zelberto
Mas examinando mais de perto
Ele tem que duvidar
A dúvida de que a Bahia tenha um dia tido a primazia
De nos dar folia
De nos afrocivilizar
Pra ele civilização é a França que balança
No seu peito de homem direito
Homem de jeito sutil
Se é poeta, veta!
Se é poeta, corta!
Se é poeta, fora!
Se é poeta, nunca!
Se o poeta é Gil!
Pra prefeito, não
Pra prefeito, não
E pra vereador:
Pode, Waldir? Pode, Waldir? Pode, Waldir?
Gravação
Gilberto Gil – To Be Alive Is Good (Anos 80), 2002 – Warner Music
Comentário*
O Waldir Pires era governador da Bahia na ocasião, um dos caciques do PMDB, e a questão da sucessão municipal passava por ele; eu estava ligado ao grupo do Mário Kértesz [Gil estava então envolvido com política], que era o prefeito e que pertencia a outro grupo – os dois se antagonizavam em vários níveis. Eu postulei a possibilidade de ser candidato a prefeito pelo PMDB, e minha candidatura passava pelo crivo de alguns políticos do partido, entre eles o Waldir Pires.
Eu fui conversar com ele sobre a ideia de apresentar minha candidatura na convenção do partido, e ele, entre várias ponderações, colocou os temores que ele tinha de que uma candidatura minha pudesse provocar o que ele chamava de uma ‘implosão do partido’, ele usou exatamente essa expressão.
‘Gil, sua candidatura pode implodir o PMDB na Bahia’, ele disse. Eu não quis entrar em detalhes de explicações, porque não cabia; era uma posição-síntese que ele tinha: ‘Não posso lhe dar o apoio que você vem me pedir aqui, exatamente porque eu não confio na sua candidatura nesse sentido; eu, como líder do partido, não devo me associar a esse projeto’.
Ainda assim, eu mantive minha postulação, a candidatura acabou indo para a convenção, onde ela perdeu: não tinha o apoio dele e não teve o apoio do Mário Kértesz, que partiu com Fernando José, outro candidato. Depois, quando meu grupo pediu que eu mantivesse a atuação política através da candidatura de vereador, eu resolvi fazer, como peça de campanha, essa brincadeira com o Waldir, criticando a posição dele. Não era um uso leviano que eu fazia do nome dele; eu estava retratando na música uma posição que ele tinha me manifestado pessoalmente. Essa canção deve tê-lo provocado, por identificá-lo com estereótipos. É engraçada e bem feita. De todo modo, não foi sem uma ponta de desgosto que eu a fiz.
[Uma informação: o Zelberto citado na letra era um personagem feito pelo humorista Chico Anísio em seu programa de televisão na época – uma caricatura de Gil].
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Poço fundo
Gilberto Gil
Um mundo de mistério
Será que assim pareço
Pra você?
Pareço uma Alemanha
Montanha de minério
Será que assim mereço
Parecer?
Uma montanha negra
Consagrada ao rito
Dos pactos de amor que faço em mim
Pareço com uma pedra
Bruta
Preta de granito
Mereço mesmo parecer assim?
Pergunto porque junto do meu leito
Toda noite
Há sempre uma florzinha de cheirar
Pergunto porque junto do meu jeito
Meio afoito
Carrego uma ternura, um bem-estar
Pergunto porque dentro do meu peito
Todo dia
Se cria uma cantiga para o amor
Pergunto porque, embora de aparência
Um tanto fria
Nunca eu estou feia
Nunca estou vazia
Vivo sempre cheia
De uma simpatia
Nunca uma Alemanha
Sempre uma alegria
E a minha manha
É manhã de calor
Comentário
Zezé Motta – Dengo, 1980 – Atlantic
Comentário*
O compositor na situação de quem faz para uma cantora uma canção que pretende ser uma autodefinição dela usando uma imagem com a qual ele não sabe se ela irá se identificar – ‘Poço fundo’ é para e sobre Zezé Mota; sobre o significado dela, como artista e como negra, no cenário musical brasileiro; e sobre aquele jeito altivo e aquele gestual quase desenhado, grafitado, que ela tem, por isso ‘uma Alemanha, montanha de minério’, a associação que eu faço para ela na letra, perguntando: ‘Será que assim mereço parecer?’ Quer dizer: é uma aparência que ela tem para mim que eu devolvo como uma reflexão, uma dúvida que eu passo para a voz dela: ‘Será que ela se vê assim também? Será que aquele modo de vê-la não é uma distorção minha?’ Para ver se isso cabia como autorretrato mesmo, se ela se retrataria também assim. A intenção se parece com a que eu tive com ‘O compositor me disse’, feita para Elis Regina: a de ser um espelho falando para ela: ‘Olha como você está refletida aqui em mim: será que você também se vê assim?’
Porque, por um lado, há um aspecto granítico na personalidade e no modo artístico de se mover de Zezé Mota e porque, ao mesmo tempo, ela é uma mulher toda doce. No final, com ‘nunca uma Alemanha’, eu dou a ela o direito de contestar e dizer não; eu próprio já a vejo, a partir de um olhar contrário, de um outro ângulo, num desses contorcionismos psicológicos que às vezes devem ser feitos numa simples letra de canção, para poder dar conta do mistério da complexidade de um eu, de uma pessoa – procedimento que reflete também a minha própria complexidade.
O engraçado é que minha adesão ao mundo da música veio de uma necessidade pura e simples de louvá-lo; eu não entrei na música por uma necessidade particular de me expressar [ver, a propósito, o comentário de Gil sobre a composição ‘Meu luar, minhas canções’]. E no entanto, ao longo do tempo, em partes significativas da minha obra, uma expressividade própria, pessoal e única chegou a paroxismos, a vieses idiossincráticos, colocando-se como elemento criativo de uma forma muito forte. Nesses momentos, eu tive necessidade de impor meu olhar particular, como fiz, por exemplo, em ‘Poço fundo’ e em ‘Entre a sola e o salto’ – em que eu uso aquele truque de fantasiar que eu me miniaturizo para caber embaixo do salto alto de um sapato e apreciar a paisagem dali, para poder propiciar uma narrativa a partir de uma situação tão improvável, mostrando o prazer de provar o improvável, tão particularizante como modo expressivo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Plateia
Gilberto Gil
Representaria aquela ideia pagã
Da tribo frente ao ídolo
Do encanto frente ao brilho
Visão dum pai prum filho
Medo, espanto e adoração
Os olhos febris ali na frente
Buscariam encontrar a face de um deus
O pasmo frente ao mito
O afã do orgasmo pelo grito
Os corações aflitos
Dos hebreus frente a Moisés
Na derradeira fila da plateia, ao invés
Algo diferente dessa febre se dá
Como se os olhos, dali, fitassem através
Para além, depois, atrás do santo no altar
Sobre o palco, lá de longe, o que se retém
É mais etéreo, mais mistério, mais compaixão
Como se o olhar ali fosse o olhar da mãe
Meditando, vendo o filho a brincar no chão
Gravação
Danilo Penteado – Ling leng, 2019 – YBMUSIC
Comentário*
[Uma canção que tem uma história muito particular, já que foi composta originalmente em 1983, mas sua música se perdeu, e a letra acabou sendo musicada em 2017 por Danilo Penteado, músico, cantor e compositor de São Paulo. E que acabou musicando também outra letra, de 1984, de uma canção de Gil cuja música se perdeu, “Hoje o dia nasceu diferente”.]
Essa foi uma das canções que eu mandei num conjunto pra Bethânia. Das canções que eu mandava pra ela. Quando me esqueci da música, eu até mandei perguntar se ela teria uma fita com a minha gravação, mas ela não tinha mais. Aí a música se perdeu mesmo, eu não consegui recuperar. Até que chegou um dia o pedido desse menino pra autorizá-lo a musicar essa letra. Eu disse “tá, tudo bem”.
É interessante a letra, com traços psicanalíticos. Pai e mãe, masculino e feminino. A compaixão como elemento fundamental da feminilidade, da mãe que põe os filhos no mundo, para o mundo, para a vida. Os pais que querem nos filhos a reprodução de si mesmos, essa ideia da masculinidade relacionada à possessão, ao apossamento. A mãe é dádiva. A letra é interessante do ponto de vista temático e do jeito que é construída poeticamente.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Outros bárbaros
Gilberto Gil
Em nossos corações ainda resta um quê de ansiedade
Apesar de ter sido um grande prazer para todos
Resta saber se ainda queremos seguir
Querendo-nos, mútuo prazer
Outros bárbaros tão doces tão cruéis
Seguem vindo
Vivendo seus papéis de mocinhos e
De bandidos
Será que ainda temos o que fazer na cidade
Em nosso corações já reside um quê de saudade
De saudade
Gravações
Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Caetano Veloso – Outros (doces) bárbaros, 2004 – Conspiração Filmes e Biscoito Fino
Comentário*
[Na volta dos Doces Bárbaros, com Caetano, Gal e Bethânia, “Outros bárbaros” refletia sobre os versos “Com amor no coração/ Preparamos a invasão/ Cheios de felicidade/ Entramos na cidade amada”, de “Os mais doces bárbaros”, de Caetano, que abriu o álbum Doces bárbaros, de 1976.] Será que ainda tem aquela invasão proposta por Caetano? A quantas anda aquela questão? Aquela propunha a regeneração da utopia e essa aqui, mais reflexiva, já considerava a possibilidade das distopias que estão a caminho, em marcha pela modernidade, pela pós-modernidade, pelo transbordamento do consumismo, do capitalismo.
Os anos 1970 haviam sido essencialmente utópicos. Reinara a utopia. — Exatamente, e essa música chamava a atenção pro lado utópico daquelas investidas, com uma visão resguardada, crítica, por causa dos “[…] bárbaros tão doces, tão cruéis”, que “Seguem vindo vivendo seus papéis/ De mocinhos e de bandidos”, em referência às novas gerações, os sucessores, ao que vêm, à sucessão, à história. Uma crença na história. E a história não se reduz a um conto da carochinha; a história é barra-pesada.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Pílula de alho
Gilberto Gil
Da pílula de alho?
É uma pílula amarela
Cê toma uma daquela
Nem sabe o que é que sente
Mas a infecção já era
Eu tive dor de dente
Tomei algumas delas
As bichinhas logo agiram
Depois de certo (pouco) tempo
Senti-me melhorado
E os sintomas maus sumiram
A pílula de alho
Feita de alho e calor
É puro óleo de alho
É como a flor de dendê
É mel da planta isenta
De qualquer outro fator
A pílula de alho
Feita de alho e calor
A luminosidade
É de bola de gude
A transparência é cristalina
Vê-se que é coisa pura
Sente-se que é coisa nova
Sabe-se que é coisa fina
A pílula de alho
Da planta antibiótica
Da velha medicina
Que desenvolvimento!
Que belo (lindo) ensinamento
A pílula de alho ensina!
A pílula de alho
Feita de alho e calor
É puro óleo de alho
É como a flor de dendê
É mel da planta isenta
De qualquer outro fator
A pílula de alho
Feita de alho e calor
Gravações
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Gege
Gilberto Gil – To Be Alive Is Good (Anos 80), 2002 – Gege
Comentário*
Uma das minhas canções que tratam das qualidades medicinais das plantas e das ervas. Data de um dos períodos mais intensos de meu interesse pela alimentação natural, pelas plantas como supridoras de nutrientes para o ser humano. E reflete a ideia de a natureza ter todos os elementos suficientes para nos nutrir e para nos curar — a ideia da fitoterapia, a cura através das plantas, que estava ligada aos meus interesses gerais no campo do naturalismo, como a macrobiótica. Eu já havia feito “Jurubeba”, uma canção em que eu falo do poder curativo, dos benefícios hepáticos da planta assim chamada. No caso do óleo de alho, o efeito é anti-inflamatório, antibiótico, como no caso do óleo da copaíba (eu me lembro de ter curado inflamações de dente com óleo de copaíba).
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Pessoa nefasta
Gilberto Gil
Vê se afasta teu mal
Teu astral que se arrasta tão baixo no chão
Tu, pessoa nefasta
Tens a aura da besta
Essa alma bissexta, essa cara de cão
Reza
Chama pelo teu guia
Ganha fé, sai a pé, vai até a Bahia
Cai aos pés do Senhor do Bonfim
Dobra
Teus joelhos cem vezes
Faz as pazes com os deuses
Carrega contigo uma figa de puro marfim
Pede
Que te façam propícia
Que retirem a cobiça, a preguiça, a malícia
A polícia de cima de ti
Basta
Ver-te em teu mundo interno
Pra sacar teu inferno
Teu inferno é aqui
Pessoa nefasta
Tu, pessoa nefasta
Gasta um dia da vida
Tratando a ferida do teu coração
Tu, pessoa nefasta
Faz o espírito obeso
Correr, perder peso, curar, ficar são
Solta
Com a alma no espaço
Vagarás, vagarás, te tornarás bagaço
Pedaço de tábua no mar
Dia
Após dia boiando
Acabarás perdendo a ansiedade, a saudade
A vontade de ser e de estar
Livre
Das dentadas do mundo
Já não terás, no fundo, desejo profundo
Por nada que não seja bom
Não mais
Que um pedaço de tábua
A boiar sobre as águas
Sem destino nenhum
Pessoa nefasta
Gravações
Gilberto Gil – Raça Humana, 1984 – Warner Music
Gilberto Gil e BaianaSystem – Gil Baiana Ao Vivo em Salvador (Ao Vivo), 2020 – Gege e Máquina de Louco
Comentário*
Estranho personagem. Muita gente perguntou: “É Paulo Maluf? É não sei quem?”. Era a encarnação do pessimismo, do baixo-astral brasileiro, que, enfim, estava um pouco na figura do político, na do empresário, do tubarão, dos grandes patrões, dos poderosos da televisão… e na figura do bandido ruim, perverso, maldoso, sanguinário, que mata pra roubar — é até mais a esse personagem, de origem simples, humilde, que a música se dirige; é ele, mais identificado com a área popular, que melhor se incorpora à canção e é escolhido por ela, tanto que acaba sendo intimado a ir a pé à Bahia, ao Bonfim.
Eu havia sido assaltado e, sem dúvida alguma, o fato influiu na minha criação: “Pessoa nefasta” foi pra eles. Eram dois e, armados, nos imobilizaram, ficaram nos encarando, ameaçaram estuprar minha mulher e poderiam ter me matado, porque eu discuti com eles. É pro tipo de espírito deles que eu falo na letra, de sonoridades agressivas, toda no imperativo, como se dita por uma mãe de santo, um padre, um sacerdote, um guia espiritual, um exorcista: como um “vade retro, Satanás”. “Pessoa nefasta” é uma canção de exorcismo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Pela Internet 2
Gilberto Gil
Lancei minha homepage
Com 5 gigabytes
Já dava pra fazer um barco que veleje
Meu novo website
Minha nova fanpage
Agora é terabyte
Que não acaba mais por mais
que se deseje
Que o desejo agora é garimpar
Nas terras das serras peladas virtuais
As criptomoedas, bitcoins e tais
Novas economias, novos capitais
Se é música o desejo a se considerar
É só clicar que a loja digital já tem
Anitta, Arnaldo Antunes, e não sei mais quem
Meu bem, o iTunes tem
De A a Z quem você possa imaginar
Estou preso na rede
Que nem peixe pescado
É zapzap, é like
É instagram, é tudo muito bem bolado
O pensamento é nuvem
O movimento é drone
O monge no convento
Aguarda o advento de Deus pelo iPhone
Cada dia nova invenção
É tanto aplicativo que eu não sei mais não
What’s app, what’s down, what’s new
Mil pratos sugestivos num novo menu
É Facebook, é Facetime, é Google Maps
Um zigue-zague diferente, um beco, um CEP
Que não consta na lista do velho correio
De qualquer lugar
Waze é um nome feio, mas é o melhor meio
De você chegar
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
Uma retomada da mesma canção [“Pela internet”, de 1996] com inserção de outros elementos das várias questões levantadas pelo campo do ciberespaço, do mundo que surgiu com as tecnologias da cibernética. Na verdade esse “aggiornamento”, essa atualização, foi proposta pelo Nizan Guanaes. Ele fez algum trabalho, alguma coisa com “Pela internet”, e um dia me mandou uma mensagem dizendo: “Mas você podia atualizar essa música, botar no meio disso um bocado das coisas que apareceram depois. Você fez a primeira, e tal…”. Eu topei, “vamo embora!”. Vamos brincar com isso. Aí tem terabyte, bitcoins, criptomoedas, iTunes etc., por aí vai! Até que, no final, tem a gozada brincadeira com esse aspecto da utilização exaustiva das denominações e expressões em inglês que somos obrigados a fazer hoje em dia, criando uma quase nova língua tecnológica universal que se sobrepõe às nossas línguas particulares, de cada povo de cada lugar: a brincadeira com “Waze”, palavra que soa esquisita, estranha, “um nome feio” nesse sentido, mas “o melhor meio de você chegar”: quer dizer, o sentido utilitário profundamente interessante da tecnologia. Nizan provocou a atualização da canção que é basicamente a mesma, a mesma música só que com uma nova letra.
É mais uma “canção dupla” e mais uma que tem como tema a techné, um assunto caro à sua obra desde “Lunik 9”, “Cérebro eletrônico” e “Futurível”, passando por “Queremos saber”. — É. Com alguns insights interessantes, como “O pensamento é nuvem/o movimento é drone”, por exemplo. “O monge no convento/ Aguarda o advento de Deus pelo iPhone” talvez seja o momento mais especulativo sobre a dimensão misteriosa dessas novas tecnologias; bem incisivo e, nesse sentido, provocativo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Pela Internet
Gilberto Gil
Fazer minha home-page
Com quantos gigabytes
Se faz uma jangada
Um barco que veleje
Que veleje nesse infomar
Que aproveite a vazante da infomaré
Que leve um oriki do meu velho orixá
Ao porto de um disquete de um micro em Taipé
Um barco que veleje nesse infomar
Que aproveite a vazante da infomaré
Que leve meu e-mail até Calcutá
Depois de um hot-link
Num site de Helsinque
Para abastecer
Eu quero entrar na rede
Promover um debate
Juntar via Internet
Um grupo de tietes de Connecticut
De Connecticut acessar
O chefe da Macmilícia de Milão
Um hacker mafioso acaba de soltar
Um vírus pra atacar programas no Japão
Eu quero entrar na rede pra contactar
Os lares do Nepal, os bares do Gabão
Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular
Que lá na praça Onze tem um vídeopôquer para se jogar
Gravação
Gilberto Gil – Quanta, 1997 – Warner Music
Comentário*
Essa é uma das minhas canções de louvor à techné, em que eu falo das novidades tecnológicas para batizar as novas tecnologias, para consagrá-las, para fazê-las entrar no mundo poético, para que elas passem a fazer parte do mundo, se é que alguma reserva ainda pudesse estar existindo em relação a elas no sentido de consagrá-las, de dar a elas uma dimensão religiosa, um valor espiritual. Essas canções minhas servem para isso, têm sido para isso. E para, com essa intenção de inclusão espiritual, poder fazer relações entre as novas tecnologias e outros campos, no caso aqui, por exemplo, com a coisa dos orixás, com a coisa dos orikis. É o que eu mais gosto em ‘Pela internet’. Aí os jogos poéticos são todos enfim ensejados, e a poesia vai se construindo.
[Na gravação da música, Gil incorporou uma brincadeira verbal interessante relacionada à palavra ‘Connecticut’, introduzindo uma fala rápida e engraçada na qual diz: ‘Don’t cut my connection! I connect, you cut! I connect, you cut!’].
A letra segue para os lugares mais distantes, ‘os lares do Nepal’, ‘os bares do Gabão’, para dar conta da agilidade que caracteriza a internet. A propósito disso, uma coisa que me deu uma satisfação enorme em relação a essa música foi um texto do John Perry Barlow, o ante estudioso americano do cyberspace, que esteve aqui comigo no carnaval. Ele tem um ensaio sobre a internet na África, onde fala da incorporação ágil que o continente está fazendo desse meio. A internet apresenta uma vitalidade enorme, uma capilaridade extraordinária, hoje na África, que nesse campo está queimando etapas, enquanto em muitos outros se mantém subdesenvolvida ainda.
Na Índia acontece uma coisa impressionante: assim como você tem quiosques de telefone aqui, lá você tem orelhões de internet no país inteiro, podendo se conectar por e-mail, por fax, por telefone, tudo ali integrado. Em qualquer buraquinho, qualquer favelinha daquelas da Índia, você tem uma quantidade enorme de orelhões de internet. Eu vi lá, me surpreendi extraordinariamente com aquilo.
‘Pela internet’, o título, por fim, reforça o que esse samba também faz, que é reportar a oitenta anos atrás, quando provavelmente um mesmo tipo de estímulo tenha levado Donga e sua turma a fazer ‘Pelo telefone’: a incorporação alegre, lúdica, dos novos jogos tecnológicos; a intenção de jogar o jogo poético junto com o jogo tecnológico, de não perder a oportunidade disso.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Pega a voga, cabeludo
Gilberto Gil
Juan Arcon
Que eu não sou cascudo
Tenho muito estudo
Pra fazer minha embolada
Cá na batucada não me falta nada
Eu tenho tudo
Tenho uma tinta
Que no dia que não pinta fica feia
Tenho uma barca
Que no dia de fuzarca fica cheia
E a mulata que tem ouro
Que tem prata, que tem tudo
É quem grita: “Pega a voga
Pega a voga, cabeludo!”
[ Recolhida por Juan Arcon e adaptada por Gilberto Gil
e Juan Arcon, do folclore amazonense ]
Pela graça do sol
Gilberto Gil
Sofro as peripécias do amor
Luto pela praça maior
E a permanência da flor
Sonho com a raça melhor
Filha do prazer e da dor
Rolo como as pedras do chão
Quebro como as ondas do mar
Mudo como as nuvens do céu
Sempre soltas pelo ar
Amplo, abro o meu coração
Pra que tudo entre e encontre lugar
Lá-laiá-laiá
Lá-laiá-laiá
O que me faz cantarolar
Lá-laiá-laiá
Lá-laiá-laiá
É a esperança
De chegar criança
Ainda que crescida
Aos jardins do fim da vida
[ inédita ]
Pedra gigante
Gilberto Gil
Vaza um sol
A grandeza da Gávea
Zé Ninguém
Lá, gravita, levita o que era pó
Lá, fagulha a paisagem
Zoom e zen
Lá, descasca do corpo o fruto nu
Goza montanhas no mar
Beira céus, asa delta, ela feliz
Ela vem da fenícia, lenda flor
Xangô na força lunar
Na floresta ela vinga o dom da luz
A pedra, a glória de um Deus
Gravação
Cássia Eller – Com Você… Meu Mundo Ficaria Completo, 1999 – Universal Music
Pedaços de sinceridade
Gilberto Gil
Desejava ardentemente possuí-la
Melhor será, porém, sofrer do que traí-la
Sofrer a dor de não poder ser feliz
Viver na angústia, se Deus assim o quis
Há alguém em nossos caminhos
Pé quente, cabeça fria
Gilberto Gil
Pé quente, cabeça fria, dou-lhe duas
Pé quente, cabeça fria, dou-lhe três
Saia despreocupado
Você pode conquistar o mundo dessa vez
Pé quente, cabeça fria, dou-lhe uma
Pé quente, cabeça fria, dou-lhe duas
Pé quente, cabeça fria, dou-lhe três
Saia despreocupado
Faça tudo que você queria e nunca fez
Pé quente, cabeça fria, numa boa
Pé quente, cabeça fria, na maior
Pé quente, cabeça fria, na total
Saia despreocupado
Mas cuidado porque existe o bem e o mal
Pé quente, cabeça fria, numa boa
Pé quente, cabeça fria, na maior
Pé quente, cabeça fria, na total
Saia despreocupado
Mas se alguém se fizer de engraçado, meta o pau
Gravação
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa – Doces Bárbaros, 1976 – Philips
Comentário*
A letra utiliza um adágio, um ditado popular, um pouco para brincar com “Fé cega, faca amolada”, que era a música [de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos] que abria o show dos Doces Bárbaros — para o qual “Pé quente, cabeça fria” foi uma das canções especialmente compostas — e que era um dos grandes sucessos do Milton naquele momento. O emprego da expressão também tinha uma implicação com o “princípio único”; nesse sentido, mais uma forma de explicar o yin e yang e a complementaridade dos contrários. Mais uma das minhas canções que tinham uma intenção panfletária-contracultural, empregando pequenas palavras de ordem.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Pé da roseira
Gilberto Gil
E as flores caíram no chão
Quando ela chorava, eu dizia:
“Tá certo, Maria
Você tem razão”
Quando ela chorava, eu dizia:
“Tá certo, Maria
Você tem razão”
Maria chorava, eu fugia
Sem ter nada mais pra dizer
O amor terminado e Maria
Me via partindo, sem saber por quê
Me via partindo e chorava
Me amava e não podia crer
Que o mundo afinal me levava
E nada lhe dava o jeito de entender
Eu também não compreendia
Porque terminava um amor
Nem mesmo se o amor terminava
Só sei que eu andava
E não sentia dor
Me lembro na porta da casa
Lá dentro Maria chorava
Depois, caminhando sozinho
Lembrei da ciranda que meu pai cantava
Depois, caminhando sozinho
Lembrei da ciranda que meu pai cantava
O pé da roseira murchou
E as flores caíram no chão
Quando ela chorava, eu dizia:
“Tá certo, Maria
Você tem razão”
Quando ela chorava, eu dizia:
“Tá certo, Maria
Você tem razão”
Gravação
Gilberto Gil – Gilberto Gil (1968), 1968 – Philips
Comentário*
“Sobre o tratamento não sentimentalista que ‘Pé da Roseira’ dá ao tema do fim do amor, razão de seu caráter original em se tratando de uma canção que aborda a perplexidade da constatação do término do sentimento amoroso – embora, mais do que isso, o que ela, ou o seu personagem, indo além, faça, seja até duvidar se o amor acaba de fato – É razoável, nesse sentido, considerar que ‘Pé da Roseira’ também se insere, dialogando com ‘Amor até o fim’ e com ‘Drão’, naquele
conjunto de canções de amor minhas em que a recusa a compreender o amor como finito é levada à insistência absoluta, com a particularidade, no caso de ‘Pé da roseira’, de haver o aspecto da secura à la Graciliano Ramos (“o pé da roseira murchou”).
‘O pé da roseira murchou/ E as flores caíram no chão/ Quando ela chorava’, eu dizia:/ ‘Tá certo, Maria/ Você tem razão’: isso também é uma ciranda; ou seja, em ‘Pé da Roseira’ [a exemplo do que ocorre em ‘Barca Grande’] de novo uma ciranda é aproveitada como tema de uma canção, instaurando duas atmosferas musicais diferentes, uma delas – o que faz o aproveitamento da ciranda – dando conta da resignação diante da grande aflição causada pela transformação dos sentimentos numa coisa sustentável…”
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Parabolicamará
Gilberto Gil
Porque Terra era grande
Hoje mundo é muito grande
Porque Terra é pequena
Do tamanho da antena parabolicamará
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo dá volta, camará
Antes longe era distante
Perto, só quando dava
Quando muito, ali defronte
E o horizonte acabava
Hoje lá trás dos montes, den de casa, camará
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo dá volta, camará
De jangada leva uma eternidade
De saveiro leva uma encarnação
Pela onda luminosa
Leva o tempo de um raio
Tempo que levava Rosa
Pra aprumar o balaio
Quando sentia que o balaio ia escorregar
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo dá volta, camará
Esse tempo nunca passa
Não é de ontem nem de hoje
Mora no som da cabaça
Nem tá preso nem foge
No instante que tange o berimbau, meu camará
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo da volta, camará
De jangada leva uma eternidade
De saveiro leva uma encarnação
De avião, o tempo de uma saudade
Esse tempo não tem rédea
Vem nas asas do vento
O momento da tragédia
Chico, Ferreira e Bento
Só souberam na hora do destino apresentar
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo dá volta, camará
Gravação
Gilberto Gil – Parabolicamará, 1991 – Warner Music
Comentário*
Eu queria fazer uma canção falando dos contrastes entre o rural e o urbano, o artesanal e o industrial, usando um linguajar simples, típico de comunidades rudimentares, e uma cadência de roda de capoeira. Aí, compondo os primeiros versos, quando me ocorreu a palavra “antena” — seguida de “parabólica” — para rimar com “pequena”, eu pensei em “camará” [palavra usada comumente nas cantigas de capoeira como vocativo] para completar a linha e a estrofe. Como “parabólica camará” dava um cacófato, eu cortei uma sílaba “ca” e fiz a junção das palavras, criando o vocábulo “parabolicamará”. Uma verdadeira invenção concretista; uma concreção perfeita em som, sentido e imagem. Nela, como um símbolo, vinham-me reveladas todas as interações de mundos que eu queria fazer. Aí se tornou irrecusável prosseguir e, mais, fazer daquilo um emblema do conceito, não só da canção, mas de todo o disco (Parabolicamará).
Em “Parabolicamará”, pus o tempo existencial, psíquico, em contraposição ao tempo cronológico — a eternidade, a encarnação e a saudade à jangada e ao saveiro, e estes dois ao avião —, para insinuar o encurtamento do tempo-espaço provocado pelo aumento da rapidez dos meios de comunicação física e mental do mundo-tempo moderno e das velocidades transformadoras em que vivemos. Pus também o tempo subatômico, da partícula, da subfração de tempo; do átomo de tempo, cuja imagem mais representativa é exatamente a correção equilibradora que a Rosa faz com o balaio. E pus por fim o tempo da morte, o tempo-corte, o tempo que corta, ceifa, o tempo-foice, onde alguma coisa é e de repente foi-se, lembrando — na citação dos caymmianos Chico, Ferreira e Bento — a morte do meu filho: a situação, segundo se imagina, de ele meio sonolento no volante do carro sendo subitamente assaltado pelo evento acidental que o levaria à morte.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Patumbalacundê
Gilberto Gil
João Donato
Durval Ferreira
Orlandivo
Patumbalacundê – um pé
Patumbalacundê – um lá
Patumbalacundê – um sol
Patumbalacundê – um faz
Patumbalacundê – um diz
Patumbalacundê – um dez
Patumbalacundê – um ás
Patumbalacundê – um giz
Patumbalacundê – um tom
Patumbalacundê – talvez
Patumbalacundê – um gás
Gravação
João Donato – Lugar comum, 1975 – Philips
Comentário*
‘Patumbalacundê’ é uma onomatopéia, pura e simples; um ‘esquindô’ desses… Nós o inventamos.
O porquê do uso de uma palavra dessas em música – Em primeiro lugar, há o desejo de associar o canto a palavras conhecidas que vêm de línguas nativas, indígenas, brasileiras ou africanas, que deixaram uma série de pequenas células musicais cantadas com essas palavras; o desejo de imitar sonoridades de línguas tribais. Em segundo lugar, há o sentido de balanço que esses termos onomatopaicos dão, por serem em geral ligados a silabares explosivos, a letras como B e P, de sonoridades percussivas, que sugerem sons de tambor: de percussão grave, com ressonâncias de O e U, ou aguda, de E e A e I; em suma, o sentido de vincular vocábulos ao percutir de tambores e, aí, já por extensão, a contextos tribais, a rodas de batuque, rodas de celebração, de índios, de negros.
O gosto de Donato por essas palavras sons – Ele é muito atraído pela palavra associada à ideia de percussão, tanto que ele vai buscar muita coisa nas células folclóricas da Bahia, na tradição dos cantos iorubás da umbanda, do candomblé.
Ele estimula ativamente os parceiros a usarem palavras desse tipo; ele prestigia vocabulários que estejam dentro desse estilo. Eu era bastante instigado por ele nesse sentido. Ele possui uma musicalidade que gosta de se expressar através de modos assim, infanto-juvenis, pré-adultos (todo menino gosta de batuques), em que os estímulos são muito vitais, muito corporais, de energia pura e fruição simples e natural: uma música pouco intelectualizada e muito orgânica.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Panis et Circenses
Gilberto Gil
Caetano Veloso
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e em morrer
Mandei fazer
De puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e em morrer
Mandei plantar
Folhas de sonho no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar
Mas as pessoas na sala de jantar
Essas pessoas da sala de jantar
São as pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e em morrer
Gravações
Tropicália – Tropicália Ou Panis Et Circensis, 1968 – Universal Music
Os Mutantes – Os Mutantes, 1968 – Universal Music
Marisa Monte – Barulhinho Bom, 1996 – Phonomotor
Gilberto Gil – Concerto de cordas e Máquinas de ritmo (Ao Vivo), 2012 – Biscoito Fino
Margareth Menezes – Para Gil & Caetano, 2015 – Estrela do Mar
Palco
Gilberto Gil
Minha alma cheira a talco
Como bumbum de bebê
De bebê
Minha aura clara
Só quem é clarividente pode ver
Pode ver
Trago a minha banda
Só quem sabe onde é Luanda
Saberá lhe dar valor
Dar valor
Vale quanto pesa
Pra quem preza o louco bumbum do tambor
Do tambor
Fogo eterno pra afugentar
O inferno pra outro lugar
Fogo eterno pra consumir
O inferno fora daqui
Venho para a festa
Sei que muitos têm na testa
O deus Sol como um sinal
Um sinal
Eu, como devoto
Trago um cesto de alegrias de quintal
De quintal
Há também um cântaro
Quem manda é a deusa Música
Pedindo pra deixar
Pra deixar
Derramar o bálsamo
Fazer o canto cântaro cantar
Lalaiá
Fogo eterno pra afugentar
O inferno pra outro lugar
Fogo eterno pra consumir
O inferno fora daqui
Gravações
A Cor do Som – Geração Pop, 1978 – Warner Music
Gilberto Gil – Luar, 1981 – Warner Music
Gilberto Gil – Unplugged (Ao vivo), 1994 – Warner Music
Gilberto Gil – Quanta Gente Veio Ver (Ao vivo), 1998 – Gege
Jorge Vercilo – Um barzinho, um violão/ Sem Limite (ao vivo), 2007 – Universal Music
Djavan – Ária, 2010 – Luanda Records
Gilberto Gil, Nando Reis e Gal Costa – Trinca de Ases (Ao vivo), 2018 – Gege
Gilberto Gil – Em casa com os Gil, 2022 – Gege
Thiaguinho – Meu nome é Thiago André (ao vivo), 2022 – Paz & Bem
Comentário*
Eu estava havia três dias pensando em parar de cantar; em deixar a sequência profissional de discos e shows. Estava prestes a tomar essa decisão – e avisar todo mundo -, mas não por uma razão que tivesse a ver com cantar, que é a coisa que mais me encanta na vida. Minha sensação era de fastio; eu queria era um elemento que me trouxesse um novo ânimo. ‘Se eu vou parar mesmo’, pensei, ‘eu tenho que fazer uma declaração pública, e essa declaração tem de ser musical.’ Aí eu fiz Palco, uma canção que era na verdade pra não deixar dúvida a respeito de tudo o que cantar representa para mim, e a respeito da minha relação com a música – simbolizada de forma completa pelo estar no palco.
De que fala Palco (“o primeiro afoxé forte”) – “De um espaço semi-sagrado; da sua função exorcizante, catártica, clínica – daí o refrão (na hora em que compus, eu me lembrava muito do pouco que sabia sobre as tragédias gregas, o palco grego, Dionísios).
“De um sacerdócio; da capacidade de administrar um ritual – o da música em funcionamento, cumprindo seus ditames; de como eu me vejo nesse papel, como eu fantasio a minha visão e como eu vejo essas fantasias do meu próprio olhar.
Do aspecto transmutador da música para mim no palco: de como estar ali faz provavelmente desaparecer uma opacidade natural do caráter bruto das coisas comuns sem sabores especiais do cotidiano, e como o haver ali sabores especiais em tudo me dá um aspecto de transfiguração – daí a ideia de que ali se propicia que alguém veja minha aura.
Compor e cantar – Duas dimensões e dois retornos diferentes à alma. Compor é motivo de extraordinário, transcendental orgulho pela vida, o de fazer parte do universo da criação; cantar é motivo de vaidade. É muito envaidecedor estar num palco e produzir prazer instantaneamente para todos – uma afirmação anímica de vida da música através das energias dos corpos humanos ao vivo. No palco, além de diversão, a sensação é de doação, de benfeitoria do homem para o homem. Já o momento da composição é solitário, individual, e, ao se esgotar, daí por diante é como se a música partisse para o mundo, como um filho. Cantar é reabraçar os filhos, reuni-los de novo ao seu corpo, fazê-los parte do seu corpo.
“Cântaro = cantar o” – Quando eu digo ‘cantar o’, eu digo de novo ‘cântaro’. Mais do que rima, é recomposição: a palavra ‘cântaro’ é reconstituída, como se tivessem embutido ali o cântaro. Muitas pessoas não devem nem perceber o ‘cantar o’; na audição deve prevalecer ‘cântaro’ mesmo.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Pai e mãe
Gilberto Gil
Aprendendo a beijar
Outros homens
Como beijo o meu pai
Eu passei muito tempo
Pra saber que a mulher
Que eu amei
Que amo
Que amarei
Será sempre a mulher
Como é minha mãe
Como é, minha mãe?
Como vão seus temores?
Meu pai, como vai?
Diga a ele que não
Se aborreça comigo
Quando me vir beijar
Outro homem qualquer
Diga a ele que eu
Quando beijo um amigo
Estou certo de ser
Alguém como ele é
Alguém com sua força
Pra me proteger
Alguém com seu carinho
Pra me confortar
Alguém com olhos
E coração bem abertos
Pra me compreender
Gravações
Gilberto Gil – Refazenda, 1975 – Philips
Ney Matogrosso – Songbook Gilberto Gil, Vol. 1, 1992 – Lumiar Discos e Sony Music
Gilberto Gil e Preta Gil – Single, 2021 – Gege
Comentário*
Composta no dia em que eu completei 33 anos, 26 de junho de 1975. Uma música de confissão de afeto profundo pelos pais, colocando todos os homens queridos como sendo um prolongamento do pai e todas as mulheres amadas como um prolongamento da mãe. Meus pais moravam em Vitória da Conquista na época e festejaram muito a canção.
Do livro GiLuminoso: A Po.Ética do ser, de Bené Fonteles e Gilberto Gil, editora UnB, 1999. “Estava dirigindo meu carro ali pelo Jardim de Alá, em Salvador, voltando pra casa. E me veio aquela coisa: ‘Dia do meu aniversário, dia em que nasci’. Veio a ideia de origem, de onde a gente vem, pai e mãe, com aquele sentimento de filiação e aquela coisa de: ‘Vou me dar um presente!’. Essa música é uma meditação sobre e para me endereçar a meu pai e minha mãe. E me dirigi primeiro a ele: ‘Eu passei muito tempo/Aprendendo a beijar/Outros homens/Como beijo meu pai’. Veio ele como o outro, o próximo e o irmão. Tive aquela ideia de projeção. Eu tinha vindo dele, que tinha me gerado, e a minha vida gerava mundos circundantes aos outros seres. Enfim, veio o sentimento do fato de pertencer à humanidade, participar e partilhar dessa condição humana com os outros. Tudo isso tinha sido proporcionado pelos meus pais e era essa a gratidão, a ideia desse presente.”
Havia também nele um resgate e um apaziguamento com as imagens arquetípicas que representavam seus pais? — Claro! Veio a oportunidade de dialogar, de resolver algumas questões afetivas. É uma música profunda sobre a afetividade filial, nesse sentido do núcleo primeiro, onde esse afetivo se engendra e medra, que é a família. O núcleo das pessoas mais próximas e ascendentes sobre você, pai e mãe. Isso falando da configuração de uma família clássica, que é onde está a minha origem. Eu tive os dois ali, juntos. Meu pai fez o meu parto em casa. Nasci parido por um pai e uma mãe. Tudo aquilo me ocorria naquele momento e com a ideia de acertos de conta de uma geração. Eu, adulto, completando 33 anos, uma idade simbólica, a de Cristo, e atingindo a maioridade no sentido do amadurecimento do espírito. Era também um diálogo sobre os confrontos entre os valores da geração passada e da presente. Aproveitei para fazer daquela canção uma conversa de gerações.
Separadas, às vezes, e apenas, pela delicadeza de um beijo. — Pelo fato de beijar outros homens, que era uma questão delicada do ponto de vista dos hábitos e convenções da nossa sociedade naquela época, um hábito já muito mais comum hoje. Na verdade, esse hábito não se espalha democraticamente para outras relações entre homens, quando transcende as fronteiras do lar. Ali se ergue uma barreira convencional no modus operandi social, através da qual ficam proibidas ou dificultadas essas delicadas relações. Pertenço a uma geração que teve e tem, entre suas amplas tarefas, revolver a terra e remexer nesses tabus, ao trabalhar essas questões de afetividade, de dar testemunho, ter um compromisso em colocá-las além das convenções até então estabelecidas. Eu tinha essa missão de ser no Brasil um dos primeiros da minha geração, junto com Caetano, a criar o hábito de beijar amigos e ter uma afetividade que só era permitida entre homens e mulheres. E queríamos entre homens e homens um afetivo mais aberto, uma capacidade de demonstrar carinho que ainda não era permitida ser exercida pelos homens entre si.
Essa música abria a possibilidade de um diálogo mais afetuoso e humano num país magoado e reprimido. Era e é uma conversa familiar e universal. — Ela é um diálogo de/entre gerações para explicar ao meu pai que, quando beijo outros homens, estou beijando-o. E à minha mãe que, quando amo outras mulheres, estou por extensão amando-a e estendendo o amor que tenho por ela a todas. É uma música muito profunda…
Naqueles seus 33 anos, você ainda estava resolvendo alguns conflitos familiares ou já estava tudo resolvido? — Pelo menos resolvi escolher aquele dia como símbolo disso. Me ocorreu que aquele dia era um momento bom e havia suficientes dados nessa data para que eles fossem estandartizados, eleitos como bandeira. Essa música era, por causa disso tudo, para dizer ao meu pai: “Não tenha vergonha de mim. Não se preocupe com seus amigos em relação a mim, porque os seus amigos todos são uma extensão de você e não adianta os seus amigos me censurarem. Não se envergonhe de seu filho diante da sua geração e não sinta esse meu modo de agir como um problema para você. Você é homem e eu sempre o beijei, nunca houve problema em lhe dar um beijo”.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Músico simples
Gilberto Gil
Tinha sido tocado num tom muito alto
Desafinei sete vezes na noite
Saí da boate chorando
Sonhos desse tipo são comuns
Para um músico simples dos bares da vida
Sonhos do eco
Do medo
Da culpa
Do erro
Da noite perdida
E tantos outros ecos
Pode um sonho representar
Ressonância
Ânsia
Reverberação
Coração despedaçado
Dobrado
Choro
Fado
Tango
Triste acordeom
Gravações
Johny Alf – Nós, 1974 – EMI
Gilberto Gil – O Sol de Oslo, 1998 – Pau Brasil
Gilberto Gil – O Viramundo, Vol. 2 (Ao Vivo), 1999 – Gege
Gilberto Gil – Satisfação (Raras e Inéditas), 1999 – Universal Music
Comentário*
Johnny Alf me pediu uma canção, e aí eu acabei aproveitando um fragmento de visão delirante sobre o músico, porque o assunto associava tanto ele quanto tantos outros músicos ao mundo dos que têm uma relação profunda, lírica mesmo, com a música. Fiz então uma canção impressionista, tanto musical quanto poeticamente, sobre um sonho hipotético — para um músico, um pesadelo: ele vai cantar e, de repente, alguém lhe dá uma tonalidade muito alta… Música construída impressionisticamente, com paisagens nitidamente impressionistas — pois Johnny Alf é um impressionista popular, um impressionista do samba, da canção, da música brasileira — e de uma suavidade e delicadeza que são típicas dele; que estão traduzidas em tantas e tantas letras de músicas dele.
A canção dá conta do que é “viver na noite”; do que está associado à ideia de transgressão, de pecado, de excesso, de desvios de conduta, característicos dos lugares do confinamento dos artistas, onde eles são ao mesmo tempo livres e presos; as prisões iluminadas deles. A música se parece muito com Johnny Alf e com tudo que ele foi, aparentando ter uma vida minimamente atormentada, todo retraído e recluso. Um músico do silêncio, como João Gilberto. Ambos de uma mesma época; ambos reservados, tímidos. Quando penso nele, penso no João; penso no João, penso nele. João gosta muito dele também, assim como uma espécie de cúmplice, de companheiro de mundos diferentes, estranhos, daqueles anjos tortos.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Músicas incidentais
Gilberto Gil
Música moderna
Gilberto Gil
Feita descaradamente por amor
Como outra qualquer canção
Feita descaradamente por amor
Como uma modinha antiga feita por amor
De uma vulgaridade total
Eu queria tanto essa canção e no entanto
O que eu canto agora é
Simplesmente música moderna
Feita pra consumo como fumo é
Como tudo que se vê no mundo agora é
Produto da era industrial
Como Coca-Cola ou a marca Pelá
De uma realidade brutal
Outra Coisa
Gilberto Gil
Outra coisa é lhe bem querer
Uma coisa é brincar de trancelim
Outra é destilar teu prazer
Doce, alcaçuz
Pele, gosto e noz
Rara, tua luz
Brilha, floração
Solta, amplidão
Uma coisa é querer você pra mim
Outra coisa é lhe cortejar
Uma coisa é o estandarte de brim
Outra, o coração desfilar
Livre, quando diz
Firme, tua voz
Forte, como quis
Para ser explosão
Um “q” de vulcão
Uma coisa é querer você pra mim
Outra coisa é lhe ter amor
Uma coisa é o teu sabor de gin
Outra, o teu perfume de flor
Musa cabocla
Gilberto Gil
Waly Salomão
Papagaio nenhum solta um pio
Sereia canta sentada na pedra
Marinheiro tonto medra pelo mar
Sou pau de resposta, jiboia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela
Coração pipoca na chapa do braseiro
Sou baunilha, sou lenha que queima
Que queima na porta do formigueiro
E ouriça o pelo do tamanduá
Mãe matriz da fogosa palavra cantada
Geratriz da canção popular desvairada
Nota mágica no tom mais alto, afinada
Sou pau de resposta, jiboia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela
Ouço
Gilberto Gil
Todos os corações batendo
Todos os corações do mundo
Batendo
Ouço
Todo esse barulhão que fazem
Toda essa percussão selvagem
Batendo
Ouço
Muitos dos corações se calam
Muitos dos corações se falam
Mais alto
Ouço
Todos os corações do mundo
Sim, todos eles me tomando
De assalto
Ouço
É a voz do amor fraterno
A nos livrar do inferno latente
Ouço
Todos os corações batendo
Ouço sim e por fim me entendo
Por gente
Gravação
Gilberto Gil – OK OK OK, 2018 – Gege
Comentário*
[À menção de que, em termos atmosféricos, sonoramente falando a canção lembra faixas de Raça humana]: Especialmente porque é feita a partir de um gênero vigoroso que é o rock ‘n’ roll. “Ouço” é um rock pesado, heavy. Uma retomada daquela motivação enquanto gênero musical, enquanto forma de expressão juvenil, ligada à ideia de juventude, com um vitalismo jovem. Essa é a base, digamos assim, anímica da canção. Mas há o campo linguístico, mental, espiritual, todo ligado à ideia da fraternidade.
A pletora rítmica estabelecida pela fusão das batidas de muitos corações, esses tambores físicos, e uma tentativa de interpretação de significados possíveis dessa percussão, desse batuque. O que eles dizem, o que querem dizer? “É a voz do amor fraterno/A nos livrar do inferno/ Latente”. O conforto da solidariedade: como somos finalmente confortados pela ideia do solidário, pela ideia de que somos uma coisa só, somos seres humanos para uma única grande e completa humanidade.
E por fim: “Me entendo por gente”. — Sou um desses pequenos tambores dessa grande orquestra de percussão. É isso.
Sobre “Ouço” datar do mesmo período (de preparação do repertório do disco OK OK OK ) de “Quatro pedacinhos” e “Kalil”, canções relacionadas com o tratamento do coração a que ele se submeteu, e falar de coração — o vocábulo que, no plural, mais se pronuncia na letra. — Exato. Ele acabava, indiretamente, servindo de mote. E acabou explicitamente citado, manifestado em vários momentos das canções.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil
Mulher de coronel
Gilberto Gil
Tome o que eu tenho pra dar
Se não servir pra você
Atire tudo no mar
Diga o que você disser
Sei que não vou me importar
Faça o que você fizer
Não deixarei de te amar
Onde você mora
Mora o meu coração
Quando você chora
Chora tudo que é olho
Da minha solidão
Se você namora
Ora, meu Deus
Que feliz deve ser
O mortal que provar
Desse mel que escorrer
Dos teus lábios, então
Gravações
Gilberto Gil – O Eterno Deus Mu Dança, 1989 – Warner Music
Enok Virgulino – Mulher de Coronel (single), 2022 – Enok Virgulino
Comentário*
[Uma canção antimachista em que a “mulher de coronel” é na verdade homem: é o “coronel” — só que, nas palavras de Gil:] redimido do seu machismo na condição de amante endoidecido e extasiado diante da mulher que lhe inspira um amor tão grande que ele se regozija com a possibilidade de ela distribuí-lo generosamente para outros mortais.
Como era uma música nordestina, um xote, eu quis usar a imagem comum dos velhos coronéis do mundo rural — com suas amantes e uma mulher sempre submissa — para extrapolá-la. A verdade é que eu me lembrava também de casos similares (ao da canção) de que se tinha notícia no meu tempo de garoto onde eu morava: histórias de velhos apaixonados amantes de prostitutas; de senhores bem estabelecidos, comerciantes ou fazendeiros, que sustentavam e amavam uma determinada mulher com uma benevolência e uma transpossessividade que transbordava, acabando por incluir a abnegação.
*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil